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A
proteção do patrimônio cultural: uma obrigação de todos
Nathália Arruda
Guimarães *
Sumário: 1. Introdução. 2. O que é patrimônio
cultural? 3. O papel dos Municípios e dos Planos Urbanísticos 4. Conclusões 5.
Bibliografia.
1. Introdução
O que difere um povo de outro? O que une e o que separa os
indivíduos de tantas partes do mundo?
Para conhecermos um povo recorremos à análise de seus
hábitos, sua forma de demonstrar sentimentos, expectativas e suas manifestações
espirituais onde se refletem seus valores e sua história compondo o que hoje
entendemos como cultura.
A cultura inclui conhecimentos, construções
arquitetônicas, artes, moral, leis, costumes, hábitos e qualquer outra
manifestação que expresse a vida de um povo. Essas manifestações são, em
verdade, a própria identidade de uma sociedade e exprimem sentimentos comuns
que manifestam singularidade, o que por si só, abarca indiscutível valor
humanístico.
O século XX é marcado por movimento político mundial de preservação
do Patrimônio Cultural de tal modo que é certo dizer, hoje, que a preservação
da identidade popular é uma das funções do Estado e um dever de toda sociedade.
Sem deixar de relevar as diversas iniciativas nacionais e
internacionais, consideramos ponto alto nas políticas internacionais a criação
da Unesco, que promove a identificação, a proteção e a preservação do
patrimônio cultural e natural de todo o mundo, por mandato conferido por um
tratado internacional firmado em 1972 e ratificado até agora por 164 países,
entre eles, o Brasil.
Em se tratando do Brasil, os fins estatais de preservação
do patrimônio cultural são expressos, ainda, na Constituição Federal e
legislação ordinária. O regime constitucional do Patrimônio Cultural estende-se
por diversos artigos em que fica demonstrada a preocupação do constituinte em
garantir a proteção desse bem jurídico social.
Segundo o inciso III, do artigo 23 da carta política
brasileira, é competência comum da União, Estados, Distrito Federal e
Municípios, proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico,
artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios
arqueológicos.
Ter competência comum disposta no artigo 23, significa que
todos os entes políticos são competentes e responsáveis pela proteção dos bens
de interesse cultural. Suas ações administrativas e suas políticas de governo
deverão passar, necessariamente, pela implementação de atos de preservação e
valorização culturais.
2. O que é patrimônio Cultural?
O constituinte brasileiro estabeleceu no artigo 216 da
Carta Fundamental do Brasil que o "patrimônio cultural é formado por bens
de natureza material e imaterial, tomadas individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de
expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações
científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artistico-culturais; V
– os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico;".
Em consonância com a política mundial, a Constituição reconhece
que o patrimônio cultural do povo brasileiro é ingrediente de sua identidade e
da diversidade cultural. Podendo também tornar-se um importante fator de
desenvolvimento sustentado, de promoção do bem-estar social, de participação e
de cidadania.
É mesmo um conjunto de elementos que compõe o que se
entende por patrimônio. O patrimônio cultural tem como sujeito de interesses
toda a sociedade que reflete sua relevância e é uma categoria que abrange bens
de naturezas diversas, que podem se classificar como bens materiais ou
imateriais, móveis ou imóveis, públicos ou privados.
A proteção que pretende o constituinte estabelecer abrange
o fenômeno cultural que possui três dimensões fundamentais. A criação, a
difusão e a conservação. A criação da cultura é feita em diversos níveis e
manifesta-se em diversas formas (música, pintura, esculturas, trabalhos
literários, fotografias, manifestações populares, dança, etc). Cabe ao Estado
favorecer a realização dessas manifestações através de incentivos diretos e
indiretos. A difusão corresponde ao acesso dessa produção cultural no meio
social. É de importância crucial a informação e a educação da sociedade. E a
conservação, que repercute na proteção dos bens e na sua manutenção para evitar
destruição e avariações.
As três dimensões fundamentais do fenômeno cultural
(criação, difusão e conservação) estão contempladas no texto constitucional,
que as coloca sob a responsabilidade do poder público, em colaboração com a
sociedade.
Assim, cabe ao Governo Federal, por meio do Ministério da
Cultura, formular e operacionalizar a política que assegure os direitos
culturais do cidadão, criar instrumentos e mecanismos que possibilitem o apoio
à criação cultural e artística, o acesso aos bens culturais e a distribuição
destes, bem como a proteção, a preservação e a difusão do patrimônio cultural
brasileiro.
Deverá, dessa forma, o Estado brasileiro, com a
colaboração da comunidade, promover e proteger o património cultural
brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e
desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação.
Além do Estado, todos os cidadãos devem promover a
proteção do património cultural das cidades, provocando os institutos próprios
de preservação, ligados à Prefeitura Municipal, ao Estado, ou, ainda, à União
(IPHAN (1)). A sociedade pode, ainda, organizar-se em associações ou
fundações com tais finalidades.
Está também à disposição de toda a sociedade a Ação
Popular e a Ação Civil Pública (2), meios para evitar a destruição
ou má conservação dos bens que integram o Patrimônio Cultural, entendido como
interesse difuso de todos.
3. O papel dos Municípios e dos Planos
Urbanísticos
Já vimos que todos os níveis de Estado têm competência
comum para efetuar os meios necessários para impedir a degradação e destruição
dos bens culturais. Chamamos à atenção dentre os meios de preservação cultural,
o papel do Município na realização dessa tarefa.
É comum verificarmos nas estruturas administrativas dos
municípios, Secretarias de Cultura que atuam na promoção e na preservação de
manifestações culturais. Entretanto, ainda há tímida relação entre as ações das
Secretarias de Cultura e das Secretarias de Desenvolvimento Urbano.
Tais organismos administrativos estruturam-se em razão das
competências municipais traçadas na Constituição Federal:
"Art.
30. Compete aos Municípios:
I
– legislar sobre assuntos de interesse local;
II
– suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
...
VIII
– promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante
planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
IX
– promover a proteção do patrimônio histórico – cultural local, observada a
legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual." (destacamos)
A elaboração do planejamento urbanístico por excelência e
das normas que efetivamente interferem na transformação da organização urbana é
missão remetida à entidade que representa a comunidade local, cujo interesse na
questão é direto e imediato.
Trata-se, pois, de definir o espaço em que habita
determinada comunidade, havendo, portanto, de predominar seus interesses, ainda
que submetidos aos contornos fixados pela legislação federal e estadual.
Compete ao Município, assim, complementar o rol de
objetivos da política de desenvolvimento urbano, especificando, detidamente, as
limitações e as determinações a serem observadas no trato da propriedade urbana
ou rural sob sua guarda.
Cabe ao Município a difícil e fundamental tarefa de
avaliar a cidade como um todo, verificando em seu território a melhor solução
para os problemas gerados pela urbanização descontrolada, bem como prevenir
situações de risco social, organizando áreas e estimulando a regularização
fundiária.
A competência Municipal em matéria de direito urbanístico
não se restringe, ainda, à organização definida no art. 30 da Constituição
Federal. Sua atuação é ampliada por força do art. 182 da Carta Fundamental que
trata da Política Urbana e confere conteúdo ao princípio da função social da
propriedade, uma vez que é o plano diretor, lei municipal, que estabelece os
requisitos e condições para o cumprimento daquele princípio constitucional:
"Art.
182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
habitantes.
d
1o O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para
cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana.
d
2o A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano
diretor."
A avaliação e regulamentação das questões urbanas pelo
ente municipal se dará, necessariamente, sob a ótica social que a Constituição
Federal estabelece em seu inciso XXIII, do art. 5o combinado com o
art. 182.
Deverá, portanto, o Município, atuar na fiscalização e
implementação dos princípios constitucionais por meio dos instrumentos
definidos pelo Estatuto da Cidade, norma federal de caráter geral que confere
ao ente local meios para efetivar a conformidade da propriedade pública e
privada à função social.
É, outrossim, o município que definirá os passos concretos
que o desenvolvimento urbano dará, uma vez que cabe privativamente a este ente
o tratamento legal de assuntos de interesse local em matéria de "política
de desenvolvimento urbano, colocando-se como instrumento básico dessa política
o plano diretor urbano aprovado pela Câmara Municipal e obrigatório para
cidades com mais de vinte mil habitantes." (3)
Em matéria de Direito Urbanístico, portanto, o Município é
ente de competência destacada lhe sendo conferido o dever e o direito de
interferir na disciplina da propriedade local, dando a esta conteúdo social.
Nesse aspecto, destacamos que a Lei Federal nº
10.257/2001, o Estatuto da Cidade, dispõe que política urbana tem por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana, observando o dever de proteção, preservação e recuperação do meio
ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico,
paisagístico e arqueológico. (inciso XII, art.2º)
É de se saber que uma das funções do governo local é a de
implementar a política urbana através do Plano Diretor e de planos especiais de
valorização e preservação de bens de interesse cultural e natural.
Um dos objetivos prementes do Plano Diretor Municipal é a
conjugação do planejamento do território urbano com a proteção do patrimônio
cultural, especialmente aquele de natureza imóvel.
Devemos saber, ainda, que a elaboração do Plano Diretor
necessariamente deverá ser acompanhada e sujeita à participação efetiva dos
cidadãos da cidade, a fim de garantir a gestão democrática do espaço urbano.
É necessário promover audências, debates, consultas
públicas, conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional,
estadual e municipal ( inciso III, art.43 do Estatuto da Cidade). Estabelecer,
enfim, junto da comunidade local, reflexões sobre como queremos viver a cidade
de nossos dias sem perder nossa identidade.
A democrática participação popular, devidamente informada
e esclarecida, é imprescindível para garantir um ordenamento urbano que reflita
a preocupação cultural, a partir de onde se concretizará uma cidade como
queremos.
Resta observar, desta feita, se está ocorrendo em nossas
cidades oportunidades de abordarmos as questões envolvendo a proteção dos bens
culturais, ou se as ações locais ainda restam insuficientes para tratarmos a
valorização de nossa identidade cultural.
Devemos, ainda, refletir, sobre a repercussão benéfica da
preservação de imóveis de valor arquitetônico, e mudarmos nossas visões acerca
das responsabilidades que um tombamento ou qualquer outra medida administrativa
restritiva dos direitos de propriedade privada, vêem a representar.
De certo, cidades cuja preservação do patrimônio
imobiliário cultural é efetiva, tornam-se mais atraentes a investimentos e ao
turismo, o que evidentemente é de interesse de todos e confere auto -
sustentabilidade aos bens que o integram.
Mais do que previsões legislativas a proteção do
patrimônio cultural depende de medidas políticas e é por isso que ao poder
executivo cabe grande responsabilidade e à sociedade cabe ser atenta às medidas
tomadas.
4. Conclusões
Não se poderá admitir que, na ocasião da elaboração dos
planos diretores municipais, se omita a necessidade de avaliar e de repensar a
função cultural desse instrumento elementar de implantação da política urbana.
Trata-se mesmo de direito subjetivo de todos e de direito fundamental a ser
respeitado pelo Estado Brasileiro.
As ações públicas municipais devem estar atentas a
necessidade de educar a sociedade e promover a valorização e preservação do
patrimônio imobiliário cultural existente, que transmitirá às gerações futuras
o sentido dos valores e da identidade atuais.
Embora tenhamos várias alternativas e um regime de
preservação cultural que remonta às Constituições Federal e dos Estados,
assistimos incrédulos à degeneração de nossa história, presenciamos a omissão
dos entes políticos e, ainda, à passividade insólita de nós mesmos, diante de
tímidas e insuficientes tentativas de mantermos vivas algumas construções e
monumentos de relevância cultural.
Ter uma cidade preservada, através de iniciativas públicas
e privadas, demonstra consciência cultural, dando oportunidade de transmitir às
gerações futuras o que somos hoje, dando-lhes referências históricas e
fortalecendo os laços em comum. Omitirmo-nos diante dessas necessárias medidas
fará com que nos esqueçamos de quem nós somos. Quanto tempo mais esperar?
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Notas
1 Actualmente, o Brasil possui o IPHAN -
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado em Janeiro de
1937 no Brasil, criado para promover actividades ligadas à proteção do
Património Cultural.
2 No Brasil, destacamos a Ação Popular Lei
nº 4.717/65, meio adequado para pleitear a anulação ou a
declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio, entendido como o conjunto
de bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou
turístico. E a Ação Civil Pública, Lei nº 7.347/85, que dispõe a
legítimidade do Ministério Público, União, Estados e Municípios,
bem como autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou
associação, desde que atendam aos requisitos do incisos I e II do art. 5º, da
referida Lei, para promover reparações por danos morais e patrimoniais
causados: l - ao meio-ambiente; ll - ao consumidor; III – à ordem urbanística;
IV – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico; V - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. A autorização
legislativa não foi ignorada pelo legislador constituinte de 1988 que
recepcionou a Lei e estabeleceu no artigo 5º, inciso LXXIII preceito
equivalente em que preconiza: "qualquer cidadão é parte legítima para propor
ação popular que vise a anular ato lesivo ao património público ou de entidade
de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao
património histórico e cultural...".
3 ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Competências
na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Atlas S.A., 1991, pág.127.
* Advogada, Mestre em Direito pela UERJ, Doutoranda
em Direito pela Faculdade de Direito de Coimbra-Portugal.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5372>. Acesso em: 08 ago. 2006.