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A discriminação sob a
ótica do Direito
Maria Berenice Dias*
O mundo
está cada vez menor. Os efeitos da globalização e a evolução tecnológica
permitem saber instantaneamente o que ocorre em qualquer lugar. Basta lembrar
que o mundo presenciou a queda das torres do World Trade Center em 11 de setembro
passado.
E este mundo, agora chamado de aldeia global, vive em plena “era dos direitos”,
para usar uma expressão de Norberto Bobbio. Nunca se falou tanto em direitos
fundamentais, direitos humanos, universalização de direitos.
Passou-se a decantar em todos os quadrantes do planeta a necessidade do
respeito aos direitos humanos, cuja violação gera retaliações e severas sanções
por parte de organismos internacionais. A Constituição Federal do Brasil elegeu
o respeito à dignidade humana como seu dogma maior, arrimado nos princípios da
igualdade e liberdade.
Por tudo o que se diz, por tudo o que se proclama e defende, dever-se-ia estar
vivendo a época de maior plenitude do indivíduo, por se encontrar aureolado por
uma gama de direitos e garantias. Assim, imperioso que o Estado Democrático de
Direito esteja dotado de mecanismos ágeis e eficazes para preservar o cidadão. As
instituições sociais, cada vez mais imbuídas da necessidade de proteger o
indivíduo e a própria sociedade, devem tomar consciência da necessidade de
participar do processo de “humanização da humanidade”.
Todos juntos, instituições, estados e sociedade, adotando uma postura de
agentes ativos, buscam a concreção da “liberdade” e da “igualdade” por meio da
“solidariedade”. Essas três palavras-chaves não serviram só de lema à Revolução
Francesa, mas identificam as gerações dos direitos, tal como vêm sendo os
direitos desdobrados.
1. O direito desdobrado em gerações
Em 26 de agosto de 1789, em França, foi editada a mais famosa declaração de
direitos, a denominada “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”,
nomenclatura que o movimento feminista logrou substituir por Direitos Humanos.
O uso da expressão “declaração” evidencia que os direitos enunciados não são
criados ou instituídos, mas meramente “declarados”, pois são direitos
preexistentes, que derivam da própria natureza humana. Daí, serem direitos
naturais, abstratos e universais.
O núcleo dos direitos fundamentais - chamados em um primeiro momento de
direitos individuais - configura a primeira geração de direitos, tendo como
tônica a preservação da liberdade individual e a busca de uma postura
não-intervencionista, verdadeira imposição da obrigação de não-fazer ao Estado.
Visava a libertar todos e cada um do absolutismo de um ou de alguns sobre
todos. Originariamente, no plano político, para livrar do absolutismo do
monarca e seus agentes, aos quais se opõe a liberdade individual irrestrita - o
absolutismo da individualidade - que só pode ser restringida pela lei, expressão
da vontade geral, estritamente em função do interesse comum. A primeira geração
identifica-se com o direito à liberdade.
Os direitos econômicos, sociais e culturais que foram positivados a partir da
Constituição de Weimar, de 1919, são tidos como de segunda geração: cobram
atitudes positivas do Estado, verdadeiras obrigações de fazer, com a finalidade
de promover a igualdade entre partes ou categorias sociais desiguais. Não a
mera igualdade formal de todos frente à lei, mas a igualdade material de oportunidades,
ações e resultados, protegendo e favorecendo juridicamente os hipossuficientes
em relações sociais específicas.
Originariamente, para superar a questão social, desencadeada pelo capitalismo,
esses direitos categoriais incidiram sobre a relação de trabalho assalariado
para proteger a classe operária contra a espoliação patronal.
A segunda geração, voltada para as relações sociais, em que a desigualdade se
acentua por um fator econômico, físico ou de qualquer outra natureza,
identifica-se com o direito à igualdade. Continua o indivíduo sujeito dos
direitos fundamentais. Porém, não mais como individualidade abstrata e
absoluta, mas como integrante de uma categoria social em concreto. Tais
direitos parciais garantem uma prestação do Estado a determinados indivíduos, a
fim de promover a igualdade social, a igualdade como definida por Rui Barbosa,
na célebre Oração aos Moços: a verdadeira igualdade, que não consiste em tratar
igualmente os desiguais, mas em tratá-los desigualmente na medida em que se
desigualam.
Os direitos de terceira geração sobrevieram à Segunda Guerra Mundial, reagindo
aos extermínios em massa da humanidade praticados na primeira metade do século
XX, tanto por regimes totalitários (stalinismo, nazismo) como democráticos
(destruição de cidades indefesas, até por bombas atômicas). Na medida em que o
gênero humano se mostrou técnica e moralmente capaz de se autodestruir,
voltaram-se os olhos para garantir não o indivíduo contra o indivíduo, mas a
humanidade contra a própria humanidade. Nesse momento, os direitos humanos,
postos como direitos de toda a humanidade, internacionalizaram-se - o que
delimitou a soberania estatal por meio da criação de sistemas normativos
supranacionais - com o fim de reconstruir paradigmas éticos e restaurar o
respeito à dignidade da pessoa humana pelo implemento de todas as condições
gerais e básicas que lhe sejam necessárias.
Diante de um possível extermínio da humanidade, seja gradativamente, por
degradação das condições necessárias à vida humana, seja sumariamente, pela
abrupta supressão dessas condições, se reclama e conclama a solidariedade de
todos os indivíduos e categorias da sociedade humana.
No processo crescente da socialização do estado contemporâneo, a evolução do
estado liberal para o estado social de direito faz imperiosa a conscientização
de todos da indispensável participação ativa de cada um. Não mais cabe aguardar
a iniciativa dos governantes ou delegar-lhes com exclusividade o encargo de
assegurar a função social dos direitos humanos. Esse dever é um encargo de
todos e de cada um perante cada um e diante de todos.
Com esse passo - cuja concreção ainda falta ser implementada -, a evolução dos
direitos humanos atinge o seu ápice, a sua plenitude subjetiva e objetiva. São
direitos humanos plenos, de todos os sujeitos contra todos os sujeitos, para
proteger tudo o que condiciona a vida humana, fixados em valores ou bens
humanos como patrimônio da humanidade, segundo padrões de avaliação que
garantam a existência com a dignidade que lhe é própria.
2. O perfil familiar convencional
Apesar de todos os dogmas, princípios e regras, que buscam assegurar a primazia
dos direitos humanos, a sociedade, em nome da preservação da moral e dos bons
costumes, impõe padrões de comportamento restritos. Com seu perfil nitidamente
conservador, cultua valores absolutamente estigmatizantes, insistindo em
repetir o modelo posto.
Tal postura gera um sistema de exclusões baseado muitas vezes em meros
preconceitos. Tudo o que se situa fora do estereótipo acaba sendo rotulado de
“anormal”, ou seja, fora da normalidade. O que não se encaixa nos padrões
aceitos pela maioria é apontado como uma afronta à moral e aos bons costumes. Essa
visão polarizada é extremamente limitante.
Não se pode esquecer o que a sociedade fez com o negro: em face de sua cor, o
tornou escravo. Também as mulheres foram - e ainda são - alvo de
discriminações. Só em 1932 adquiriram a cidadania e até 1962 se tornavam
relativamente capazes apenas ao casar. Também os filhos, até 1988, tinham
direitos limitados, sendo rotulados por expressões ultrajantes pela singela
circunstância de haverem sido concebidos fora de um vínculo de casamento de
seus pais.
Principalmente no âmbito das relações familiares se evidencia a tendência de
formatar os vínculos afetivos segundo os valores culturais dominantes em cada
época. Por influência da religião, o Estado limitou o exercício da sexualidade
ao casamento, uma instituição indissolúvel que regula, não só as seqüelas de
ordem patrimonial, mas a própria postura dos cônjuges, impondo-lhes deveres e
assegurando direitos de natureza pessoal, chegando ao ponto de invadir a
privacidade do casal.
O vínculo que nasce por vontade dos nubentes é mantido após a solenização do
matrimônio independente e até contra a vontade dos cônjuges. Mesmo com o
advento da Lei do Divórcio, só são deferidos a separação e o divórcio, ou após
o decurso de determinado prazo, ou mediante a identificação de um culpado - o
qual não pode tomar a iniciativa do processo - o que evidencia a intenção de
punir quem simplesmente quer se desvencilhar do casamento.
A família consagrada pela lei - a sagrada família - é matrimonializada,
patriarcal, patrimonializada, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. Pelas
regras do Código Civil, os relacionamentos que fugissem ao molde legal, além de
não adquirirem visibilidade, estavam sujeitos a severas sanções. Chamados de
marginais, nunca foram os vínculos afetivos extramatrimoniais reconhecidos como
família. Primeiro se procurou identificá-los a uma relação de natureza
trabalhista, e só se via labor onde existia amor. Depois, a jurisprudência
passou a permitir a partição do patrimônio considerando uma sociedade de fato o
que nada mais era do que uma sociedade de afeto.
Mesmo quando a própria Constituição Federal albergou no conceito de entidade
familiar o que chamou de “união estável”, resistiram os juízes em inserir o
instituto no âmbito do Direito de Família, mantendo-a no campo do Direito das
Obrigações. A dificuldade de as relações extramatrimoniais serem identificadas
como verdadeiras famílias, nem sequer por analogia - mecanismo que a lei
disponibiliza como forma de colmatar as lacunas da lei - revela a verdadeira
sacralização do conceito de família. Ainda que inexista qualquer diferença estrutural
com os relacionamentos oficializados, a negativa sistemática de estender a
estes novos arranjos os regramentos do direito familial, mostra-se como uma
tentativa de preservação da instituição da família dentro dos padrões
convencionais.
3. O panorama social atual
O distanciamento do Estado em relação à Igreja - fenômeno chamado de laicização
- bem como a quebra da ideologia patriarcal trouxeram como conseqüência a
liberação dos costumes. A chamada revolução feminina, fruto tanto do movimento
feminista como do aparecimento dos métodos contraceptivos, e a evolução da
engenharia genética, que gerou formas reprodutivas independentes de contatos
sexuais, acabaram por redimensionar o próprio conceito de família.
No contexto atual não mais se pode identificar como família apenas a relação
entre um homem e uma mulher ungidos pelos sagrados laços do matrimônio. Rompidos
os paradigmas identificadores da família, que se esteavam na tríade casamento,
sexo e reprodução, necessário buscar um novo conceito de família.
A família não se restringe ao relacionamento com o selo da oficialidade, pois o
Judiciário, ao emprestar juridicidade ao que era chamado de concubinato, impôs
ao constituinte o alargamento do conceito de entidade familiar. Imperativo
reconhecer que é a presença do vínculo afetivo a pedra de toque para a
identificação de um elo de natureza familiar.
No momento em que se enlaça no conceito de família, além dos relacionamentos
decorrentes do casamento, também o que a Constituição Federal chamou de uniões
estáveis e as famílias monoparentais, mister albergar mais um gênero de
vínculos afetivos, quais sejam, as relações homossexuais - hoje chamadas de
relações homoafetivas - que merecem ser inseridas no âmbito do Direito de
Família.
4. A Justiça frente aos direitos não legislados
A sociedade, no momento em que se estrutura, buscando a concreção de seus fins,
isto é, o bem comum, outorga a um poder o encargo de fazer justiça, o que, como
diz Mauro Cappelletti, não é mera forma de acesso à justiça, mas, sim, de
acesso a uma ordem jurídica justa. No entanto, ao se questionar se o Poder
Judiciário se desincumbe do dever de dar a cada um o que é seu, a resposta
negativa se impõe: no próprio âmbito da jurisdição os mais comezinhos direitos
humanos são violados.
A lei não consegue acompanhar o acentuado desenvolvimento econômico, político e
social dos dias de hoje, não tendo condições de seu arcabouço prever todos os
fatos sociais dignos de regramento. Em particular, os vínculos interpessoais,
são os mais sensíveis à evolução dos costumes, à mudança de valores e dos
conceitos de moral e de pudor. Dada a aceleração com que ocorrem, as mudanças
sociais escapam da legislação tradicional.
Em face das lacunas que acabam ocorrendo, o magistrado precisa se conscientizar
de que as regras legais existentes não podem servir de limites à prestação
jurisdicional. Quando o fato sub judice escapa da normatização ordinária, a
resposta precisa ser encontrada nos direitos fundamentais que cada vez mais vêm
buscando guarida nas Constituições. Não se trata de forma alternativa de se
fazer justiça, mas de encontrar uma solução atendendo aos ditames de ordem
constitucional.
Imperioso que as interpretações dos juízes sejam criativas.
Ante situações novas, buscar subsídios em regras ditadas para relações
jurídicas diversas, tende a uma solução conservadora. Mas, tanto não reconhecer
direitos sob o fundamento de inexistir previsão legal, como fazer uso de
referenciais normatizados para situações outras e em diverso contexto temporal,
nada mais é do que mera negação de direitos. Assim, é um dever da
jurisprudência inovar diante do novo.
O surgimento de novos paradigmas leva à necessidade de rever os modelos
preexistentes, atentando-se na liberdade e na igualdade como os pilares do
direito, que estão calcados muito mais no reconhecimento da existência das
diferenças. Essa sensibilidade deve ter o magistrado. Tomando como norte a
necessidade de assegurar os direitos humanos em sua plenitude, subjetiva e
objetiva, individual e social, imperioso pensar e repensar a relação entre o
justo e o legal. Precisam os juízes arrostar as novas realidades que lhes são
postas à decisão e não ter medo de fazer justiça para vencer a pecha - que não
deve ser a realidade - de ser o Judiciário um poder incompetente e sacralizador
de injustiças.
5. A responsabilidade da função judicial
O paradoxo entre o direito vigente e a realidade existente, no confronto entre
o conservadorismo social e a emergência de novos valores e novas estruturas de
convívio, coloca os operadores do Direito diante de um verdadeiro dilema, em
face da necessidade de implementação dos direitos de forma ampliativa.
A sociedade que se proclama defensora da igualdade é a mesma que ainda mantém
uma posição discriminatória nas questões de gênero. Em decorrência de uma visão
estereotipada da mulher, exige-se-lhe uma atitude de recato, sendo feita uma
avaliação comportamental dentro de requisitos de adequação a determinados
papéis sociais. Ainda se vislumbra nos julgados uma postura eminentemente
protecionista que dispõe de uma dupla moralidade. Aparecem com freqüência os
termos “inocência da mulher”, “conduta desregrada”, “perversidade”,
“comportamento extravagante”, “vida dissoluta”, “situação moralmente
irregular”, adjetivações essas ligadas exclusivamente ao exercício da
sexualidade, questionamentos jamais feitos com relação ao homem. Assim são
expressões que guardam uma forte carga ideológica, que desconsidera a liberdade
da mulher.
Também nítida é a rejeição social à livre orientação sexual. O homossexualismo
existe e sempre existiu, mas é marcado por um estigma social, sendo renegado à
marginalidade por se afastar dos padrões de comportamento tidos por “normais”. Tal
postura homofóbica decorre de mero preconceito que leva à inaceitação dos
relacionamentos homossexuais, eis considerados uma afronta à moral e aos bons
costumes. No entanto, é absolutamente discriminatório afastar a possibilidade
de reconhecimento de uniões estáveis homossexuais. Trata-se de uma união que surge
de um vínculo afetivo e gera um enlaçamento de vidas com desdobramentos de
caráter pessoal e patrimonial, estando a reclamar um regramento legal.
Assim, ante a atual posição do homem e da mulher e as novas estruturações
familiares, necessário uma revisão crítica e uma atenta avaliação valorativa do
fenômeno social, para que se implemente a tão decantada igualdade.
Nesse contexto, é fundamental a missão dos operadores do direito, que
necessitam tomar consciência de que a eles está delegada a função de agentes
transformadores dos valores estigmatizantes que levam aos preconceitos sociais.
Na trilha do que venha a ser aceito pelos tribunais, como merecedor de tutela,
acaba ocorrendo a aceitação social, o que vem a gerar, via de conseqüência, a
possibilidade de se cobrar do legislador que regule as situações que a
jurisprudência consolida.
Uma sociedade que se quer justa, livre, solidária, fraterna e democrática, não
pode viver com cruéis discriminações, quando a palavra de ordem é a cidadania e
a inclusão dos excluídos. Para cumprir esse lema, é fundamental a atuação dos
juízes, que necessitam se conscientizar de que o estado de direito não é um
simples estado de legalidade e a verdadeira justiça não é meramente formal.
Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em 09.04.2003
* Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-RS; Desembargadora
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
DIAS, Maria Berenice. A discriminação sob a ótica do
Direito. Disponível em <http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=462>.
Acesso em 03 de agosto de
2006.