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A comissão de alto
nível. História da Emenda Constitucional nº 1, de 1969
Caetano
Ernesto Pereira de Araújo*
Eliane Cruxên Barros de Almeida Maciel**
INTRODUÇÃO
"Está para se escrever a história da reforma constitucional de 1969.
Sofreu intermináveis marchas e contramarchas, fruto de um entrechocar constante
das duas tendências referidas." (Chagas, 1979)
O processo de elaboração da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, cuja
peça central, as "Atas da Comissão de Alto Nível para a reforma da Magna
Carta de 24 de janeiro de 1967", vem a público por iniciativa do Senado
Federal, fornece novos elementos para a interpretação do período de governos
militares que se instaura, no País, em março de 1964.
Em primeiro lugar, por constituir um espaço de discussão interna a
respeito do ordenamento legal do País, num momento em que o regime caminhava
nitidamente no rumo do endurecimento. Em segundo lugar, por apresentar, de
maneira condensada, as mesmas linhas de conflito que acompanharam todo o
período e que, ao fim, determinaram a maneira particular de sua superação.
Para compreender, portanto, em sua plenitude, o significado do processo
de reforma constitucional que tem lugar em 1969, é necessário discutir as
tensões internas ao regime, assim como os tipos de relação com a oposição que
essas tensões propiciaram.
A heterogeneidade das forças que promoveram o golpe militar de 1964 é
constatada na literatura. Para os fins a que se propõe este estudo, no entanto,
não interessa especular sobre os distintos projetos para o País, que se
agruparam na aliança contrária ao Presidente João Goulart. Nosso enfoque será
dirigido a uma tensão fundamental, presente no ideário do movimento e
imediatamente transposta para uma divisão entre seus partidários: aquela que
opõe moderados e linha dura.
Desde seu início, o movimento combinava dois objetivos diferentes, que
muitas vezes revelaram-se antagônicos, nos 21 anos que durou o regime. Combater
a ameaça, real ou imaginária, representada pela esquerda,
e criar as condições para o retorno a uma ordem democrática, depurada dos
elementos de subversão e corrupção que teriam florescido à sombra da
Constituição de 1946.
A linha dura considerava prioridade o combate à esquerda, que
justificaria a adoção de inúmeras medidas "revolucionárias", de
restrição progressiva da democracia. Os moderados defendiam a
intervenção cirúrgica, não continuada, e o retorno breve a uma situação
de normalidade.
Nas palavras de um dos partidários do movimento: "As divergências
aos poucos definiriam duas linhas distintas nas hostes revolucionárias. Uma
radical, ortodoxa, convicta de que o êxito da revolução seria medido pela
amplitude e pela energia das punições. Essa facção, que defendia uma ação mais
drástica do governo, ficou conhecida como linha dura. Outra, liberal ou
constitucionalista, que via nas punições um meio, nunca um objetivo da
revolução." (Agnaldo Augusto, 2001, p. 156)
A tensão entre as duas concepções, mais legalidade ou mais revolução,
marcou o período inteiro. Determinou a forma que veio
a tomar a superação do regime, forma singular se comparada aos demais regimes
militares latino–americanos. Na verdade, quase sempre as ações governamentais
resultaram de compromissos entre ambos os grupos e deram a pauta para a
interação com as diversas formas de oposição ao regime.
A divisão entre moderados e linha dura repercutia no campo da oposição,
nele traçando uma fronteira móvel que separava os partidários da oposição
institucional, nos espaços de legalidade deixados pelo regime, e os adeptos do
abandono desses espaços, em razão de sua manifesta inutilidade. Durante muito
tempo, a cada avanço da oposição correspondeu uma mudança nas regras do jogo,
de maneira a retornar à situação anterior. Para muitos, portanto, o abandono da
luta institucional aparecia como conseqüência lógica a ser extraída da
experiência recente.
Nessa última vertente encontravam-se os partidários da oposição armada,
mas não somente eles. Enquadraram-se nesse campo também todas as propostas de
voto nulo, assim como todos os momentos em que o MDB discutiu
sua autodissolução.
Parece claro que, nesse complexo campo de forças, as ações da linha dura
e da oposição não institucional reforçavam-se mutuamente. A oscilação do
governo para o fechamento empurrava os oposicionistas para
fora do espaço, cada vez menor, da institucionalidade.
Toda oposição não institucional e boa parte da oposição
parlamentar e eleitoral era, em contrapartida, percebida como pretexto
para reforçar o fechamento.
Por outro lado, o diálogo entre a oposição institucional e os setores liberais do regime demorou até encontrar seu
ponto de reforço mútuo. No entanto, o que pareceu por muito tempo improvável –
e mesmo contrário a toda lógica – acabou por acontecer, e a normalidade
democrática foi alcançada num processo que culminou com uma aliança formal
entre ambos os grupos, em 1985, no âmbito do colégio eleitoral. A fresta de
legalidade que o regime havia deixado foi progressivamente ampliada, num jogo
de pressões e concessões, até a instauração do Estado de Direito.
Até esse momento decisivo, o vetor resultante da oposição entre moderados
e linha dura pode ser sintetizado da seguinte forma. O regime recorria ao
arbítrio sempre que as necessidades do movimento o exigissem. No entanto, a
aparência de democracia deveria ser preservada ao máximo. Em outras palavras,
os Presidentes tinham mandatos definidos, o Congresso funcionava sempre que
possível, o Judiciário mantinha alguma margem de decisão. Mesmo o arbítrio na
sua forma pura devia ser institucionalizado, e, pelo menos no início, obedecer
a regras e prazos para sua utilização. Daí o recurso aos atos institucionais e
complementares, o apego à legalidade formal num período de exceção, que tanta
estranheza causa a estudiosos estrangeiros, como Skidmore
(1988).
Essa preservação das formas da democracia, mesmo nos momentos menos
plausíveis, pode ser atribuída a duas fontes distintas, embora relacionadas
entre si. A primeira remete ao ethos da corporação
militar brasileira, já constituído no tempo do Império. Para os militares, a
diferenciação em relação às forças armadas hispano-americanas, às práticas dos
"pronunciamentos" e das ditaduras personalizadas, constituía ponto de
honra. Essa preocupação revelou-se na proclamação da República e as críticas
dos monarquistas, particularmente de Eduardo Prado (1890), encaminharam-se
justamente nessa direção.
A segunda diz respeito à inspiração liberal de parte dos conspiradores,
civis e militares, de 1964. Formados na escola da UDN, seu liberalismo
encontrava-se mesclado, desde 1945, de elementos golpistas, do recurso, sempre
presente, a medidas de força para "salvar" as instituições,
salvá-las, na verdade, do povo que as punha em risco ao eleger corruptos e
subversivos.
No entanto, o fato de o liberalismo da UDN haver sido complacente com
movimentações golpistas – e mesmo tê-las estimulado – não autoriza sua
condenação simples como discurso vazio, de fachada, sem conseqüências
históricas de peso.
A história da Comissão de Alto Nível, assim como a história de todo o
processo de redemocratização do País apontam, como veremos, na direção
contrária.
Antecedentes
Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através
do Congresso. Este é o que recebe deste Ato Institucional, resultante do
exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua
legitimação. Preâmbulo do Ato Institucional nº 1.
a) A Constituição de 1967
Justificado como uma necessária e curta intervenção para defender a ordem
e a democracia, que setores militares e civis consideravam ameaçadas pela
corrupção e pela agitação de sindicalistas e comunistas, o movimento de 31 de
março de 1964 durou mais do que previam seus mentores e fez mais do que
combater essas ameaças. Com o apoio dos grupos mais conservadores da sociedade,
as Forças Armadas assumiram o poder de Estado em nome da segurança e do
desenvolvimento, calaram ou eliminaram oposicionistas, suprimiram direitos individuais
e deixaram um espaço variável, embora cada vez mais restrito, para a
manifestação política da sociedade.
A tensão entre a manutenção da ordem legal e sua transformação por atos
de força manifesta-se nos primeiros dias do movimento. Após a deposição de João
Goulart, o movimento militar exige a indicação de um novo Presidente. O
Presidente do Senado, Auro de Moura Andrade declara, sem qualquer amparo legal,
a vacância da Presidência da República. Assume imediatamente, dessa vez dentro
da legalidade, o Presidente da Câmara, Ranieri Mazzili.
O poder real está nas mãos dos militares. O comando militar do movimento exige
do Congresso poderes para expurgar e remodelar o ordenamento legal do País,
para combater a ação subversiva.
As primeiras mudanças institucionais ocorrem por meio de atos
institucionais, entendidos como manifestações do poder constituinte inerente a
todas as revoluções. Solicitado a colaborar, o Congresso prepara um ato que,
considerado manifestamente insuficiente, é rejeitado em favor do Ato
Institucional n° 1, editado a 9 de abril de 1964,
pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
Que prevê o Ato? A manutenção da Constituição de 1946 com várias
modificações, assim como o funcionamento do Congresso. Estabelece eleições
indiretas imediatas para Presidente e Vice-Presidente da República. Também
concede aos chefes militares autores do ato, "no interesse da paz e da
honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição", poderes
para suspender os direitos políticos pelo prazo de dez anos e para cassar
mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, e de suspender direitos
políticos, mediante atos imunes a apreciação judicial.
Prevê ainda a apresentação de emendas constitucionais pelo Presidente, com
prazo definido para sua apreciação; a iniciativa exclusiva do Executivo para
projetos que impliquem despesas; a declaração, quando necessário, de estado de
sítio pelo Presidente, por 30 dias, prorrogáveis por mais 30; a suspensão, por
seis meses, das garantias de vitaliciedade e de estabilidade, conferidas aos
servidores públicos, para facilitar o expurgo no setor.
Como se lê em vários dos textos que introduziam os atos institucionais, o
regime militar quase nunca assumiu expressamente sua feição autoritária. A violação
dos princípios básicos da democracia era defendida como parte de medidas
necessárias e demandadas pela nação, justamente para a defesa da ordem
democrática. O Congresso continuou funcionando, com pequenos intervalos de
fechamento, e as normas, em sua maioria restritivas dos direitos dos cidadãos,
eram apresentadas como temporárias. O AI 1 limitou sua
vigência até 31 de janeiro de 1966.
Muitos de seus dispositivos tinham por objetivo reforçar o Poder
Executivo e reduzir o campo de ação do Congresso. O Presidente da República
ficava autorizado a enviar ao Congresso projetos de lei que deveriam ser
apreciados no prazo de trinta dias na Câmara e em igual prazo no Senado; com
aprovação por decurso de prazo. As votações eram obstruídas no Congresso com relativa
facilidade e seus trabalhos normalmente se demoravam, o que
tornou corriqueira a aprovação de projetos do Executivo sem apreciação.
Por pressão da linha dura militar, que defende o aprofundamento da
revolução e a remoção dos vestígios do regime derrotado e que se aglutina, no
momento, em torno do ministro da Guerra, Costa e Silva, Castello
Branco institui, por decreto-lei, em 27 de abril, os Inquéritos
Policial-Militares (IPM), para investigação dos responsáveis "pela prática
de crime contra o Estado ou seu patrimônio, contra a ordem política e social,
ou por atos de guerra revolucionária", ou seja, pela prática de atividades
consideradas subversivas. São criadas comissões de inquérito nas universidades
e nos órgãos governamentais.
A natureza da relação, extremamente conflituosa, que se estabeleceu entre
os militares e o Congresso, estava definida já no preâmbulo do AI 1. Nos seus parágrafos iniciais, os Comandantes-em-Chefe do
Exército, da Marinha e da Aeronáutica definiam o movimento como revolucionário
e seu poder como constituinte:
"O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito
e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma
autêntica revolução."
......................................................................................................
"A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder
Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é
a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a
revolução vitoriosa, como o Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela
destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo.
Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder
constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada
pela normatividade anterior à sua vitória. Os chefes
da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco
da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que
o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos
Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da
revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da nação em sua quase totalidade,
se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios
indispensáveis à obra de reconstrução econômica,
financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo
direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração
da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução
vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua
institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe."
Dotado desses poderes excepcionais, o movimento militar passou a promover
perseguições aos adversários do regime. Grande número de prisões foi efetuado e
surgiram as primeiras denúncias de torturas. No entanto, o sistema ainda não
estava inteiramente fechado. Era possível utilizar o recurso do habeas corpus perante os tribunais, e a imprensa ainda se
mantinha relativamente livre.
Em junho, é criado o Serviço Nacional de Informações (SNI), cujo
idealizador e principal chefe é o general Golbery do Couto e Silva. Eram
objetivos do órgão "coletar e analisar informações pertinentes à Segurança
Nacional, à contra-informação e à informação sobre questões de subversão
interna." O órgão transformou-se rapidamente num
centro de poder quase tão importante quanto o Executivo, passando logo a agir
por conta própria no combate ao "inimigo interno". Segundo relata
Costa Couto (1998), o General Golbery tenta justificar-se, anos mais tarde,
dizendo que, sem querer, havia criado um monstro.
Depois dos expurgos que o AI 1 permitiu, o grupo
castelista, que assumiu o poder em 15 de abril de
1964, pretendia instituir uma "democracia restringida" e conter a
ameaça comunista, mediante a reforma da economia nacional. Era preciso, para
isso, alterar a caótica situação econômico-financeira que vinha dos últimos
meses do governo Goulart, reformar o aparelho do Estado e controlar os
trabalhadores do campo e da cidade.
Foi então elaborado o Programa de Ação do Governo (PAEG) sob a
responsabilidade dos ministros do Planejamento, Roberto Campos, e da Fazenda,
Octávio Gouveia de Bulhões. Voltado para a redução do déficit do setor público,
a contração do crédito privado e a compressão dos salários, previa também
aumento da arrecadação de impostos em decorrência de um melhor aparelhamento da
máquina do estado; compressão de salários por meio de fórmulas de reajuste
inferiores à inflação; medidas para impedir greves (lei de greves – 1964) e
facilitar a rotatividade da mão-de-obra, no interesse das empresas; fim da
estabilidade no emprego, substituída por um mecanismo compensatório, o FGTS.
No campo, a repressão aos movimentos sociais fêz-se
acompanhar de propostas de solução para o problema da terra, como a aprovação
do Estatuto da Terra em 1964. Na área de política externa, a proposta era
aumentar as exportações de matérias primas e de promover os bens manufaturados
em geral.
Um dos problemas sérios que o regime enfrentava era a montagem de uma
base parlamentar confiável. Feitos os expurgos, o quadro não se alterou
inteiramente, porque no sistema representativo da época, os suplentes assumiam
logo depois da cassação do mandato do titular e eram, em sua maioria,
oposicionistas, por motivos partidários e por discordarem das medidas de
exceção e da dura política econômica. Os espaços para negociação eram fechados
pelo próprio governo, que combatia os focos de resistência, na área
institucional, mediante a edição de atos, decretos e leis.
Um Congresso enfraquecido, esvaziado de expoentes
políticos, votou, por 205 votos a favor e 96 contra, a Emenda Constitucional n°
9, de 22 de julho de 1965, que prorrogava o mandato de Castello
Branco até 15 de março de 1967 e marcava a escolha de seu sucessor para 15 de
novembro de 1966, fixando o mandato presidencial em quatro anos.
Manteve-se por algum tempo a crença de que a dose do remédio contida no
AI 1 seria suficiente. No entanto, o resultado das
eleições para governador, em outubro de 1965, detonou uma segunda crise,
mostrando que, mesmo precários, os limites impostos pela legalidade eram
estreitos para os propósitos dos revolucionários.
A eleição de governadores oposicionistas em Minas e na Guanabara
desencadeou um forte movimento militar que pressionou o Presidente para impedir
sua posse. Os militares da linha dura, adversários dos castelistas, criticavam sua complacência com os
inimigos do regime. Para esses setores, deveria ser implantado um controle
militar estrito do sistema de decisões, para dar continuidade à luta contra o
comunismo e a corrupção. Castello Branco manteve-se,
no entanto, firme na resolução de dar posse aos eleitos, em troca de um
compromisso com a linha dura: novas regras deveriam ser estabelecidas, de
maneira a evitar a repetição de derrotas como essas. Veio o Ato Institucional
n° 2, em outubro de 1965, menos de um mês depois das
eleições estaduais.
O AI 2 determinou a eleição indireta para
Presidente e vice–Presidente da República, extinguiu os partidos políticos,
ampliou os poderes do Presidente da República, que passou a legislar sobre
assuntos importantes por meio de decretos-leis. O conceito de segurança
nacional foi ampliado.
Mais uma vez, o governo tivera o cuidado de pedir ao Congresso os poderes
que depois se outorgaria com o Ato. Novamente, os parlamentares, principalmente
do PSD, recusaram.
O Ato extinguiu os partidos e criou condições que, na prática,
implantavam o bipartidarismo. Instituíam-se eleições indiretas para os pleitos
seguintes de governador e Presidente da República. Abria-se, também, nova
temporada de expurgos, a perdurar até o fim do mandato presidencial, quando o
Ato cessaria de vigorar.
Extintos os partidos políticos criados com o fim do Estado Novo,
organizaram-se então duas novas agremiações: ARENA – Aliança Nacional
Renovadora, formada por antigos partidários do governo (UDN e PSD) e o
Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de oposição, formado por partidários do
PTB e do PSD. A medida satisfazia os meios militares, onde o pluripartidarismo
era visto como fonte de crises políticas e de dificuldades para governar.
No mesmo dia do registro dos dois partidos no TSE, 24 de março de 1966, a
imprensa divulgava uma primeira notícia de confrontos entre estudantes e a
polícia, no Rio de Janeiro, na verdade o início das manifestações de rua que
atingiriam seu ápice em 1968.
A vinda ao Brasil do ex-Presidente Juscelino,
para comemorar a vitória de Israel Pinheiro ao Governo de Minas e de Negrão de
Lima para a Guanabara, ambos seus antigos colaboradores, provocou a edição de
uma lei que limitava os movimentos de cidadãos com mandatos cassados e/ou direitos políticos suspensos. O projeto de Castello Branco de retorno à democracia é contido pela
pressão da linha dura, que avança cada vez mais em suas exigências. Com tantas
mudanças nas regras políticas, impunha-se a atualização do ordenamento legal do
País.
Depois de desgastante processo de articulações e disputas, Costa e Silva se lança candidato à Presidência, contra a
vontade de Castello Branco, e se elege por 295 votos,
dos 472 senadores e deputados presentes no Congresso Nacional, em 3 de outubro
de 1966. Segue-se nova onda de cassações de direitos políticos e mandatos
parlamentares, o que provoca mais uma crise entre o governo e o Congresso,
invadido pelos militares, na madrugada de 15 de outubro, e imediatamente
colocado em recesso.
Depois de relatar como Castello Branco perdeu o
controle do processo que levou à indicação de Costa e Silva como candidato
único à Presidência, Costa Couto (1998) faz uma interessante observação, que
vale a pena registrar:
"Para entender a lógica desse processo, é preciso relembrar que os generais-Presidentes do golpe de 1964 não têm, isoladamente,
os plenos poderes do ditador ´´clássico´´. Eles são
escolhidos dentro do conjunto de generais-de-exército, os ´´quatro-estrelas´´,
para governar em nome do sistema militar. Não é uma ditadura pessoal, como a de
Getúlio Vargas no Estado Novo. A sucessão é um momento especial nesse processo,
envolvendo articulações no universo militar para a indicação do ´´quatro-estrelas´´ que vai presidir a República, após a
ratificação formal do Congresso, importante para manter as aparências dentro e
fora do país. Foi assim, de certo modo, no caso do próprio Castello
Branco, escolhido por consenso. É essa regra tácita que está sendo
quebrada." (Costa Couto, op. cit., p. 76)
O mesmo autor assinala que Castello Branco
"passa o poder ao sucessor com a institucionalização autoritária avançada,
a doutrina da segurança nacional implantada e a pleno vapor, as reformas
amadurecidas, a casa economicamente arrumada. O país está em ordem e reconstitucionalizado, dentro da visão, limites e
parâmetros do poder militar. Distante de um regime aberto, democrático, mas
também longe do estereótipo das voluntariosas ditaduras latino-americanas.
(...) Há um ditador de fato, mas eleito pelo Congresso que, formalmente,
funciona. Com limitações, mas funciona. Assim como o Judiciário. Os Presidentes
têm mandato definido, não se eternizam no poder. Mas o cargo é privativo dos
generais-de-exército. Tudo isso, claro, desloca a essência da atividade
política para o meio militar. É inegável, contudo, que, no final do governo, há
progressos, concessões, liberalização.
Um abrandamento que não vai durar muito. Nos anos seguintes, haverá
radicalização política. O regime vai se fechar de vez, sob a liderança da linha
dura." (Costa Couto, 1998, pp. 82-83)
De qualquer modo, o governo Castello Branco deixa
a seu sucessor uma nova ordem legal, materializada numa Lei de Segurança
Nacional, numa Lei de Imprensa e, principalmente, numa nova Constituição, com a
incorporação dos mandamentos dos Atos Institucionais. O Congresso estava em
recesso, com a oposição cada vez mais enfraquecida, quando foi reconvocado para elaborar a nova Constituição. O governo
edita, para tanto, o AI 4, em 7 de dezembro de 1966,
atribuindo poderes constitucionais ao Congresso, que passa a se reunir em
caráter extraordinário.
Para elaborar a nova Carta, foi constituída, em 1966,
comissão integrada por Levy Carneiro, Temístocles
Cavalcanti, Orozimbo Nonato e Miguel Seabra
Fagundes, que renunciaria antes do término dos trabalhos. O texto final,
revisado, num viés mais autoritário, por Carlos Medeiros, foi remetido ao
Congresso Nacional em 17 de dezembro de 1966. No dia 24 de janeiro a
Constituição estava aprovada. Segundo Skidmore, sem
alterações. Costa Couto, no entanto, relata uma verdadeira maratona
legislativa, com o objetivo de salvar o possível de um texto considerado
inaceitável. Entre outras modificações, todo o capítulo referente a direitos e
garantias individuais teria sido incluído no Congresso.
Também é de Costa Couto o resgate da história dessa maratona, a partir de
depoimento que lhe foi prestado, em 1995, por Carlos Chagas, e de onde se
destaca o seguinte trecho:
"Ele [Castello Branco] pegou aquele
Congresso em final de mandato, baixou o ato Institucional n° 4,
transformando-o em Constituinte, e mandou para lá o projeto do Carlos Medeiros,
que era execrável. Basta dizer que não tinha o capítulo dos direitos e
garantias individuais. Ele, o Medeiros, defendia que aquilo era assunto de
legislação ordinária, que não era matéria constitucional. Em novembro de 1966,
mandou para aquele congresso em final de linha, presidido pelo Auro de Moura
Andrade."
Segue-se o relato do esforço dos congressistas para a aprovação do
projeto. Quase ao final dos trabalhos, o Presidente do Congresso verifica que o
tempo está se esgotando e não vai dar para terminar.
"Não vai dar, vai valer o projeto do Carlos Medeiros, aquela coisa
horrorosa."
Auro Moura Andrade dirige-se ao chefe dos contínuos e lhe ordena que
atrase todos os relógios do Plenário em seis horas. "Isso é absolutamente
verdadeiro. Aconteceu. Ele atrasou os relógios. O Castello
ficou sabendo, é claro. Riu, mas deixou. Porque também ficou empolgado pelo
projeto mais liberal, o do Congresso. E a Constituição foi feita." (Costa Couto, 1998, pp. 81–82)
Ao fim, a Constituição incorporou o conteúdo dos Atos: eleições
indiretas, concentração no Executivo de poderes de apuração e repressão e
também das decisões sobre gasto público. Mesmo depois de incorporar a
legislação que ampliara os poderes do Executivo, especialmente em matéria de
segurança nacional, a Constituição veio a ser, em pouco tempo, considerada
insatisfatória.
Seja como for, Costa e Silva assume a
Presidência com poderes menores que os de Castello.
Uma nova Constituição encontrava-se vigente, estavam esgotados os prazos dos
Atos Institucionais. No entanto, os acontecimentos sucederam-se e revelaram, em
pouco tempo, a insuficiência da Constituição, do ponto de vista dos integrantes
da linha dura.
b) a insuficiência da Constituição
Costa e Silva, ao assumir, declarara seu intento de governar dentro da
legalidade e da Constituição, humanizando a Revolução e democratizando o poder.
Os fatos se anteciparam a suas boas intenções e ele acabou por representar os
setores mais duros das Forças Armadas no poder. Mesmo participando do governo,
os moderados perderam o comando do processo para os duros. Num ministério de
composição, são considerados de linha dura os ministros militares Jaime
Portella, do Gabinete Militar; Garrastazu Médici, do SNI; Augusto Rademaker, da Marinha; Márcio de Souza e Mello, da
Aeronáutica, e Afonso de Albuquerque Lima, do Interior. O Ministro do Exército,
Lyra Tavares, fica entre a linha dura e os moderados. Dos ministros civis, Gama
e Silva, da Justiça, é o principal linha dura. São
liberais, moderados, o Vice-Presidente, Pedro Aleixo, Rondon Pacheco, do
Gabinete Civil, Hélio Beltrão, do Planejamento, Magalhães Pinto, do Itamaraty,
e Tarso Dutra, da Educação. Os duros se distinguem dos moderados pela
radicalização de suas crenças e pela ação anticomunista. A maioria defende a
permanência dos militares no poder (Costa Couto, 1998).
O ano de 1968 é politicamente agitado, dentro e fora do Brasil,
principalmente em razão de mobilização da juventude. Nos Estados Unidos, as
manifestações combatem a guerra do Vietnã. Na França, um movimento pela
melhoria do sistema educacional se transforma em ameaça à estabilidade do
governo do General De Gaulle. Rejeita-se o velho, a
ordem, o estabelecido, em prol do novo, de idéias libertárias. Esse movimento
repercute no Brasil e influencia os acontecimentos, principalmente porque prega
uma utopia libertária em tudo oposta aos valores básicos do regime militar.
Em 1967 e, principalmente, 1968, o País assistiu à reorganização do
movimento estudantil e seu sucesso em arregimentar a classe média em
manifestações de rua; ao renascimento do movimento operário, com as greves de
Contagem e Osasco; ao deslocamento progressivo da Igreja para a oposição ao
regime; à aglutinação dos políticos da velha ordem num movimento oposicionista,
a Frente Ampla; à afirmação da oposição parlamentar, com os deputados
autênticos do MDB; e, finalmente, aos primeiros ensaios da oposição armada.
A explosão de uma bomba no consulado americano em São Paulo e os assaltos
a bancos eram fatos suficientes para reforçar a certeza da linha dura com
relação aos perigosos rumos que a Revolução estava tomando, perdendo-se de seu
traçado inicial. Por isso, defendia a criação de novos instrumentos para acabar
com a subversão.
O estopim que mostrou a insuficiência da novíssima Constituição foi o
caso do Deputado pelo MDB Márcio Moreira Alves. Seu discurso, que poucos
ouviram, foi considerado ofensivo às Forças Armadas. Era na verdade um texto de
repúdio à invasão da Universidade de Brasília por tropas militares. O trecho
que mais desagradou às Forças Armadas dizia:
"Quando pararão as tropas de metralhar na rua o povo? Quando uma
bota, arrebentando uma porta de laboratório, deixará de ser a proposta de
reforma universitária do governo? Quando teremos, como país, ao ver nossos filhos
saírem para a escola, a certeza de que eles não
voltarão carregados em uma padiola, esbordoados ou metralhados? (...) Quando
não será o Exército um valhacouto de torturadores?
Quando se dará o governo federal a um mínimo de cumprimento do dever, como é
para o bem da República e para a tranqüilidade do povo?" (Costa Couto, op.
cit., p. 94)
Amplamente divulgado nos quartéis, o discurso desencadeou a crise. As
Forças Armadas exigiam a punição, a licença para o processo foi solicitada e
negada pela Câmara, com a participação de parcela significativa da ARENA.
Expoentes do partido do governo, como Daniel Krieger
e Djalma Marinho, recusaram, por razão de consciência, o voto no governo. O
Congresso negou-se a conceder a solicitada licença, o que provocou seu fechamento
e a edição do AI 5, após tensa reunião do Conselho de
Segurança Nacional.
A pressão militar foi forte e Costa e Silva correu ali o risco da
deposição. Decidiu, no entanto, acompanhar a maioria, pela aprovação do Ato,
com o único voto contrário do Vice-Presidente Pedro Aleixo. Durante a reunião,
o Presidente pede a opinião dos ministros, que se manifestam favoravelmente ao
ato. Pedro Aleixo, o último a falar, discursa em defesa de remédios
institucionais mais brandos, como a utilização do estado de sítio, previsto na
Constituição. Enquanto falava, todos conversavam e riam, segundo relato de
Carlos Chagas, que presenciou a reunião. Gama e Silva
interrompe Pedro Aleixo com a pergunta: "Mas, doutor Pedro, o
senhor desconfia das mãos honradas do Presidente Costa e Silva, aqui presente?
É ele que vai aplicar o Ato. O doutor Pedro tinha uma raiva danada do Gama e
Silva e respondeu: "Não, Ministro, das mãos honradas do Presidente eu não
desconfio, eu desconfio é do guarda da esquina." (Costa
Couto, 1998, p. 95)
Principal fonte da legislação autoritária e do autoritarismo, sem prazo
de vigência, o AI 5 concedeu ao Presidente da
República poderes para fechar provisoriamente o Congresso, cassar mandatos e
suspender direitos políticos, demitir ou aposentar servidores públicos. "A
partir do AI 5, o núcleo militar do poder
concentrou-se na chamada comunidade de informações, isto é, naquelas figuras
que estavam no comando dos órgãos de vigilância e repressão. Abriu-se um novo
ciclo de cassação de mandatos, perda de direitos políticos e de expurgos no
funcionalismo, abrangendo muitos professores universitários. Estabeleceu-se na
prática a censura dos meios de comunicação; a tortura passou a fazer parte
integrante dos métodos do governo." (Boris Fausto, 2001, p. 265). Nas
palavras de Costa Couto, "era o golpe dentro do golpe. O aprofundamento do
militarismo. A ditadura dura." (op. cit., p. 85)
O Congresso entrou em recesso por tempo indeterminado, inaugurou-se novo
ciclo de cassações, eleições foram suspensas, inventou-se o artifício da
sublegenda para assegurar a vitória do governo. O Presidente da República tem
plenos poderes para estabelecer unilateralmente medidas mais repressivas,
decretar o recesso do Congresso, das assembléias estaduais e câmaras
municipais; intervir nos estados e municípios; censurar a imprensa, cancelar habeas corpus, limitar garantias individuais, dispensar e
aposentar servidores públicos, suspender mandatos e cassar direitos políticos.
Os órgãos de repressão ganham mais poder. Dentro da legalidade, não há como
protestar contra o governo, sequer opor-se a seus atos.
"Até o Congresso é condenado ao regime do medo, da delação e da
afiada espada do AI 5 no peito; a censura à imprensa
alcança o ápice; a repressão espalha-se, inclusive pelo sistema educacional.
Muitos opositores do regime militar, sobretudo jovens, não vêm outra saída para
atuarem que não a clandestinidade e a luta armada." (Costa Couto, p. 96)
O quadro político havia fugido por completo dos marcos da Carta de 1967.
Como diz Skidmore, considerando a "...propensão
dos militares brasileiros para a legitimidade formal, era inevitável uma nova
Constituição".
Não foi, portanto, o desejo de aperfeiçoar a Constituição que determinou
o início do processo de revisão. Responsabilizada pela crise que culminou no AI
5, a carta de 67 "voltou ao estaleiro para que
fosse reajustada ao novo surto revolucionário, assegurando-se nível
constitucional, ainda que transitório, a disposições políticas de exceção. Esse
o significado da reforma para o governo. Quanto aos políticos e juristas que
nela colaboram, tudo indica que o fazem na convicção de contribuírem para
devolver ao país perspectivas de normalidade institucional a prazo médio.
(...)As circunstâncias o levaram (Costa e Silva), como se sabe, a promover a
reforma, não no sentido preconizado, mas precisamente para reduzir a área de
interferência política e parlamentar no sistema de poder nacional."
(Castelo Branco, 1979, p. 276)
A história da comissão de notáveis
"A partir de amanhã, estará reunida em Brasília uma pequena e
singular assembléia constituinte. Seus membros têm o direito e o dever, desde
que aceitaram a missão, de emitir opiniões, mas não terão
direito a voto. Simplesmente a matéria não será submetida a votos. A
decisão, no caso, pertence a uma só pessoa, o Presidente da República, que
resolveu ouvir o conselho de seus mais eminentes colaboradores e
correligionários, mas que, como chefe cioso, reservou para si o poder de
decidir." (Castelo Branco, 1979)
À edição do AI 5 seguiu-se um período de
repressão generalizada e, conseqüentemente, de hibernação da atividade política
institucional. As crônicas diárias de Castello Branco
pintam um retrato vívido do momento. Listas de cassações sucediam-se, enquanto,
fechado o Congresso, Deputados e Senadores circulavam, entre Brasília e seus
estados, sem saber que rumo tomar.
O MDB volta a discutir o significado de sua existência, enquanto a ARENA
hesita em reunir-se, até para recompor sua direção, na ausência de um sinal favorável
da Presidência. O ponto central do embate político passa a ser a reabertura do
Congresso. Cada dia de recesso aproxima o País da temida solução argentina, um governo militar que
simplesmente havia extinto Congresso Nacional e Supremo Tribunal.
Nesse tempo de incerteza, surge a primeira menção ao trabalho de reforma
constitucional. Segundo Castelo Branco, em 25 de fevereiro, estariam em
andamento estudos para adequar o Poder Legislativo à nova realidade das
instituições. "Há a convicção de que o regime político brasileiro não
sobreviverá nos moldes estabelecidos pela Constituição de 1967. A Carta
indefesa esvaziou-se ...".
A partir daí, Castelo procura captar – e divulgá-los sob censura – os
indícios do debate subterrâneo que se trava entre aqueles que, nas suas
palavras, privilegiam o estado de direito e aqueles que dão mais importância
aos direitos da revolução. O ponto de atrito básico era o momento da reabertura
do Congresso. Este não havia sido fechado, mas posto em recesso, a solução à
moda argentina havia sido
postergada. Seria aberto na vigência das novas regras, ou seja, da reforma da
Constituição.
No decorrer de março, a figura-chave do processo ainda é o ministro da
Justiça, declaradamente contrário ao funcionamento "prematuro" do
Congresso. Sabemos, na verdade, que a tarefa e encontrava, naquele momento com
o Ministro da Justiça, Gama e Silva. Apenas diante de sua inércia, o encargo
foi repassado ao Vice-Presidente, conforme relata Edison Lobão.
Na verdade, Gama e Silva não estava interessado
em redigir a Constituição. Uma nova Carta, mesmo absorvendo parte das medidas
dos Atos, definiria algum ordenamento, algum limite, no seu uso. Aparentemente,
o Ministro da Justiça estava satisfeito com a situação de arbítrio absoluto que
os atos possibilitavam.
Após algumas cobranças em vão, Costa e Silva irrita-se
com o ministro e "durante a inauguração de uma obra importante no Guará,
diz a ambos: A Constituição será feita agora pelo Dr. Pedro Aleixo."
(Lobão, in Aleixo e Chagas, 1976)
Equilibrar-se entre duas correntes antagônicas, a da linha dura e a dos
que defendiam o abrandamento da revolução, parece ter sido a tarefa que Costa e
Silva se impôs, quando pediu a Pedro Aleixo, naquele momento, que colhesse
subsídios para a reforma da Constituição de 24 de janeiro de 1967. Pretendia
reabrir o Congresso, promover a reorganização partidária e o fim dos atos de
exceção. O Vice-Presidente Pedro Aleixo, seu principal colaborador, dividia com
ele a tarefa de conciliar as duas grandes tendências em que se alinhavam os que
apoiavam o governo: a redemocratização e a manutenção dos princípios do
movimento de março. A tarefa era delicada, uma vez que o clima entre os
militares era de crescente insatisfação, diante dos rumos que a revolução ia
tomando.
Carlos Chagas relata que o Presidente passava o tempo meditando.
"Sozinho, há várias semanas buscava fórmula de conciliar as duas grandes
paralelas de sua ação na Chefia do Governo: a redemocratização, na necessidade
de abandonar o regime discricionário, e a não menos urgente premência de manter
dinâmicos os princípios do movimento de março de 1964." (Chagas,
1979, p. 27)
A Coluna do Castelo, no Jornal do Brasil, sem acesso à totalidade dos
fatos, continua a divulgar as gotas de informação que obtém em conversas com
suas fontes. Em 21 de março aparece a primeira referência a uma Comissão
encarregada dessa tarefa. Em 26 de março, Gama e Silva ainda assume que está a
trabalhar na reforma. Em abril, os nomes dos integrantes começam a
transparecer: fala-se em Miguel Reale
e Cândido Mota Filho. No dia 15 de abril, é citada nominalmente a Comissão de
Alto Nível. No dia 22 aparecem como membros Pedro Aleixo e Rondon Pacheco.
No dia 13 de maio já se tem a notícia do encargo dado a Pedro Aleixo.
Castelo Branco noticia que a tarefa teria sido comunicada ao Vice–Presidente no
decorrer da recepção oferecida ao Presidente do Uruguai, Pacheco Areco.
A partir de então, as informações e análises de Castelo Branco têm um
eixo claro: o conflito entre Pedro Aleixo e Gama e Silva, que teria, inclusive,
uma vez deslocado da tarefa, pleiteado a revisão do texto por uma Comissão de
juristas, de notáveis, de alto nível. Na verdade, o conflito não era pessoal,
mas opunha, na opinião do cronista, o chamado sentido da Revolução e o sentido
das instituições.
No dia 22 de junho, após 38 dias de seu início, Pedro Aleixo teria
concluído a primeira versão, depois de analisar diferentes sugestões, vindas de
juristas, políticos, entidades de classe e outros colaboradores.
Antes do início dos trabalhos, o embate que viria a ocorrer era
antecipado pelo jornalista. Desenhava-se um campo da normalidade democrática,
representado por Pedro Aleixo e Rondon Pacheco, os dois integrantes da Comissão
com experiência política, no Executivo e no Legislativo, e um campo da
revolução, partidário da dilatação do período de exceção, representado pelos
dois juristas sem experiência parlamentar, embora com experiência grande na
redação dos Atos Institucionais: Gama e Silva e Carlos Medeiros. Themístocles Brandão Cavalcanti aparecia como integrante
neutro nesse conflito, representante dos pontos de vista do Supremo Tribunal
Federal.
Os personagens: composição da Comissão de Alto
Nível
Para bem compreender a discussão que se desenrolou nos quatro dias de
reunião da Comissão, importa saber quem eram seus integrantes e,
principalmente, suas credenciais para o convite que receberam.
Hélio Beltrão era na época o Ministro do Planejamento. Vinha de longa e exitosa carreira na burocracia
governamental, iniciada no IAPI, em 1936. No Instituto, chegou a
Presidente, mesmo que por alguns meses, dez anos depois. Passou pelo Conselho
Nacional de Petróleo, pela PETROBRAS e pelo Instituto Brasileiro de Petróleo.
Secretário do Interior e Planejamento do Estado da Guanabara,
integra posteriormente o conselho administrativo do BNH. Foi o
responsável pela elaboração do Decreto-Lei nº 200, de 1967, que estabeleceu
normas sobre a organização da administração federal e
diretrizes para a reforma administrativa.
Foi chamado a integrar a Comissão para opinar na matéria orçamentária e
administrativa. Continuou no ministério até o fim do mandato da Junta Militar
que assumiu o poder na doença do Presidente. Veio a ser, ainda, Ministro da
Desburocratização e da Previdência Social, no governo Figueiredo, candidato a
Presidente da República e Presidente da PETROBRAS.
Temístocles Brandão Cavalcanti iniciou sua vida política na oposição à
República Velha. Defendeu, no decorrer da década de
1920, os militares revoltosos de 22 e 24. Aderiu à revolução de 1930, em cujo
governo atuou no Tribunal Especial, posteriormente transformado em Junta de
Sanções, órgão da justiça revolucionária criado para apurar irregularidades
cometidas no governo anterior. Foi nomeado por Getúlio Vargas
para integrar a Comissão Itamarati, encarregada de elaborar o projeto inicial
da Constituição de 1934.
Após 1945, foi Procurador-geral da República, Consultor-geral e membro do
Supremo Tribunal Federal. Em 1960, elegeu-se deputado constituinte pelo estado
da Guanabara. Integrou a Comissão formada em 1966 para
elaborar o primeiro projeto do que viria a ser a Constituição de 1967.
Foi convidado a participar da Comissão de Alto Nível na condição de
representante do Supremo Tribunal Federal.
Miguel Reale ingressa no cenário político
brasileiro na década de 1930, como militante e dirigente da Ação Integralista Brasileira.
No movimento, liderava a facção mais identificada com o regime português, em
oposição a Gustavo Barroso, que tendia a aproximar o integralismo do
nacional-socialismo alemão. Acompanha todo o itinerário integralista, até a
tentativa frustrada de golpe, em 1937, seguida da ilegalidade e da repressão estadonovista.
Ingressa na USP em 1940 e, a partir de então, dedica-se predominantemente
à vida acadêmica e intelectual, até o fim da década de 1950. Retorna à vida
pública ao assumir, em 1962, a Secretaria de Justiça do governo Ademar de
Barros. Nessa posição, participa da conspiração contra João Goulart,
principalmente por meio de seus contatos com Cordeiro de Farias e Mourão Filho,
este último antigo companheiro de integralismo.
Foi convidado a participar do grupo que examinou a reforma da
Constituição, em 1969, na sua condição de constitucionalista de notório saber.
Anos depois, veio a integrar a Comissão de Estudos Constitucionais, presidida
por Afonso Arinos, em 1985, no momento seguinte de elaboração constitucional da
história brasileira, que viria a culminar na Carta de 1988.
Carlos Medeiros construiu sólida carreira de advogado no serviço público.
Na condição de chefe de gabinete de Francisco Campos,
secretário de educação do Distrito Federal em 1937, datilografou o texto
original da Constituição do Estado Novo. A partir de então, é nomeado para
compor diversas comissões e assume a consultoria jurídica de vários órgãos da
administração federal. Entre 1951 e 1954, é Consultor-geral da República.
Nos primeiros dias do movimento de 1964, seu nome é indicado a Costa e Silva para conferir fundamento legal às decisões
dos novos governantes. Redige, então, o AI 1, em
parceria com seu antigo chefe, Francisco Campos, a quem cabe o Preâmbulo. É
nomeado, em 1965, Ministro do STF, numa das vagas abertas pelo AI 2.
Em 1966, é nomeado Ministro da Justiça. Nessa condição, dá a redação
final ao projeto que havia sido elaborado pela Comissão de Notáveis convocada
por Castelo Branco. Na sua versão, de acentuado viés autoritário, o texto
simplesmente omitia o capítulo dos direitos e garantias individuais. Essa
última redação é enviada pelo Presidente, após audiência do Conselho de
Segurança Nacional, ao Congresso, transformado em Constituinte por obra do Ato
Institucional nº 4, também da lavra de Carlos Medeiros. Redige também a Lei de
Imprensa e a Lei de Segurança Nacional.
Com a posse de Costa e Silva, Medeiros deixa o Ministério, no qual é
sucedido por Gama e Silva. Participa da Comissão de 1969. Com a doença do
Presidente Costa e Silva, é chamado, novamente, pela Junta Militar, para
produzir o AI 12, que declara o impedimento do Presidente e altera a linha sucessória, alijando Pedro Aleixo da Presidência da
República.
Rondon Pacheco ingressou na política ao filiar-se, por influência de
Pedro Aleixo, em Minas Gerais, à UDN, quando de sua criação. Foi deputado
estadual e federal, sendo vice-líder e líder de sua bancada. Apoiou o movimento
de 64, ingressando na ARENA após o AI 2.
Assumiu a chefia do gabinete civil de Costa e Silva. Nessa função,
elaborou o projeto que estabelecia a sublegenda nas eleições majoritárias.
Atuou, no difícil ano de 1968, no sentido de estabelecer o diálogo do Congresso
com o Executivo. Foi contrário à convocação extraordinária do Congresso para
apreciação do pedido de licença para processar Márcio Moreira Alves. No
entanto, na crise, vota favoravelmente ao AI 5,
declarando posteriormente, haver sugerido emenda estipulando prazo de um ano
para sua vigência. Participa da Comissão de Alto Nível, encarregada de redigir
projeto para a alteração da Constituição.
Após a crise advinda com a doença e impedimento de Costa e Silva, deixa a
chefia do Gabinete Civil no governo Médici. Retoma seu mandato e assume a
Presidência da Arena. Coordena o processo que irá levar à definição dos
governadores em 1970, cabendo-lhe, por decisão do novo Presidente, o governo de
seu Estado. Defendeu, em 1977, ao contrário de Gama e Silva, o fim dos Atos
Institucionais. Elegeu-se novamente Deputado em 1982. No colégio eleitoral, em
1985, votou com a Frente Liberal, na chapa Tancredo Neves e José Sarney.
Disputou, sem sucesso, a vaga de Senador nas eleições de 1986.
Até o período dos governos militares, Gama e Silva
seguiu carreira predominantemente acadêmica, com breve passagem pela
política. Fez oposição ao Estado Novo e, após a redemocratização, militou nas
campanhas eleitorais da UDN. Ingressou na USP, mediante concurso, em 1944.
Dirigiu a faculdade de Direito e foi por duas vezes reitor da Universidade.
Conta Reale (1986-87) que, na hora do golpe,
ninguém no governo de São Paulo conhecia Costa e Silva. Apresentou-se então,
"com sua natural perspicácia", Gama e Silva, que declarou ser grande
amigo do general, desde os tempos em que este residia em São Paulo e costumava
ir a "sua casa, aos domingos, almoçar e jogar pif-paf".
Assumiu as pastas da Educação e da Justiça, a convite de Costa e Silva,
no breve interregno Mazzili, em abril de 1964.
Propôs, na crise de 1965, poderes ditatoriais totais para o Presidente Castelo
Branco.Com a posse de Costa e Silva, em 1967, assume novamente o Ministério da
Justiça, no qual viria a notabilizar–se por suas posições extremadas. Era
considerado, com justiça, o representante civil dos setores militares mais
duros.
Na crise do AI 5 preparou dois textos, um muito
duro, extinguindo o Congresso e o Supremo e outro, menos radical, que terminou
por prevalecer. Considerava o Ato a "institucionalização da
revolução" (Chagas, 1979). Afirmou, posteriormente, ter redigido o documento
em apenas quatro horas, num quarto de hotel, sem consultar livros ou códigos
penais. Segundo Skidmore, "...sua
verbosidade e pobreza de julgamento (...) constituíam constante problema para o
governo".
Gama e Silva declarava-se liberal, mas não
escondia sua prevenção contra o Congresso Nacional. Entendia ser necessário uma
"ditadura de Cincinato" para limpar o
terreno e fazer prosperar a democracia. Suas intenções, segundo Reale, eram boas, como aquelas "com que se lastreia o
caminho do inferno", sendo inevitável, com elas, a "transferência
para as calendas gregas do retorno à normalidade
democrática".
Reale prossegue de forma ainda mais contundente
e julga que uma circunstância fortuita, "um nariz de Cleópatra", deu
projeção nacional a Gama e Silva e nos fez "passar pelas águas do AI 5, do qual foi um dos artífices principais".
No governo Médici, foi embaixador em Portugal. Em 1978, suas opiniões não
haviam mudado: manifestou-se contrário à extinção do Ato, afirmando que nada
tinha de antidemocrático e que constituía boa advertência aos candidatos à
subversão.
Nascido em 1901, Pedro Aleixo inicia sua vida parlamentar ao ser eleito,
com o maior número de votos, vereador por Belo Horizonte, em 1927. Candidato à
reeleição, em 1929, liderou campanha vitoriosa pela introdução do voto secreto.
Atuou em prol da revolução de 1930, na imprensa e em comícios.
Eleito constituinte em 1934, deputado federal em 1935, foi líder da
maioria na Câmara. Nessa condição, teve que lidar com a prisão dos
parlamentares vinculados à ANL, após a insurreição de
1935. O longo debate sobre a imunidade parlamentar encerrou-se em junho de
1936, com a aprovação da suspensão das imunidades dos aliancistas,
uma vitória do governo e de sua liderança.
Em 1937 é eleito Presidente da Câmara. Em 10 de novembro daquele ano,
ocorre o golpe de Vargas, que fecha o Congresso e inaugura o Estado Novo. Pedro
Aleixo protesta e rompe com o governo. Participa, desde então, das atividades
da oposição liberal. Está entre os organizadores do manifesto dos mineiros, em
1943; e, em 1945, preside a convenção que funda a UDN.
Em 1947 é eleito deputado estadual constituinte, e assume, no mesmo ano,
a secretaria do interior do governo Milton Campos. É candidato a
vice-governador na chapa da UDN, em 1950, derrotada por Juscelino.
Elege-se novamente deputado federal em 1958 e torna-se líder da UDN na
Câmara. Na crise provocada pela renúncia de Jânio, Pedro Aleixo manifesta-se
contrário à posse do vice e também contrário à emenda parlamentarista.
Participa ativamente da conspiração que resultou no golpe de 1964. Levou,
com Bilac Pinto, o texto do AI 1 a Castelo Branco.
Após o AI 2, é um dos fundadores da ARENA. É
nomeado Ministro da Educação em 1966. Pouco depois, é indicado como
Vice–Presidente na chapa encabeçada pelo marechal Costa e Silva.
Antes de assumir o mandato, coordenou os trabalhos constituintes do
Congresso, em dezembro de 66 e janeiro de 67, como Presidente da comissão mista
encarregada de apreciar o projeto de Constituição. A Constituição é aprovada em
janeiro de 67, com alguma emendas introduzidas pelos parlamentares.
Foi o único voto contrário na reunião que decidiu o AI 5.
Em maio de 69, é designado por Costa e Silva para coordenar os trabalhos
da reforma constitucional. Após as reuniões da Comissão, entrega ao Presidente
o texto, em 26 de agosto do mesmo ano.
Com a doença de Costa e Silva é impedido de assumir a Presidência. Não
assume, segundo Chagas (1979), porque daria seguimento às intenções de Costa e
Silva: fazer valer a nova Constituição e reabrir o Congresso. Tarefas difíceis mas possíveis sob o comando de Costa e Silva, inviáveis,
segundo os ministros militares, com Pedro Aleixo na Presidência. Havia, além
disso, a desconfiança militar em razão de seu posicionamento contrário ao AI 5. Para ele o ato institucionalizava a ditadura, não a
revolução. Representou o resquício liberal de um regime que se endurecia cada
vez mais.
Após o impedimento de sua posse, desliga-se da ARENA e dedica-se à
construção de um terceiro partido: o Partido Democrático Republicano.
O marechal Costa e Silva teve participação na agitação militar que
perdurou por toda a década de 1920. A partir da revolução de 1930, no entanto,
construiu uma carreira marcada pelo profissionalismo, só retornando à atividade
política às vésperas do movimento militar de 1964.
Mesmo sua participação nesse movimento é controversa. Em algumas versões,
como a de Portella (1979), seu nome aparece com relevo. Para outros, não foi
conspirador de primeira hora, tendo aderido nos dias anteriores à eclosão da
revolta. Reale (1986-87), por exemplo, conta que seu
nome era desconhecido dos participantes civis, que tinham em Castello Branco sua principal referência. D´´Aguiar (1999) confirma essa
versão, contando que apenas após o comício da Central Costa e Silva interroga o
coronel Portella, seu subordinado, sobre a existência da conspiração. Portella
confirma a movimentação e informa que falta ainda um comandante. Costa e Silva,
então, declara sua disposição em assumir o comando.
Reale refere-se ainda a um acordo que teria
estipulado que o comando caberia ao general mais antigo presente na guarnição
do Rio de Janeiro. A manobra teria excluído Cordeiro de Farias, que se
encontrava em São Paulo, e aberto o caminho para Costa e Silva.
No entanto, conforme o verbete que lhe é dedicado no Dicionário
Histórico-Bibliográfico Brasileiro, Costa e Silva passou a manter contatos com
os golpistas em 1962, após sua remoção do comando do IV Exército para a chefia
do Departamento Geral de Pessoal do Exército, em outubro de 1962. Teria,
inclusive, assumido a tarefa de aproximar, em fevereiro de 64, o governador de
São Paulo, Ademar de Barros, do general Amauri Kruel,
comandante do II Exército.
Assumiu, em 1° de abril, o comando do Exército e da revolução, este em
conjunto com o almirante Rademaker e o brigadeiro
Correia de Melo. Integra, portanto, núcleo real de poder durante a Presidência
de Mazzilli, até 15 de março de 1964. Nomeia, de imediato, Gama e Silva, como
ministro da Justiça e da Educação.
No dia 9 de abril, o comando da revolução
divulga o Ato Institucional, redigido por Carlos Medeiros e Francisco Campos,
que previa a eleição indireta do Presidente dois dias depois e estabelecia os
poderes necessários à consecução dos expurgos que se seguiriam.
Reale transcreve diálogo havido entre ele e
Costa e Silva, no qual o general lhe teria relatado seu encontro com Francisco
Campos, por ocasião da redação da justificação do AI 1.
Ao ver o conhecido Chico Ciência redigir tudo "de um jato", o general
teria dito: "este é dos meus!".
No gabinete de Castello Branco, ocupa o
Ministério da Guerra. Desempenha papel de relevo na cassação de Juscelino e
passa a ser visto com simpatia pelos setores mais radicais da oficialidade. Na
crise de 1965, sustentou Castello Branco, ameaçado de
deposição, chegando a discursar na Vila Militar, conclamando os insatisfeitos a
respeitarem as determinações do Presidente.
Apóia a prorrogação do mandato de Castello
Branco e, em janeiro de 1966, assume sua candidatura a Presidente. Em maio, seu
nome foi homologado, juntamente com o de seu Vice, Pedro Aleixo, pela Convenção
da ARENA. Foram eleitos em 3 de outubro e tomaram posse em 15 de março de 1967.
Na reunião do Conselho de Segurança Nacional, que decidiu pela edição do
AI 5, Costa e Silva estimulou Pedro Aleixo a
manifestar sua posição contrária ao Ato e requisitou a fita com a gravação da
reunião, para que as palavras do Vice-Presidente fossem novamente ouvidas.
Decidiu, finalmente, de acordo com a maioria, pelo sua
aprovação.
Após as reuniões da Comissão, em julho de 1969, de posse da versão final
do projeto de Emenda, Costa e Silva decidiu enfrentar
a oposição militar, manifestada por seus ministros em reunião do dia 26,
apresentar a reforma da Constituição em 2 de setembro e convocar o Congresso
para 7 de setembro. No dia 27 de agosto, no entanto, sofreu o primeiro ataque
da doença que provocaria sua incapacidade e morte.
No dia 31 de agosto, os ministros militares anunciam o AI 12, declarando
o impedimento do Presidente e alijando Pedro Aleixo da sucessão. Costa e Silva falece em 17 de dezembro do mesmo ano.
A composição da Comissão e o histórico de seus
participantes deixa transparecer o conflito que se afirmou ao longo dos
trabalhos. Era clara a oposição entre os projetos liberal e autoritário nas
fileiras do regime, personificados, principalmente, por Pedro Aleixo e Gama e
Silva. Era igualmente claro que a composição possível entre as duas vertentes
tomaria forma nas decisões do Presidente Costa e Silva, árbitro e único detentor
do poder de voto.
O breve perfil dos notáveis revela igualmente sua participação
recorrente, de forma direta ou indireta, em todos os momentos da história
constitucional brasileira no século XX. A Carta de 1934 viu Themístocles
Brandão Cavalcanti participar da Comissão que elaborou o projeto e contou com a
colaboração de Pedro Aleixo na Assembléia Constituinte. Adroaldo
Mesquita da Costa, tio do Presidente Costa e Silva, também era Deputado
constituinte.
Em 1937, Pedro Aleixo era Presidente da Câmara e, portanto, foi atingido
pelo golpe que instituiu o Estado Novo. Carlos Medeiros trabalhava com
Francisco Campos e coube-lhe datilografar os originais da "Polaca".
Em 1946, tanto Pedro Aleixo quanto Rondon Pacheco participam da
elaboração da Constituição do Estado de Minas Gerais. Adroaldo
Mesquita da Costa é, mais uma vez, constituinte.
Em 1964, momento de ruptura da ordem constitucional, na medida em que o
Ato Institucional cria a base para um novo ordenamento, Medeiros redige o texto
a pedido de Costa e Silva e Pedro Aleixo o leva, com Bilac Pinto, ao
conhecimento de Castelo Branco.
Em 1967, Themístocles Brandão Cavalcanti
participa, novamente, da Comissão que elabora o primeiro projeto. Medeiros
responde pela forma final. Pedro Aleixo, na condição de Presidente da comissão
mista, encabeça o processo de alterações promovido no Legislativo, opondo-se à
perspectiva autoritária de Medeiros.
Em 1969, todos estão reunidos na Comissão de Alto Nível.
No processo de construção da Carta de 1988, Miguel Reale
participou da Comissão de Estudos Constitucionais, presidida por Afonso Arinos.
Rondon Pacheco prestou sua colaboração ao desencadeamento do processo
constituinte, ao votar na chapa Tancredo Neves e José Sarney, no colégio
eleitoral, em 1985.
Os trabalhos da Comissão
O registro das reuniões da Comissão de juristas e o texto do projeto que
Costa e Silva recebeu, no dia 26, revelam não apenas os embates entre as duas
posições antagônicas presentes no governo e no movimento, mas principalmente
uma tendência de aceitação, entre os participantes, da maior parte das teses
consolidadas por Pedro Aleixo.
Entretanto, no texto final da Comissão, incorporadas as sugestões dos
membros do Conselho de Segurança Nacional e dos ministros militares, a
manutenção do AI 5 prenunciava a derrota do projeto de
dar início ao processo de democratizar o país. Os acontecimentos posteriores,
que culminaram com a doença e o impedimento de Costa e Silva, resultaram numa
vitória da linha dura, com a qual se afinava o ministro Gama e Silva.
A polarização entre as duas tendências fica evidenciada principalmente
nas discussões dos temas políticos. Visto por setores da linha dura como um
entrave à continuidade da revolução, o Congresso e todos os assuntos a ele
relacionados provocaram intensas polêmicas, nas quais se confrontavam,
principalmente, Pedro Aleixo e Gama e Silva. As intervenções dos demais membros
da comissão revelam ainda que a posição de Gama e Silva era,
na maioria das vezes, solitária. Na maior parte das vezes, o Presidente fazia
questão de demonstrar sua simpatia pela posição defendida por seu vice.
São recorrentes as manifestações contrárias aos parlamentares, nas falas
de Gama e Silva, sempre que se discutem assuntos do legislativo, como o decoro
parlamentar, as imunidades parlamentares, a concessão de licença para processar
parlamentares, a perda de mandato por exercício de função no poder legislativo,
o período de funcionamento do Congresso, o número de deputados e senadores, as
condições para apresentação de emenda constitucional, a iniciativa das leis, o
colégio eleitoral, os partidos políticos, as inelegibilidades, a separação e
harmonia dos poderes, as eleições indiretas. A animosidade do ministro
manifestou-se até na discussão referente ao subsídio dos parlamentares.
Os debates estão reproduzidos por inteiro neste volume.
Não pretendemos, nem seria possível, comentar todos os pontos abordados.
Discutiremos, no entanto, brevemente, alguns momentos particularmente
significativos em termos da oposição principal, que, em nossa opinião,
atravessou os trabalhos da Comissão e refletia as tensões do próprio movimento.
Na discussão sobre a forma de escolha dos prefeitos de capitais e
municípios de interesse para a segurança nacional, Pedro Aleixo defendeu sua
nomeação pelos Governadores. Apenas naqueles de importância para a segurança
nacional o Presidente da República seria ouvido. Gama e Silva, por outro lado,
sugeriu que todos fossem nomeados pelo Presidente da República. O Presidente Costa e Silva sustentou a posição do vice,
argumentando que a sugestão do Ministro da Justiça feria a autonomia dos
governadores, aos quais deveria caber a indicação.
Sobre o funcionamento do Congresso, Rondon Pacheco defendeu um período
mais longo de atividade e ponderou que quem precisava mais da Câmara era o
próprio Executivo. "Nós é que damos trabalho à Câmara", afirmou. Gama e Silva aproveita a oportunidade para criticar mais uma
vez o Congresso: "Nesse período de dois anos e meio como Ministro da
Justiça, se formos apurar o que a Câmara produziu de matéria útil,
verificaremos que poderia ter feito num mês." E conclui: "A Câmara é
que dá trabalho ao Executivo. São convocações, são comissões parlamentares de
inquérito e, principalmente, pedidos de informações. Estes têm de ser extintos."
A discussão sobre imunidade parlamentar está presente em quase todos os
períodos de reunião da Comissão, como seria de se esperar. Gama
e Silva insiste, por diversas vezes, na tese da dispensa da licença da
Casa de origem para se instalar processo contra parlamentar. Pedro Aleixo,
contrariamente, defende a manutenção da licença para a instauração do processo.
Em discussão sobre o decoro parlamentar, Miguel Reale
sugere a redação seguinte: "cujo procedimento for declarado incompatível
com o decoro parlamentar ou atentatório à dignidade das instituições vigentes,
porque o decoro parlamentar simplesmente traria o problema da conceituação.
Preveniríamos a hipótese de o parlamentar comparecer à tribuna para atentar
contra a dignidade das instituições vigentes. Seria melhor acrescentarmos essa
emenda para tornar mais positivo o texto."
Gama e Silva defende a perda de mandato do
parlamentar que exerça qualquer função no Poder Executivo. A intenção manifesta
é prevenir o centro real de poder da contaminação do jogo da política. Para
ele, "o fato de o parlamentar vir integrar órgão do Poder executivo é o
fruto de entendimentos políticos, de conchavos políticos e de cambalachos
políticos".
A questão da divisão e harmonia dos poderes propiciou um debate exemplar
das divergências em jogo. O ministro da Justiça manifestou seu entendimento
sobre a obsolescência da expressão "poderes independentes e
harmônicos". Na sua opinião, a fórmula havia perdido totalmente o sentido,
estava completamente superada. "Mas a tendência – e esse o motivo
fundamental da revolução – é dar supremacia ao Poder Executivo, a fim de que,
respeitada a função de cada qual, se possa evitar a superveniência de crises
futuras, de choques entre poderes (...) é o que notamos nas constituições
modernas de países democráticos como a França e os próprios Estados Unidos.
Verificamos que lá o homem mais politizado é o Presidente da República." E completa: "(...) Senhor Presidente, temos de
fazer uma constituição rígida, forte. Não podemos mais apegarmo-nos a
conceitos."
A resposta de Costa e Silva, criticando seu ministro da Justiça,
demonstra o quanto ele se preparara para essa discussão. Com efeito, o esforço
de atualização de Costa e Silva para acompanhar as discussões de cunho mais
teórico, mediante estudos e leituras de autores de direito constitucional,
principalmente, é relatado por Carlos Chagas. Miguel Reale
(1986-87), por sua vez, assinala as manifestações para ele
inesperadas, de conhecimentos jurídicos do Presidente.
Após longos e acirrados debates, de que participam Pedro Aleixo, Hélio
Beltrão e Carlos Medeiros, em defesa da divisão e harmonia dos poderes, o
Presidente coloca a matéria em votação e todos se manifestam pela manutenção da
fórmula. Ao comentar a aprovação da expressão já existente no texto, Costa e
Silva alerta para a necessidade de manter a tradição, acrescentando:
"Vamos modificar tanto, que é melhor deixar alguma coisa."
A comissão aprova a redução do número de senadores para dois por Estado,
numa votação em que Pedro Aleixo, inicialmente contrário, altera seu voto para
garantir a unanimidade da decisão.
A aprovação do Procurador-geral da República, após o crivo do Senado, é
duramente criticada por Gama e Silva: "é intervenção demasiada do Poder
Legislativo em matéria que deve ser da competência do Executivo. Temos de
acabar com esse liberalismo que ainda está imperando no Brasil. Acho que
deveríamos eliminar o máximo possível." Nessa
questão, o ministro reafirma a coerência de suas posições.
Depois de muita discussão sobre as condições para apresentação de emenda
constitucional, Gama e Silva insiste na tese da
diferença de tratamento de propostas originárias do Executivo e do Legislativo,
posição seguida por Miguel Reale. Discutia-se a
garantia da apreciação das propostas do Executivo, garantia de que não gozariam
as de iniciativa de parlamentares. Todavia, o texto é suprimido e permanece a
redação da Constituição de 67.
Miguel Reale apresenta uma proposta que foge um
pouco à norma tradicional da iniciativa das leis. "Temos hoje um fenômeno fundamental, que são os grupos de pressão que atuam à
margem do Congresso. É melhor recebê-los na sua realidade, de maneira
que, em lugar de o projeto ser apresentado pelos Deputados, através de formas
indiretas, o seja pelas próprias organizações, conservando-se tal como é".
Pedro Aleixo comenta que em outros países, como os Estados Unidos, esses grupos
são registrados e atuam no congresso. Debate-se o assunto e Reale insiste: "A ciência política moderna não
pode fechar os olhos diante desse fenômeno. Do ponto de vista empresarial,
ainda se aceita. São os órgãos maiores da representação, da categoria dos
empresários."(...) O elemento decisório, que caracteriza o ato político,
permanece na Câmara, não pertence a esses outros órgãos. Eles apenas põem em
movimento, de maneira direta."
Aos argumentos de Hélio Beltrão, de que outras corporações, como a
Igreja, a Universidade, poderiam integrar esse leque, e que talvez não valesse
a pena inovar, Costa e Silva acrescenta que, com a
ampliação, os congressistas perderiam o cunho de representação popular. "O
Deputado passaria a ser também acionado por essas corporações. É um perigo
muito grande, ainda mais com o poder econômico a predominar. Há também o poder
de massa, que é outro perigo muito grande. Enfim, está em discussão. Os
senhores resolvem." Pedro Aleixo opta pelo
processo clássico, pois entende que, se o interesse for defensável, qualquer um
poderá apresentar o projeto e ele imediatamente encontrará eco entre Deputados
e Senadores. O Presidente encerra a discussão: "A idéia é sedutora,
brilhante até. Talvez para mais tarde, quando tivermos outro grau de
politização, quando estivermos mais amadurecidos. O Brasil ainda está meio
confuso."
Pedro Aleixo relata a supressão da votação secreta em todos os casos que
poderiam suscitar problemas. "Tem-se entendido, na prática parlamentar,
que quando um deputado pede uma votação secreta, aquela votação a favor da
votação secreta já significa a descoberta do voto."
Instado a se manifestar sobre colégio eleitoral e eleição indireta, Pedro
Aleixo se posiciona contra: "do ponto de vista proposto, nós estamos
afastando cada vez mais a representação popular do voto, que é indireto mas é uma representação do povo, dos cidadãos."
Discute-se ainda, dentro do tema, qual será o congresso que elegerá o próximo
Presidente. Mais uma vez, Pedro Aleixo alerta para o fato de que a próxima
eleição presidencial será decidida "por um Congresso no ocaso."
O capítulo da segurança nacional foi redigido com modificações trazidas
pelo Conselho de Segurança Nacional a Pedro Aleixo, que as acatou,
acrescentando que o capítulo lhe parece tranqüilo, pois contém a orientação dos
técnicos. Miguel Reale sugere que se use segurança
nacional em minúsculas, ao que Gama e Silva intervém:
"Acho que se poderia dar outra redação (...) o conselho de segurança
nacional é o órgão de mais alto nível (...)".
As discussões prosseguem, centradas na participação ou não do Presidente
da República no conselho. Pedro Aleixo e Gama e Silva discordam, mais uma vez,
quanto a esse ponto. O Vice-Presidente insiste na condição de membro do
Conselho, com direito a voto portanto, que deve ser
reservado ao Presidente. Diz ele: "Está no art. 83. Dele participa." O ministro da Justiça, ao contrário, enfatiza o
caráter de assessoramento do órgão e, conseqüentemente, a exclusão do
Presidente de sua composição. Com ele concorda Miguel Reale:
"Seria um modo de assessoramento. Tenho a impressão de que o Presidente da
República não deve participar (...)".
Gama e Silva aproveita a discussão sobre
inelegibilidades para, mais uma vez, manifestar sua prevenção contra os
parlamentares: "(...) pessoas dotadas de absoluta incompatibilidade ética
para o exercício do mandato têm sido eleitas, e praticaram, em sua vida
particular, em sua vida pregressa, atos de improbidade, delitos cuja pena, na
verdade, foi extinta, ou por prescrição, ou por outro motivo qualquer. Acho que
para preservar os ideais da revolução, necessário seria que a lei complementar
que vai regular a inelegibilidade desses pudesse compreender isso."
Na discussão sobre partidos políticos, o pluripartidarismo, a sublegenda,
as coligações partidárias estão na pauta. Forma de convivência partidária,
minoria dentro do partido, forma de indisciplina partidária, são opiniões que
se complementam no correr do exame do projeto, em que se destaca a avaliação de
Rondon Pacheco." A sublegenda existe para a
solução de problemas municipais. Ela evita o fortalecimento do adversário. No
caso, a sublegenda evita o fortalecimento do MDB nos municípios."
Na discussão sobre direitos e garantias individuais, Gama
e Silva propõe a supressão da soberania do júri.
No capítulo dedicado às imunidades, Gama e Silva voltou a defender a
dispensa da licença para processar parlamentar, contra a posição defendida por
Miguel Reale, que propõe assegurar ao paciente a mais
ampla defesa. Gama e Silva concorda para
"demonstrar o liberalismo do texto", porém sem licença. Costa e Silva manifesta-se pela manutenção da licença,
apoiando entendimento de Pedro Aleixo. Gama e Silva lamenta
ter sido vencido naquilo que considera o seu parágrafo.
Na discussão sobre o estado de sítio, é mantido o texto de 67, ao qual se
acrescenta o estado de emergência, e se volta a debater a questão das
imunidades. Gama e Silva ainda insistirá no assunto,
depois da discussão das Disposições Gerais e Transitórias, reforçando sua
posição irredutível de que se deve retirar a exigência de licença da casa
respectiva para processar parlamentar.
Entram em pauta, finalmente, a exclusão de apreciação judicial dos atos
da revolução e a vigência do AI 5. Também se discute a
competência privativa do Presidente da República, ouvido o Conselho e Segurança
Nacional, para revogar ou comutar as sanções impostas por força de Atos
Institucionais, ocasião em que Costa e Silva desabafa: "Nunca vi um
Conselho mais duro". Gama e Silva não concorda
com o Presidente e quer mais :"Acho que esse parágrafo único não terá boa
repercussão porque já é um prenúncio de anistia." Defende também a supraconstitucionalidade dos atos institucionais, que não
podem ser subordinados ao Congresso.
Na avaliação de Miguel Reale, não havia
condições para o retorno imediato à normalidade democrática. Tratava-se de
construir um caminho, um cronograma, para esse retorno. Nesse caminho, o
governo Costa e Silva seria a fase de transição. Transcorreria com a suspensão
do habeas corpus para crimes políticos. Em
compensação, os Poderes Legislativo e Judiciário seriam excluídos de imediato
dos efeitos do AI 5, garantindo-se a imunidade dos
parlamentares e a vitaliciedade dos magistrados. O AI 5
seria remetido às Disposições Constitucionais Transitórias, com revogação
progressiva prevista, por iniciativa do Presidente, ouvido o Conselho de
Segurança Nacional. Não haveria mais atos.
Após o encerramento das discussões, Pedro Aleixo consolidou as sugestões
e as entregou ao Presidente. Nos meios militares, fortalecia-se a tese do exame
do anteprojeto pelos membros do Conselho de Segurança Nacional. Todos os membros
do CSN, com exceção do Vice-Presidente, se manifestaram contrários à linha democratizante que Pedro Aleixo tentara imprimir ao
projeto, o que se verifica, principalmente, pela sugestão expressa de
manutenção do AI 5. Acrescentaram dispositivo dizendo
que o Presidente poderia revogar qualquer um de seus artigos, o que deixava
implícita a continuidade de sua vigência. Derrotaram Pedro Aleixo também ao
manterem as eleições indiretas para Presidente por um congresso em final de
mandato e as eleições para governador também de forma indireta.
A forma final do texto, redigida por Pedro Aleixo, incorporou as
modificações que atestavam sua derrota. Para registrar sua posição, enviou uma
carta ao Presidente, em que lamentava que o processo tivesse se desviado do que
ambos pretendiam, e acrescentava que os dois eram os grandes derrotados de todo
o episódio. Conforme relata Carlos Chagas, "Costa e Silva o animou,
enfatizando que, apesar de tudo, o País voltaria ao regime constitucional, e
que até o final de seu governo haveria condições para se completar a obra,
revogando o AI 5. Para demonstrar seu apreço ao
Vice-Presidente, pediu-lhe que com sua própria letra alterasse o dispositivo
que reduzia para dois o número de senadores por estado. ‘Vamos manter os três,
Dr. Pedro. Sei que o senhor acatou a idéia da redução, desde o início, mas que
no fundo a lamentava muito.’" (Carlos Chagas, op. cit.,
p. 257)
O trabalho, completado no dia 29 de agosto, sofreu quase quarenta
alterações depois que a Junta Militar assumiu o comando do governo, do Estado e
da revolução, logo nos primeiros dias da doença que inabilitou Costa e Silva.
As mudanças da junta militar: a Emenda n° 1, de 1969
No quadro comparativo, ao final deste volume, estão assinaladas todas as
alterações promovidas por determinação da Junta Militar na proposta da
Comissão. O trabalho foi realizado, presumivelmente, no mês de setembro, por
Leitão de Abreu, que declarou, anos depois, haver introduzido modificações de
pouca importância.
São comentadas apenas as modificações de maior relevância, do ponto de
vista da análise aqui desenvolvida, observando-se a ordem dos dispositivos.
No entanto, cabe assinalar que a mais importante das quase 40 alterações
feitas por decisão da Junta Militar no trabalho concluído em 29 de agosto foi a declaração de que o AI 5 e os atos seguintes ainda
permaneceriam em vigência, por prazo indeterminado. Assim, com exceção da
manutenção do AI 5, que já estava determinada no texto
final da proposta da Comissão, fica evidente, à primeira leitura, a propósito
do seu texto, em contraste com a manifesta intenção em manter os instrumentos
do autoritarismo que o texto da Emenda revelou.
As penas de morte, prisão perpétua, banimento e confisco são aplicáveis
somente em caso de guerra externa, segundo o texto da Comissão. A Emenda admite
essas penas também nos casos de guerra "psicológica adversa, ou
revolucionária ou subversiva, nos termos que a lei determinar". Não se
trata, aqui, de combater os subversivos, mas de eliminá-los, em nome da ordem e
da segurança nacional.
Por sugestão do CSN, ficava expresso que o Presidente poderia declarar
extinta por decreto a vigência de qualquer dos dispositivos do ato. A comutação
de sanções seria prerrogativa do Presidente, ouvido o CSN. Contrário ao
dispositivo, Costa e Silva o teria aceito,
manifestando sua discordância a Pedro Aleixo, em conversa, afirmando que a
audiência do CSN, em tais casos, lembrava-lhe o espetáculo do povo romano, que
na maioria das vezes não concedia a graça da vida aos gladiadores vencidos
(Chagas, 1979).
Já no Preâmbulo surge a primeira diferença, fundamental. Trata-se do
autor da promulgação. No texto da Comissão, quem promulga é o Presidente da
República, no uso das atribuições que lhe confere o § 1º do art. 2º, do Ato
Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. A emenda nº 1, de 1969, foi
efetivamente promulgada pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da
Aeronáutica Militar, no uso das atribuições conferidas pelo art. 3º do Ato
Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o § 1º do art. 2º,
do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. Um dado interessante a
registrar, sobre a promulgação, é que o art. 1° da Emenda determina as
alterações na Constituição de 1967, iniciadas pela expressão "O Congresso
Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a seguinte
Constituição da República Federativa do Brasil."
1. Consideranda
Conforme a proposta da Comissão, cabia ao Vice-Presidente a função de
Presidente do Congresso Nacional, com o voto somente de qualidade, além de
outras atribuições conferidas em Lei Complementar. O texto da Emenda
retirou-lhe essa função, prevendo apenas sua convocação para missões especiais,
a critério do Presidente. Tal situação se reflete na redação do art. 29, como
se verifica a seguir. Restringe-se o papel da Vice-Presidência à substituição
do titular, permitindo-lhe apenas o desempenho de funções definidas pelo
Presidente.
2. Art. 29, § 1°, a
A Comissão propunha que a convocação extraordinária do Congresso Nacional,
em caso de decretação do estado de sítio ou de intervenção federal fosse feita
pelo seu Presidente. O texto da Emenda atribui essa competência ao Presidente
do Senado. No texto da Comissão, como vimos, cabia ao Vice-Presidente da
República a Presidência do Congresso Nacional, atribuição que lhe foi retirada
pela Emenda.
3. Art. 32, caput
A inviolabilidade dos mandatos legislativos sofreu duras restrições no
texto promulgado pela Junta Militar. Não é de surpreender, pois as relações do
governo com o Congresso eram de antagonismo, como os militares demonstraram, em
várias ocasiões, já ressaltadas anteriormente. Pedro Aleixo havia sugerido que
a inviolabilidade dos mandatos só não se manteria nos casos de crime contra a
honra. No exercício do mandato, deputados e senadores seriam invioláveis por
opiniões, palavras e votos. O Conselho de Segurança Nacional acrescentou, ao
lado dos crimes contra a honra, aqueles previstos na Lei de Segurança Nacional.
A expressão "crimes contra a honra" foi substituída, pela Junta, por
"injúria, difamação e calúnia," e os
parágrafos seguintes do artigo foram totalmente alterados. As mudanças
incorporam, em nova forma, algumas posições que a Comissão havia recusado.
4. Art. 32, § 1°
A redação da Comissão vedava a prisão e o processo criminal dos membros
do Congresso Nacional, sem prévia licença da Câmara respectiva, salvo em
flagrante de crime inafiançável ou nos casos de crimes dolosos ou culposos
contra a vida, desde a expedição do diploma até o início da legislatura seguinte.
A Emenda promulgada vedou a prisão dos parlamentares durante as sessões e "...quando para elas se dirigirem ou delas
regressarem", salvo em flagrante de crime comum ou perturbação da ordem
pública.
Art. 32, § 2°
No caso de flagrante de crime inafiançável, que não contra a vida, a
Comissão ordenava o envio dos autos em 48 horas, para que a Câmara respectiva
resolvesse sobre a prisão e autorizasse ou não a formação da culpa. A Emenda
determinou, nos crimes comuns, o julgamento dos parlamentares pelo Supremo
Tribunal Federal.
Art. 32, § 3°
A Comissão propôs a concessão automática da licença na ausência de
manifestação da Câmara respectiva, no prazo de vinte sessões ordinárias
consecutivas, a contar do recebimento do pedido. A Emenda suprimiu esse
dispositivo, em conseqüência de não haver previsto anteriormente a licença.
3. Art. 57, VI
A Emenda acrescentou, ao rol de competências exclusivas do Presidente da
República, a iniciativa das leis que concedessem anistia para crimes políticos,
depois de ouvido o Conselho de Segurança Nacional. A preocupação em dividir a
decisão entre Presidente e Conselho de Segurança Nacional, reflete, mais uma
vez, o temor de que o Presidente viesse a adotar medidas liberalizantes
"prematuras". Fica evidente, portanto, que as divergências que a
literatura relata entre os ministros militares e o Presidente Costa e Silva, a
respeito do momento de reabertura do Congresso, foram consideradas na decisão.
5. Art. 77, § 2°
A Comissão propunha o exercício da Presidência do Congresso Nacional, com
voto exclusivamente de qualidade, pelo Vice-Presidente da República. A Emenda
retira–lhe essa atribuição e o deixa à disposição do Presidente para o
cumprimento de missões especiais.
6. Art. 119, I, a
Pelo texto da Comissão, compete ao Supremo Tribunal Federal processar e
julgar, originariamente, nos crimes comuns, o Presidente da República, os
Ministros e o Procurador-Geral da República. A Emenda acrescenta o
Vice-Presidente, os Deputados e Senadores. Os Ministros do Supremo Tribunal
Federal, omitidos no texto da Emenda, ficaram sujeitos ao julgamento da justiça
comum, exceto nos crimes de responsabilidade, atribuição do Senado Federal.
7. Art. 125, V
A Comissão propunha que os juízes federais processariam e julgariam, em
primeira instância, entre outros, os crimes cometidos a bordo de navios ou
aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar. A Emenda acrescentou os
crimes previstos em tratado ou convenção internacional.
8. Art. 128, § 3°
A Emenda suprimiu o dispositivo que previa a
transferência para a reserva dos generais nomeados Ministros do Superior
Tribunal Militar. A composição do Superior Tribunal Militar por militares da
ativa permitiria, em tese, uma influência maior do Governo sobre suas decisões.
9. Art. 129, § 1°
O julgamento de civis pela Justiça Militar, nos casos expressos em lei,
para repressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições
militares, é previsto pela Comissão e ordenado pela Emenda.
Art. 129, § 3°
A Comissão previa a regulação em lei da aplicação das penas da legislação
militar, em tempo de guerra. Pelo texto aprovado, tornou-se possível a aplicação da legislação militar, mesmo em tempo de paz.
10. Art. 145, parágrafo único
A Emenda acrescentou à relação dos cargos privativos de brasileiros natos
os de Ministro do Superior Tribunal Eleitoral e de Governador do Distrito
Federal.
11. Art. 151, parágrafo único, caput
A Emenda determinou a vigência imediata das normas para a elaboração da
lei complementar sobre inelegibilidades.
Art. 151, alínea a
Até na terminologia empregada, os dois textos denotam as grandes
diferenças entre os moderados e a linha dura. A expressão irreelegibilidade,
usada pela Comissão, é substituída, na Emenda, por inelegibilidade. No primeiro
caso, o mandatário não pode tornar a ser eleito para o mesmo cargo. A
inelegibilidade, pelo contrario, atinge a todo cidadão, com ou sem mandato, e
aplica-se a todos os cargos eletivos.
12. Art. 152, parágrafo único
A Comissão previa a perda de mandato para o parlamentar que infringisse
reiteradamente as normas. No texto da Emenda, bastava uma infração. A norma
refere-se à fidelidade partidária. O tema era candente, uma vez que a recusa da
licença para processar o Deputado Márcio Moreira Alves contou com o apoio de
diversos parlamentares governistas.
13. Art. 153, § 8°
No texto da Comissão não são toleradas a propaganda de guerra, de
subversão da ordem ou de preconceito de religião, raça ou classe e as
publicações contrárias à moral e aos bons costumes. A Emenda acrescenta, além
de publicações, o termo "exteriorizações", o que ampliou o
significado da expressão.
Art. 153, § 11
No texto da Comissão, as penas de morte, prisão perpétua, banimento e
confisco são aplicáveis somente em caso de guerra externa. A Emenda admite
essas penas também nos casos de guerra "psicológica adversa, ou
revolucionária ou subversiva, nos termos que a lei determinar". O
dispositivo incorporava ao texto constitucional o disposto no Ato Institucional
nº 14, de 5 de setembro de 1969, editado como reação
ao seqüestro do embaixador norte-americano. Essa modificação drástica da
tradição penal brasileira, reconhecida como tal no preâmbulo do Ato, foi
aditada ao texto da Comissão, em nome da segurança nacional.
O perdimento de bens por danos causados ao erário ou no caso de
enriquecimento ilícito era aplicado pela Comissão quando do exercício de função
pública. A Emenda estendeu a pena aos casos de cargo e emprego na administração
pública direta ou indireta.
Art. 153, § 28
No texto da Comissão, a liberdade de associação era assegurada. A Emenda
restringiu essa liberdade às associações com fins lícitos. A expressão abriu
larga margem ao arbítrio das autoridades policiais, às quais ficava delegada, implicitamente,
a atribuição de definir a ilicitude ou não dos fins de qualquer associação.
14. Art. 156, caput
O estado de sítio, salvo em caso de guerra, era
limitado pelo texto da Comissão ao período de sessenta dias. A Emenda ampliou o
prazo para cento e oitenta dias, prorrogáveis se persistissem as razões que lhe
haviam dado origem.
15. Art. 179, caput
Invocando os critérios do § 8º do art. 153 (censura contra a subversão e
a imoralidade) a Emenda restringiu a liberdade das ciências, letras e artes. A
redação, propositadamente ambígua, conseguia dar legitimidade à censura sobre
qualquer manifestação científica e cultural. A partir de um entendimento amplo
do que seriam abusos e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes,
era possível responsabilizar artistas, cientistas, autores pela sua criação e
proibir sua publicação e divulgação.
16. Art. 181, I e II
No projeto da Comissão, não eram suscetíveis de apreciação judicial os
atos do Governo Federal com base nos Atos Institucionais e complementares
editados até a data da promulgação da emenda. O texto final estendeu essa
imunidade aos demais atos. Com efeito, a Comissão havia aprovado e excluído de
apreciação judicial todos os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução
de 31 de março de 1964, bem como os atos do Governo Federal com base nos Atos
Institucionais e Complementares editados até aquela data e seus efeitos (Art.
181, inciso I). A Emenda aprovou, além disso, todos os atos dos Ministros
militares e seus efeitos, quando no exercício temporário da Presidência da
República, com base no Ato Institucional nº 12, de 31de agosto de 1969. A
mudança no inciso II consiste no acréscimo, ao final, da expressão "quando
no exercício dos referidos cargos".
17. Art. 182, caput
A Comissão previa a revogação, por parte do Presidente da República, por
decreto, quando de interesse nacional, da vigência parcial ou integral do Ato
Institucional nº 5, de 1968, bem como dos demais Atos Institucionais
posteriores. A Emenda, pelo contrário, reafirmou a vigência desses Atos,
possibilitando sua revogação, após audiência do Conselho de Segurança Nacional.
Jayme Portella (1979) defende o texto da Emenda, ressaltando o cuidado
que os Ministros Militares teriam tido, ao dar prosseguimento aos atos
institucionais, "não deixando à simples deliberação do Presidente da
República a cessação de suas vigências, mas condicionando–as à audiência do
Conselho de Segurança Nacional." Mais uma vez, o
cuidado de restringir o âmbito de deliberação do Presidente, a prevenção contra
qualquer tentativa, mesmo interna ao regime, de liberalização precoce. A esse
respeito, Portella é extremamente claro:
"Na ocasião da revisão da Emenda constitucional, os Ministros
Militares, no interesse do prosseguimento da Revolução, preferiram colocar um
freio, de sorte a evitar que o Presidente da República deliberasse de vontade
própria a conveniência e a oportunidade de fazer
cessar a vigência dos Atos Institucionais. Por isso, consideraram da maior
importância a audiência do Conselho de Segurança Nacional, onde têm assento os
seguintes representantes das Forças Armadas: Ministros do Exército, da Marinha
e da Aeronáutica, Chefe do Gabinete Militar da Presidência da República, Chefe
do Estado-Maior das Forças Armadas, Chefes dos Estados-Maiores do Exército, da
Marinha e da Aeronáutica, o Chefe do SNI, cargo que tem sido ocupado por um
general. Essa representação das Forças Armadas teria um peso específico
substancial, quando da votação pelo órgão, para a cessação de um daqueles
diplomas ou de suas disposições. Ao pronunciarem os seus votos, expendiriam o pensamento das Forças Armadas, calcados em estudos feitos nos seus respectivos Estados-Maiores." (945, 946)
18. Art. 183, caput
A Comissão estipulava 15 de março de 1971 como término do mandato do
Presidente e do Vice-Presidente da República eleitos em 3 de outubro de 1966. A
Emenda estipulou a data de 15 de março de 1974 como termo final do mandato do
Presidente e Vice-Presidente da República, eleitos em 25 de outubro de 1969, na
forma do Ato Institucional nº 16. A nova redação se deveu à interrupção do
mandato do Presidente Costa e Silva.
19. Art. 184, caput e parágrafo único
A Comissão havia prorrogado, até 31 de março de 1970, os mandatos das
Mesas então constituídas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados e
determinado as eleições de novos membros para as vagas existentes ou que ainda
viessem a ocorrer. Acrescentava, no parágrafo único, que o
mandato das Mesas, no período que se iniciasse em 31 de março de 1970, seria
de apenas um ano, vedada a reeleição para o período seguinte. A Emenda, no art.
186, apenas reproduz o texto do parágrafo único, omitindo a prorrogação de que
trata o caput.
20. Art. 186
A Comissão determinava a redução do número de Deputados Federais e
Estaduais somente para a legislatura seguinte. Na Emenda, no art. 18, a redução
é tornada permanente, a partir da legislatura seguinte.
21. Art. 188, caput e parágrafo único
A Comissão previa a vigência dos dispositivos constitucionais e legais
sobre inelegibilidades, aposentadoria de funcionários públicos e reforma e
transferência de militares para a inatividade, enquanto não entrasse em vigor
lei complementar dispondo sobre a matéria. No parágrafo único, ressalvava das
inelegibilidades em razão de parentesco, para o pleito de 1970, para mandato de
senador e deputados federais e estaduais, quem tivesse exercido igual mandato
pelo mesmo Estado. A Emenda silenciou sobre o assunto, mas determinou, no art.
185, a inelegibilidade, para todos os cargos eletivos, de cidadãos que tivessem
sofrido a suspensão de direitos políticos, por decreto do Presidente da
República, fundado em Ato Institucional.
Portella justifica o casuísmo do dispositivo, ressaltando que ele visava
impedir que pessoas que haviam se incompatibilizado com a Revolução tivessem
acesso a cargos eletivos. (Portella, 1979)
22. Art. 191
O texto da Comissão extinguia, a partir de 1º de janeiro de 1970, os
Tribunais de Justiça Militar dos Estados e colocava seus membros em
disponibilidade remunerada, com vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo
de serviço. Determinava, também, que os funcionários seriam aproveitados no
serviço público estadual. Pelo texto da Emenda, art. 192, foram mantidos, como
órgãos de segunda instância da justiça militar estadual, os tribunais especiais
criados para essas funções, antes de 15 de março de 1967.
23. Novo artigo 195
A introdução de um art. 195, assegurando aos então substitutos de auditor
e promotor da Justiça Militar da União, que tivessem adquirido estabilidade
nessas funções, o aproveitamento em cargo inicial dessas carreiras, respeitados
os direitos dos candidatos aprovados em concurso, foi a maneira encontrada na
ocasião, segundo Portella (1979), para amparar servidores da Justiça Militar
que vinham prestando relevantes serviços ao país, desde os dias da Revolução.
24. Novo artigo 184
A Emenda acrescentou um dispositivo novo. Trata-se do art. 184, que
assegurou, a quem tivesse exercido, em caráter permanente, o cargo de
Presidente da República e não tivesse sofrido suspensão dos direitos políticos,
um subsídio mensal e vitalício igual ao vencimento do cargo de Ministro do
Supremo Tribunal Federal. O parágrafo único assegurava ao Presidente enfermo,
em razão do exercício do cargo, a cobertura das despesas médico-hospitalares
pela União.
Portella justifica o dispositivo, direcionado para amparar o Presidente
Costa e Silva, que havia adoecido no exercício do cargo:
"A idéia era fazer a concessão especial ao Presidente Costa e Silva,
que adoeceu no exercício do cargo e precisava continuar o seu tratamento, o que
não podia ser atendido apenas com os proventos que ele tinha de Marechal do
Exército. O estudo mais amplo do problema permitiu verificar que o fato
ocorrido com ele poderia ocorrer, no futuro, com outros Presidentes. Então, os
Ministros Militares acharam, de bom acerto, que a medida fosse extensiva a
todos os Presidentes que tivessem exercido o cargo em caráter permanente.
(...) O objeto desse parágrafo completava o amparo a ser dado ao
Presidente Costa e Silva e, bem assim, ao que viesse sofrer de moléstia que o
inabilitasse no exercício do cargo no futuro. Até aquela data, as despesas com
o tratamento do Presidente já eram elevadas e era preciso que se desse cobertura ao pagamento por conta do Estado." (Portella, p. 946)
Numa avaliação geral sobre as mudanças feitas no Projeto da comissão,
Portella (1979) as considera de pouca monta. "Num texto com 200 artigos,
apenas algumas disposições sofreram modificações, com a finalidade de ser
mantida a tônica da revolução. Pode-se, assim, dizer que os retoques foram
mínimos, em nada invalidando aquele precioso trabalho inicial, realizado sob a
coordenação do Presidente Costa e Silva."
O texto foi promulgado pelos Ministros Militares no dia 17 de outubro, às
15 horas, no Salão Nobre do Palácio Laranjeiras, perante todo o Ministério e
teve cobertura de uma cadeia de rádio e televisão, por meio da Agência
Nacional. Falou o Ministro Rademaker:
"Os Ministros Militares cumprem o firme propósito de assegurar a
continuidade do programa traçado pelo Presidente Costa e Silva, inclusive
quanto ao restabelecimento da normalidade democrática. O roteiro por ele
estabelecido sofreu, apenas, as modificações que se tornaram imperativas, no
tempo e contexto."
Após a promulgação da Emenda constitucional, os Ministros Militares,
acompanhados dos Chefes dos gabinetes presidenciais, subiram aos aposentos do
Presidente Costa e Silva e deram-lhe conhecimento do ato que
acabavam de praticar, ofertando-lhe um exemplar em encadernação
especial. O Presidente não pôde prender a sua emoção, vindo as lágrimas aos
olhos. Demonstrava a sua satisfação em receber aquela notícia. Na ocasião, os
Ministros também lhe comunicaram que haviam levantado o recesso do Congresso." (947, 948)
A cópia dos autógrafos, com a assinatura impressa do Presidente Costa e
Silva, foi-lhe entregue pelos integrantes da Junta Militar, com dedicatória
redigida de próprio punho pelo Presidente da Junta, Ministro Rademaker, e assinada pelos três. Na ocasião, Costa e
Silva, abatido pela enfermidade, já não tinha condições de esboçar qualquer
reação. Guardado durante várias décadas por seu filho Álcio
Barbosa da Costa e Silva, o documento serviu de base para a reprodução
fac-similar da capa e da página com a dedicatória que integram a presente
edição.
Conclusões
Como avaliar, hoje, transcorridos mais de 30 anos, os resultados do
trabalho da Comissão de Alto Nível? A primeira reação dos contemporâneos, no
testemunho de Carlos Castelo Branco, foi de decepção, logo que os dispositivos
mais importantes começaram a ser conhecidos.
Percebeu-se de imediato, que o texto não punha fim aos Atos Institucionais, mas
os acolhia e dava imunidade a seus efeitos. A crise não fora superada pelo
simples retorno ao estado político anterior, mas, tal como nos casos dos AI 1 e 2, pela retomada do processo político num espaço
mais restrito e controlado.
Os analistas reconheceram cedo que esse resultado não fazia mais que
espelhar o compromisso possível entre as duas vertentes do movimento, ambas
representadas no governo. Carlos Castelo Branco reconhece, em suas crônicas de
16 e 17 de agosto, que "...a reforma que se
processa por imposição de uma conjuntura não vai aperfeiçoar o regime nem
melhorar a Constituição." Seu grande mérito reside, segundo o mesmo autor,
menos no conteúdo que na sua condição de gatilho para a reabertura do Congresso
Nacional e a retomada do processo político. Para tanto, na solução de
compromisso, teve que incorporar as "garantias" capazes de
tranqüilizar os setores duros.
A transferência da função de coordenação do processo de Gama e Silva para
Pedro Aleixo, em maio de 1969, havia dado margem a
esperanças maiores. Enquanto esse otimismo persistiu, Castelo Branco pode
afirmar que "Assim como o professor Gama e Silva foi o homem de dezembro
de 1968, Pedro Aleixo está sendo o homem de setembro de 1969."
O regime faria uso de seus quadros conforme sua necessidade. Numa quadra
de liberalização, a pessoa indicada seria o Vice-Presidente.
O otimismo não resistiu, como vimos, ao conhecimento do resultado dos
trabalhos da Comissão. Mesmo assim, a coordenação de Pedro Aleixo produziu
diferenças perceptíveis no texto. Nas palavras de Castelo, "Não sendo essa
a Constituição de seus sonhos, isto é, a que faria se lhe fosse dado
disciplinar a vida de seu país, o Sr. Pedro Aleixo, a considera todavia um documento razoável do ponto de vista doutrinário
e muito útil do ponto de vista político. Se a revisão da carta fosse confiada
ao Prof. Gama e Silva, teríamos hoje um projeto revolucionário, na medida em que
se pretenderia alterar a própria estrutura da Carta formalmente em vigor. Com o
Sr. Pedro Aleixo, não se faz propriamente uma reforma, mas uma simples revisão,
o que parece se conformar bem ao propósito do Presidente da República."
(Castelo Branco, 1979, p. 292)
Em outras palavras, o período, nessa conjuntura do compromisso entre
moderados e linha-dura, não era de avançar, mas de impedir retrocessos maiores.
Nas palavras de Costa e Silva, citadas por Castelo, "governar é
resistir".
Prevaleceu, em alguns autores, uma avaliação que subestima os conflitos
que tiveram como palco os trabalhos da Comissão. Skidmore
(1988), por exemplo, apresenta uma descrição negativa dos seus integrantes,
"um painel de eminentes constitucionalistas, todos implicitamente dispostos
a aceitar, pelo menos por curto prazo, uma Constituição ofuscada por grosseiras
restrições militares às liberdades civis". Na mesma linha Marcello Cerqueira (1997) considera os trabalhos da
Comissão de Notáveis uma vã tentativa de conciliar o inconciliável.
A premissa comum a julgamentos dessa ordem é a subestimação do conflito
interno ao regime. Este seria duro na sua essência e adotaria o discurso
liberal no momento e medida da sua conveniência. Aos setores moderados do
governo estaria reservado o papel da produção desse discurso.
Vimos que essa foi a leitura de todos os setores
da oposição que recusaram o caminho da institucionalidade,
mesmo que reduzida. No entanto, a história da superação do regime mostrou uma
dinâmica diferente. No momento em que a relação de forças entre os dois grupos
se altera, tem início o processo de reforço mútuo entre as ações do governo,
agora sob a iniciativa dos moderados, e os da oposição institucional. Abre-se o
jogo de pressões e concessões que Costa Couto analisa (1998).
O liberalismo de raiz udenista, base política dos militares no movimento
de 1964, havia sido progressivamente alijado e isolado a cada passo que o
governo dava no rumo do endurecimento. Seus próceres haviam sido objeto de
expurgo em cada um dos momentos de crise.
Milton Campos renunciou ao Ministério da Justiça de Castelo Branco, após
recusar-se a elaborar o AI 2. Adauto Lúcio Cardoso
retirou-se da Presidência da Câmara, em protesto contra as cassações de
parlamentares e a invasão e recesso do Congresso, que se seguiram à edição
daquele Ato. Daniel Krieger deixou a Presidência da
Arena depois de votar contra o pedido de licença para processar Márcio Moreira
Alves. Finalmente, Pedro Aleixo é impedido de assumir a Presidência, em virtude
de seu voto contrário ao AI 5.
Depois desses acontecimentos, pareceu, durante algum tempo, que os
remanescentes da vertente liberal do movimento haviam aderido à exceção e ao
autoritarismo. No entanto, ao primeiro sinal de recuo da linha-dura, os políticos
liberais tornam a se movimentar. Petrônio Portela auxilia o processo de
abertura de Geisel, primeiro no Congresso e, depois, como ministro da Justiça,
cargo no qual rompe uma longa linhagem linha-dura iniciada com Carlos Medeiros,
em 1966.
O desfecho da história é conhecido. A vertente liberal se autonomiza do partido do governo, em razão das contradições
que o processo sucessório de João Figueiredo desencadeia e, aliada ao PMDB,
triunfa no Colégio Eleitoral de 1985, elegendo a chapa Tancredo Neves e José
Sarney. Nesse momento de ruptura, um dos votos representou uma linha de
continuidade entre os embates da Comissão de Alto Nível e a disputa do Colégio
Eleitoral. O Deputado Rondon Pacheco, ex-Presidente da
ARENA no governo Médici, acompanhou a dissidência, foi um dos fundadores da
Aliança Liberal e sufragou Tancredo Neves.
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