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DIREITOS HUMANOS DO DEVEDOR

 


                                                                                                   Fernando Rodrigues Martins*


 SUMÁRIO: 1. Nota introdutória – 2. O direito privado no Brasil – 3. Direitos humanos e direitos humanos privados – 4. O direito privado e a personalidade – 5. Algumas hipóteses de desrespeito às cláusulas gerais de tutela dos direitos humanos privados - 6. O direito processual em face do devedor – 7. Conclusões. Bibliografia.




1. Nota introdutória



Sabe-se que o grande mote do Welfare State tem como assento pôr termo às desigualdades sociais ou, pelo menos, a mitigação das diferenças dos diversos segmentos da sociedade. Tal evidência tanto se reflete a partir do campo do direito público, bem como na seara do direito privado. Prova disso, é que nos países desenvolvidos e democráticos a precipitação na tutela do cidadão é uma luta constante[1].

Entrementes, esse desejo de igualdade e justiça social distributiva passa por uma série percalços que não autorizam o grito de vitória da cidadania. Ao contrário, a exemplo do Brasil, inúmeros outros países em estágio de pré-colapso social experimentam cada vez mais o desnivelamento das classes sociais, principalmente na América do Sul onde há uma distância digna de recorde entre a classe considerada média com as outras que vivem à margem da sobrevivência, excluídas e em plena miséria. Princípios tímidos de cidadania em países tais e quais podem ser vistos apenas nas classes menos depauperadas, porque as outras nem classes são.           



Na teoria, alguns avanços são conquistados, como o fortalecimento de Estados mediante Constituições democráticas. Busca-se estabelecer conceitos e princípios de direitos fundamentais aos cidadãos, quase sempre plasmados em estudos de direito comparado e na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948. Na prática, poucos avanços são efetivamente considerados, porque os textos normativos que garantem os direitos humanos não estão indenes ao descumprimento, até mesmo judicialmente.



Efetivamente, vê-se um choque entre o direito que deveria ser e o direito posto, que é. Nem se diga, por fim, que os avanços tenazes no campo da tecnologia tem influído cada vez mais na idéia de dicotomização não só das classes sociais, como do próprio direito.



O ensaio tem por objetivo mostrar que mesmo diante uma plêiade de instrumentos legais protetivos aos mais desvalidos, neste caso principalmente os devedores, o sistema jurídico mostra-se falho e omisso em seu desiderato, o Estado de Bem-Estar Social.





2. O direito privado no Brasil   





Nos bancos acadêmicos remarca-se na maioria das aulas introdutórias uma diferença entre o direito público e o direito privado, de forma sempre a indicar que o primeiro destina-se a contemplar as relações do Estado com poder de autoridade e o segundo a regular as diversas situações entre indivíduos perante a sociedade. Nunca é demais relembrar que até há bem pouco tempo tergiversava a doutrina quanto a natureza do direito trabalhista, se público ou privado ?           



Aliás, tenha-se como fato preponderante de referida dicotomia a própria legislação vigente até treze anos atrás em que restava mitigada a defesa dos direitos humanos por ausência de uma Constituição oriunda do regime democrático e de outro lado (entre nós, ainda hoje) o que considera-se a constituição dos direitos privados, nosso Código Civil.



Assim, inscreve-se a realidade de que os diplomas que tratam do direito privado no Brasil, não fossem legislações extravagantes e a outorga da Magna Charta em outubro de 1988, estariam ligados a tão-somente ao Código Comercial que data do século retrasado e ao próprio CCB de 1916.       



Não se olvide, porém, que o advento de uma legislação extravagante e da própria CF pôs fim à discrepância entre o direito público e o direito privado. Veja-se, a contento, o disposto no art. 170 da novel Constituição Federal que ao mesmo tempo em que dá abrigo à livre concorrência e à propriedade privada, estabelece que todo mercado privado deve observar a defesa do consumidor, a soberania nacional, a função social da propriedade, a redução das desigualdades sociais, defendendo-se o pleno emprego, o meio ambiente e as empresas nacionais de pequeno porte.



Posto isto, de concluir que o direito privado não é mais o mesmo, senão uma nova disciplina autônoma que é forjada pela própria distribuição de renda. É por assim dizer o direito econômico, sujeito em determinadas circunstâncias ao controle estatal.[2]



Veja-se, por último, que o art. 1º do CDC trata referido diploma como sendo de ordem pública e de interesse social, portanto cogente. Assim, mesmo que norma de ordem pública, regula o CDC uma série infindável de relações entre particulares na sociedade.





3. Direitos humanos e direitos humanos privados





As quatro gerações de direitos humanos fundamentais e conhecidas mundialmente dividem-se em direitos humanos de liberdade (primeira geração), de igualdade ou sociais (de segunda geração), de solidariedade ou difusos e coletivos (de terceira geração) e de biogenética (quarta geração).          



Pode-se frisar, por isso, que a idéia de direitos humanos não se prende à liberdade, mas a outros ideários constantes da vida do cidadão, tal e qual à cultura, à economia, aos direitos sociais e também ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio público e, por fim, à possibilidade de morrer sem ser clonado.          



Considerados esses os direitos humanos que froteiriçam o poder do autoridade do Estado com o cidadão, salutar entender os direitos humanos que divisam indivíduo versus indivíduo.



Necessário, no entanto, relembrar o contorno da formação privatista no direito pátrio como escorço histórico. O Código Civil brasileiro tem nascedouro no movimento iluminista do final do século XVIII e início do século XIX e berço na França de Napoleão Bonaparte, onde valorizava-se, sobretudo, a vontade do indivíduo frente ao Estado (que naquela época deixava de ser absolutista !!!). A tanto se vê que nosso Código Civil, Lei Federal nº 3071 de 1º de Janeiro de 1916, quando passou a viger já tinha os ideários que o inspiraram como ultrapassados na Europa, ou seja, um monossistema que ainda contemplava a soberania da vontade dos contratantes, subjugando uma parte fraca a outra mais favorecida. Por isso, ao longo de qualquer compêndio do Código Civil encontra-se uma legislação complementar maior que o próprio projeto de Bevilacqua, dando-se vazão a um polissistema jurídico, a exemplo o próprio CDC.    



Hoje, deve-se perceber que os direitos humanos que inspiraram o constituinte pátrio de 1988 também compõem-se como cláusula geral para tutela de direitos privados, aqui tratados como direitos de personalidade ou direitos civis[3], já que a personalidade não pode ser vista, tão-somente, como capacidade de direitos e obrigações, mas, muito além disso, como direito à existência e as conseqüências de viver. Por isso, ao aplicar Código Civil busca-se sua interação sistemática com o principal fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, ex vi art. 1º, inc. III; com o objetivo da República Federativa do Brasil quanto a erradicação da pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais, ex vi art. 3º, inciso III da CF. Portanto, inscreve-se nova temática no quadro jurídico nativo, cabendo ao operador da lei utilizar como tecido hermeneuta os artigos da CF acima colacionados para a melhor forma de interpretar todo o ordenamento jurídico e consequentemente humanizar o direito privado – já de muito foi-se a era do pacto sunt servanda!!! [4]  



Por isso, arrisca-se enfatizar que não fosse parcela rara da doutrina civilista adotar essa novel concepção quanto ao direito de personalidade e a partir de então passar a influir juízes mais avançados, intelectualizados e preocupados com as desigualdades sociais, teríamos um direito privado primitivo privando direitos do cidadão moderno.





4. O direito privado e a personalidade  





O direito privado inicialmente dispensou tratamento à personalidade como simplesmente a capacidade de ter direitos e obrigações. No Brasil, a partir da década de quarenta juristas de relevo passaram a doutrinar o contrário, anotando que a personalidade seria um conjunto de atributos inerentes à pessoa humana, relacionada ao homem vivo.[5]



Seriam, atualmente, os direitos de personalidade aqueles respeitantes à integridade física, à defesa da honra, da imagem, da liberdade, entre outros elementos desde que entre os particulares. Veja-se, por exemplo, a propriedade. Absoluta era sua característica, conforme anotado no art. 524 do Código Civil. Entanto, o advento da CF tornou-a relativa a um cumprimento de uma função social, em pleno capítulo que trata dos direitos e garantias fundamentais (CF 5º XXIII). Portanto, a propriedade como um mero esquadro, simples quadrado, cinza, hoje tem por obrigação estar colorida com o compromisso social de ser realmente uma habitação ocupada ou então estancar a fome da coletividade com plantações adequadas. Tanto isso é verdade, que em tempos atuais a propriedade urbana não pode ser motivo de especulação, compra de terrenos a espera de valorização, mesmo porque há ordem constitucional no sentido de determinar a construção compulsória sobre o bem imóvel, a progressividade em Imposto Predial e Territorial e ainda a desapropriação (CF 182).



De forma mais avançada tratou Pietro Perlingieri ao indicar que a personalidade não seria meramente um direito, mas sim um valor. Calha transcrever o entendimento do Professor da Universidade de Camerino: “A personalidade é, portanto, não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela. Tais situações subjetivas não assumem necessariamente a forma do direito subjetivo e não devem fazer perder de vista a unidade do valor envolvido. Não existe um numero fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor das pessoas sem limites, salvo aqueles colocados no seu interesses e naqueles de outras pessoas.”[6]         



Bem se vê, assim, a personalidade fixada doutrinariamente como interesse ou direito extrapatrimonial, oponível erga omnes, indisponível, irrenunciável e imprescritível.[7]



Anote-se que o tema atinente aos direitos de personalidade no Projeto do Código Civil, que possivelmente passará a viger no ano de 2002, terá capítulo especial. De registrar, porém que já está ele positivado em outro diploma legal: o CDC. Sobre isso de gizar que o art. 6º do diploma protetivo anota como princípios básicos para a defesa do consumidor o direito à vida, à segurança, à saúde, à honra, ou seja, concretizando os direitos fundamentais expostos no art. 5º da CF.[8]           



Mais que palpável, pois, a necessidade de tutela da personalidade.





5. Algumas hipóteses de desrespeito às cláusulas gerais de tutela dos direitos humanos privados





A teoria clássica civilista anotou que o contrato é lei entre os contratantes, porque desejo dos ex –adversos e produto de uma livre apreciação.



Todavia, a maioria das relações contratuais escapam, hoje, da órbita da livre manifestação, demonstrando uma vocação à preponderância de uma parte sobre outra e, por conseguinte, conseqüências desastrosas aos direitos humanos privados.     



Várias e variadas são as formas de quebra dos direitos humanos entre particulares por força de contratos esdrúxulos e suas interpretações tacanhas pelo Estado-Juiz, o que ocasiona, não raras as vezes uma dicotomia ainda maior nas diferentes classes sociais e demonstra a consolidação de um sistema paralelo ao Direito que concretiza a característica primaz brasileira aos olhos de qualquer pesquisa mundial: a desumana distribuição de renda.



A primeira hipótese advém do Decreto-lei nº 911/69. A alienação fiduciária é contrato pelo qual o credor-fiduciário exige como garantia do devedor-fiduciante a coisa objeto de financiamento, permanecendo o devedor como mero depositário do bem. Ocorre que esse instituto de garantia foi pontualmente criado no país com o objetivo oportuno de efetivar, com sucesso, o pagamento de prestação oriunda de financiamento. Estando o bem na posse do devedor, e esse em estado de inadimplemento de qualquer prestação, dá-se antecipadamente e por decisão judicial inaudita altera pars, sua busca e apreensão. Conquanto, concedida a liminar de busca e apreensão e não encontrado o bem objeto do contrato defere-se a constrição física do devedor, porque esse é considerado depositário infiel, mesmo sem ter celebrado contrato de depósito nos termos do art. 1.265 do CC. Observe-se, por isso, que o corpo e a liberdade do devedor respondem pela dívida, de maneira infundada. Isso já existiu em priscas eras, antes do advento da Lex Poetelia Papilia.



Mesmo em se considerando o disposto no art. 5º LXVII da CF, o Brasil tornou-se signatário posteriormente do Pacto de San José da Costa Rica, descabendo a tal prisão, por ser norma ulterior e de espírito compatível com a defesa da dignidade da pessoa humana. Remarque-se que o § 2º do art. 5º da CF eleva os tratados internacionais entre os quais a República Federativa Brasileira é parte, como direito fundamental. Por isso, entende-se que impossível a prisão do depositário infiel, podendo, ao nosso aviso, somente preponderar a prisão civil por alimentos, não excluída pelo aludido Pacto e cujo objeto da relação difere-se da alienação fiduciária. Já que nessa o escopo da prisão é proteger um bem material e corpóreo, enquanto na relação jurídica alimentar o desiderato é proteger a vida do credor de alimentos.



A considerar, portanto, que na pretensa alienação fiduciária não há contrato de depósito nos termos da lei civil, bem como a superveniência do Pacto assinado pelo Brasil, impossível dar guarida às pretensões usurárias das instituições financeiras em encarcerar o devedor, sob pena de ferir seu direito humano de liberdade.[9]



Outro levante mendaz diz respeito ao direito humano do consumidor no que respeita ao direito de escolha. Percebe-se que o nascedouro dos contratos de leasing no Brasil tiveram por objetivo o aluguel durante certo lapso de tempo de um determinado bem, e ao final do pagamento das prestações caberia ao arrendatário a opção de comprar o bem em fruição, essa é a razão de ser da Lei Federal nº 6.099/74. Conquanto a idéia inicial tenha acompanhado a tendência de outros países, a tecnocracia nacional dando ouvidos aos interesses não muito dignos de instituições bancárias acabou por criar um arquétipo defeituoso na construção dos contratos de arrendamento mercantil: o mais que famoso valor residual garantido (VRG). A edição da Resolução nº 980/84 permitiu o contrato ser desnaturado para simples compra e venda, admitindo a cobrança por parte da instituição arrendadora do VRG. Ocorre que tal possibilidade foi deferida apenas a uma parte, qual seja, os arrendadores, porque aos arrendatários foi retirado, na prática e pelo contrato de adesão, a possibilidade de pagar tão somente o aluguel. Portanto, suprimiu-se do devedor o direito de opção (escolha) ao final do contrato, nos termos do que informa o art. 6º, inciso II do CDC.[10]  



Ao arrepio dos direitos humanos do devedor ainda se igualam os contratos de compra e venda de bens imóveis com pacto de hipoteca celebrados à luz do Decreto-lei nº 70/66. Veja-se que referido diploma autoriza o leilão extrajudicial do bem imóvel adquirido pelo aludido contrato sem a interferência do Poder Judiciário. Aqui, resta mitigado o direito à ampla defesa e ao contraditório garantidos na Charta Magna, especialmente porque dificilmente a instituição financeira dará guarida à pretensão do devedor, inclusive na discussão dos encargos financeiros.[11]       



Mas a iniquidade não pára por aí. Vem sendo notado que alguns empreendimentos imobiliários são incorporados ou construídos diretamente para venda do consumidor com um único desiderato futuro: a rescisão contratual. Sabe-se que para cada desligamento e comercialização realizados pelo Sistema Financeiro da Habitação é exigido um padrão de mutuário, porque havendo uma finalidade social por parte do poder público o financiamento custodiado pelo setor não privado tenderá a auxiliar determinada classe social.



Frise-se, no entanto, que algumas empreendedoras imobiliárias dirigem a comercialização de unidade autônomas justamente a parte de consumidores que sequer conseguiram ter seus nomes aprovados para a contratação pelo SFH, ante aos requisitos exigidos dentre eles potencialidade de pagamento de prestações.       



A esse passo, a ilusão é uma só. Mediante publicidade, na maioria das vezes enganosa, anunciam a venda de unidade autônomas com prestações contratadas com base em salário mínimo, que é praxe vedada pela CF, mas otimizada ao consumidor de baixa renda. Com isso, sensibilizam notadamente essa parcela de ex–futuros mutuários rejeitada pelo SFH. Ocorre que, na celebração contratual, além da inconstitucional vinculação das prestações ao salário mínimo, superfaturam o valor do imóvel vendido, consignando como forma de cálculo para reajuste das prestações o sistema de amortização francês (tabele price), com os encargos vinculados ao INCC ou IGPM. Disso tudo, retira-se a conclusão lógica de que o devedor jamais consegue pôr fim ao contrato, até porque o saldo devedor contratado cresce geometricamente.



Tal praxe, restou difundida pelo país, mas logo encontrou óbice em ações de rescisão de contrato ajuizadas pelos próprios consumidores que exigiam a restituição das parcelas pagas com espeque no art. 53 do CDC.



Entretanto, o advento da lei 9514/97, que instituiu a alienação fiduciária de bem imóvel, teve em alvo contrapor a aplicação do art. 53 do CDC que garante a restituição de parcelas pagas em contrato cativo de compra e venda de imóveis. Por isso, tais construtoras atualmente convocam seus devedores para a modificação dos antigos contratos, permanecendo com a propriedade do imóvel (mesmo que resolúvel) e fornecendo ao contratante, além de um monte de papel, a posse sobre um imóvel inacabado.



O objetivo das construtoras quanto a novel lei é, como diz Cláudia Lima Marques, um só: “beneficiar-se do rápido e eficaz processo típico de alienação fiduciária, o qual permite a retomada do bem imóvel, com despejo do consumidor e sua família, se o devedor em mora e posterior venda em leilão”.[12]



Observe-se que o direito à propriedade do devedor restou mitigado ao interesse especulativo do construtor, bem como enganada a parte mais fraca contratual em face de quebra do dever da boa-fé objetiva pela contratada preponderante, ou seja, não houve um padrão socialmente recomendado de correção, lisura e honestidade.



Igualmente, entre particulares pode haver o descumprimento de cláusula geral de direitos humanos quanto à honra e à imagem. A prática mais difundida quanto a esse exercício nefasto é a negativação dos devedores junto aos órgãos de proteção ao crédito, entidades que por força do art. 43 do CDC foram hauridas como de direito público, muito embora fomentadas pelo interesse corporativo de instituições financeiras ou pontos de comércio.



Na lógica jurídica, a praxe da negativação estaria correta, pois cabe ao órgão constritor da imagem alheia notificar o devedor quanto a delação feita pelo seu associado. Se o consumidor encontrar qualquer inexatidão pode utilizar do disposto na Lei Federal nº 9507/97 que trata do habeas data. No entanto, a considerar o interesse público que norteia a informação, ‘inda de caráter de tutela da personalidade, entende-se que o correto não seria esperar o agir do devedor, mediante a procura incessante do Poder Judiciário para a corrigenda da inexatidão. Nos parece evidente que, em se considerando os bancos de dados pessoas jurídicas de direito público, fosse, antes mesmo de proceder a negativação, instaurado o contencioso administrativo, nos termos do art. 5º, inciso LV da CF, a exemplo dos contenciosos tributários. Com isso restaria prevenida e afastada quaisquer hipóteses futuras de dano moral.[13] Quer-se crer que a Lei Federal nº 9507/97 é insuficiente para resolver a querela da inexatidão da negativação e, por isso, necessária a criação, dentro de tais bancos de dados, de verdadeiros conselhos de defesa dos devedores para análise recursal administrativa.



Aqui, resta insuperável o fato de que não só a instituição financeira ou o comerciante, como o próprio serviço de proteção ao crédito navegam contra o disposto no art. 5º, inc. X da CF e, na maioria das ocasiões postam suas ações de forma a constranger o devedor.



A imagem tanto é valiosa que uma plêiade de “financeiras” no Brasil facilitam o empréstimo de dinheiro a juros onzenários sem quaisquer outras garantias, a não ser o nome e número do CPF do devedor para posterior negativação. Feito isso, o tomador de empréstimo torna-se devedor cativo da financeira, não conseguindo sequer meios de trabalho para resgate do débito.





6. O direito processual em face do devedor



Além de espoliados no momento da celebração do contrato, por vezes os devedores sofrem ainda com a expropriação feita pelo Estado-Juiz quando assim convocado pelo credor. Algumas medidas judiciais são tomadas, quando na verdade deveriam ser desprezadas para a proteção dos direitos humanos.



Desligamento de linhas telefônicas, de energia elétrica, ordem judicial para quebra de sigilo fiscal no intuito de demonstrar os bens do devedor, retenção de parte de salário, despejo de família ante a aplicação do sistema financeiro imobiliário (alienação fiduciária de imóveis) são, dentre inúmeras práticas processuais, inadequadas, inconstitucionais e desproporcionais frente aos direitos do devedor.



Por isso, a obrigação moral de dizer o direito, do órgão jurisdicional em casos de execução, não está subjugada ao seu dever funcional de aplicar somente a lei positiva, porque esta se desvia, por vezes, do princípio básico de proteção e satisfação de direitos humanos essenciais. A dicção do direito deverá se nortear por razões morais adequadas, decorrentes de parâmetros universalmente válidos, cuja imponência independente do placet da lei.



Em linha de consideração, trata o art. 620 do CPC em garantir ao devedor uma execução justa e razoável, cabendo ao credor a utilização dos meios menos gravosos para atingir seus desiderato. Meios menos gravosos serão todos aqueles que não importem na redução dos direitos humanos do devedor, os quais vão desde a sua liberdade, passando pela honra e concluindo em sua subsistência, porque também não adianta estar livre sem ter como viver ou existir.



Não nos parece justo que preço vil seja somente aquele inferior ao valor do débito para os efeitos da arrematação na segunda praça pública de um imóvel que valha o dobro da execução. Neste caso, vil é a própria cobrança. Preço vil, de que trata o art. 692 do CPC, será todo aquele valor da arrematação que lese e deixe de satisfazer as condições mínimas de sobrevivência do devedor, ou seja, lanço que arrebata o bem penhorado e nada ou pouco legue ao devedor.



Por fim, gize-se que para efeito de penhora valerão os dispositivos da Lei Federal 8009/90 que cuida da impenhorabilidade do bem de família e cuja interpretação deve ser preponderante no conflito de normas, posto que consonância com o regime de tutela do devedor.



7. Conclusões  





À vista do que se escreveu, conclui-se que:



- mesmo diante a existência de textos legais para a defesa de consumidores e devedores, na tentativa de equilíbrio entre as partes contratantes e partes processuais, pouco avanço ainda foi efetivado pragmaticamente aos mais desvalidos;           



- o direito privado no Brasil abandonou as tendências ultrapassadas e financistas, sendo compreendido hoje como um direito econômico, sob a orientação do Estado;



- as cláusulas gerais que informam os direitos humanos entre o cidadão e o poder público também constituem-se como forma padrão entre os particulares;       



- os direitos de personalidade são um conjunto de atributos inerentes à pessoa humana, relacionada ao homem vivo, à sua opção de viver;       

- os direitos de personalidade são extrapatrimoniais, oponíveis erga omnes, indisponíveis, irrenunciáveis e imprescritíveis;          



- o art. 6º do CDC contempla direitos básicos do consumidor e ao mesmo tempo direitos de personalidade;



- descabida e despropositada a prisão civil do devedor, salvante na hipótese única de dívidas de alimentos, isto porque o Brasil tornou-se signatário do Pacto de San José da Costa Rica, não sendo justo o corpo e a liberdade responderem por dívidas;



- as resoluções do Banco Central do Brasil que autorizam a cobrança do valor residual garantido nos contratos de arrendamento mercantil desnaturam o instrumento para um verdadeiro mútuo, o que fere o direito de escolha do devedor;



- o Decreto-lei nº 70/66 é inconstitucional, eis que fere o art. 5º, incs. XXXV, LIII, LIV e LV da CF;  



- os contratos de compra e venda celebrados diretamente por construtoras trazem como objetivo único a futura rescisão contratual, eis que com preços de imóveis superfaturados, utilização de cálculo por tabela price e indexadores desfavoráveis ao devedor que não fora aceito como mutuário do Sistema Financeiro da habitação;        



- a lei 9514/97 teve por escopo mitigar os efeitos salutares do art. 53 do CDC, sendo caracterizada como norma altamente especulativa da propriedade e tendenciosa ao descumprimento da boa-fé objetiva;     



- os bancos de dados no Brasil carecem de maior regramento de forma a permitir a incidência do contencioso administrativo, dado o caráter público da informação, inclusive a fomentando-se a criação de conselhos de defesa dos devedores em âmbito recursal;



- o art. 620 do CPC tornou-se verdadeiro axioma para a defesa do devedor em juízo, principalmente observando-se as conclusões acima.



Bibliografia



AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.



BESSONE, Darcy. Do contrato: teoria geral, 4ª edição, São Paulo: Saraiva, 1997.



BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil por Danos Morais, 3ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999;



BITTAR, Eduardo C. Bianca. Direitos do consumidor e direitos da personalidade: limites, intersecções, relações. Revista de Direito do Consumidor, nº 37, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001;



MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 2ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.



PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, Introdução ao Direito Civil Constitucional; tradução de Maria Cristina De Ciccio. 1ª Edição., rev. e ampl. – Rio de Janeiro: Renovar, 1999.



TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1997.







Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em 25.06.2002







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[1] “One man, One vote.”

[2] Francisco Amaral. Direito Civil. Introdução. Rio de Janeiro. Renovar. p. 70.

[3] Fabio De Mattia, apud Gustavo Tepedino in Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 1997 p. 33: “os direitos humanos são, em princípio, os mesmos da personalidade; mas deve-se entender que quando se fala em direitos humanos, referimo-nos aos direitos essenciais do indivíduo em relação ao direito público, quando desejamos protegê-los contra as arbitrariedades do Estado. Quando examinamos os direitos de personalidade, sem dúvida nos encontramos diante dos mesmos direitos, porém sob o ângulo do direito privado, ou seja, relações entre particulares, devendo-se, pois, defendê-los frente aos atentados perpetrados por outras pessoas.”

[4] Darcy Bessone in Do contrato: teoria geral, 4ª edição, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 37 adverte quanto ao tema que: “Por certo, é inegável que o dirigismo deve ser conduzido com critério alto e seguro. Convém, não obstante, não perder de vista que, nos dias que correm, a sua extensão resulta de nos acharmos em momento de transição, entre o milenar estádio individualista e uma nova era, ainda indefinida, mas por todos pressentida, na qual as idéias sociais, sem os exageros por muito pretendidos, vão conquistar terreno e firmar-se em bases mais sólidas. Passada essa hora confusa e indecisa, aclarados os horizontes, tornar-se-á possível a revisão da teoria dos contratos e dos seus princípios fundamentais.”

[5] San Tiago Dantas, in Programa de Direito Civil, Rio de Janeiro, Ed. Rio (ed. Histórica), apud, Gustavo Tepedino, in opus cite, p. 27.

[6] In Perfis do Direito Civil, Introdução ao Direito Civil Constitucional; tradução de Maria Cristina De Ciccio. 1ª Edição., rev. e ampl. – Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

[7] Adriano De Cupis, in I diritti della personalità, p. 50, apud Gustavo Tepedino, in opus cite, p. 34.

[8] Eduardo C. B. Bittar, no artigo Direitos do consumidor e direitos da personalidade: limites, intersecções, relações, in Revista de Direito do Consumidor, nº 37, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 198/198, ensina que: “os direitos do consumidor albergam, em sua textura, direitos da personalidade. São, mais propriamente, em parte, e não em sua totalidade, concretização de direitos da personalidade. Prova disso é a extensa previsão legal existente, que garante ao consumidor a salvaguarda dos valores que o cercam na situação de consumo, todos protegidos legalmente (direito à vida, à saúde, à higidez física, à honra) e devidamente instrumentalizados (ação de reparações por danos materiais e morais, ações coletivas para proteção de direito difusos, procedimentos administrativos ...).”

[9] “O devedor-fiduciante que descumpre a obrigação pactuada e não entrega a coisa ao credor-fiduciário não se equipara ao depositário infiel, passível de prisão civil, pois o contrato de depósito, disciplinado nos arts. 1.265 a 1.287 do CC, não se equipara, em absoluto, ao contrato de alienação fiduciária. A regra do art. 1º do Dec.lei 911/69, que equipara a alienação fiduciária ao contrato de depósito, perdeu a sua vitalidade jurídica em face da nova ordem constitucional”, STJ - RHC 6.163/SP, j. 10.03.97 - rel.
Min. Vicente Leal.

[10] Art. 6º. São diretos básicos do consumidor: II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações.

[11] “A execução extrajudicial prevista no Dec.-Lei 70/66 não se amolda às garantias oriundas do devido processo legal, do Juiz natural, do contraditório e da ampla defesa, constantes do Texto Constitucional em vigor, pois é o próprio credor quem realiza a excussão do bem, subtraindo do monopólio da jurisdição do estado, quando deveria ser realizada somente perante um Magistrado constitucionalmente investido na função jurisdicional, competente para o litígio e imparcial na decisão da causa. Arts. 31 a 38 do Dec.lei 70/66 não recepcionados pela Constituição Federal de 1.988, face aos princípios insculpidos no art. 5º, incs. XXXV, LIII, LIV e LV, a determinar seja mantida a decisão que determinou a sustação do leilão designado em sede de execução extrajudicial”, (AgIn 96.03.058855-5/SP - 5ª T. - j. 09.12.1996 - rela. Juíza Suzana Saramago TRF 3º Região).

[12] In contratos no código de Defesa do Consumidor, 2ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 173

[13] “Realmente, a construção de uma ordem jurídica justa – ideal perseguido, eternamente, pelos grupos sociais – repousa em certas pilastras básicas, em que avulta a máxima de que a ninguém se deve lesar. Mas, uma vez assumida determinada atitude pelo agente, que vem causar dano, injustamente, a outrem, cabe-lhe sofrer os ônus relativos, a fim de que se possa recompor a posição do lesado, ou mitigar-lhe os efeitos do dano, ao mesmo tempo em que se faça sentir ao lesante o peso da resposta compatível prevista na ordem jurídica.” Carlos Alberto Bittar, in Reparação Civil por Danos Morais, 3ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, p. 20.

 

*Promotor de Justiça em Uberlândia – MG

 

MARTINS, Fernando Rodrigues. Direitos Humanos do Devedor.
Disponível em <http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=387 >. Acesso em 03 de agosto de 2006.