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A ação nunciatória e o Município: a ação de nunciação de obra nova como instrumento hábil ao cumprimento da função social da propriedade urbana

 

 

Alan Pereira de Araújo *

 

SUMÁRIO 1.INTRODUÇÃO - 2. DIREITO DE PROPRIEDADE E DIREITO DE CONSTRUIR - 2.1. Direito de propriedade: generalidades e conceito - 2.2. A propriedade na Constituição da República - 2.3. A extensão do direito de propriedade e o direito de construir - 3. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE IMÓVEL URBANA E O PLANO DIRETOR - 3.1. A função social da propriedade imóvel urbana - 3.2. O Plano Diretor municipal e a regulamentação edilícia - 3.3. O Estatuto da cidade - 3.4. Instrumentos utilizados para o cumprimento da função social da propriedade imobiliária urbana - 4. A AÇÃO NUNCIATÓRIA E O MUNICÍPIO - 4.1 Generalidades e conceito - 4.2. Natureza jurídica - 4.3. Pressupostos - 4.3.1. Obra nova - 4.3.2. Obra iniciada e não concluída - 4.3.3. Prejuízo ao prédio vizinho - 4.3.4. Outros apontamentos - 4.4. As normas legais da construção e o Município: o revigoramento do procedimento especial da ação de nunciação de obra nova - 4.5. Legitimidade ativa - 4.6. Legitimidade passiva - 5. PROCEDIMENTO E EMBARGOS - 5.1. Petição inicial e defesa do réu - 5.2. Embargo extrajudicial - 5.3. Embargo liminar - 5.4. Levantamento do embargo: caução e prosseguimento da obra - 5.5. Sentença e execução - 6. CONCLUSÃO - 7. BIBLIOGRAFIA

 

1. INTRODUÇÃO

Nos dias atuais, o direito de propriedade não pode ser visto apenas como o direito de usar, gozar, dispor e reivindicar uma coisa de quem injustamente a detenha. Longe de ser um direito absoluto, se vê subordinado ao cumprimento da chamada "função social" da propriedade. Esta, quer seja urbana ou rural, deve, por imposição constitucional, cumprir sua função social.

Outra não foi a preocupação do legislador ao regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição da República por meio da Lei n° 10.257, de 10 julho de 2001 – o Estatuto da cidade. De nossa parte, entendemos ser necessária a conjugação das disposições constantes na Lei Maior, no Estatuto da cidade, na lei do Plano Diretor, regulamentação edilícia e normas legais da construção para que, só então, se possa atingir o cumprimento da função social da propriedade.

Nesta ordem de idéias, a ação de nunciação de obra nova se apresenta como instrumento processual hábil, a par de outros de natureza administrativa, civil, constitucional e tributária postos à disposição do Poder Público, especialmente municipal, a garantir a observância da função social da propriedade imobiliária urbana pelo particular, e mesmo pelo próprio Poder Público, quando construir em desrespeito às normas urbanísticas e às chamadas "normas legais da construção".

Complexa e multidisciplinar, a discussão acerca da propriedade e de sua função social envolve aspectos de ordem material e também processual. Sendo assim, enfrentaremos o tema privilegiando, na primeira parte de nosso estudo, os aspectos materiais e, na segunda, os de ordem processual, vistos, aqui, sob a proposta de rejuvenescimento do procedimento especial da ação nunciatória inserido numa perspectiva urbanístico-constitucional e não meramente processualista.

Este, pois, o nosso desafio. Vamos a ele.

 

2. DIREITO DE PROPRIEDADE E DIREITO DE CONSTRUIR

2.1. Direito de propriedade: generalidades e conceito

O direito de propriedade, tido como "o mais importante e o mais sólido de todos os direitos subjetivos, o direito real por excelência" e centro gravitacional do direito das coisas, o "mais amplo dos direitos reais", apresenta bases remotas e é, ainda hoje, motivo de acaloradas discussões, pois "mais se sente do que se define".

Seja como for, ensina ORLANDO GOMES ter sido o código napoleônico que, em seu artigo 544, celebrizou a definição do direito de propriedade como sendo "o direito de usar, gozar e de dispor das coisas da maneira mais absoluta, desde que delas não se faça uso proibido pelas leis e regulamentos".

Criticado por sua imprecisão técnica, o referido conceito, pleonástico, contraditório, não escapou à análise percuciente de importantes civilistas brasileiros. W. B. MONTEIRO foi um deles e elucida:

"Tal fórmula mereceu gerais censuras. Em primeiro lugar, por ser pleonástica, direito de gozar e de dispor da coisa da maneira mais absoluta, como se houvesse graus no absoluto. O direito de disposição é ou não absoluto, sem possibilidade de graduações. Em segundo lugar, porque referida definição, na parte final, a rigor, quer dizer o seguinte: a propriedade é poder absoluto, mas que não é absoluto, visto sofrer restrições criadas pelas leis e pelos regulamentos administrativos".

Quanto a este último aspecto, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA assim se pronuncia:

"Não foi feliz, a começar por uma gradação do absoluto, que é contrária à lógica e à semântica: o absoluto não comporta superlativo. Se se admitir um absoluto que o possa ser mais que outro, constrói-se a idéia de relativo; e se há um absoluto que o seja menos que outro absoluto, é porque não o é. Em seguida, a definição desfaz o absoluto, quando o submete às restrições legais e regulamentares. Com efeito, há conceitos que se não compadecem com a idéia de limitação".

Diante destas críticas, nosso Código Civil não se atreveu a definir propriedade, limitando-se a enunciar os poderes do proprietário (art. 524), quais sejam os de usar, gozar, dispor de seus bens, e ainda o de reavê-los de quem quer que injustamente os possua.

GOMES, numa tentativa de solucionar a questão, esclarece que a conceituação do direito de propriedade pode ser feita à luz de três critérios: um sintético, seguindo a linha de Winscheid, onde se tem a "submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa", ou seja, a imputação jurídica de uma coisa a um sujeito; um analítico, presente no nosso Código Civil, segundo o qual o direito de propriedade é o "direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem quer que injustamente o possua"; e um descritivo, quando então nos deparamos com "o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei".

Certo é que se trata de um direito que tem raízes tanto no direito privado como no direito público, o que torna desaconselhável uma visão parcial ou unicamente civilista do regime jurídico da propriedade, pois estas não têm o condão de alcançar a complexidade do tema, que é resultante de um conjunto de normas jurídicas publicísticas, bem como de direito privado. Em atenção a este aspecto, tem sido usada a noção de situação jurídica subjetiva complexa, para explicá-lo.

Por outro lado, também não devemos confundir o direito de propriedade sobre um bem, direito atual, positivamente atribuído a uma pessoa, cujas faculdades são aquelas enumeradas no artigo 524 do Código Civil, com a faculdade potencial que todo indivíduo tem de se tornar sujeito desse direito.

Aliás, o direito de propriedade está institucionalmente garantido pela Constituição da República, embora seja a lei ordinária a responsável pela fixação de seu conteúdo. Talvez por isto muitos juristas brasileiros, quer publicistas, quer privatistas, mas sobretudo estes últimos, concebam o regime jurídico da propriedade privada como subordinado ao direito civil.

Entretanto, uma tal visão, hoje, não pode mais prevalecer diante das disposições constitucionais acerca da propriedade, que fazem com que o seu regime jurídico tenha fundamento na Lei Maior e não no direito civil. Dessa forma, as normas de direito privado hão de ser compreendidas e interpretadas a partir de um novo paradigma conceitual, que nos é dado pela Carta Política.

2.2. A propriedade na Constituição da República

A Constituição da República, em sua sistemática, fala em "propriedades" e não apenas em propriedade. Explico: a Lei Maior, de um lado, garante o direito de propriedade em geral (art. 5º, XXII), dotado de um conteúdo mínimo essencial e sem direito à indenização, mas, de outro, também faz a distinção entre as propriedades urbana e rural, aquela disciplinada no art. 182, §2º e esta última nos arts. 184, 185 e 186, com seus respectivos regimes jurídicos.

Nesta mesma linha, EDÉSIO FERNANDES, advogado e professor da Universidade de Londres, em recente artigo, vai além e elucida:

"Argumentar que existe na ordem jurídica brasileira um conceito único de direito de propriedade é uma falácia: são muitas as formas de direitos de propriedade – imóvel, móvel, pública, privada, rural, urbana, intelectual, financeira, industrial, etc. – sendo que cada forma específica tem sido tratada juridicamente de maneira diferente".

Em qualquer caso, não se pode perder de vista o conteúdo do caput do art. 5º de nossa Lei Maior, que declara serem todos iguais perante a lei, não se admitindo distinção de qualquer natureza, garantindo-se, ainda, aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos em que coloca.

Mais adiante, em seus incisos, fica garantido, novamente, o direito de propriedade (inc. XXII), exigindo-se, desta última, o atendimento de sua função social (inc. XXIII).

Em consonância com a sistemática constitucional, o art. 182, caput e parágrafo 2º, a seu turno, estabelecem:

"Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

(...)

§2º. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor".

No que tange aos demais dispositivos constitucionais, aqueles pertinentes à propriedade rural, vamos nos abster de transcrevê-los tendo em vista que é a propriedade urbana que, em especial, interessa ao nosso estudo.

Contudo, a partir dos dispositivos transcritos, podemos concluir que o regime jurídico da propriedade tem seu fundamento na Constituição da República, que garante o direito de propriedade desde que ela atenda a sua função social. Isto se torna mais evidente quando a Lei Maior autoriza, nos arts. 182, §4º e 184, a desapropriação, com pagamento mediante títulos da dívida pública, da propriedade que não cumpra sua função social. À luz destes elementos, o direito civil, "não disciplina a propriedade, mas tão-somente as relações civis a elas pertinentes".

2.3. A extensão do direito de propriedade e o direito de construir

C. M. S. PEREIRA, com a autoridade que lhe é peculiar, explica-nos que o Código Civil de 1916, conjugando os critérios da utilidade e do interesse,

"filiou-se à corrente germânica e instituiu a extensão do direito de propriedade ao espaço aéreo e ao subsolo, em toda altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo todavia opor-se o proprietário a trabalhos que sejam empreendidos até onde não exista o interesse de impedí-los".

O novo Código Civil, a seu turno, contém disposição de igual teor em seu artigo 1.229.

Considerada a propriedade também como fato econômico, a extensão do espaço aéreo e do subsolo se delimita pela utilidade que pode proporcionar ao proprietário, de onde se infere que a tutela jurídica da propriedade do solo compreende a do subsolo e do espaço aéreo até onde chega o interesse do dono.

Assim é que não tem o proprietário o direito de impugnar a realização de trabalhos que se efetuem a uma altura ou profundidade tais que não tenha interesse em impedí-los, mas pode usar seu imóvel, exigindo dele todos os serviços que lhe pode prestar sem, é claro, alterar-lhe a substância; pode gozá-lo, fazendo-o frutificar e auferir-lhe os produtos; pode, ainda, dele dispor, consumindo-o, alienando-o, gravando-o de ônus ou submetendo-o ao serviço de outrem.

Nesta ordem de idéias, pode o proprietário, naturalmente, construir, pois como bem esclarece HELY LOPES MEIRELLES,

"O fundamento do direito de construir está no direito de propriedade. Desde que se reconhece ao proprietário o poder legal de usar, gozar e dispor dos seus bens (Código Civil, art. 524), reconhecido está o direito de construir, visto que no uso, gozo e disponibilidade da coisa se compreende a faculdade de transformá-la, edificá-la, beneficiá-la, enfim, com todas as obras que lhe favoreçam a utilização ou lhe aumentem o valor econômico".

Como recomenda a razão, o direito de construir, apesar de amplo, não é e não pode ser absoluto. As relações de vizinhança e o bem-estar coletivo impõem ao proprietário certas limitações para que se tenha uma coexistência harmônica em sociedade.

Na verdade, a tarefa de oferecer limites ao direito de construir fica a cargo das normas administrativas, vez que o direito civil, utilitarista como vimos, se limitou a declarar que o poder de utilização do subsolo e do espaço aéreo pelo proprietário do terreno vai até a profundidade e a altura úteis ao exercício do direito de construir.

Temos, pois, que a liberdade de construir é a regra, ao passo que as restrições e as limitações ao direito de construir constituem exceções, devendo, por isso, estar consignadas em lei ou regulamento (Código Civil, art. 572).

Além disso, há que se fazer um uso "normal" da propriedade, não se admitindo o seu mau uso. Neste sentido, o Código Civil, em seu art. 554, ao tratar dos direitos de vizinhança – aos quais está subordinado o direito de construir – vedou, expressamente, o uso nocivo da propriedade. Para tanto, conferiu ao proprietário ou inquilino de um prédio o direito de impedir que o mau uso da propriedade possa prejudicar a segurança, o sossego e a saúde dos que o habitam.

Embora, na prática, caiba à Justiça, em cada caso, apurar o que seja uso ou abuso, normalidade ou anormalidade no exercício do direito de construir, o mencionado dispositivo acolhe e consagra em nosso ordenamento jurídico o princípio da relatividade do direito de propriedade ou, mais adequadamente, o da normalidade de seu exercício, utilizado na solução dos conflitos de vizinhança.

Cumpre observar, ainda, que o conceito de normalidade no direito de construir abrange todas as formas e modalidades de uso da propriedade. Trata-se de uma limitação jurídica de caráter geral e, assim, o exercício do direito de propriedade e, obviamente, do direito de construir, só são legítimos e defensáveis quando normais.

A normalidade, como vimos, será aferida pelo Judiciário em cada caso, levando-se em conta a utilização do imóvel, a destinação do bairro, a natureza da obra ou atividade, a época, a hora e demais circunstâncias atendíveis na apreciação do ato prejudicial ao vizinho, ou seja, há que se atentar para a destinação, extensão, intensidade e oportunidade da obra ou atividade, aferíveis pelos padrões locais e comuns de utilização do imóvel e de ocupação do bairro.

H. L. MEIRELLES, com muita objetividade, sintetiza o conteúdo do presente tópico, dizendo:

"No poder de levantar em seu terreno as construções que entender, está consignada, para o proprietário, a regra da liberdade de construção; na proibição do mau uso da propriedade está o limite dessa liberdade. A normalidade do direito de construir se traduz no respeito ao direito dos vizinhos e às prescrições administrativas".

E, atento à sistemática constitucional, acrescenta:

"A partir da Constituição de 1988, as limitações ao direito de construir não decorrem apenas do art. 572 do Código Civil, mas sim da própria Lei Maior, que outorga competência ao Município para promover o adequado ordenamento do solo urbano, mediante o controle de seu parcelamento, uso e ocupação (art. 30, VIII)".

O mestre, como não poderia deixar de ser, foi impecável. Contudo, RITA GIANESINI pontua:

"Os limites ao direito de construir estão disciplinados, no nosso direito positivo: Constituição Federal, Código Civil, Constituição Estadual, Código de Edificações, Código de Obras, legislação versando a respeito do parcelamento, uso, ocupação e aproveitamento do solo, leis de proteção aos mananciais, ao patrimônio histórico, cultural, paisagístico e arqueológico, Plano Direto, bem assim restrições de vizinhança prescritas em convenções entre particulares, inscritas ou não na respectiva Circunscrição Imobiliária".

É de se ver, pois, que os limites ao direito de construir não se encontram apenas na Lei Maior, mas em todo um conjunto normativo de natureza pública e privada, disciplinador desta "situação jurídica subjetiva complexa" que é a propriedade.

Feitos estes esclarecimento, passaremos agora à questão da função social da propriedade imobiliária urbana.

 

3. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE IMÓVEL URBANA E O PLANO DIRETOR

3.1. A função social da propriedade imóvel urbana

A função social da propriedade é um princípio ordenador da propriedade privada, incidente no conteúdo mesmo deste direito. Constitui fundamento de sua atribuição, de seu reconhecimento e da sua garantia mesma, incidindo sobre seu próprio conteúdo.

Adverte-nos JOSÉ AFONSO DA SILVA que, relativizado pela Carta Política, quando esta o reputou princípio da ordem econômica (art. 170, II e III), "passou a condicionar a propriedade como um todo, não apenas seu exercício, possibilitando ao legislador entender com os modos de aquisição em geral ou com certos tipos de propriedade, com seu uso, gozo e disposição".

Entretanto, o princípio da função social da propriedade tem sido confundido com os sistemas de limitação da propriedade, embora as limitações se refiram ao exercício do direito de propriedade, enquanto que a função social interfere com estrutura mesma daquele direito. Como se pode observar, os institutos não se confundem.

Ainda acerca do princípio constitucional da função social da propriedade imobiliária urbana, EDÉSIO FERNANDES, jurista de escol, assim se manifesta:

"Trata-se de princípio que vem sendo nominalmente repetido por todas as constituições brasileiras desde a de 1934, mas que somente na de 1988 encontrou uma fórmula consistente, que pode ser assim sintetizada: o direito de propriedade imobiliária urbana é assegurado desde que cumprida sua função social, que por sua vez é aquela determinada pela legislação urbanística, sobretudo no contexto municipal. Cabe especialmente ao governo municipal promover o controle do processo de desenvolvimento urbano, através da formulação de políticas de ordenamento territorial nas quais os interesses individuais dos proprietários de terras e construções urbanas necessariamente coexistem com outros interesses sociais, culturais e ambientais de outros grupos e da cidade, como um todo. Para tanto, foi dado ao poder público o poder de, através de leis e diversos instrumentos urbanísticos, determinar a medida desse equilíbrio possível entre interesses individuais e coletivos quanto à utilização desse bem não renovável essencial ao desenvolvimento sustentável da vida nas cidades, qual seja, o solo urbano".

Em face do disposto no art. 182 da Lei Maior, a utilização do solo urbano fica sujeita às determinações de leis urbanísticas e do plano urbanístico diretor, donde se vê que a Constituição acolheu a doutrina de que a propriedade urbana é um típico conceito do Direito Urbanístico, na medida em que a este cabe qualificar os bens urbanísticos e definir seu regime jurídico.

Em curtas linhas, podemos dizer que o Direito Urbanístico determina os princípios que dominam o regime jurídico da propriedade urbana que, a seu turno, é todo inspirado no princípio da função social que, por sua vez, tem como pressuposto o princípio da função pública do urbanismo, já que a atividade urbanística constitui uma função pública da Administração.

Assim, temos que a função social da propriedade imobiliária urbana vai atingir o regime de atribuição do direito de propriedade, bem como o regime de seu exercício, ou seja, de um lado, determinará o direito do proprietário e, de outro, fixar-lhe-á o conteúdo. Manifestando-se na própria configuração estrutural do direito de propriedade, qualificará o modo de aquisição, gozo e utilização dos bens.

Irradiando-se mesmo na seara do direito processual, a função social da propriedade ganha nova feição e alcance. LAÉRCIO ALEXANDRE BECKER, por exemplo, partindo de uma interpretação do art. 5º, XXIII da Lei Maior e de seu §1º, que deixam claro que o princípio constitucional da função social da propriedade incide prontamente, ou seja, tem aplicabilidade imediata, vislumbra a inclusão de um inciso V no art. 927 do CPC, fazendo do cumprimento da função social verdadeiro pressuposto às ações possessórias e petitórias.

Concluímos o presente tópico, certos de que o princípio constitucional da função social da propriedade, albergando em seu interior interesses privados de um lado e públicos e sociais de outro, demandará, ainda, muito esforço do intérprete para sua integral consolidação. Há que se desfazer da visão estreita e privatística da propriedade, inserindo-a num contexto muito maior, no qual esta se apresenta como passaporte para o desenvolvimento e bem-estar e, não, para o retrocesso. Instituto que, dada a sua importância, tem alcance inter e multidisciplinar, irradia-se a bem do direito, por vários de seus ramos, inclusive o processual, rejuvenescendo-o como veremos mais adiante.

3.2. O Plano Diretor municipal e a regulamentação edilícia

Ao tratar da propriedade urbana, a Constituição da República (art. 182) traça a política de desenvolvimento urbano com o escopo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Nesta sistemática, a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor. Mas, o que vem a ser o Plano Diretor?

Ensina-nos H. L. MEIRELLES que o Plano Diretor "é o complexo de normas legais e diretrizes técnicas para o desenvolvimento global e constante do Município, sob os aspectos físico, social, econômico e administrativo, desejado pela comunidade local". Por ser num instrumento de atuação da função urbanística dos Municípios, "constitui um plano geral e global que tem, portanto, por função sistematizar o desenvolvimento físico, econômico e social do território municipal, visando ao bem-estar da comunidade local".

Certo é que o Plano Diretor, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, deve ser aprovado pela Câmara Municipal e constitui o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana (art. 182, § 1º da CR). Elaborado pelo Executivo Municipal, por intermédio dos órgãos de planejamento da Prefeitura, é um documento de base que se apresenta sob a forma gráfica, compreendendo relatório, plantas, mapas e quadros, que traduzem o retrato da situação existente e as projeções da situação futura, transformada, mas também sob a forma jurídica (leis e regulamentos).

O Plano Diretor, como sói acontecer, também encontrou disciplina nos arts. 39 a 42 da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, chamada "Estatuto da cidade". Tal é a importância daquele instrumento da Política Urbana, que se tornou parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas (art. 40, §1°). Por se tratar também de lei que disciplina uma realidade dinâmica, qual seja o desenvolvimento e a expansão urbana, deverá ser revista, ao menos, a cada dez anos (§3°).

Um outro aspecto importante está em que, tanto no processo de elaboração, como no de fiscalização da implementação do Plano Diretor, os Poderes Legislativo e Executivo municipais deverão garantir (§4°), a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade (I); a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos (II) e também o acesso de qualquer interessado àqueles mesmos documentos e informações (III), no intuito de conferir maior transparência durante todo o processo.

Por outro lado, apesar de o art. 182, §1° da Constituição da República ter estabelecido a obrigatoriedade do Plano Diretor para as cidades com mais de vinte mil habitantes (norma repetida no art. 40, I do Estatuto da cidade), o que, a princípio, sugeriria que as cidades com menos de vinte mil habitantes estariam desprovidas ou dispensadas daquele instrumento, cumpre observar que o Estatuto da cidade, regulamentando o dispositivo constitucional, estabelece a obrigatoriedade do Plano Diretor (art. 41) também para as cidades que integrem regiões metropolitanas e aglomerações urbanas (II); assim também para aquelas nas quais o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no §4° do art. 182 da Lei Maior (III); nas integrantes de áreas de especial interesse turístico (IV) e, por fim, para as cidades inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental regional ou nacional (V). Vê-se, dessa forma, que o critério da população não foi o único considerado pelo legislador.

Os planos urbanísticos são aprovados por lei, como não poderia deixar de ser, em face do princípio da legalidade – art. 5°, II da Constituição – uma vez que criam obrigações e impõem constrangimentos.

A lei do plano tem como conteúdo, a princípio, o conteúdo do próprio plano. Fixará objetivos e diretrizes básicas. Estabelecerá as normas ordenadoras e disciplinadoras pertinentes ao planejamento territorial. Definirá as áreas urbanas, urbanizáveis e de expansão urbana. Disporá sobre a ordenação do solo, estabelecendo as regras fundamentais do uso do solo, incluindo o parcelamento, o zoneamento, o sistema de circulação, enfim sobre os sistemas viário, de zoneamento, lazer e recreação.

Hierarquicamente inferior, mas não menos importante, a regulamentação edilícia também oferece limitações relativas à segurança, higiene e estética da cidade e das habitações, alcançando mesmo, nos dias de hoje, tudo quanto possa melhorar a vida urbana.

Neste sentido, a lição de H. L. MEIRELLES:

"Em seguimento ao Plano Diretor do Município vem a regulamentação edilícia, dispondo sobre a delimitação da zona urbana, o traçado urbano, o uso e ocupação do solo urbano, o zoneamento, o loteamento, o controle das construções, a estética urbana e a proteção ambiental, tudo isto através de limitações urbanísticas ao direito de construir e de normas de ordenamento das atividades urbanas que afetem a vida da comunidade".

Nada mais correto, posto que a lei do plano pode, muito bem, deixar certas disposições para atuação ulterior, mediante leis especiais tais como, por exemplo, aquelas que tratam do uso do solo ou de edificações. Pode também estabelecer as normas fundamentais – diretrizes - remetendo a regulamento os pormenores de sua aplicação, como é comum verificar-se no que tange às normas de zoneamento.

Contudo, vale, aqui, a ponderação do mestre J. A. SILVA:

"Mas é certo que a lei do plano é eficaz nos limites de suas determinações, importando em efeitos, desde logo, vinculantes para os órgãos públicos e para os particulares, que ficam sujeitos às suas normas. Assim, são nulos os atos municipais contrários às normas do plano. As limitações à propriedade privada operam imediatamente, quer quanto às obrigações de não fazer, como a regra ‘non aedificandi’, referentes às áreas declaradas não edificáveis, quer quanto às obrigações de fazer, como a definição de área em que o Poder Público municipal, mediante lei específica, poderá exigir, nos termos de lei federal, que o proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, promova seu adequado aproveitamento, sob pena de parcelamento ou edificação compulsória (CF, art. 182, §4º)".

Extrai-se do texto supracitado, que tanto o particular quanto o próprio Poder Público, por meio de seus órgãos, estão sujeitos à observância das normas contidas no Plano Diretor e, assim, obrigados a dar cumprimento à função social da propriedade.

Atente-se, ainda, para o fato de que é dela – regulamentação edilícia da edificação particular – que tratou o Código Civil de 1916 em seu artigo 572. Disposição de idêntico teor se encontra no art. 1.299 do novo Código Civil.

Assim, quando o mencionado dispositivo se refere a regulamentos administrativos, quis dizer regulamentação edilícia da edificação particular, de onde se infere que Plano Diretor e regulamentação edilícia se combinam como instrumentos à ordenação da cidade no seu conjunto, mas que também se prestam ao controle técnico-funcional da construção individualmente considerada, sempre no intuito de, em última análise, trazer maior eficácia ao Plano Diretor, vinculando não só os particulares, mas também os órgãos públicos.

3.3. O Estatuto da cidade

Inobstante tenhamos tratado do tema sucintamente no tópico anterior, cumpre densificá-lo no presente tópico.

Assim, no dia 10 de julho de 2001, entrou em vigor a Lei Federal nº 10.257, importante diploma que veio a receber o nome de "Estatuto da cidade" e que tem como objetivo regulamentar o capítulo original sobre Política Urbana presente na Constituição da República. Cumpriu, assim, a tarefa de estabelecer normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental (art. 1º, § único).

Contudo, um dos pontos nevrálgicos do Estatuto da cidade está na consolidação que faz do princípio constitucional da função social da propriedade imobiliária e da cidade, que, então, ganhou concretude no referido diploma. Seu Capítulo III, que trata do Plano Diretor em seus arts. 39 a 42, assim o confirma pois, sendo aquele o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana e, cumprindo a propriedade urbana sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor, resta comprovado que a interdependência entre ambos os institutos é mais que inegável, chega a ser simbiótica.

Antes pautada por uma lógica civilista e individual, que orientou mesmo grande parte da doutrina jurídica e das interpretações dos tribunais, a propriedade imobiliária urbana se vê, hoje, comprometida com as disposições constitucionais e legais acerca de sua função social e de seu relevante papel na promoção do desenvolvimento urbano à luz de critérios econômicos, sociais e ambientais.

Neste sentido, se mostra pertinente a lição de EDÉSIO FERNANDES:

"A aprovação do ‘Estatuto da cidade’ consolidou a ordem constitucional quanto ao controle jurídico do desenvolvimento urbano, visando a reorientar a ação do Poder Público, do mercado imobiliário e da sociedade de acordo com novos critérios econômicos, sociais e ambientais. Sua efetiva materialização em leis e políticas públicas, contudo, depende fundamentalmente da ampla mobilização da sociedade brasileira, dentro e fora do aparato estatal. O papel dos juristas nesse processo é de fundamental importância para que sejam revertidas as bases do processo – de espoliação e mesmo de autodestruição socio-ambiental que tem caracterizado o crescimento urbano no Brasil".

Como se pode ver, o Estatuto da cidade, assim como o Plano Diretor e a regulamentação edilícia da edificação particular, também se apresenta como instrumento dos mais importantes a serviço da função social da cidade. Isto porque, como bem observou J. A. SILVA,

"Com as normas dos arts. 182 e 183, a Constituição fundamenta a doutrina segundo a qual a propriedade urbana é formada e condicionada pelo direito urbanístico a fim de cumprir sua função social específica; realizar as chamadas funções urbanísticas de propiciar habitação (moradia), condições adequadas de trabalho, recreação e de circulação humana, realizar, em suma, as funções sociais da cidade (CF, art. 182)".

Cremos, pois, que outra não foi a preocupação do legislador ao regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição da República através do Estatuto da cidade. Há que se conjugar os dispositivos constitucionais aos constantes no Estatuto da cidade, bem como àqueles da lei do Plano Diretor e da regulamentação edilícia para que se possa, efetivamente, atingir o cumprimento da função social da cidade.

3.4. Instrumentos utilizados para o cumprimento da função social da propriedade imobiliária urbana

O art. 182, §4º da Carta Política autoriza o Poder Público municipal a exigir, nos termos da lei federal, que o proprietário do solo não edificado, subutilizado ou não utilizado promova seu adequado aproveitamento, sob pena de se sujeitar: I) ao parcelamento ou edificação compulsórios (arts. 5º e 6º do Estatuto da cidade); II) ao imposto predial e territorial progressivo (art. 7º do Estatuto da cidade); III) à desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública com prazo de resgate de até dez anos (art. 8º do mesmo estatuto).

Esclarece J. A. SILVA que, neste último caso, tem-se a chamada desapropriação-sanção, modalidade de desapropriação prevista na Constituição que, entretanto, não se opera mediante prévia e justa indenização em dinheiro tal como se dá na desapropriação comum, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social.

Assim, preleciona o insigne jurista:

"O outro é a desapropriação-sanção, que é aquela destinada a punir o não-cumprimento de imposições constitucionais urbanísticas impostas ao proprietário de terrenos urbanos. Seu nome deriva, assim, do fato de que a privação forçada da propriedade, devido ao descumprimento de deveres ou ônus urbanísticos, fundados na função social da propriedade urbana, comporta a substituição da indenização em dinheiro por indenização mediante títulos da dívida pública, como se estatui no art. 182, §4º., III".

Pois bem. Considerando que o regime jurídico da propriedade urbana tem seu lado civil, assim como seu lado administrativo e tributário, não é de se estranhar que cada um destes ramos do direito apresente instrumentos adequados à consecução do princípio constitucional da função social da propriedade. Instituto multidisciplinar, dada a sua relevância, a propriedade há de cumprir sua função social e, para tanto, sofre a influência, disciplina e tutela de vários ramos do direito.

A este respeito, a Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 não nos desampara. Seu Capítulo II, Dos instrumentos da Política Urbana, Seção I, Dos instrumentos em geral, se encarrega, no art. 4º, da enumeração de vários instrumentos utilizados para o cumprimento desta política. São eles: I – planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; II – planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; III – planejamento municipal, em especial: a) Plano Diretor; b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo; c) zoneamento ambiental; d) plano plurianual; e) diretrizes orçamentárias e orçamento anual; f) gestão orçamentária participativa; g) planos, programas e projetos setoriais; h) planos de desenvolvimento econômico e social; IV – institutos tributários e financeiros: a) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU; b) contribuição de melhoria; c) incentivos fiscais e financeiros; V – institutos jurídicos e políticos: a) desapropriação; b) servidão administrativa; c) limitações administrativas; d) tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano; e) instituição de unidades de conservação; f) instituição de zonas especiais de interesse social; g) concessão de direito real de uso; h) concessão de uso especial para fins de moradia; i) parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; j) usucapião especial de imóvel urbano; l) direito de superfície; m) direito de preempção; n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso; o) transferência do direito de construir; p) operações urbanas consorciadas; q) regularização fundiária; r) assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidade e grupos sociais menos favorecidos; s) referendo popular e plebiscito; VI – estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV).

Como se vê, fartura de instrumentos viabilizadores do cumprimento da função social da cidade é a característica da Lei n° 10.257, de 10 de julho de 2001. Todos os instrumentos mencionados reger-se-ão pela legislação que lhes é própria, observando-se, é claro, o disposto no Estatuto da cidade. Este, pois, o mandamento do §1º do art. 4º. Já aqueles instrumentos que demandem o dispêndio de recursos por parte do Poder Público municipal deverão ser objeto de controle social, sendo garantida a participação de comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil no processo (§3º).

Alerte-se, por importante, que os instrumentos enumerados no art. 4º do Estatuto da cidade não excluem outros, adequados aos mesmos fins. Este entendimento pode, perfeitamente, ser extraído do caput do mencionado dispositivo, que diz que "para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos", os ali enumerados.

Em se tratando de imóvel urbano, L. A. BECKER é categórico ao dizer que "o Poder Público municipal é responsável pela cobrança do cumprimento da função social, nos termos do §4º do art. 182 da CF". Nada mais correto, uma vez que o Poder Público municipal é aquele que mais intimamente se vê às voltas com os problemas urbanos e com a tarefa e necessidade de solucioná-los.

Certo é que instrumentos de política urbanística, econômica, tributária e financeira se combinam a fim de ordenar e racionalizar o desenvolvimento e a expansão urbanos. Cremos, contudo, que outros instrumentos, de ordem processual, podem ser utilizados nesta tarefa de conformação da propriedade imobiliária urbana à regulamentação edilícia e, em conseqüência, ao Plano Diretor, cumprindo, assim, a sua função social.

A ação popular, por exemplo, prevista no art. 5º, LXXIII da Carta Magna de 1988 e disciplinada pela Lei nº 4.717/65, é um instrumento constitucional apto a combater atos ilegais ou imorais lesivos ao patrimônio público tomado este em sentido amplo, incluindo-se aí o patrimônio histórico que, no caso concreto, pode estar representado, por exemplo, por um casarão ou edifício antigo e de valor histórico inestimável, que se deseja ver preservado.

Dada sua importância, a referida ação pode ser proposta por qualquer cidadão, entendido este como o "brasileiro nato ou naturalizado, inclusive aquele entre 16 e 21 anos, e ainda, o português equiparado, no gozo de seus direitos políticos". É de se notar ainda que, apenas no caso de comprovada má-fé, arcará o autor com as custas judiciais e com o ônus da sucumbência, o que, sem sombra de dúvida, facilitou a sua interposição.

Com o louvável intuito de ver cumprida a função social da propriedade, o Estatuto da cidade, por meio de seus arts. 53 e 54, alterou os arts. 1º e 4º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985 – lei da Ação Civil Pública – de modo a estender sua tutela também à ordem urbanística (art. 1º, III), permitindo, inclusive, o ajuizamento de ação cautelar com o escopo de evitar o dano ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem urbanística ou aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 4º).

À luz destes elementos, temos, de nossa parte, que o procedimento especial da ação de nunciação de obra nova constitui instrumento processual adequado, à disposição do Poder Público municipal, a promover a conformação da propriedade imobiliária urbana ao cumprimento da sua função social. Buscando a observância da regulamentação edilícia, esta, por sua vez, atrelada ao Plano Diretor, a ação nunciatória se prestaria à obtenção, pela via processual, daquela função social da propriedade, cumprindo-se, dessa forma, o inafastável mandamento constitucional.

O argumento ganha corpo, também, como veremos ao longo deste estudo, quando se verifica que a ação nunciatória constitui instrumento hábil a impedir o prosseguimento de obra ou construção realizada em desacordo com as "normas legais da construção", inclusive com o Plano Diretor, por falta de "habite-se" ou de "licença de obra". A tese encontra apoio, ainda, na doutrina de J. A. SILVA, para quem

"A licença de obras e o ‘habite-se’ são os instrumentos de controle público mais importantes, porque impedem a construção e o uso de imóveis em contraste com as determinações do plano. O direito subjetivo e o interesse legítimo de particulares, destinatários das normas urbanísticas do plano, constituem os estímulos do controle particular, mediante ações de anulação ou de impedimento de atos contrários a essas normas".

Nos tópicos seguintes, enfrentaremos o tema com mais detalhes, quando então se verá a real dimensão da proposta aqui exposada.

 

4. A AÇÃO NUNCIATÓRIA E O MUNICÍPIO

4.1. Generalidades e conceito

A ação de nunciação de obra nova, cuja origem é romana – operis novi nuntiatio – tem por finalidade impedir e obstar a construção violadora dos direitos de vizinhança. Era também conhecida nas Ordenações portuguesas onde se fazia a interrupção da obra ilegal com o lançamento de pedras – iactum lapilli. O lesado demonstrava o seu inconformismo atirando pedras contra a obra que o prejudicava, numa espécie de embargo privado, sem qualquer interferência do Estado.

Segundo NÁUFEL, a ação de nunciação de obra nova

"é a que compete a quem pretenda impedir que o prédio de sua propriedade, ou posse, seja prejudicado em sua natureza, substância, servidão ou fins, por obra nova em prédio vizinho, a fim de requerer o embargo desta, para que fique suspensa e, seja afinal, demolida à custa do nunciado, o que tiver sido feito em prejuízo do nunciante".

Como se pode ver, a ação nunciatória tem por função criar um remédio processual específico para solucionar os conflitos surgidos no confronto do direito de construir com o direito de vizinhança. Através deste procedimento especial, "a ordem jurídica procura instrumentalizar o prejudicado na reação contra a construção que se erga com desprezo ao direito dos vizinhos e às normas administrativas pertinentes às edificações".

THEODORO JÚNIOR, com a acuidade que lhe é peculiar, nos esclarece qual o verdadeiro alcance do procedimento especial sob exame:

"Concebida a ação originariamente apenas para os conflitos entre vizinhos, acabou o Código Processual de 1973 dando-lhe maior alcance, no que veio a satisfazer velha aspiração doutrinária. Assim é que, hoje, a nunciação de obra nova pode ser utilizada: a) em conflitos típicos de vizinhança (art. 934, I); b) em litígios entre condôminos, para evitar que um co-proprietário execute obra com prejuízo ou alteração da coisa comum (art. 934, II); c) nos conflitos entre o Poder Público e os particulares, para impedir violação da lei, regulamento ou postura pertinente às construções (art. 934, III)".

Sem embargo da opinião do mestre, ao final deste estudo, concluiremos por um novo alcance, mais amplo e mais moderno, onde a ação nunciatória há de ser encarada como instrumento processual, ao lado de outros de ordem administrativa e tributária, posto à disposição do Município a fim de ver cumprido, pelo particular, a função social da propriedade.

Visto isso, passemos ao estudo da natureza jurídica da ação nunciatória.

4.2. Natureza jurídica

É controvertida a questão acerca da natureza jurídica da ação de nunciação de obra nova. O debate entre os doutrinadores é acalorado.

GRECO FILHO, por exemplo, vê nela uma das formas de proteção possessória em sentido amplo, uma vez que protege o exercício dos poderes regulares sobre a coisa, prejudicados por ato abusivo do vizinho. Cumpre observar que, embora não se tenha invasão, esbulho ou turbação, a posse regular fica prejudicada porque a conduta do vizinho, em seu próprio imóvel, vai atingir, por ser nociva, o prédio vizinho. Trata-se, sim, de "uma ação de preceito cominatório, cabendo a cominação de multa caso a ordem judicial seja descumprida".

Com muita sobriedade, ELPÍDIO DONIZETTI NUNES explica a essência da referida concepção:

"Existe um ponto de tangenciamento entre as ações possessórias e a de nunciação de obra nova; aliás, muitos doutrinadores atribuem caráter possessório a esta ação. Com efeito, entre outras finalidades, a nunciação de obra nova serve de instrumento ao proprietário ou possuidor para defender sua posse, mais precisamente para impedir que a edificação em imóvel vizinho lhe prejudique o prédio, suas servidões ou fins a que é destinado (art. 934, I)".

H. L. MEIRELLES, a seu turno, entendo pelo caráter pessoal da ação de nunciação de obra nova, com o qual concordamos, assim se manifesta:

"A ação de nunciação de obra nova, também conhecida por embargo de obra nova, é adequada para impedir o prosseguimento de construção prejudicial ao vizinho. Não é ação possessória, nem real: é ação pessoal própria para deter obras em andamento que ofendam algum direito de vizinhança, e, em especial, como diz o Código Civil, para impedir que a construção vizinha invada a propriedade confinante, ou sobre esta deite goteiras, ou abra janela a menos de metro e meio da linha divisória (art. 573)".

Com diversa compreensão, THEODORO JÚNIOR afirma categoricamente que "as ações de vizinhança, de que é exemplo a nunciação de obra nova, integram o grupo das ações reais imobiliárias, de que cuida, expressamente, o art. 95". A competência, neste caso, por força de clara disposição de lei, seria a do foro da situação do imóvel.

Neste mesmo sentido, IÊDO BATISTA NEVES preleciona:

"Conquanto haja julgados entendendo que se trate, na nunciação de obra nova, de ação pessoal – Tribunal de Justiça de São Paulo, Rev. dos Tribunais, v. 507, p.70 -, o fato é que se trata do exercício de pretensão de direito vinculado à coisa, envolvendo a situação, o estado da coisa, o que lhe dá a condição de ação real. É assim, de resto, que lhe trata o art. 95".

GIANESINI, por sua vez, adverte que a ação nunciatória não é, também, ação de domínio porque defende não só a propriedade, mas também a posse e a servidão e, considerando a possibilidade de cumulação de pedidos, inclusive de indenização, não pode ser incluída entre os procedimentos cautelares, pois não está restrita ao embargo, já que a condenação visa também ao desfazimento da obra e à indenização.

Entendemos, porém, que a ação nunciatória não discute posse e, por isso, não pode ser incluída entre as ações possessórias propriamente ditas. Não se há de cogitar, portanto, de uma suposta natureza dúplice da ação de nunciação de obra nova. A referida ação, como vimos, não quer, imediatamente, proteger a posse, mas sim, resguardar o autor contra o prejuízo que adviria da obra nova. Trata-se, sim, de ação pessoal, como quer Hely Lopes Meirelles.

4.3. Pressupostos

E. D. NUNES, inaugurando o presente tópico, onde se pretende dissecar os pressupostos necessários ao ajuizamento da ação de nunciação de obra nova, tratados, por alguns autores, com requisitos, esclarece sinteticamente que

"a palavra nunciação deriva do latim nunciatio, que significa anunciação, ação de anunciar. Obra nova, a seu turno, tem o sentido de edificação, reparação, de fazer muramento, escavação, aterro, pintura, demolição, enfim, qualquer ação humana que altere o estado anterior do prédio".

Contudo, a despeito da contribuição do respeitável jurista, adequada ao seu didático manual, o tema será por nós pormenorizado nos tópicos que se seguem. Eis nosso objetivo.

4.3.1. Obra nova

Para efeito do manejo da ação nunciativa, o conceito de obra nova é amplo, alcançando não só edifícios ou casas para fins residenciais, mas também aqueles imóveis destinados ao comércio, indústria ou fábrica.

A expressão "prédio", entretanto, deve ser entendida como o imóvel "total", ou seja, com inclusão do solo e tudo aquilo que a ele se refere.

E. F. SANTOS, vindo em nosso apoio, também entende que "o conceito de obra nova, para fins de nunciação, é tomado em sentido amplo. Não apenas a edificação é obra, mas também a demolição, reparos e reformas do que já está construído".

Assim, embora o legislador tenha se referido a "edificação", no inc. I do art. 934 do CPC, devemos tomá-lo por "construção", pois, em verdade, aquela é apenas uma das espécies do gênero "construção".

H. L. MEIRELLES, na tentativa de extrair a verdadeira essência do conceito de construção, elucida:

"Para fins de direito, entende-se por construção toda realização material e intencional do homem, visando a adaptar o imóvel às suas conveniências. Nesse sentido tanto é construção a edificação ou a reforma como a demolição, o muramento, a escavação, o aterro, a pintura e demais trabalhos destinados a beneficiar, tapar, desobstruir, conservar ou embelezar o prédio".

Entretanto, é GIANESINI quem nos dá a exata medida do conceito de obra nova, que, como vimos, é amplo. Segundo a referida Doutora,

"enquadrados, assim, no conceito amplo de obra temos: demolição, terraplenagem, sondagem, escavação, compactação do solo, aterro, desterro, colocação de cano, fornos, extração de minérios, de cascalho, de areia, plantação, construção subterrânea, fosso, aqueduto, ponte, viaduto, canal, muro, cerca, perfuração, estaqueamento e outros assemelhados".

A estas situações, podemos acrescentar, ainda, o loteamento e a limpeza.

Certo é, pois, que o conceito de construção e, via de conseqüência, de obra nova, hão de ser tomados em seu sentido mais amplo, como todo fazer realizado voluntariamente pelo ser humano, pois só assim o lesado encontrará a satisfatória proteção de seus direitos por ocasião de seu recurso aos Poderes Públicos.

Por outro lado, a obra pode estar sendo realizada tanto na zona urbana como na rural. Pouco importa se é de grande ou pequeno porte, dispendiosa ou econômica, se foi aprovada ou não pelos órgãos públicos competentes, esteja a sua responsabilidade a cargo do Poder Público ou de particulares, pois relevante é que a mesma seja nova no sentido de modificar, afetar o estado anterior da construção, o status quo ante.

É neste sentido que A. F. FABRÍCIO afirma ser nova "qualquer obra que altere o estado de coisas anteriormente existentes, importando fixar o tempo durante o qual ela assim se considera e, portanto, a ação é proponível". Deste último aspecto em particular, trataremos no tópico seguinte.

Não é importante, contudo, a dimensão da alteração, se está acrescentando ou diminuindo o estado de coisas anteriormente existente, mas, sim, que constitua uma inovação, tendo em vista uma determinada realidade anterior, seja criando o que não existia, seja modificando substancialmente o existente.

Quanto a este aspecto, A. F. FABRÍCIO acrescenta:

"Pouco importa o vulto da obra. Pode consistir em modificação materialmente ínfima na construção preexistente. O alargamento de alguns centímetros na seteira para luz pode representar a diferença entre a regra do art. 573 do Código Civil e a exceção de seu §1°; a simples substituição de um vidro fosco por outro transparente pode resultar em devassamento ilegal do prédio vizinho, que antes não ocorria".

Entretanto, adverte-nos GIANESINI que estão excluídos do conceito de obra nova, por não implicarem em efetiva alteração do status quo ante,

"a reconstrução, reprodução, restabelecimento, restauração da obra anterior sem qualquer alteração daquilo que antes existia, consertos que atendendo à exigência do Poder Público não alteram a estrutura do prédio, reprodução exata, idêntica à anterior, sem modificar a estrutura, natureza, destinação da velha obra".

Em síntese, a obra só pode ser considerada nova quando reúne duas características: "representar uma inovação que importe alteração prejudicial no relacionamento entre prédios vizinhos, e que se represente por construção (lato sensu) ainda inacabada".

Inalterada a forma primitiva, o prédio não pode ser objeto da ação nunciatória.

4.3.2. Obra iniciada e não concluída

Para o efeito do ajuizamento da ação nunciatória, é necessário que a obra nova tenha sido iniciada, mas não esteja concluída.

Surge, assim, a questão de se saber quando uma obra deve ser considerada como iniciada para fins de nunciação.

A. F. FABRÍCIO, em sua autoridade, responde a esta pergunta:

"É preciso que já se tenham iniciado os trabalhos, quaisquer que sejam, de tal modo a tornar-se visível a modificação do estado de fato. Enquanto a obra está no plano das intenções, mesmo que comunicadas ao vizinho, ainda não cabe o ajuizamento da ação, nem mesmo se já foram encomendadas e elaboradas plantas, requerida e obtida a licença da autoridade competente. Ainda não haveria o que embargar. A obra, em sua realidade material e concreta, que é a importante, não foi ainda iniciada, embora haja certeza de sua iminência".

E acrescenta o mestre:

"Ao vizinho, em tal situação, o único procedimento judicial acessível é o do protesto, ou notificação ao dono da obra para comunicar-lhe sua oposição à realização da mesma. A uma intenção conhecida se contrapõe a manifestação de outra intenção, apenas isso".

Assim é que o simples pedido de aprovação de um projeto, ou mesmo o trâmite deste, bem como a mera aglomeração de materiais, não configuram obra iniciada, apesar de revelarem o intuito de construir. São atos preparatórios. Inexiste, até aqui, obra a ser embargada, mesmo porque não se pode embargar obra futura.

Temos por certo que, só depois de visível e materialmente começada é que a obra nova pode ser embargada, pois só então poderá causar verdadeiro prejuízo ao nunciante. Para nossa sorte, A. F. FABRÍCIO não nos deixa só neste entendimento:

"Desde o momento, entretanto, em que a intenção do dono da obra se exterioriza por fatos (materiais são depositados, marcações são feitas no terreno e canteiros são preparados), já existe a obra, ainda que em fase de preparação. Pode haver alguma dificuldade prática em determinar-se o momento exato em que a obra se inicia, mas esse critério da visibilidade dos trabalhos é o único seguro".

Por outro lado, diversos atos materiais podem denunciar o início da obra, tais como movimento de terra, escavação, estaqueamento, levantamento de paredes, fixação de marcos, etc., desde que demonstrem, inequivocamente, a vontade de construir.

Iniciada a obra, alterado efetivamente o status quo ante, existe obra a ser embargada. Esta, contudo, não pode estar concluída. Se este for o caso, o vizinho terá de reagir por meio da ação demolitória – que é ordinária – e não pela via especial da nunciatória.

Assim, o limite temporal para embargar a obra é a conclusão da obra nova, não se admitindo que obra concluída possa ser suspensa. A hipótese caracterizaria, indubitavelmente, abuso de direito. Neste caso, o autor seria carecedor de ação.

Mas o que se deve entender por obra concluída?

A este respeito, GIANESINI vai logo esclarecendo que

"é cediço que faltando serviços secundários, de pouca monta, tais como arremates finais, colocação de gesso, massa fina, reboco, pintura, revestimento de pedras ou paredes externas, acabamentos decorativos, obras complementares de estética, vidros, forro, pisos, rodapés, pontos de luz, passeio externo, a obra pode ser considerada juridicamente concluída".

Ouso divergir.

A indagação, de resposta aparentemente fácil, recebeu de A. F. FABRÍCIO maior ponderação. Eis a lição do festejado jurista:

"Outro ponto a determinar-se é até quando a obra é ‘nova’, isto é, permanece inconclusa. São numerosos e bem conhecidos os julgados segundo os quais a obra se considera pronta, e portanto já não cabe a ação de nunciação, quando à sua conclusão só faltem arremates, pinturas, acabamento decorativo, etc. Isso é verdadeiro na maioria dos casos, mas não é prudente a generalização indiscriminada: pode suceder que precisamente da execução de um detalhe final decorra prejuízo ou a infração. Suponha-se, por exemplo, que o emprego de determinado material de acabamento contravenha disposição edilícia".

Na verdade, a prudência deste último doutrinador nos agrada mais.

Um muro, por exemplo, que precise de reboco, não pode ser considerado como concluído. Desse modo, nota-se que os conceitos de "acabamento" e "obra concluída" podem variar, caso a caso, de acordo com as circunstâncias fáticas e a finalidade da obra.

Temos, assim - e aqui está o ponto nevrálgico do presente tópico – que é o critério da utilização que vai determinar com precisão se a obra foi ou não concluída.

Se a obra já pode ser utilizada para o fim a que se destina, aí sim, há de ser considerada obra acabada. A comprovação da conclusão da obra é feita através da concessão do "habite-se", de modo que só depois de receber o aval das autoridades públicas é que o suposto réu deixará de ter legitimidade passiva na ação nunciatória, por concluída sua obra. Antes disso, não!

Na realidade, o licenciamento administrativo das obras, enquanto meio de que se utiliza o Poder Público para impor e controlar a observância das normas técnico-legais da construção, tem no "habite-se" uma de suas expressões. Assim, para o início de uso da obra concluída, a autoridade competente expede o alvará de ocupação ou auto de vistoria, vulgarmente conhecido por "habite-se". A medida reflete uma preocupação do Poder Público com o bem-estar do indivíduo e da coletividade, na medida em que busca assegurar a adequada habitabilidade de um imóvel que, então, não colocará em risco a saúde e a segurança de quem quer que seja.

Pode, ainda, o nunciante, concomitantemente ao procedimento judicial, valer-se de processo administrativo junto aos órgãos públicos – da Prefeitura Municipal, por exemplo - a fim de obstar a obtenção do "habite-se" pelo réu que o prejudica.

Tenho que este entendimento, longe de ampliar demasiadamente o conceito de obra inacabada, com o qual se identifica o conceito de obra nova para fins do manejo da ação nunciativa, é o que melhor atende ao ideal de efetividade do processo, de prestação de tutela jurisdicional invocado pelo autor.

Não se deve considerar uma obra acabada simplesmente porque sua estrutura já se encontra concluída. Não basta que a mesma esteja em fase de acabamento para que seja considerada finda.

Atuamos certa vez em caso no qual um edifício em construção, aparentemente concluído, localizado em rua íngreme, guardava, junto às suas pilastras, grande volume de entulho, restos da construção do mesmo e que não foram retirados da malsinada obra.

O descaso e a negligência de seu proprietário, juntamente com o desatendimento de normas municipais, que determinavam a construção de um adequado muro de contenção, levaram os moradores do prédio vizinho, localizado abaixo do imóvel do nunciado, a ajuizar a ação objeto de nosso estudo, posto que a obra irregular punha em risco a vida e a segurança destes, face à iminência de "escoamento" do entulho em razão da inclinação do terreno.

Aparentemente pronta, a obra não tinha sido devidamente "limpa". Seus restos, que não mais deveriam se encontrar no imóvel, prejudicavam sobremaneira os vizinhos que, ainda, provocaram as autoridades municipais. Estas, por sua vez, embargando administrativamente a obra, concluíram, ainda, pela não concessão do "habite-se". Vitória da justiça!

Certo é que a obra nova, no momento da propositura da ação de nunciação de obra nova ou da efetivação do embargo extrajudicial, deve não estar concluída juridicamente. Daí a importância dos documentos juntados com a inicial: fotos com datas (acompanhadas de seus negativos – art. 385, §1° CPC), laudo elaborado por profissional especializado, o auto de embargo lavrado pelo oficial de justiça onde é feita descrição minuciosa do estado da obra e das infrações existentes, etc.

Por derradeiro, pouco importa se à época do embargo ou na data da sentença a obra estava terminada. Imprescindível é que a ação tenha sido proposta em tempo hábil, ou seja, antes do término da obra.

No tópico seguinte trataremos de dois pressupostos para o ajuizamento, com sucesso, da ação de nunciação de obra nova, quais sejam o prejuízo que a obra nova deve causar ao autor e a relação de vizinhança entre os imóveis do nunciante e do nunciado.

4.3.3. Prejuízo ao prédio vizinho

É necessário que a obra iniciada e não concluída, que dá ensejo à propositura de ação de nunciação de obra nova, cause prejuízo ao prédio vizinho.

O prejuízo há de ser efetivo, verdadeiro, objetivo, duradouro, não se exigindo seja permanente, mas sempre fora dos limites normais da tolerância. Pode ser atual ou suscetível de ser produzido no futuro. Pode, ainda, atingir a substância, a natureza ou as servidões do imóvel prejudicado.

Por outro lado, um razoável e fundado temor, assim como a probabilidade ou mesmo a possibilidade de um dano já autorizam a propositura da ação nunciatória, desde que presentes os demais requisitos, porque não se exige a certeza do prejuízo.

O dano, alerta uma brilhante jurista, que há de ser injusto, deve "estar relacionado com a estrutura, integridade, finalidade e uso do prédio prejudicado".

Entendo, porém, que em certos casos, o dano estético também servirá de fundamento à ação nunciativa. Obras clandestinas ou verdadeiros "aleijões arquitetônicos", em manifesta ofensa a posturas municipais, podem, perfeitamente, se encontrar em desarmonia, quando não contrariar a finalidade dos imóveis próximos.

Se a lei da Ação Civil Pública – Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985 – autoriza os legitimados em seu art. 5°. à propositura de ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados a bens de valor estético (art. 1°, III), sem prejuízo da ação popular, coerente, também, armar-se o particular, além da Administração Pública da União, Estados, Distrito Federal, Municípios e suas autarquias, dentre outros, da ação nunciatória para finalidade semelhante, privilegiando, assim, a instrumentalidade do processo.

O argumento é reforçado pelo fato de que a propriedade imobiliária urbana deve cumprir a sua função social, que é justamente aquela determinada pela legislação urbanística, sobretudo no contexto municipal, como vimos na primeira parte deste estudo.

Prejuízos "legítimos", entretanto, devem ser suportados, não desafiando a nunciatória. Assim, o prejuízo que não deriva da violação de uma norma, bem como o decorrente de uma imposição legal ou do exercício legítimo do direito de propriedade, o mero prejuízo "de fato" não autorizam a propositura da ação de nunciação de obra nova, vez que não é qualquer inconveniente relacionado com a construção em imóvel vizinho que lesa o direito e autoriza o embargo.

Contudo, é de se ver que as construções, não raras vezes, dada a sua própria natureza e independentemente de culpa de seus executores, causam danos à vizinhança, por exemplo, através de recalques do terreno, fundações, vibrações do estaqueamento, queda de materiais, etc. Para tanto, não se exige ilicitude no ato de construir, bastando a lesividade do fato mesmo da construção.

Certo é que, em sede de ação nunciativa, o prejuízo tem que derivar da obra nova – não ser anterior a ela - que, a seu turno, deve ter sido realizada sem o consentimento do nunciante, prejudicando o prédio deste – prédio vizinho - por infringir direito de vizinhança decorrente de lei ou contrato, direito de propriedade em si ou em algum de seus desmembramentos ou utilidades.

Porém, não se pode olvidar que "a obra levantada ao arrepio do direito de construir acarreta por si só prejuízo, justificando, por esta razão, ser suspensa para se adaptar às normas legais". O referido prejuízo pode, ainda, afetar o interesse da coletividade, por exemplo, em preservar o caráter estritamente residencial de determinado bairro.

Em qualquer caso, a verificação da ocorrência do prejuízo há de ser feita objetivamente, não se levando em conta a intenção do agente causador do dano. Não se discute a boa ou má-fé do dono da obra nova.

Além do prejuízo, há que se ter uma relação de vizinhança entre os imóveis prejudicante e prejudicado.

Contudo, vizinhança não se confunde com contiguidade. O conceito de vizinhança é mais amplo que este último, alcançando mesmo prédios localizados a uma distância apreciável, desde que sujeitos e afetados às conseqüências do uso nocivo da propriedade.

I. B. NEVES autoriza este entendimento:

"No conceito de imóvel vizinho não se inclui, apenas, aquele que é imediatamente contíguo. Entre o imóvel prejudicado e o prejudicante pode intermediar outro e nem por isso uma construção deste deixe de prejudicar diretamente àquele. Qualquer construção em prédio próximo, que prejudique clara e diretamente outro, é embargável. É esta uma questão de fato, a ser examinada nas circunstâncias que a envolvem, e não apenas diante do aspecto de contiguidade imediata".

No mesmo sentido, a lição magistral de A. F. FABRÍCIO:

"Basta que a distância entre um e outro seja suficientemente curta para que a obra feita em um deles prejudique o outro. E essa possibilidade, naturalmente, depende muito da natureza da obra e dos meios empregados na sua execução, não apenas da proximidade topográfica. Particularmente nos dias de hoje, quando a tecnologia construtiva envolve o uso de máquinas de grande porte e de grande potencialidade danosa, seria inoportuna a adoção de um conceito restritivo de vizinhança – que, aliás, não é e nunca foi sinônimo de contiguidade. É preciso pensar, de resto, nos casos de prejuízo à servidão, que nem sempre supõe adjacência, ou sequer proximidade, entre os dois prédios".

Assim, por vizinho se deve ter o da frente, o de lado, o do fundo, o de cima, de baixo, próximo ou distante. O conceito de vizinhança abrange não só os prédios confinantes como também os mais afastados, ou seja, refere-se a proximidade com a obra nova.

Entretanto, pode surgir, no seio da ação nunciatória, a questão de limites para se saber se houve dano ou ameaça a prédio vizinho. A este respeito, é A. F. FABRÍCIO quem, mais uma vez, nos dá a solução. Senão, vejamos:

"Sendo o imóvel adjacente, pode-se suscitar, no bojo da ação nunciatória, a questão de limites: para que se possa decidir se há dano ou ameaça a prédio vizinho, torna-se eventualmente necessário examinar a exata localização da linha divisória. A jurisprudência segundo a qual a ação nunciatória é meio inábil para solucionar controvérsia sobre divisas não deve ser tomada como proibição absoluta do exame incidenter tantum dessa questão. De outro modo, a simples alegação pelo nunciado de dúvida ou incerteza quanto aos limites seria suficiente para elidir a demanda, o que positivamente não é razoável. Ao juiz cabe, sim, apreciar e resolver a pendência sobre limites, se a prova lho permitir; na insuficiência, a demanda terá de ser julgada improcedente. Como quer que seja, a questão será resolvida incidentalmente, e não como objeto do processo, de modo que a essa resolução não se alargará a autoridade do julgado".

Depois de tão elucidativos esclarecimentos, qualquer acréscimo de nossa parte estaria a ofuscar o brilho dos ilustres doutrinadores. Assim, trataremos, no tópico abaixo, de alguns aspectos, ainda importantes, relativos à ação de nunciação de obra nova.

4.3.4. Outros apontamentos

Vistos os principais pressupostos/requisitos da ação de nunciação de obra nova, podemos sintetizá-los, dizendo, com a ajuda indispensável de GRECO FILHO que, no caso do inc. I do art. 934 do CPC, são eles: a) que o autor seja proprietário ou possuidor do imóvel; b) que a obra esteja sendo edificada no prédio vizinho e seja nova; c) que o imóvel seja vizinho e a obra prejudique o prédio, suas servidões ou fins a que é destinado, ou seja, que haja violação dos direitos de vizinhança, tratados no Código Civil, arts. 554 e seguintes.

Ausentes os dois primeiros - qualquer deles – o autor será tido por carecedor de ação; ausente o último, o caso será de improcedência do pedido.

A ação de nunciação de obra nova, como se pode comprovar, se presta a proteger não somente a incolumidade estrutural do prédio, mas também suas servidões e utilidades para plena fruição do imóvel em conformidade com sua destinação normal. Qualquer dano ou interferência da obra nova no prédio alheio legitima a referida ação com o escopo de impedir a construção lesiva e propiciar as devidas reparações.

Diversamente dos demais legitimados – incs. I e II do art. 934 do CPC – o Município fica dispensado de provar prejuízo para ajuizar a ação nunciativa, isto porque a infração às leis municipais afeta a coletividade, prejudicando de modo evidente todos os munícipes. O mesmo se dá com o requisito pertinente à relação de vizinhança entre prédios, pois a Administração Pública tem legitimidade para atuar em todo seu território.

Assim, face ao disposto no art. 934, III do CPC tem o Município a necessidade de demonstrar, tão somente, que a construção nova está sendo realizada em desprezo à lei, regulamento ou postura municipal, pois a lesividade neste caso vem presumida na lei.

A este respeito, HERIBERTO ESCOLÁSTICO BEZERRA JÚNIOR, Procurador do Município de Natal, no Rio Grande do Norte, comentando o dispositivo em questão, nos acompanha neste entendimento, aduzindo que

"a leitura da regra processual acima transcrita (CPC, art. 934,III) revela a necessidade ímpar da demonstração, pelo Município/autor, quando da interposição da ação nunciatória, que a construção nova está em contravenção da lei, do regulamento ou de postura. Somente".

O mesmo autor ainda acrescenta:

"A comprovação do argumento municipal (autor) no sentido de demonstrar ao Estado/Juiz a desconformidade da legislação com a nova edificação, pode ser efetivada através do exercício do poder de polícia, consubstanciado no auto de infração ou embargo administrativo (com oferta do direito de defesa) face a presunção legal, o que não dispensa sua tonificação com outras provas, tais como fotografias (com os negativos - §1°, art. 385 CPC)".

Nada mais certo. O ente público municipal goza, compreensivelmente, de certas facilidades no manejo da ação nunciatória, dado o tipo de interesse que tutela – o interesse público consistente no respeito às suas leis, regulamentos e posturas. Pode, mesmo, embargar administrativamente a obra irregular valendo-se, para tanto, de seu poder de polícia, sem prejuízo da propositura da ação objeto de nosso estudo.

Pois bem. Estudaremos no tópico seguinte a hipótese de Município e munícipe, na condição de nunciantes, invocarem, como fundamento da ação nunciativa, o desrespeito às normas legais sobre construção, o que, a seu turno, leva ao rejuvenescimento deste procedimento especial, que se apresenta, então, como instrumento processual hábil a garantir a observância, pelo particular, assim como pelo próprio Poder Público, da função social da propriedade imobiliária urbana, vez que tanto um quanto outro estão sujeitos à observância das normas contidas no Plano Diretor e, assim, obrigados a dar cumprimento à função social da propriedade.

4.4. As normas legais da construção e o Município: o revigoramento do procedimento especial da ação de nunciação de obra nova

Iniciamos nosso estudo partindo de uma nova concepção de propriedade, irradiada e condicionada pelo princípio da função social. Desde então, nosso ordenamento jurídico reconheceu que o exercício dos poderes do proprietário estava a merecer proteção para que se verificasse sua efetiva integração à coletividade. Realizar-se-ia, assim, um interesse mais amplo, útil e relevante.

À luz destes elementos, a "função social" da propriedade se impõe como modelo comportamental.

Traçando um comportamento regular para o proprietário, exige que este se conduza numa dimensão em que realize, também e concomitantemente, interesses sociais, o que, nem por isso, implica em privação, pelo seu titular, do bem que lhe assegura as faculdades de uso, gozo e disposição. Continua, assim, gozando de sua propriedade, que se mantém privada e livremente transmissível. Não se opera, assim, um esvaziamento de seu conteúdo privado, mas, apenas, sua inserção numa perspectiva socialmente mais ampla.

A função social da propriedade, contudo, não se confunde com as limitações impostas pelo ordenamento jurídico ao direito de propriedade, onde se inclui o direito de construir, que é um de seus consectários.

Tais limitações apresentam conteúdo negativo, ou seja, de proibição, abstenção que atinge o exercício do direito de propriedade, ao passo que a chamada função social – de conteúdo positivo – atinge a própria essência e substância da propriedade, traduzindo-se na implementação de medidas que impulsionem a adequada exploração econômica, através da produção de bens e circulação de riquezas.

Como era de se esperar, a propriedade imobiliária também se sujeitou a estes condicionamentos. A Constituição da República se encarregou de submeter a propriedade imóvel urbana e rural ao cumprimento da sua função social. No bojo deste estudo, porém, está a nos interessar, em especial, a sua influência sobre a propriedade imobiliária urbana, posto que é nas grandes aglomerações urbanas que a convivência e, via de conseqüência, o conflito entre os homens se mostram mais freqüentes.

Por outro lado, graças ao perfil que recebeu de nossa Carta Magna, o Município guarda mais íntimas relações com a tarefa de verificar e garantir o cumprimento da chamada função social da propriedade. Embora a Administração Pública da União, Estados, Distrito Federal e Municípios tenha também interesse em ver cumprida a função social da propriedade, são estes últimos – os Municípios - que, mais comumente e de forma imediata, se vêem às voltas com o imperativo de assegurar o seu cumprimento.

Na verdade, como observa A. F. FABRÍCIO, "as regras restritivas ao direito de construir promanam em muito maior número, embora não com exclusividade, dos Municípios".

Neste mesmo sentido, a impecável lição de H. L. MEIRELLES:

"O policiamento administrativo das construções é da competência concorrente das três entidades estatais – União, Estado-membro e Município -, porque a todas elas incumbe o dever de velar pelo bem-estar social, nos limites de suas atribuições institucionais. Ocorre, porém, que a construção afeta mais de perto os interesses locais, e, por isso mesmo, a maioria de suas normas provém do Município, que regulamenta as obras em seu território e sobre elas exerce intensa fiscalização. Além disso, a União e o Estado-membro geralmente delegam poderes ao Município para a inspeção das habitações, no que tange à observância das normas sanitárias federais e estaduais. Daí por que, na prática, aparece o Município como entidade preponderantemente policiadora da construção".

Certo é, assim, que também o direito de construir, por estar diretamente ligado ao direito de propriedade e sofrer a influência inafastável, irresistível, do princípio da função social, há de ser compreendido, hoje, como situado num contexto mais amplo e moderno. E, embora "função social" e limitações ao direito de propriedade não se confundam, como já afirmamos, é inegável que se influenciam reciprocamente, complementando-se.

H. L. MEIRELLES, com a sua indisfarçável autoridade, nos permite reunir as "restrições de vizinhança" e as "limitações administrativas", onde se inclui o condicionamento do direito de construir e do uso da propriedade à sua função social, sob a denominação de "normas legais da construção". Eis, a respeito, sua substancial lição:

"Normas legais de construção dizem-se todas as prescrições expressas em lei, ou regulamento, visando à ordenação individual da obra ou à sua adequação ao meio social. Estas normas bipartem-se em civis e administrativas. As normas civis regulam o direito de construir nas suas relações entre vizinhos, daí por que são chamadas de restrições de vizinhança. As normas administrativas destinam-se a proteger os interesses da coletividade, condicionando o direito de construir e o uso da propriedade à sua função social (Constituição Federal, arts. 5°., XXIII, e 182, §2°.), motivo por que são conhecidas por limitações administrativas. As restrições de vizinhança, como preceitos de ordem privada, estão consubstanciadas no Código Civil (arts. 554 e 588); as limitações administrativas, como imposições de ordem pública, encontram-se dispersas na legislação protetora da comunidade, notadamente no Código Sanitário e no Código de Obras".

Temos, pois, nesta ordem de idéias, que a ação de nunciação de obra nova se apresenta como instrumento processual hábil, a par de outros de natureza administrativa, civil, constitucional e tributária, postos à disposição do Poder Público, especialmente municipal, a garantir o cumprimento da função social da propriedade imobiliária urbana pelo particular – e também pelo Poder Público - quando qualquer destes construir em desrespeito às normas legais da construção, elaboradas em consonância com o Plano Diretor do Município, cujas normas, como vimos, se impõem a ambos.

Na verdade, o festejado autor há muito já ensinava que

"As construções em desalinho com as restrições de vizinhança ou com infringência de normas administrativas (Código de Obras, leis de zoneamento e outras) dão ensejo à ação de nunciação de obra nova, ação demolitória ou ação de indenização, admitindo-se desde logo, o embargo da construção em andamento".

Já era assim muito antes de nosso ordenamento jurídico ter se robustecido com o advento de importantes normas sobre Política Urbana, tais como o Plano Diretor e o Estatuto da cidade e, principalmente, com a exigência constitucional de que a propriedade cumpra sua função social. O que se diga a partir de então!

Hoje, mais que nunca, a ação de nunciação de obra nova se vê revigorada. Se, no passado, o referido instrumento já se mostrava eficiente, há de ser ainda mais, nos dias atuais!

Por outro lado, temos por certo que o Município deve demonstrar, para o manejo da ação nunciatória, que a construção nova está sendo realizada com desprezo à lei, regulamento ou postura municipal, para utilizarmos a terminologia do legislador processual de 1973. Apenas isso. A lesividade, neste caso, assim como o prejuízo, vem presumida na lei, ficando o Município, então, dispensado de prová-lo.

Situação diversa ocorre com os particulares. Estes, para que logrem êxito com a ação nunciatória, deverão demonstrar, além da violação do preceito administrativo, que adveio da obra nova um real e efetivo prejuízo ao seu prédio, de modo que "a simples irregularidade no cumprimento de norma administrativa, como caducidade do alvará ou falta de aprovação do projeto, não será, de si mesma, causa justificadora da nunciação de obra nova intentada pelo confinante".

GIANESINI, entretanto, nos ensina que "se a obra estiver licenciada, presume-se que está em consonância com a legislação específica a respeito do direito de construir, devendo, por esta razão, ser requerida a anulação daquele alvará". Desse modo, enquanto não anulado o alvará em questão, fica o juiz autorizado a entender que a obra nova, em princípio, não contraria nenhum regulamento administrativo, ainda mais se o próprio Poder Público outorgante da licença, vier em defesa do seu ato.

Quanto ao tema, H. L. MEIRELLES acrescenta:

"O licenciamento administrativo das obras é o meio de que o Poder Público lança mão para impor e controlar a observância das normas técnico-legais da construção. Desde a elaboração do projeto até a conclusão da obra, a construção fica sujeita à fiscalização da autoridade competente, que, para o início da edificação, expede o alvará de construção e, para o início de uso da obra concluída, expede o alvará de ocupação ou auto de vistoria, vulgarmente conhecido por ‘habite-se’. Esse policiamento da construção tanto pode alcançar as obras urbanas como as edificações rurais, visto que umas e outras têm profundas implicações com o bem-estar do indivíduo e da coletividade; mas, por incúria das Administrações, até hoje só se tem legislado para as construções urbanas".

Por outro lado, o prejuízo efetivo, que confere ao particular o direito de ajuizar a ação nunciativa, é facilmente apurável quando, por exemplo, se está diante de situações de desrespeito a zoneamentos urbanos, onde a introdução de certos tipos de construção não só compromete o bom uso das edificações existentes como também as desvaloriza comercialmente.

Perguntando-me se, diante de um quadro dessa natureza, a propriedade cumpre sua função social, só consigo chegar à resposta negativa! Por esse motivo, vislumbro a ação de nunciação de obra nova como instrumento processual hábil, posto à disposição do Município, a garantir-lhe o cumprimento.

GRECO FILHO, em sua autoridade, reforça o argumento:

"É preciso, ainda, lembrar que, pelo princípio de atuação auto-executória da administração, a utilização da ação de nunciação é uma das alternativas legais de que dispõe a administração para impedir a obra clandestina, podendo utilizar-se, desde que exista lei municipal, do embargo administrativo sob pena de multa e desobediência".

Bom mesmo seria ver o Município utilizar, com mais freqüência e eficiência, seu Poder de Polícia das Construções. A este respeito, H. L. MEIRELLES faz preciosos esclarecimentos:

"Para bem policiar as edificações as Municipalidades subordinam as construções e reformas à prévia aprovação do projeto pela seção competente da Prefeitura e exigem que tais projetos sejam elaborados e subscritos por profissional legalmente habilitado, na forma de legislação federal pertinente. Pelo mesmo motivo, a ocupação dos edifícios deve ser precedida de vistoria e expedição de alvará de utilização, conhecido por ‘habite-se’. O poder de polícia municipal, em matéria de habitações, como se vê é amplo, possibilitando o acompanhamento da execução da obra e vistorias posteriores à sua conclusão, desde que o Poder Público suspeite de insegurança ou alteração das condições de higiene e salubridade, sempre exigíveis. Encontrando-as em desconformidade com as exigências legais e regulamentares, pode promover sua interdição e demolição, ou permitir a adaptação às condições oficiais".

Lamentavelmente, porém, o embargo administrativo de obra clandestina ou em desacordo com o projeto aprovado, que deveria funcionar como efetivo obstáculo para o prosseguimento da obra, se mostra ineficaz, obrigando o Poder Público a ingressar em juízo para obter a paralisação da mesma.

Seja com for, em se verificando a inocuidade do processo administrativo, é a hora e a vez de o ente municipal ajuizar a ação nunciatória.

BEZERRA JÚNIOR, em seu ofício, não só comunga desta opinião, como vai mais além. Senão, vejamos:

"Com efeito, constatando-se a inocuidade do processo administrativo reflexo da desatenção do munícipe na persistência da transgressão aos termos da legislação municipal, continuando, pois, a edificação irregular, também rotulada como clandestina, exsurge o momento para o ingresso da ação de nunciação de obra nova.

E mais, nada impede que expirado o prazo da defesa concedido ao construtor infrator e persistindo a contrariedade a determinação municipal advinda do poder de polícia, o processo administrativo, após julgado pela autoridade do órgão competente, pode bifurcar-se nos seguintes caminhos: a) seja encaminhado à Secretaria de Finanças para lançamento/inscrição na dívida ativa e cobrança do quantum pertinente à multa; b) seja encaminhado para a Procuradoria Municipal como notícia de infração e servir de prova para alicerçar a ação de nunciação de obra nova, com pedido liminar de embargo de obra nova".

A despeito dos preciosos esclarecimentos, não custa lembrar que o Poder Público fica dispensado de ratificar o embargo administrativo, realizado no exercício de seu poder de polícia.

Por outro lado, GRECO FILHO, examinando o alcance das normas que estabelecem restrições ao direito de construir, entende que as mesmas criam uma expectativa nos administrados, no sentido de que serão fielmente cumpridas. Eis, a este respeito, a lição do mestre, que também exemplifica:

"Se, de um lado, as referidas leis estabelecem restrições, de outro, geram para o munícipe uma expectativa de que as limitações serão cumpridas, de forma que o local onde se estabeleça mantenha um padrão de atividades homogêneo. Assim, aquele que mantém sua residência em zona exclusivamente residencial deseja que a região se mantenha exclusivamente como tal, frustrando-se essa expectativa quando, contra a lei municipal, alguém passe a exercer outra atividade, como, por exemplo, a atividade industrial ou comercial".

É, pois, de se reconhecer ao particular o direito subjetivo de se insurgir contra uma obra nova que lhe prejudica, alegando, para isso, que a mesma contraria leis, regulamentos e posturas municipais. Poderá sustentar, também, que a malsinada construção não se encontra em harmonia com o Plano Diretor municipal, ou com o Estatuto da Cidade e que não cumpre sua função social, ou seja, que a obra contraria normas urbanísticas de uma forma geral.

Sabemos que o tema é complexo, mas entendemos que as normas de Política Urbana, em conjunto com as normas e regulamentos administrativos que tratam do direito de construir, formam um sistema. Sendo assim, a construção irregular ou clandestina, quer prejudique ou não, de forma direta, um vizinho, não se limita a violar esta ou aquela norma, mas todo o sistema. Este, naturalmente, deseja e "conspira" para o cumprimento da função social da propriedade que, como afirmamos, é um inafastável princípio constitucional, aplicável também à propriedade imobiliária urbana.

MIGUEL JOSINO NETO, advogado em Natal e assessor jurídico da Consultoria Geral do Rio Grande do Norte, ainda acrescenta:

"As restrições ao direito de construir, geralmente na modalidade negativa, ou seja, impondo obrigação de não fazer, não admitem descumprimento. Ora, se uma pessoa constrói em observância expressa aos regulamentos administrativos e outra em desacordo com esses regulamentos, é óbvio que está sendo vulnerado o princípio constitucional que assegura igualdade, posto que ‘todos são iguais perante a lei’, inclusive no que concerne ao cumprimento de obrigações. Se alguém constrói descumprindo, por exemplo, a quota permitida para determinado bairro, essa construção pode afetar o vizinho, no que diz respeito à desvalorização do seu imóvel. O vizinho prejudicado pode, assim, para evitar que o seu imóvel sofra desvalorização devido a construção ilegal, tomar várias medidas judiciais, inclusive a Nunciação de Obra Nova".

E conclui:

"À vista do exposto, bem de ver que o particular tem legitimidade para ajuizar Ação de Nunciação de Obra Nova cobrando do vizinho o cumprimento de normas administrativas, posto que ele tem direito subjetivo e, ainda, em razão de que os regulamentos administrativos integram o art. 572 do Código Civil, quando condicionam o direito de construir às exigências das regras de convivência de vizinhança.

(...)

O proprietário ou possuidor tem o direito subjetivo de exigir de seu vizinho o respeito às leis urbanísticas em matéria de construção, o que lhes confere ‘legitimatio ad causam’ para embasar sua pretensão em juízo".

Os trechos citados são por demais elucidativos. Deles se pode extrair que tanto proprietário e possuidor, além do Município, apontado como protagonista neste estudo, têm igualmente legitimidade para ajuizar a ação nunciatória – e aqui adiantamos assunto a ser tratado em outro tópico – fulcrada no descumprimento de normas urbanísticas.

Naturalmente, quando o particular o fizer, terá, como afirmamos, a necessidade de provar um prejuízo seu e não, simplesmente, fazer as vezes da autoridade municipal. Nada obsta, porém, que invoque a seu favor a desconformidade da obra nova em relação às normas urbanísticas. Em qualquer caso, poderá manejar a ação nunciativa provando prejuízo seu.

Por outro lado, reforça-se o aspecto sistemático do corpo normativo que disciplina a matéria, no qual os regulamentos administrativos integram o art. 572 do Código Civil de 1916 e, acrescentamos, o art. 1.299 do novo estatuto civil, sem prejuízo das disposições contidas na Constituição da República e nas constituições dos Estados sobre Política Urbana, incluindo-se, aí, o Plano Diretor e o Estatuto da cidade.

É de se ver, também, que não há qualquer incompatibilidade entre as restrições administrativas ao direito de construir, que apresentam conteúdo negativo, e a função social da propriedade, que apresenta conteúdo positivo. Antes, guardam entre si uma salutar relação de complementaridade, necessária ao desenvolvimento harmônico do meio urbano.

À luz destes elementos, insistimos, a ação de nunciação de obra nova surge revigorada, apresentando-se como instrumento processual hábil, a par de outros de natureza administrativa, civil, constitucional e tributária, postos à disposição do Poder Público, especialmente municipal, a garantir o cumprimento da função social da propriedade imobiliária urbana pelo particular, quando este construir em desrespeito às leis e regulamentos municipais, elaborados em consonância com o Plano Diretor do Município, assim como pelo próprio Poder Público.

O argumento não é de causar surpresa, pois é perfeitamente possível que a União, o Estado ou o próprio Município construa em contravenção da lei, de regulamento, postura ou outras normas urbanísticas.

Temos por certo que, nem mesmo estas pessoas jurídicas de direito público, quando rés, podem afrontar a lei a pretexto de prevalência do interesse coletivo que, neste caso, se mostra ausente. Desse modo, podem figurar no pólo ativo ou passivo da relação processual instaurada com o ajuizamento da ação de nunciação de obra nova, devendo mesmo serem as primeiras a dar o exemplo e cumprir a função social da propriedade.

Vistos estes aspectos, viscerais para nosso estudo, passemos à análise do art. 934 do estatuto processual, que cuida da legitimidade ativa para a ação nunciatória.

4.5. Legitimidade ativa

A ação nunciatória compete (art. 934):

I – ao proprietário ou possuidor, a fim de impedir que a edificação de obra nova em imóvel vizinho lhe prejudique o prédio, suas servidões ou fins a que é destinado;

II – ao condômino, para impedir que o co-proprietário execute alguma obra com prejuízo ou alteração da coisa comum;

III – ao Município, a fim de impedir que o particular construa em contravenção da lei, regulamento ou de postura.

Inicialmente, podemos observar que tanto o proprietário quanto o possuidor podem se valer da ação nunciativa, seja este último possuidor direto ou indireto.

Por não se tratar de ação possessória, nem de ação dominial exclusiva e também porque as relações de vizinhança afetam tanto os titulares do domínio como os simples possuidores de prédios vizinhos, é de se vislumbrar o locatário entre os legitimados no pólo ativo da ação, o compromissário comprador desde que esteja na posse, ainda que seu título não tenha sido levado a registro, o arrendatário, o loteador, face ao art. 45 da Lei 6.766/79, associações expressamente autorizadas por seus estatutos a representar associados na defesa de direitos e interesses relacionados com o loteamento (art. 5º, XXI, da CR), o enfiteuta, o usufrutuário, o usuário, o habitacionário, o comodatário, assim como qualquer outro titular de direito real de uso e fruição, o testamenteiro, o inventariante, o curador de ausentes, o depositário e o administrador. Todos estes podem ajuizar a ação.

THEODORO JÚNIOR, reconhecendo a nova hipótese de legitimação para a nunciação de obra nova criada pela Lei n° 6.766/79, pois, de acordo com seu art. 45, "o loteador, ainda que já tenha vendido todos os lotes, e os vizinhos, são partes legítimas para promover ação destinada a impedir construção em desacordo com restrições legais ou contratuais", preleciona:

"Esse dispositivo tem duplo significado: primeiro, equipara aos regulamentos administrativos as regras restritivas do direito de construir, impostas nos contratos de loteamento e venda de lotes, como o próprio loteador, para defesa das regras do loteamento. Assim, o loteador, mesmo depois de deixar de ser vizinho dos proprietários dos lotes, conservará legitimidade para impedir violação do regulamento, por meio de nunciação de obra nova".

Por outro lado, o Código de ritos não contemplou o mero detentor que, por não possuir a coisa em seu próprio nome, não tem legitimidade ativa para a ação nunciativa. Da mesma forma, o Ministério Público ficou de fora do rol dos legitimados, uma vez que não se trata da defesa de interesses difusos.

A condição de proprietário ou possuidor, naturalmente, deve ser provada por documento juntado com a petição inicial. Seu estado civil, entretanto, é irrelevante, pois inexiste fundamento legal e exigir a participação do outro cônjuge, posto que se trata de ação pessoal e não de ação real imobiliária, apesar do disposto no art. 95 do CPC. Conseqüentemente, inexiste qualquer nulidade em razão da falta de citação do cônjuge do réu.

Por entender que a ação nunciativa integra o grupo das ações reais imobiliárias, como vimos, THEODORO JÚNIOR nos faz concluir pela exigência, segundo sua concepção, da intervenção de ambos os cônjuges. Segundo o insigne processualista mineiro, "torna-se necessária a intervenção de ambos os cônjuges, sempre que a demanda for ajuizada por pessoa casada ou contra pessoa casada (art. 10, parágrafo único)". De nossa parte, não cremos ser esta a melhor solução.

Contudo, ainda que a obra esteja prejudicando prédios vizinhos pertencentes a proprietários diversos, cada um deles poderá propor, isoladamente, a ação nunciatória por se tratar de hipótese de litisconsórcio facultativo.

Nos termos do inc. II do art. 934 do CPC, o condômino tem legitimidade para impedir que o co-proprietário execute alguma obra com prejuízo ou alteração da coisa comum.

Embora a situação do condômino não se enquadre propriamente no direito de vizinhança porque todos os comunheiros têm direito ao desfrute comum de um só prédio, nenhum deles pode, por si só, prejudicar o uso dos demais nem tampouco realizar obras que lesem o imóvel ou o desviem de sua natural finalidade econômica. De modo semelhante ao que se passa no direito de vizinhança, o legislador destinou a ação nunciatória também a solucionar os conflitos da espécie surgidos entre comunheiros de bem imóvel.

Na verdade, o que se quer é evitar que algum dos condôminos construa em parte comum do prédio, em prejuízo do direito dos outros. Assim, é defeso a qualquer dos condôminos mudar, alterar ou mesmo obstaculizar o uso das partes comuns do prédio em condomínio sem consentimento dos demais co-proprietários.

Entretanto, GRECO FILHO, enriquecendo nosso estudo, adverte:

"A hipótese do inc. II refere-se à violação de direitos entre condôminos. Essas violações podem caracterizar, também, hipóteses de possessórias, quando houver esbulho ou turbação da posse do outro, como, por exemplo, se um condômino ocupa área de uso comum do edifício e passa a usá-la privativamente. A nunciação de obra nova é cabível quando, sem violação da posse do outro, um deles inicia obra ou alteração da coisa comum sem o consentimento de todos. É o que estabelece o art. 628 do Código Civil: ‘Nenhum dos comproprietários pode alterar a coisa comum, sem o consenso dos outros’".

Assim, não se pode, por exemplo, alterar fachada do prédio, diferençando uma unidade da outra, tal como se dá com a realização de uma pintura externa diferente em uma das unidades. Qualquer alteração em áreas comuns, não reservadas expressamente a um condômino em especial, é passível de nunciação, como a hipótese de um proprietário de sala ou apartamento pretender fechar área de corredor do prédio ou parte de estacionamento a todos reservada, ou a construção de um jardim e realização de fechamento do acesso de lojas a via pública com manifesto prejuízo aos condôminos, ou ainda, a alteração da destinação de uma das unidades, descaracterizando-a de residencial para comercial sem a aquiescência unânime dos demais.

O condômino, além de observar as regras específicas como qualquer outro, deve, ainda, obedecer as cláusulas contidas na Convenção de Condomínio, preferencialmente registrada, ao executar uma obra nova na área comum. Certo é que, "dependendo da gravidade da situação, a medida judicial pode ser proposta mesmo que não tenha, ainda, sido o condomínio devidamente formalizado".

É de se ver ainda que, mediante convenção no condomínio de edifícios, é possível estabelecer até mesmo a proibição de alteração das partes internas da unidade, quando, então, ao condômino se faculta o manejo da ação nunciativa para obstá-la.

Igual direito assiste ao compossuidor, lembrando, por oportuno, que a regra atinge toda espécie de condomínio (pro diviso ou pro indiviso, comum ou especial, vertical ou horizontal), embora a maior incidência da norma atinja a chamada propriedade horizontal, ou seja, condomínios de edifício, dividido em unidades autônomas (apartamentos, salas, etc.). Neste caso, as unidades podem ser modificadas internamente, mas não se pode alterar a estrutura do edifício e muito menos das chamadas áreas comuns.

A legitimidade ativa, em casos de propriedade horizontal, é também do síndico – art. 12, IX, do CPC – o que não desautoriza a propositura da referida ação por um dos condôminos. Nesta ordem de idéias, condômino e condomínio representado pelo síndico poderão, perfeitamente, ajuizar ação de nunciação de obra nova.

A hipótese do inc. III, a seu turno, é a de obra que se inicia e que será realizada em contravenção à lei, regulamento ou postura municipal.

Dessa forma, graças ao mencionado dispositivo, fica autorizado o Município a nunciar qualquer obra, inclusive contra o Estado e a União, que ilegalmente, atente contra regulamento ou postura municipal, como seria, por exemplo, a hipótese de se construir prédio moderno em área de patrimônio histórico, devidamente tombada.

Buscando sempre o verdadeiro alcance da norma processual, THEODORO JÚNIOR preleciona:

"Ao Poder Público interessado, e, não apenas ao Município, como sugere o art. 934, n° III, cabe, na defesa do interesse geral, exigir, por meio da operis novi nuntiatio, que as posturas administrativas sejam sempre fielmente cumpridas, tanto a nível municipal, federal ou estadual. O texto legal não é de ser interpretado como de feitio restritivo. A previsão da legitimidade do Município se fez, no código, apenas segundo o princípio do id quod plerumque accidit, já que, na generalidade, as regras de disciplina das construções são de âmbito municipal. Mas, como constitucionalmente a matéria pode vir a ser abrangida também por interesses federais ou estaduais, o aviltre mais certo é o de reconhecer legitimidade ativa para a nunciação de obra nova não só ao Município, mas também à União e ao Estado, cada um dentro de sua política disciplinadora do direito de construir".

É de se reconhecer, pois, a legitimidade ativa da União, Estados e Distrito Federal para a propositura da ação nunciativa, vez que os referidos entes têm competência para a disciplina da matéria dentro de suas respectivas áreas de atuação e, assim, de impor restrições ao direito de construir.

Falece, explica-nos GRECO FILHO, legitimidade ao particular para a propositura da referida ação contra outro particular, fundada em legislação municipal, em razão das esferas de competência legislativa estabelecidas na Constituição da República. A fórmula a ser aplicada é a seguinte: nas relações do tipo "particular-particular", aplica-se o direito civil, ao passo que nas relações Administação-Administrado, aplica-se o direito administrativo.

Cremos, entretanto, que a melhor exegese do dispositivo, por atender mais satisfatoriamente ao ideal de efetividade do processo, é aquele que reconhece ao particular o direito de se valer da ação de nunciação de obra nova mesmo no caso de um outro particular, por deixar de observar regulamentos administrativos na sua construção, vir a prejudicá-lo. Assim é porque, obviamente, a violação de um regulamento administrativo na realização de uma obra pode vir a prejudicar imóveis da vizinhança.

Neste caso, porém, a nunciação terá de ser fulcrada em interesse do próprio particular, de modo que seu fundamento direto esteja no prejuízo que o vizinho vem lhe causando por inobservar o regulamento do direito de construir.

Encerrando o presente tópico, não poderíamos olvidar as críticas formuladas pelo sempre mestre H. L. MEIRELLES que, por assim dizer, denuncia as imprecisões de nosso Código de Processo Civil no trato do tema em estudo. Eis o que diz o memorável doutrinador:

"Conquanto o Código de processo Civil de 1973 tenha dado maior amplitude à ação de nunciação de obra nova, o seu redator incidiu em dois equívocos de técnica que poderiam restringir sensivelmente o campo de sua incidência, por ter-se referido, erroneamente, no inc. I, à espécie ‘edificação’, ao invés de fazê-lo ao gênero construção, e no, inc. III, ter mencionado especificamente o ‘Município’, quando deveria referir-se genericamente à Administração Pública, abrangente de todas as entidades estatais, autárquicas e paraestatais, que podem utilizar-se da nunciatória. Realmente, a edificação é apenas uma das modalidades de construção, como demonstraremos adiante (v. cap. X, n. I, ‘B’), e, por outro lado, não é o Município a única entidade que pode valer-se desta ação, pois dela são titulares também a União, o Distrito Federal, os Estados, os Territórios, suas autarquias e entidades paraestatais, para impedir obras ilegais e prejudiciais aos seus bens e serviços. Anote-se, ainda, que nesse mesmo dispositivo (art. 934, III) o redator do Código emprega o vocábulo reinol ‘postura’, já de há muito abolido da moderna Administração municipal e sem nenhum sentido técnico dentre as normas edilícias".

Feitas as pertinente críticas, passemos ao estudo da legitimidade passiva para a ação de nunciação de obra nova.

4.6. Legitimidade passiva

O sujeito passivo da ação de nunciação de obra nova – o nunciado – é o dono da obra, ou seja, aquele por conta de quem ela é executada. É o responsável pela sua existência, é quem determinou sua construção.

O dono da obra tem sempre que ser citado para responder à demanda, ainda que não seja o dono do terreno. Aliás, adverte um ilustre processualista mineiro: "não são réus o dono do terreno, se prometeu, por exemplo, vendê-lo à construtora do edifício, e o simples executor da obra por ordem de outrem".

Assim, a figura do dono da obra não se confunde com a do construtor, do dono do terreno, do responsável pelas vendas, com a da incorporadora, com a do engenheiro contratado para projetar, fiscalizar e assessorar a obra. Estes não são réus na ação nunciativa. Só aquele – o dono da obra – pois é o responsável pela sua existência e interessado em sua conclusão.

Entretanto, não se perca de vista que a responsabilidade civil entre proprietário e construtor, no que tange à reparação dos danos patrimoniais causados a vizinhos, é solidária e independe da prova de culpa, pois derivada da lesividade do fato da construção e não da ilicitude do ato de construir.

Na precisa lição de H. L. MEIRELLES,

"A construção, por sua própria natureza, e mesmo sem culpa de seus executores, comumente causa danos à vizinhança, por recalques do terreno, vibrações do estaqueamento, queda de materiais e outros eventos comuns na edificação. Tais danos hão de ser reparados por quem os causa e por quem aufere os proveitos da construção. Daí a solidariedade do construtor e do proprietário pela reparação civil de todas as lesões patrimoniais causadas a vizinhos pelo só fato da construção. É um encargo de vizinhança, expressamente previsto no art. 572 do Código Civil, que, ao garantir ao proprietário a faculdade de levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, assegurou aos vizinhos a incolumidade das normas administrativas.

Essa responsabilidade independe de culpa do proprietário ou do construtor, uma vez que não se origina da ilicitude do ato de construir, mas, sim, da lesividade do fato da construção. É um caso típico de responsabilidade sem culpa, consagrado pela lei civil, como exceção defensiva da segurança, da saúde e do sossego dos vizinhos (art. 554). E sobejam razões para essa orientação legal, uma vez que não se há de exigir do lesado em seus bens mais que a prova da lesão e do nexo de causalidade entre a construção vizinha e o dano. Estabelecido esse liame, surge a responsabilidade objetiva e solidária de quem ordenou e de quem executou a obra lesiva ao vizinho, sem necessidade da demonstração de culpa na conduta do construtor ou do proprietário".

Em verdade, a lição supratranscrita fala por si mesma. Qualquer reparo de nossa parte seria desleal para com a pureza dos ensinamentos ofertados pelo insigne administrativista.

Contudo, cabe aqui, um valioso esclarecimento a cargo da Doutora em Direito pela PUC de São Paulo, RITA GIANESINI:

"Embora o dono da obra possa pleitear ressarcimento perante o construtor, engenheiro responsável, na hipótese deste ter construído em desacordo com o projeto aprovado ou com suas instruções e, em conseqüência, causar prejuízo ao prédio vizinho, não cabe denunciação da lide por ampliar indevidamente o tema decidendum".

Da lição se infere que não há falar em um arbítrio do nunciante, já que o réu pode pleitear, em outro feito, ressarcimento contra o construtor ou engenheiro responsável na hipótese de estes construírem em desacordo com o projeto aprovado. Buscando a efetividade processual, o legislador não admitiu a denunciação da lide, modalidade de intervenção de terceiros. Assim, no pólo passivo da ação nunciatória figurará, tão somente, o dono da obra.

Contudo, é possível nomear à autoria na forma do art. 63 do CPC uma vez que a obra clandestina, grande parte das vezes, dificulta a identificação de seu verdadeiro dono.

Quando, porém, várias pessoas são donas da obra a ação de nunciação de obra nova pode ser proposta contra qualquer uma delas, por se tratar de hipótese de litisconsórcio facultativo, como já vimos.

Temos que este entendimento satisfaz melhor o ideal de efetividade do processo. Isto porque a citação de todos os réus em um suposto litisconsórcio unitário e necessário, como quer E. F. SANTOS, é por demais morosa e a urgência da medida, na maioria das vezes, não comporta espera.

Por outro lado, o dono da obra pode ser o proprietário, o possuidor direto ou indireto, o titular do direito real, o locatário, o condomínio, o arrendatário.

Exemplificando, se o Município intentar a ação nunciativa contra o dono do imóvel, quando o dono da obra for o locatário, a hipótese será de carência de ação, devendo o processo ser extinto com fulcro no art. 267, VI do CPC.

O réu pode ser, ainda, pessoa física ou jurídica de direito privado, com ou sem personalidade jurídica, ou de direito público. A legitimidade passiva para a referida ação, não se limita, pois, ao particular.

Entretanto, o Poder Público, ao executar obras em locais públicos e no interesse público, não se sujeita à ação nunciativa. O mesmo, porém, não se dá quando edifica em terrenos de seu domínio e que não seja de uso público.

Como se pode ver, nem mesmo o Poder Público se vê livre de figurar no pólo passivo da ação nunciatória.

Considerando que o direito subjetivo do autor ao embargo da obra e retorno ao estado anterior decorre da infringência, por parte do construtor da obra nova, de normas que restringem o direito de construir e que tais normas são de ordem civil (CC, arts. 554 e 573) e administrativa, o Poder Público, ao construir, deve ser o primeiro a dar o exemplo, respeitando suas próprias normas, bem como não prejudicando, com sua atuação, os particulares.

Temos por certo que ele – Poder Público – também pode, perfeitamente, vir a ocupar o pólo passivo na ação de nunciação de obra nova.

 

5. PROCEDIMENTO E EMBARGOS

5.1. Petição inicial e defesa do réu

No presente tópico examinaremos aspectos relevantes relativos à petição inicial da ação de nunciação de obra nova, algumas das matérias passíveis de alegação pelo réu em sua peça contestatória, bem como uma visão geral sobre o procedimento da referida ação, tendo em vista que ela pode ser ajuizada tanto pelo particular quanto pelo ente público. Deixaremos, porém, o estudo dos embargos – judicial e extrajudicial – para os tópicos subseqüentes.

Isto posto, é de se reconhecer que a petição inicial da ação nunciatória deve, além de preencher os requisitos expressos no art. 282, observar o disposto no art. 936 do CPC. Assim, além de atender aos requisitos que toda petição inicial deve conter, deverá o autor requerer, expressamente, o embargo da obra em andamento – pedido indispensável para a caracterização do procedimento em estudo como sendo "especial" - e, se for o caso, os demais pedidos, que são facultativos, fazendo a descrição exata do que pretende, já que o pedido, envolvendo obrigação de fazer, requer perfeita delimitação.

O nunciante poderá, como afirmamos, cumular certos pedidos em conformidade com o disposto no art. 936 do estatuto processual. Tal se dá porque, numa perspectiva de efetividade do processo, permitiu o legislador que o procedimento especial da ação nunciativa, a par do seu escopo principal de paralisar – embargar - a obra nova do réu, também fosse utilizado para alcançar outras medidas conexas com aquele seu desiderato principal.

Acerca do tema, ensina-nos THEODORO JÚNIOR, ser lícito ao autor cumular, na petição inicial, além do embargo definitivo da construção, os seguintes pedidos (art. 936):

"a) embargo liminar, segundo o qual a construção ficará desde logo paralisada, aguardando o julgamento definitivo da lide (art. 937); b) condenação do réu à reconstituição, modificação ou demolição da obra, irregularmente feita em prejuízo do autor; c) cominação de pena pecuniária, para a hipótese de infração, pelo réu, do embargo deferido in limine litis; d) condenação do réu ao pagamento de perdas e danos suportados pelo autor, em decorrência da obra embargada; e) ordem de apreensão e depósito de materiais ou produtos, quando a obra embargada consiste em demolição, colheita, corte de madeiras, extração de minérios e outros semelhantes (art. 936, parág. único)".

Tem-se, porém, que nem sempre o autor será constrangido a formular o pedido de reconstrução, demolição ou modificação, porque este, às vezes, não é necessário. O mesmo se diga do pedido de cominação de pena para o caso de inobservância do preceito e o de perdas e danos.

Os pedidos, como dissemos, constituem faculdade e não ônus do embargante, além do que a acolhida de um deles não se encontra na dependência do provimento do pedido principal e obrigatório de paralisação da obra nova. Pode mesmo ocorrer a improcedência do embargo, por exemplo, em razão da conclusão da obra ao tempo do ajuizamento da ação, mas nem por isso serão inacolhíveis os pedidos de indenização dos prejuízos comprovados e de demolição da obra lesiva ao autor.

De nossa parte, temos que numa perspectiva de instrumentalidade e efetividade do processo, é de se admitir a conversão da ação nunciatória em demolitória quando se mostrar inviável a suspensão da construção já concluída. Não cremos que a medida leve a uma alteração da causa petendi, isto porque a lei permite que a ação nunciatória contenha cumulativamente a pretensão de demolir a obra irregularmente erguida.

Aliás, acerca da efetividade e instrumentalidade do processo, JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA nos oferta lição que autoriza o entendimento acima. Ei-la:

"Querer que o processo seja efetivo é querer que desempenhe com eficiência o papel que lhe compete na economia do ordenamento jurídico. Visto que esse papel é instrumental em relação ao direito substantivo, também se costuma falar da instrumentalidade do processo. Uma noção conecta-se com a outra e por assim dizer a implica. Qualquer instrumento será bom na medida em que sirva de modo prestimoso à consecução dos fins da obra a que se ordena; em outras palavras, na medida em que seja efetivo. Vale dizer: será efetivo o processo que constitua instrumento eficiente de realização do direito material".

Cremos, assim, ser possível a referida conversibilidade, uma vez que se mostra mais eficiente à realização do direito material do nunciante.

Já o pedido de cominação de pena poderá ser feito, a qualquer tempo, antes da sentença final. Trata-se de pedido obrigatório, posto que inerente ao caráter de obrigação de não fazer de que se reveste a ordem de suspensão liminar da obra e, embora o autor possa propor o seu montante, é o juiz que, valendo-se de seu prudente arbítrio, fixará o respectivo quantum.

Ainda a respeito do pedido de cominação de pena pecuniária, GIANESINI, que não admite possa o magistrado cominar a penalidade de ofício, nem o autor requerê-la no decorrer da ação, preleciona:

"A cominação de pena pecuniária pode, como salientado, abranger quer a hipótese de prosseguimento de obra embargada judicialmente quer o descumprimento do prazo fixado pelo magistrado para execução das providências indispensáveis para retornar ao estado anterior, nos termos do art. 287, c/c os arts. 644 e 645 do CPC".

Hoje, porém, é de se aplicar o art. 461 do Código de Ritos, por conter disposição mais ampla do que aquela contida no art. 287 do mesmo diploma.

Em relação ao pedido de condenação em perdas e danos – que não é obrigatório - é de se ver que somente serão cumuláveis as perdas e danos que guardarem uma relação de causalidade com a obra nova embargada, ou seja, somente os prejuízos que o réu tenha causado, direta ou indiretamente, ao imóvel do autor em razão da referida obra é que autorizam o pedido de ressarcimento na ação nunciatória.

A fixação do quantum das perdas e danos, em qualquer hipótese, deve ser realizada na liquidação da sentença. Por elas responde, é claro, o dono da obra, mas o construtor, como vimos, também pode responder solidariamente.

Em se tratando, ainda, de demolição, colheita, corte de madeiras, extração de minérios e outras obras assemelhadas, pode incluir-se o pedido de apreensão e depósito dos materiais e produtos já retirados. Nesta hipótese, porém, a medida terá caráter satisfativo.

Neste caso, afirma GIANESINI: "o autor deve indicar o local onde os materiais se encontram. E para onde devem ser removidos. O depositário pode ser o próprio nunciado ou o nunciante".

Por outro lado, cumpre observar que, a despeito de ser uma ação de natureza pessoal, o que a princípio determinaria a competência pela regra geral – a do domicílio do devedor – pois, como vimos, versa sobre o prejuízo advindo da obra irregular e não sobre posse ou propriedade, a ação nunciatória, por disposição expressa do art. 95 do CPC, que a inclui entre as ações reais imobiliárias, teve a sua competência determinada em razão do território em caráter absoluto, não admitindo, assim, prorrogação.

A regra, porém, tem a sua utilidade prática e por isso deve ser seguida. O foro da situação da coisa, aplicável à espécie, facilita o cumprimento da determinação de embargo da obra, a prova pericial, a inspeção judicial, etc. Temos, assim, que o juízo competente para conhecer da ação de nunciação de obra nova é o juízo de primeiro grau do local do imóvel.

No que tange à competência recursal, deve-se buscar nas leis de Organização Judiciária de cada Estado o órgão ad quem encarregado do julgamento do recurso interposto.

Já o embargo na ação de nunciação de obra nova - que será estudado pormenorizadamente nos tópicos seguintes - pode ser deferido liminarmente ou após justificação prévia (art. 937) que, entretanto, não é obrigatória, dependendo do livre convencimento do juiz.

Além do pedido de embargo ou de sua ratificação (quando feito extrajudicialmente), o juiz examinará liminarmente, também, o pedido de cominação de pena na hipótese de descumprimento do mesmo.

Em qualquer caso, afirma um processualista mineiro: "executada a medida liminar, procede-se à citação do réu para contestar a ação em cinco dias (art. 938), seguindo-se o procedimento previsto para as medidas cautelares (art. 939)". Isto ocorre, ensina-nos GRECO FILHO, "não porque a ação de nunciação de obra nova seja cautelar, mas porque se trata de um procedimento sumário, que, às vezes, o legislador prefere para as ações que deseja sejam mais rápidas".

O réu, em sua contestação, pode alegar, entre outras matérias, a inexistência de obra nova, a conclusão da obra, a inexistência de prejuízo ao prédio vizinho, etc. Pode, ainda, alegar incompetência, pois a despeito de esta ser determinada em razão do território, é de caráter absoluto; ingressar com exceção de impedimento ou suspeição, impugnar o valor da causa, interpor ação declaratória incidental e, ainda, reconvir pleiteando a condenação do nunciante ao pagamento dos prejuízos que veio a sofrer.

Se o réu não contestou, os fatos narrados na inicial serão havidos como verdadeiros, cabendo ao juiz sentenciar também em cinco dias (art. 803). Contudo, se houver contestação e a matéria reclamar prova oral ou pericial, o juiz designará audiência de instrução e julgamento (art. 803, parág. único).

Sendo a questão puramente de direito ou a prova meramente documental, o feito será desde logo submetido ao julgamento antecipado da lide.

O processo seguirá, a partir de então, o rito ordinário, uma vez que se permite, caso seja necessária, ampla instrução probatória, inclusive prova pericial. Como se pode comprovar, depois da fase de litiscontestação, não há diferença fundamental entre o procedimento ordinário e o procedimento cautelar.

Cumpre observar, por fim, que a ação nunciatória não corre nas férias (art. 174), mas o ato de nunciar a obra, ainda que realizado extrajudicialmente, pode nelas ser praticado (art. 173, II) e ratificado.

O valor da causa, que deve guardar relação com o bem da vida requerido na ação e com prejuízo que se quer evitar, pode ser estabelecido tendo por base o valor venal do imóvel.

Vistos estes aspectos, relativos à petição inicial e à defesa do réu que, naturalmente, iniciam a fase judicial do procedimento especial objeto de nosso estudo, cumpre destacar que a lei confere ao nunciante a faculdade de fazer ele próprio o embargo extrajudicial da obra nova que lhe prejudica. Assim, a lei permite que mesmo antes de entrar em juízo, inaugurando a fase judicial do procedimento, possa o prejudicado impedir o prosseguimento da obra. É o que estudaremos no tópico seguinte.

5.2. Embargo extrajudicial

Graças ao disposto no art. 935 do CPC, pode o embargo à obra nova ser feito extrajudicialmente. Para tanto, o requisito para sua concessão é a urgência da medida. Só esta justifica a autorização legal para que o vizinho prejudicado possa fazer, pessoal e diretamente, ao dono da obra, ou em sua falta, ao construtor, o embargo extrajudicial.

Quanto a este último aspecto, E. F. SANTOS pontua:

"O embargo extrajudicial é feito verbalmente e dirigido, em princípio, ao proprietário da obra. Excepcionalmente, a notificação é feita ao construtor, isto quando o proprietário estiver ausente (art. 935). A ausência, contudo, não é da obra, mas de local onde a notificação não seja feita rápida e eficazmente".

A finalidade desse embargo é a paralisação imediata da obra, com o intuito de evitar maiores prejuízos ao embargante. Deseja-se, pois, com a medida preliminar, a paralisação imediata da construção, antes mesmo do ajuizamento e despacho da petição inicial, impedindo, assim, a conclusão da obra, antes mesmo do pronunciamento do Judiciário.

Contudo, em matéria de embargo extrajudicial, o conceito de urgência é relativo, devendo ser examinado de acordo com o caso concreto.

A realidade é pródiga na criação de situações que reclamem um agir imediato do prejudicado. Assim, se não for possível requerer o embargo ao juiz por se tratar de dia de domingo ou feriado, ou por ser a hora imprópria (à noite, por exemplo), ou se a comarca estiver muito distante do local, ou se os serviços forenses estiverem em greve, ou ainda se o dano for iminente, como no caso de um desmoronamento, será possível ao prejudicado valer-se do embargo extrajudicial.

Não se exige, porém, que a parte esteja impossibilitada de se dirigir imediatamente ao magistrado, "bastando que pequena demora, às vezes causada até pela distribuição e demais atos burocráticos do ajuizamento da ação, possa ser motivo de ineficácia da medida". Certo é que, se se verificar que a não-paralisação imediata da obra poderá causar dano irreparável, é de se reconhecer a viabilidade da medida.

Para a realização do embargo extrajudicial, entretanto, deverá o autor se dirigir ao dono da obra, acompanhado de duas testemunhas desimpedidas e fazer, verbalmente, a notificação para que este não continue a obra.

A presença de duas testemunhas, devidamente identificadas, é fundamental, seja para efeito de verificação de datas pelo juiz, seja para o fim especial de comprovar, na época oportuna, se for o caso, o estado da obra.

Dentro de três dias após a notificação, o nunciante deverá requerer a ratificação judicial do embargo extrajudicial, sob pena de cessar o seu efeito (art. 935, parágrafo único). "Para esse fim, o tema será incluído na petição inicial da ação de nunciação, e ao juiz, ao despachá-la, cumprirá homologar ou não a medida extrajudicial, conforme se apresente em consonância ou não com seus requisitos legais".

Tal se dá porque, sendo o embargo extrajudicial uma antecipação da liminar (art. 937), não basta ao nunciante o simples pedido de ratificação, exigindo-se-lhe também a propositura da ação principal, sob pena de não prevalecer a medida. Nesta ação, deverá o autor, ainda, descrever o estado em que se encontra a obra .

É de se notar também que, se o interessado, após embargar extrajudicialmente a obra, não pedir a ratificação em juízo, poderá o dono da obra ingressar com ação pleiteando ressarcimento pelos prejuízos sofridos com o embargo.

Certo é que, no momento da ratificação o juiz examina, além dos pressupostos necessários ao deferimento da liminar, o requisito da urgência e demais formalidades do embargo extrajudicial, podendo ouvir não só as testemunhas do ato, como também outras para atestar a urgência do caso.

THEODORO JÚNIOR vem em nosso auxílio e, com muita propriedade, sintetiza a fórmula para a eficácia do embargo extrajudicial. Eis a didática lição do mestre:

"A eficácia de embargo extrajudicial está, pois, subordinada aos seguintes requisitos: a) urgência real da medida, porque o dano provocado pela obra nova já se iniciou para o embargante; b) observância da forma legal, consistente na notificação ao dono da obra, ou ao construtor, em presença de duas testemunhas; c) requerimento de ratificação judicial dentro de três dias".

Da transcrição acima se infere que a ausência dos requisitos legais exigidos autoriza não só o indeferimento do pedido de ratificação do embargo extrajudicial, como também de embargo judicial da obra, o que, obviamente, confere ao embargante que não obteve a ratificação, o ônus de recorrer da decisão.

De qualquer modo, caso o embargo extrajudicial não seja ratificado, no prazo e forma devidos, não ensejará repetição, salvo para eventual correção de alguma falha de ordem formal, como, por exemplo, a presença de apenas uma testemunha.

É de se ver, por fim, que homologado o embargo, este adquire força de ato judicial. Sua eficácia é ex tunc, retroagindo ao momento em que o autor praticou o ato de embargo e, uma vez ratificado, se o réu não o atendeu, as coisas devem voltar ao status quo ante, sem prejuízo das perdas e danos.

Inobstante seja o embargo extrajudicial medida prevista na lei processual, à disposição do vizinho que, em caso de urgência, se vê obrigado a embargar a obra nova que lhe ameaça, se apresenta, creio, como medida excepcional. Normalmente, o nunciante ingressa em juízo e faz o pedido de embargo liminar da obra malsã. O referido embargo será, pois, o objeto de nosso estudo no tópico seguinte.

5.3. Embargo liminar

Se o nunciante não optou pelo manejo do embargo extrajudicial, ou se este não restou homologado pelo julgador, prevê o art. 937 medida liminar decretável pelo magistrado, já na abertura do processo, a exemplo do que se verifica nas ações possessórias e nos embargos de terceiro, obtendo-se, por ela, a imediata paralisação da obra.

Para tanto, o nunciante deve, necessariamente, requerer o embargo da obra em sua petição inicial, não se admitindo ação nunciatória sem este pedido.

Cumpre observar, porém, que o embargo sob exame pode ser deferido liminarmente ou após justificação prévia - que, como afirmamos, não é obrigatória, dependendo do livre convencimento do julgador – ou, ainda, ser indeferido.

E. F. SANTOS, a seu turno, adverte:

"Não se exige , para a liminar, audiência do réu, mesmo no caso de justificação, em razão da urgência e da relevância da suspensão da obra, já que não se trata ela de um adiantamento de execução propriamente dito, como no caso das possessórias, mas, antes, de medida cautelar, concedida no curso do processo".

Correto, pois, o entendimento do mestre na medida em que a cognição realizada para a concessão da liminar é superficial, contentando-se o magistrado com o fumus boni iuris e o periculum in mora, ficando dispensado o autor de fazer, naquele momento, uma prova cabal de seu direito, face à urgência da medida.

THEODORO JÚNIOR, em sua autoridade, nos ensina a fórmula para que o autor obtenha, com sucesso, a medida liminar pleiteada:

"Para obter a providência in limine litis o autor terá de fornecer, com a inicial, documentos demonstrativos do prejuízo que a obra do réu representa para seu prédio. Não dispondo de documentos adequados, produzirá, unilateralmente (isto é, sem citação do réu), justificação testemunhal prévia".

Concluindo o magistrado pela necessidade da justificação prévia, o respeito ao contraditório, naturalmente, se impõe.

Quanto a este aspecto, GIANESINI preleciona:

"Na hipótese do magistrado concluir ser necessária a justificação prévia para concessão do embargo, entendemos que o nunciado deve ser citado comparecendo se quiser. Inexiste razão para impedir-se a presença da parte contrária. O princípio do contraditório, consagrado na CF, art. 5.°, LV, desautoriza entendimento diverso".

Por outro lado, o julgador, ao despachar a inicial, pode, como vimos, conceder o embargo liminarmente, a pedido do nunciante, independente de justificação prévia face ao disposto no art. 937 do estatuto processual. Apesar disso, nada impede que venha a reconsiderá-lo posteriormente, proferindo outra decisão, em sentido oposto, tendo em vista os novos elementos trazidos aos autos pelo nunciado em sua contestação, onde o mesmo postulou a reconsideração do embargo liminar.

Temos por certo que, com ou sem justificação prévia, terá o nunciante de provar a urgência da medida, bem como os demais requisitos legais, para obter a decisão concessiva do embargo liminar.

Em qualquer caso, por óbvio, a decisão proferida pelo julgador há de ser fundamentada, sob pena de nulidade. Trata-se de inafastável mandamento constitucional (CF, art. 93, inc. IX). Contra aquela, porém, que conceder a liminar cabe, como era de se esperar, agravo de instrumento.

Mas, como fica a hipótese de indeferimento do embargo?

GIANESINI, discordando frontalmente de Adroaldo Furtado Fabrício e Humberto Theodoro Júnior, entende que o indeferimento do embargo não leva à extinção do feito, que prosseguirá mesmo sem a concessão da liminar. Nas palavras da insigne Doutora,

"o indeferimento do embargo não implica na extinção do processo. O feito prossegue sem a concessão liminar, mesmo porque há outros pedidos que podem ser apreciados juntamente com o embargo na sentença. Ademais, o art. 937 do CPC faculta ao juiz conceder ou não liminarmente a suspensão da obra".

Na verdade, a ação de nunciação de obra nova compreende vários pedidos, onde se inclui o de demolição do que tiver sido feito em prejuízo do autor, além das perdas e danos, independentemente do embargo liminar, não se justificando, pois, a extinção do processo em razão da sua não concessão. O embargo pode, muito bem, ser concedido ao final, mas deve ser cumprido de imediato tão logo concedido.

A autora ainda pondera:

"Contudo na hipótese do indeferimento estar fundamentado no fato da obra não ser nova, ou estar concluída quando da propositura da ação, ou não causar prejuízo, a extinção do processo se dá não pela não concessão liminar do embargo, mas por não presentes os requisitos da ação de nunciação de obra nova".

Neste caso, é de se entender pela extinção do processo sem julgamento do mérito. O juiz, então, lançará mão de uma sentença terminativa, atacável por meio de recurso de apelação.

Cremos, porém, que diante da revogação da decisão concessiva do embargo, não se deve entender pela inviabilidade da ação, isto porque não há perda de seu objeto. Do contrário, estaremos indo de encontro ao ideal de efetividade do processo, já tão mencionado neste trabalho.

Deferido o embargo ou homologado o embargo extrajudicial, como vimos, o oficial de justiça encarregado de seu cumprimento deverá comparecer à obra e lavrar auto circunstanciado, descrevendo o estado em que se encontra, exatamente porque qualquer modificação posterior poderá revelar desobediência ao preceito.

Pode o oficial de justiça, durante a diligência, tirar fotos e se utilizar de termos técnicos. Conveniente, para tanto, "o comparecimento do nunciante acompanhado de engenheiro para auxiliar, se for o caso, o oficial de justiça, no detalhamento da obra". Até o próprio magistrado pode comparecer ao local, se achar necessário.

Ato contínuo, notificará o construtor e os operários a que não continuem a obra sob pena de desobediência e citará o proprietário a contestar em cinco dias a ação. Cumpre-se, assim, o embargo.

Por outro lado, a intimação (na verdade, notificação) de que trata o art. 938 do CPC, dirigida ao construtor e aos operários, não se consubstancia em citação, mas, sim, numa "simples ordem interdital do andamento dos trabalhos". Réu, como vimos, é tão somente o dono da obra.

De igual sentir é E. D. NUNES, para quem

"o fato de os arts. 935 e 938 preverem a notificação e a intimação do construtor e operários do embargo da obra não lhes confere legitimidade para figurar no pólo passivo da relação processual. Legitimado passivo será sempre o dono da obra. Ele é que deve ser citado".

A violação do embargo, contudo, configura atentado (arts. 879 e seguintes). Quer se trate de embargo judicial ou mesmo extrajudicial, desde que devidamente ratificado, no prazo e forma legal, além das sanções penais e da pena pecuniária, pode o seu descumprimento caracterizar atentado que, se julgado procedente, trará sérias conseqüências ao nunciado (art. 881).

Entretanto, o mesmo não se diga em relação ao embargo administrativo. Este, por se tratar de ordem de autoridade administrativa, se desrespeitado, pode caracterizar crime de desobediência, mas não o atentado.

Retomando nosso tema, assevera THEODORO JÚNIOR que, em sede de ação de nunciação de obra nova, "o desrespeito ao embargo representa crime de desobediência para o construtor e operários intimados pelo Oficial de Justiça, e atentado, para o réu".

E. F. SANTOS vai mais longe e acrescenta:

"A desobediência gera responsabilidade pessoal do infrator, inclusive criminal (CP, art. 330), podendo até ser preso em flagrante. O simples operário não se exime das conseqüências da infração, ainda que esteja obedecendo a ordem de superior que, por ela, também é responsabilizado".

É conveniente, pois, que no auto de embargo conste, também, o nome do construtor e dos operários, devidamente identificados, para melhor caracterização do crime de desobediência.

Em caso de resistência à efetivação do embargo, o oficial de justiça requisitará, se necessário, força policial.

Cumpridas as diligências relativas à suspensão da obra, só então o proprietário será citado para contestar no prazo de cinco dias, servindo a citação também como notificação para o efeito de não prosseguimento da mesma.

Contudo, o proprietário pode ou não estar na obra. Se não estiver, deverá o oficial de justiça procurá-lo no local onde se encontrar, para esse intento.

Na verdade, a intimação do embargo liminar feito ao construtor e seus operários não se confunde com a citação para a ação nunciativa, que deverá ser feita ao proprietário. No primeiro caso – intimação - é indiferente que o proprietário esteja presente no local da obra, pois dela tomará conhecimento mais cedo ou mais tarde por meio de seus operários, cientes do embargo. No segundo, porém – citação - é necessário o contato direto e pessoal do auxiliar da justiça com o dono da obra, réu da nunciatória. Trata-se de ato processual a partir do qual será aberto prazo para a contestação. Por isso, este deve ser encontrado pelo oficial de justiça onde quer que esteja.

5.4. Levantamento do embargo: caução e prosseguimento da obra

A despeito da efetivação do embargo da obra nova, este poderá ser levantado sob certas condições. O levantamento pode ser temporário (parcial) ou definitivo (total).

Acerca do tema, GIANESINI assim se pronuncia:

"O nunciado pode requerer ao juiz o levantamento temporário do embargo alegando, por exemplo, ser necessário terminar determinada fase da obra, sob pena de restar comprometido todo serviço. Provada esta circunstância, o levantamento do embargo visa única e exclusivamente a complementação ou execução do serviço reputado essencial, podendo ser caracterizado o atentado, na hipótese de ampliar indevidamente a autorização judicial".

A Procuradora do Município de São Paulo e professora da PUC mais longe e aduz que, "para obter o levantamento total do embargo o nunciado deve demonstrar, em especial, que a suspensão da obra está causando sérios e irreparáveis prejuízos, ligados à obra em si, não ao encarecimento do material ou da mão de obra".

No mesmo sentido, THEODORO JÚNIOR preleciona:

"Esse prejuízo, por sua vez, não é o que decorre da simples paralisação ou imobilização de recursos aplicados na construção. Se fosse assim, toda construção suspensa autorizaria a medida do art. 940 e o requisito legal se restringiria à prestação de caução. Logo, não teria sentido a exigência da lei de condicionar a retomada de andamento da construção a uma prova de prejuízo por parte do nunciado. Correta, pois, a lição de Adroaldo Furtado Fabrício, no sentido de que o prejuízo a ser provado não é da parte, mas da obra em si, o que ocorrerá quando, pelo estágio da construção, ou por sua natureza, não possa ela suportar paralisação sem danificar-se seriamente".

É compreensível e prudente que o magistrado levante o embargo diante da prova de que o prejuízo causado ao nunciado com a paralisação da obra (inutilidade dos materiais em razão da demora, insegurança da construção ou demolição, instabilidade do local da obra, etc.) é maior, quando confrontado com aquele sofrido pelo nunciante.

Observe-se, porém, que o juiz não está obrigado a deferir o pedido do réu, levantando o embargo. Trata-se, sim, de uma faculdade submetida ao livre convencimento e prudente arbítrio do julgador.

Contudo, enquanto vigente o embargo, poderá o réu postular o prosseguimento da obra, "desde o instante mesmo em que se completa a diligência de cumprimento do mandado inicial, mesmo antes da contestação e até mesmo da citação. (...) Nada importa que o julgamento do mérito penda de recurso".

Temos por certo que, concedida a liminar, poderá o nunciado, a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, requerer o prosseguimento da obra, desde que, para isto, preste caução e demonstre o prejuízo resultante de sua suspensão. Neste contexto, "além de provar o prejuízo, o nunciado deve, para o levantamento do embargo parcial ou total, prestar caução, que pode ser real ou fidejussória".

A caução, que há de ser idônea e suficiente, pode, ainda, ser prestada por terceiro (a construtora, por exemplo) que tenha interesse no prosseguimento da obra, mas não pode ser concedida de ofício, exigindo-se o pedido expresso do nunciado.

Contudo, THEOTONIO NEGRÃO traz à colação julgado onde não se reconhece o construtor como parte legítima para a prestação de caução (RT 506/106, RJTJESP 46/215).

Temos, porém, que o melhor entendimento é aquele que vê no construtor parte legítima para a referida prestação.

Em qualquer caso, a caução tem por objetivo garantir os custos da demolição ou reconstrução que se fizerem necessárias, no caso de procedência do pedido, quando, então, se dará a execução na forma de obrigação de fazer.

De igual sentir, FABRÍCIO faz, ainda, preciosos esclarecimentos:

"A suspensão da eficácia do embargo expõe o nunciante, pela retomada do andamento da obra, aos danos cujo temor fundamentará o deferimento da inicial da medida. A caução tem por fim não apenas assegurar a indenização desses danos, se ocorrerem, como também o custeio das despesas de demolição, reconstrução ou modificação daquilo que se faça em razão da excepcional autorização. Há certa semelhança aí com a cautio damni infecti, na medida em que representa garantia da possível indenização de dano futuro; mas há também um plus, pois a caução substitutiva há de assegurar, mais, o custo do desfazimento do que se venha a fazer em razão da suspensão do embargo".

A referida caução, entretanto, será sempre prestada em primeiro grau – juízo de origem – ainda que o processo se encontre no Tribunal (art. 940, §1º).

A fixação de seu valor será obtida através de procedimento cautelar, sem suspensão do processo principal, autuado em apartado, apenso ao principal (arts. 809 e 826 a 838). A correspondente decisão será proferida através de sentença, impugnável por meio de apelação, destituída de efeito suspensivo (art. 520, IV).

Exige-se, pois, no procedimento cautelar utilizado para a prestação de caução, a citação do nunciante para contestar o pedido, com fiel observância do contraditório, não se admitindo o deferimento ou indeferimento liminar do pleito, pelo julgador, à vista de simples petição e sem audiência da parte contrária. Se assim não fosse, estar-se-ia provocando o cerceamento de eventual debate sobre importantes questões, tais como, o valor, o modo de prestação, o prazo de sua eficácia, a eficiência da caução, o cabimento da própria medida, etc. Normalmente as partes dissentem sobres estes aspectos, que são relevantes, daí não se poder subtrair do procedimento este debate.

Por outro lado, é de se notar que o valor da caução vai depender do custo necessário para suportar os gastos para retornar ao status quo ante, bem como para a composição das perdas e danos, se houver.

Quanto ao tema, cabem, aqui, mais uma vez, as ponderações de A. F. FABRÍCIO:

"O valor da caução, como sempre, é função de sua finalidade. No caso, como se trata de garantir eventuais indenizações e o custo do desfazimento da obra é o vulto desta e a extensão dos prejuízos possíveis que fornecerão as coordenadas para a estimação do valor necessário. Uma sugestão de ordem prática é a de aproveitar-se a perícia, que para outros efeitos de prova se realize, a fim de também estimar o valor dos danos que para o nunciante possa acarretar a continuação da obra. De qualquer modo, é claro que a estimativa envolverá sempre um juízo de probabilidade, e nunca de certeza, eis que se refere a fatos ainda não ocorridos e de incerta ocorrência".

Como dissemos, o valor da caução deve possibilitar o retorno efetivo e satisfatório ao status quo ante. Naturalmente, a caução inidônea ou insuficiente não terá o condão de garantir o retorno ao estado anterior das coisas, daí a necessidade de uma adequada fixação de seu quantum.

Por outro lado, o juiz não está obrigado a deferir a caução, quando houver possibilidade de prejuízos de difícil ou de impossível reparação in natura.

Em nenhuma hipótese terá lugar o prosseguimento da obra quando esta for levantada contra determinação de regulamentos administrativos (art. 940, §2º), "ainda que o autor seja o particular, sendo manifestamente ilegal a decisão que a conceder, passível, portanto, até de mandado de segurança, para que se dê efeito suspensivo ao agravo de instrumento". Hoje, porém, basta requerer ao relator o que atribua efeito suspensivo ao agravo interposto, na forma do art. 558 do CPC.

GIANESINI vê como excepcional a hipótese em que não se admite a prestação de caução substitutiva e, via de conseqüência, o levantamento do embargo. Explica-nos a insigne jurista que "em uma única hipótese está vedado ao juiz deferir o levantamento do embargo: a obra estar sendo erigida em desconformidade com as leis que regulamentam o direito de construir".

Em verdade, a proibição em relação a essas "obras que não admitem prosseguimento" tem sua razão de ser no motivo e fundamento do embargo e não na qualidade do nunciante. Estar-se-ia violando regulamentos administrativos e disposições legais sobre política de construções e, por isso, a caução substitutiva é inadmissível.

A este respeito, não poderia faltar a lição de A. F. FABRÍCIO:

"A inspiração do dispositivo é claríssima. Não poderia o Direito autorizar o prosseguimento de obra que se tem, ao menos provisoriamente, por empreendida com infração de regras regulamentadoras do direito de construir, que o próprio Poder Público editou. Não se trata de um privilégio instituído em favor da Fazenda Pública, mas de atenção ao grau de interesse público envolvido na questão".

GIANESINI também confirma este entendimento. Senão, vejamos.

"A razão é simples, o prosseguimento da obra agravaria a infração à lei, não se podendo permitir validamente a prática de ilícito. O interesse público deve prevalecer sobre o individual. Não se pode permitir a conclusão de obra em desacordo com as regras relativas ao direito de construir".

A vedação, que se aplica tanto às ações intentadas pelo Poder Público quanto às propostas por particulares, está relacionada, como pudemos comprovar, à predominância do interesse público sobre o particular. O argumento, obviamente, é plausível e justifica bem a opção do legislador.

Em qualquer caso, a decisão que concede ou indefere o pedido de levantamento do embargo desafia o recurso de agravo de instrumento.

Visto isso, passemos ao estudo da sentença que julga a ação de nunciação de obra nova e à forma de sua execução.

5.5. Sentença e execução

A desobediência à ordem de paralisação da obra nova importa, a qualquer momento, na cominação de multa e na obrigatoriedade da volta ao estado anterior – status quo ante - o que se faz por execução de sentença, podendo se verificar, entretanto, a necessidade de justificação prévia, mesmo porque o condenado, às vezes, não desrespeita a ordem judicial, mas continua a obra, com inteira adaptação a ela.

A sentença que julga procedente a nunciação de obra nova é, pois, condenatória com efeito mandamental. Havendo pedido de cominação de pena, há também efeito declaratório de teor cominatório.

Outra não é a opinião de GRECO FILHO, para quem

"a execução da sentença, como no caso das possessórias, se faz por mandado, ordem do juiz, independentemente de processo de execução, porque a sentença tem força executiva, salvo a condenação por perdas e danos que adota o procedimento da execução por quantia após a competente liquidação".

Assim ocorre, neste último caso, porque as perdas e danos decorrentes da violação do preceito definitivo são apuradas em ação autônoma, cuja competência foi preventa por acessoriedade (art. 108).

FABRÍCIO, entretanto, faz um alerta:

"As perdas e danos a que se refere o art. 936 são as defluentes da obra empreendida em detrimento do autor. Não seria de admitir-se a cumulação – excepcionalíssima, porque incompatível com as exigências do art. 292, §1º, III, e §2º - quando as perdas e danos fossem outros, sem relação com o objeto do pedido principal. Se não havia obra nova embargável, por outro lado, e por isso a ação foi julgada improcedente, não podem existir perdas e danos decorrentes dela. Há, pois, uma relação de dependência, de acessoriedade, que impossibilita de prosperar o pedido do art. 936, inciso III, quando fracassa o do inciso I do mesmo artigo".

THEODORO JÚNIOR, por sua vez, parte do argumento de que são vários os pedidos que se cumulam na ação de nunciação de obra nova (paralisação da obra em curso, demolição da edificação já erguida, reparação de perdas e danos) e explica que a sentença poderá, então, acolher ou rejeitar todos, ou admitir uns e rejeitar outros. Por esta razão, assevera o mestre:

"A natureza da sentença variará conforme o teor da matéria solucionada. Em face do embargo, predominante é o seu caráter executivo, pois o julgado se cumpre imediatamente. Sem necessidade de actio iudicati. Diante da ordem de demolição e de ressarcimento dos danos, sua natureza é condenatória e seu cumprimento dependerá de novos processos de execução de obrigação de fazer e de execução por quantia certa, respectivamente. É declaratória negativa a que rejeita qualquer dos pedidos cumulados na operis novi nuntiatio".

Na verdade, como bem observou o processualista mineiro, a sentença poderá deferir o embargo e indeferir a demolição, por ter sido a obra suspensa antes de invadir o terreno do nunciante; poderá, por exemplo, deferir o embargo e não fazê-lo quanto ao pedido de ressarcimento por perdas e danos, por falta de prova de prejuízo suportado pelo autor; poderá, ainda, denegar o embargo, porque a obra se concluiu antes do ingresso em juízo, porém acolher a pretensão de demolir e a de ressarcir danos. Como se vê, várias são as possibilidades.

Certo é que a natureza da sentença variará conforme o teor da matéria solucionada.

Por outro lado, a despeito da opinião de E. F. SANTOS, para quem, em sendo vários os proprietários, todos os donos da obra devem ter sido citados, pois se trata, segundo o autor, de hipótese de litisconsórcio unitário e necessário, onde a não-citação de um que seja torna ineficaz a sentença, comungamos do entendimento de Rita Gianesini, segundo o qual, no caso de a obra ter vários donos, a ação nunciativa poderá ser proposta contra qualquer deles, pois trata a hipótese de litisconsórcio facultativo. Este último entendimento, cremos, é o melhor.

Cumpre observar, ainda, que, ao contrário da sentença que julga o processo cautelar utilizado para a fixação da caução substitutiva – que desafia apelação destituída de efeito suspensivo – temos que julgada improcedente a ação nunciatória, a apelação interponível é dotada de efeito suspensivo.

A. F. FABRÍCIO assim o confirma, nos seguintes termos:

"Julgada improcedente a ação, a apelação interponível tem efeito suspensivo. Não se pense em incidência do art. 520, IV, como se o processo fosse cautelar, embora o procedimento corresponda, em parte, ao das ações cautelares. Ora, suspensos os efeitos da sentença, perdura o embargo inicialmente deferido, cessando apenas quando a sentença transite em julgado".

Pois bem. À luz de todo o exposto, resta-nos agora concluir o presente trabalho. É o que faremos no tópico seguinte.

 

6. CONCLUSÃO

Como vimos no início deste estudo, a partir de 1988, com a Constituição da República, o direito de propriedade – direito subjetivo por excelência na órbita patrimonial – passou a ser compreendido como uma complexa situação jurídica subjetiva. Surgiu, assim, uma nova concepção de propriedade, irradiada e condicionada pelo princípio da função social.

O ordenamento jurídico, com isso, reconheceu que o exercício dos poderes do proprietário não estava a merecer proteção simplesmente para a satisfação do seu interesse pessoal, mas, sim, para sua efetiva integração à coletividade, com vistas à realização de um interesse que se mostrasse mais útil, mais amplo, mais relevante enfim.

Neste contexto, a função social da propriedade, traçando um modelo comportamental regular para o proprietário, exige que este se conduza de forma a realizar interesses sociais, além daqueles que normalmente inerentes ao direito de propriedade. Isto, contudo, não faz com que o proprietário se veja privado do bem que lhe assegura as faculdades de uso, gozo e disposição.

A despeito de o princípio da função social condicionar a propriedade como um todo, e não apenas o seu exercício, alcançando mesmo o uso, gozo, a disposição e até o modo de sua aquisição, a propriedade se mantém privada e livremente transmissível, não se verificando qualquer "esvaziamento" de seu conteúdo privado, mas, apenas, a sua inserção numa perspectiva socialmente mais ampla.

Vimos, também, que a função social da propriedade não se confunde com as limitações impostas pelo ordenamento jurídico ao direito de propriedade, que tem direito de construir um de seus consectários. Estas limitações apresentam conteúdo negativo, de proibição, abstenção, atingindo o exercício do direito de propriedade, ao passo que na chamada função social da propriedade – de conteúdo positivo – o que se atinge é a própria essência da propriedade, importando na implementação de medidas que impulsionem a adequada exploração econômica, através da produção de bens e circulação de riquezas.

Como era de se esperar, a propriedade imobiliária também se sujeitou a estes condicionamentos. A Constituição da República se encarregou de submeter a propriedade imóvel urbana e rural ao cumprimento da sua função social. No presente estudo, porém, privilegiamos a sua influência sobre a propriedade imobiliária urbana, posto que é nas grandes aglomerações urbanas que a convivência e, via de conseqüência, os conflitos entre os homens são mais freqüentes.

Lamentavelmente, a noção da função social da propriedade ainda é em grande medida um discurso a ser concretizado, já que a ação efetiva dos setores privados ligados ao processo de desenvolvimento urbano tem se pautado pela ultrapassada, mas resistente, noção clássica - individualista-romana - do direito de propriedade.

De qualquer modo, o advento do "Estatuto da cidade" já significa uma valiosa contribuição para a consolidação da ordem constitucional no que tange ao controle jurídico do desenvolvimento urbano, com vistas a reorientar a ação do Poder Público, do mercado imobiliário e da sociedade em geral à luz de novos critérios econômicos, sociais e ambientais. Trata-se, pois, de diploma imprescindível para a definitiva consolidação da função social da propriedade.

Por outro lado, graças ao perfil que recebeu de nossa Carta Magna, o Município guarda mais íntimas relações com a tarefa de fiscalizar e garantir o cumprimento da chamada função social da propriedade. Embora a Administração Pública da União, Estados, Distrito Federal e Municípios tenha também interesse em ver cumprida a função social da propriedade, porque a todos estes incumbe o dever de velar pelo bem-estar social, nos limites de suas atribuições institucionais, são estes últimos – os Municípios - que, mais comumente e de forma imediata, se vêem às voltas com o imperativo de assegurar o seu cumprimento.

Sob esta ótica, é de se ver que também as regras restritivas ao direito de construir promanam em muito maior número, embora não com exclusividade, dos Municípios. Tal se dá porque a construção afeta mais de perto os interesses locais, e, por isso mesmo, a maioria de suas normas são oriundas do Município, que regulamenta as obras em seu território e sobre elas exerce intensa fiscalização. Se isso não bastasse, a União e o Estado-membro normalmente delegam poderes ao Município para a inspeção das habitações, no que tange à observância das normas sanitárias federais e estaduais. Todos estes elementos explicam por que, na prática, aparece o Município como entidade preponderantemente policiadora da construção.

Certo é que, também o direito de construir, por estar diretamente ligado ao direito de propriedade e sofrer a influência inafastável, irresistível, do princípio da função social, deve ser inserido num contexto mais amplo, atual e também complexo. E, embora "função social" e limitações ao direito de propriedade não se confundam, como já afirmamos, é inegável que se influenciam reciprocamente, complementando-se.

Por outro lado, podemos nos referir às restrições de vizinhança e às limitações administrativas, onde se inclui o condicionamento do direito de construir e do uso da propriedade à sua função social, sob a denominação de "normas legais da construção".

Normas legais de construção seriam, então, o conjunto das prescrições expressas em lei ou regulamento, visando à ordenação individual da obra ou à sua adequação ao meio social. Nelas estão compreendidas as normas civis, que regulam o direito de construir nas suas relações entre vizinhos (as restrições de vizinhança consubstanciadas no Código Civil - arts. 554 e 588) e as normas administrativas (limitações administrativas), que se destinam a proteger os interesses da coletividade, condicionando, inclusive, o direito de construir e o uso da propriedade à sua função social (Constituição Federal, arts. 5°., XXIII, e 182, §2°.). Estas últimas se consubstanciam em imposições de ordem pública, encontrando-se dispersas na legislação protetora da comunidade, notadamente no Código Sanitário, no Código de Obras, nas leis de zoneamento, assim como em outros diplomas.

Temos, pois, nesta ordem de idéias, que a ação de nunciação de obra nova se apresenta como instrumento processual hábil, a par de outros de natureza administrativa, civil, constitucional e tributária, postos à disposição do Poder Público, especialmente municipal, a garantir o cumprimento da função social da propriedade imobiliária urbana pelo particular, quando este construir em desrespeito às normas legais da construção, elaboradas em consonância com o Plano Diretor do Município.

É corriqueiro no meio urbano, que o interessado inicie construção sem qualquer tipo de projeto ou mesmo comunicação à autoridade pública, resultando, daí, obras clandestinas ou, no mínimo, irregulares, destituídas, via de regra, de um responsável técnico e que colocam em risco não só a segurança, em si, das mesmas, como também dos prédios vizinhos e dos transeuntes. Nestes casos, é comum a inobservância da legislação pertinente ao direito de construir e ao direito de vizinhança, o que autoriza o embargo pelo prejudicado.

Na verdade, as construções em desacordo com as restrições de vizinhança ou infringentes de normas administrativas, guardadas as peculiaridades de cada caso, podem dar ensejo a várias ações: ação de nunciação de obra nova, ação demolitória ou ação de indenização, admitindo-se desde logo, o embargo da construção em andamento.

Se já era assim muito antes de nosso ordenamento jurídico ter se robustecido com o advento de importantes normas sobre Política Urbana, tais como o "Plano Diretor" e o "Estatuto da cidade" e, principalmente, com a exigência constitucional de que a propriedade cumpra sua função social, o que dizer hoje!

É possível mesmo entender que, a partir da Constituição Federal de 1988, o direito de propriedade imobiliária urbana só é assegurado quando esta cumprir a sua função social que, por sua vez, é aquela determinada pela legislação urbanística, sobretudo no contexto municipal.

Tendo em vista estes aspectos, cremos, a ação de nunciação de obra nova, mais que nunca, se vê revigorada. Se, no passado, o referido instrumento já se mostrava eficiente, há de ser ainda mais, nos dias atuais!

Contudo, para o manejo da ação nunciatória, o Município deve demonstrar, tão somente, que a construção nova está sendo realizada com desprezo à lei, regulamento ou postura municipal, para utilizarmos a terminologia do legislador processual de 1973. A lesividade, neste caso, assim como o prejuízo, vem presumida na lei, ficando o ente municipal, então, dispensado de prová-la.

Diversamente, se é um particular a ajuizar a ação nunciatória, deverá demonstrar, além da violação do preceito administrativo, que adveio da obra nova um real e efetivo prejuízo ao seu prédio. Contudo, este será facilmente apurável em situações de desrespeito a zoneamentos urbanos, onde a introdução de certos tipos de construção não só compromete o bom uso das edificações existentes como também as desvaloriza comercialmente.

Por outro lado, o licenciamento administrativo das obras se apresenta como um dos meios de que o Poder Público se utiliza para impor e controlar a observância das normas técnico-legais da construção.

Assim, desde a elaboração do projeto até a conclusão da obra, a construção fica sujeita à fiscalização da autoridade competente, que, para o início da edificação, expede o alvará de construção e, para o início de uso da obra concluída, expede o alvará de ocupação ou auto de vistoria, mais conhecido por "habite-se".

Esse policiamento da construção, que pode alcançar tanto as obras urbanas como as edificações rurais, já que umas e outras têm profundas implicações com o bem-estar do indivíduo e da coletividade, tem se verificado apenas no meio urbano, por descaso das Administrações.

Obviamente, uma obra realizada em desacordo com as normas legais que disciplinam a construção não cumpre sua função social, motivo pelo qual vislumbro a ação de nunciação de obra nova como instrumento processual hábil, posto à disposição do Município, a garantir-lhe o cumprimento.

Também o princípio da atuação auto-executória da Administração faz do manejo da ação nunciatória uma das alternativas legais de que dispõe a Administração para impedir a obra clandestina, irregular ou descumpridora de sua função social, podendo utilizar-se, desde que exista lei municipal, do embargo administrativo sob pena de multa e desobediência.

A despeito de o ideal ser a utilização freqüente e eficiente, pelo Município, de seu Poder de Polícia das Construções que, em matéria de habitações, é amplo, possibilitando o acompanhamento da execução da obra e vistorias posteriores à sua conclusão, desde que o Poder Público suspeite de insegurança ou alteração das condições de higiene e salubridade, sempre exigíveis, tem se verificado a necessidade de o ente municipal vir a juízo para fazer valer suas prescrições.

Assim, em se verificando a inocuidade do processo administrativo, reflexo da desatenção do munícipe na persistência da transgressão aos termos da legislação municipal, continuando, pois, a construção irregular, também chamada de clandestina, é a hora e a vez de o Município ajuizar a ação de nunciação de obra nova.

Cumpre observar, entretanto, que o Poder Público fica dispensado de ratificar o embargo administrativo, realizado no exercício de seu poder de polícia.

Por outro lado, não se pode negar que as normas legais da construção criam uma expectativa nos administrados, no sentido de que serão fielmente cumpridas, frustrando-se essa expectativa quando, contra aquelas normas, alguém realize obra nova.

Assim, também por este motivo, é de se reconhecer ao particular o direito subjetivo de se insurgir contra uma obra nova que lhe prejudica, alegando, para isso, que a mesma contraria leis, regulamentos e posturas municipais. Poderá sustentar, ainda, que a referida construção não se encontra em harmonia com o Plano Diretor municipal, ou com o Estatuto da cidade e que não cumpre sua função social, ou seja, que a obra contraria normas urbanísticas de uma forma geral.

O tema, como afirmamos em outro momento deste estudo, é complexo. Seja como for, entendemos que as normas de Política Urbana, em conjunto com as normas e regulamentos administrativos que tratam do direito de construir, formam um sistema, de modo que a construção irregular ou clandestina, quer prejudique ou não, diretamente, um vizinho, não se limita a violar esta ou aquela norma, mas todo o sistema. Este, naturalmente, deseja e busca o cumprimento da função social da propriedade que, a seu turno, é um inafastável princípio constitucional, aplicável também à propriedade imobiliária urbana.

É de se ver, então, que as normas legais da construção, assim como as normas relativas à Política Urbana, não admitem descumprimento. Caso isto ocorra, de modo a afetar o vizinho, ainda que simplesmente desvalorizando imóvel seu, o prejudicado poderá, para evitar que seu prédio sofra desvalorização devida à construção ilegal, tomar várias medidas judiciais, inclusive ajuizando a ação de nunciação de obra nova.

À vista do exposto, tem o particular legitimidade para ajuizar a ação nunciatória, cobrando do vizinho o cumprimento de normas administrativas, posto que é titular do direito subjetivo de exigir de seu vizinho o respeito às leis urbanísticas em matéria de construção e, ainda, em razão de que os regulamentos administrativos integram o art. 572 do Código Civil, quando condicionam o direito de construir às exigências das regras de convivência de vizinhança.

Assim, vê-se que proprietário e possuidor, além do Município, apontado como protagonista neste estudo, têm igualmente legitimidade para ajuizar a ação nunciatória com fundamento no descumprimento de normas urbanísticas.

Evidentemente, quando um particular o fizer, terá, como afirmamos, a necessidade de provar um prejuízo seu e não, simplesmente, fazer as vezes da autoridade municipal. Nada obsta, porém, que invoque a seu favor a desconformidade da obra nova em relação às normas urbanísticas. Em qualquer caso, poderá manejar a ação nunciativa provando prejuízo seu.

O entendimento por nós sustentado, cremos, privilegia e reforça o aspecto sistemático do corpo normativo que disciplina a matéria, no qual os regulamentos administrativos integram o art. 572 do Código Civil de 1916 e, acrescentamos, o art. 1.299 do novo estatuto civil, sem prejuízo das disposições contidas na Constituição da República e nas constituições dos Estados sobre Política Urbana, incluindo-se, aí, o Plano Diretor e o Estatuto da cidade.

Não há, insistimos, qualquer incompatibilidade entre as restrições administrativas ao direito de construir e a função social da propriedade. Ao contrário, guardam entre si uma salutar relação de complementaridade, indispensável ao desenvolvimento harmônico do meio urbano.

À luz de todo o exposto, concluímos, a ação de nunciação de obra nova surge revigorada, apresentando-se como instrumento processual hábil, a par de outros de natureza administrativa, civil, constitucional e tributária, postos à disposição do Poder Público, especialmente municipal, a garantir o cumprimento da função social da propriedade imobiliária urbana pelo particular, quando este construir em desrespeito às leis e regulamentos municipais, elaborados em consonância com o Plano Diretor do Município, assim como pelo próprio Poder Público.

O argumento não é de causar surpresa, pois é perfeitamente possível que a União, o Estado ou o próprio Município construa em contravenção da lei, de regulamento, postura ou outras normas urbanísticas. E, também, porque tanto o particular quanto o próprio Poder Público, por meio de seus órgãos, estão sujeitos à observância das normas contidas no Plano Diretor e, assim, obrigados a dar cumprimento à função social da propriedade.

Temos por certo que, nem mesmo estas pessoas jurídicas de direito público, quando rés, podem afrontar a lei a pretexto de prevalência do interesse coletivo que, neste caso, se mostra ausente. Desse modo, podem figurar no pólo ativo ou passivo da relação processual instaurada com o ajuizamento da ação de nunciação de obra nova, devendo mesmo serem as primeiras a dar o exemplo e cumprir a função social da propriedade.

Podemos, ainda, chegar às seguintes conclusões:

1. A ação nunciatória, por não visar a proteção da posse, mas, sim, evitar o prejuízo causado ao nunciante pela obra nova, não pode ser enquadrada entre as ações possessórias e, a despeito de a concessão do embargo implicar numa antecipação da eficácia da decisão, não possui caráter propriamente cautelar do processo cautelar. A ação nunciatória, não se restringindo ao embargo, objetiva, também, a condenação ao desfazimento da obra e à indenização, daí ser um procedimento "especial".

2. Seus requisitos essenciais, como vimos, são: obra iniciada, embora não concluída, causadora de prejuízo ao prédio vizinho. Obra nova é, pois, uma inovação física, material, feita pelo homem, daquilo que existe. Só a obra efetivamente iniciada pode ser embargada.

3. Concluída está a obra que se encontra em condições de utilização, assim reconhecido pela autoridade competente por meio do "habite-se". Este, ao lado da licença de obras, consiste num dos mais importantes instrumentos de controle público, posto que impede a utilização de obra realizada em contraste com o Plano Diretor. Assim, enquanto a obra não estiver juridicamente terminada poderá ser embargada. Não basta, pois, que a obra esteja carente, apenas, de serviços de acabamento ou de pouca monta.

4. O prejuízo causado ao prédio vizinho – prédio próximo – à obra nova, deve ser real, efetivo, concreto.

5. Por não ser uma ação real imobiliária, inobstante a disposição do art. 95 do estatuto processual, mas pessoal, pouco importa o estado civil do nunciante ou do nunciado.

6. Pode o particular, como vimos, preenchidos os demais requisitos, propor a ação de nunciação de obra nova com fundamento nas normas legais da construção. É de se lhe reconhecer legitimidade para tanto.

7. O art. 934, III do CPC deve ser interpretado no sentido de incluir o Estado e a União como sujeitos ativos da ação nunciatória.

8. Sujeito passivo é o dono da obra, ou seja, a pessoa física ou jurídica responsável pela sua existência.

9. Caso o juiz julgue inconveniente demolir a obra, condenará, preenchidos os requisitos da ação de nunciação de obra nova, o nunciado a reparar os danos causados, além dos prejuízos já concretizados.

10. É possível o embargo extrajudicial da obra nova, que deve ser ratificado em juízo. Os efeitos da ratificação, contudo, retroagem à data de sua efetivação

11. O indeferimento do pedido de embargo da obra não importa necessariamente em extinção do processo sem julgamento do mérito, tendo em vista os demais pedidos, que podem ser cumulados na forma do art. 936 do estatuto processual.

12. O embargo pode ser levantado mediante a prestação de caução idônea e suficiente. É possível, ainda, verificar-se o prosseguimento da obra em razão da não concessão do embargo. Não pode o nunciante ser prejudicado no caso de a obra, na data da sentença, estar concluída.

13. Em nenhuma hipótese se admite o levantamento do embargo quando a obra estiver sendo executada em contravenção às leis que disciplinam o direito de construir, ainda que o Poder Público seja o nunciante.

 

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* Advogado em Belo Horizonte, pós-graduando em Direito Processual Civil.

 

 

Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5282>. Acesso em: 08 ago. 2006.