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A
classificação virtual do Campeonato Brasileiro. Alteração do art. 301 do CBDF
por resolução de diretoria
Paulo Marcos Schmitt;
Alexandre Hellender de Quadros *
Desde as primeiras rodadas do campeonato brasileiro de futebol de 2003, a
Comissão Disciplinar e o próprio Superior Tribunal de Justiça Desportiva da CBF
vêm decidindo pela aplicabilidade do art. 301 do Código Brasileiro Disciplinar
do Futebol (CBDF) com a redação dada por uma resolução de diretoria (RDI).
Assim, os clubes que contam com a participação de atletas em condições
irregulares, acabam sendo apenados e, a seus adversários, são atribuídos os
pontos da respectiva partida.
O assunto já rendeu punição disciplinar ao consagrado jurista Valed
Perry, afastada com propriedade por medida liminar expedida pelo Poder
Judiciário. Os periódicos noticiam: "Corinthians ingressa no STJD para
ganhar os pontos do Paysandu", "Grêmio tenta os pontos do Goiás para
escapar da lanterna", "Paysandu garante liminar na Justiça para
continuar no Brasileiro". É a verdadeira dança dos pontos do
"Brasileirão". Para entender o compasso dessa dança, é preciso
esmiuçar a legislação desportiva aplicável à espécie.
Esta é a redação do art. 301 do CBDF, conferida pela Portaria Ministerial
nº 328/87:
"Art. 301 -
Incluir em sua equipe atleta que não tenha condição de jogo.
Pena: perda de 5
(cinco) pontos, imposta pelo órgão administrativo competente da entidade, na
contagem que houver obtido no campeonato ou torneio, após serem computados os
pontos porventura obtidos na partida, sem prejuízo da multa de 50 a 250 ORTNs e
perda de sua parte na renda em favor do adversário, determinada pelo STJD.
§ 1° a
associação infratora que ainda não houver ganho pontos no campeonato ou torneio
ficará com 5 (cinco) pontos negativos."
Eis a RDI que modificou a redação do dispositivo normativo supra:
"Resolução
de Diretoria da Confederação Brasileira de Futebol
20 de junho de
1997
Altera a redação
do art. 301 do CBDF, constante da RDI nº 01-A/97, de 15 de janeiro de 1997
A Diretoria da Confederação
Brasileira de Futebol, no uso de suas atribuições legais e estatutárias, com o
objetivo de tornar extreme de dúvida as conseqüências decorrentes da aplicação
da pena prevista no art. 301 do CBDF, resolve alterar a redação da citada norma
constante da RDI nº 01-A/97, de 15.01.1997, que passa a ser a seguinte:
‘Art. 301 -
Incluir em sua equipe atleta que não tenha condição de jogo.
Pena: Não
obtenção, na partida, de ponto algum, qualquer que seja o resultado, sendo que
ao clube adversário será adjudicado o número de pontos que o regulamento da
competição estabelecer para o caso de vítória, sem prejuízo da multa de R$
2.000,00 (dois mil reais), assim como perda de sua parte na renda, em favor do
adversário.
Parágrafo Único
- A adjudicação será imposta cautelarmente pelo órgão administrativo competente
da entidade, o qual, logo após, remeterá o processo respectivo ao Tribunal para
o julgamento.’"
Da análise dos dispositivos mencionados, constata-se uma diferença no
sistema de pontuação para os casos de inclusão de atletas sem condição de jogo
que, ora impõe a perda de pontos, ora adjudica pontos ao adversário. Indene de
dúvidas a distinção entre os textos e suas conseqüências técnicas e jurídicas,
resta a pergunta: Qual o dispositivo a ser aplicado? Aquele que foi editado por
uma Portaria Ministerial ou o que foi inserido por uma Resolução de Diretoria
da CBF?
Para a solução de tais controvérsias, que tiram o sono de qualquer
torcedor, diga-se, hoje amparado por um Estatuto próprio (Lei nº 10.671/03), trataremos
da temática sob o enfoque da competência e da hierarquia das normas.
A Lei nº 8.672/93 (Lei Zico), vigente de 06 de julho de 1993 até a edição
da Lei Pelé, estabelecia:
"Art. 5º O
Conselho Superior de Desportos é órgão colegiado de caráter consultivo e
normativo, representativo da comunidade desportiva brasileira, cabendo-lhe:
...
VI - aprovar os
Códigos de Justiça Desportiva e suas alterações;"
Já a Lei 9.615/98 (Lei Pelé), com redação dada pela Lei nº 10.672/03,
prevê:
"Art. 11. O
CNE é órgão colegiado de normatização, deliberação e assessoramento,
diretamente vinculado ao Ministro de Estado do Esporte, cabendo-lhe:
...
VI - aprovar os
Códigos de Justiça Desportiva e suas alterações; (Redação dada pela Lei nº
9.981, de 14.7.2000)"
Como se vê, estamos diante de uma evidente questão de competência, cuja
solução se apresenta como pressuposto para a definição da redação vigente do
art. 301, do CBDF. José Afonso da Silva (1), ao discorrer sobre a
classificação das competências, escreve:
"Quanto à
extensão, ou seja, quanto à participação de uma ou mais entidades na esfera da
normatividade ou da realização material, vimos que a competência se distingue
em:.. . (b) privativa, quando enumerada como própria de uma entidade, com
possibilidade, no entanto, de delegação e de competência suplementar".
Foi exatamente o que fez o legislador quando atribuiu, desde 1993, ao
Conselho (CSD – Lei Zico / CNE – Lei Pelé), a competência de aprovar os códigos
desportivos e suas alterações. Mesmo no interregno compreendido entre a edição
da Lei Pelé em 1998 e a data de 14.07.2000, com o resgate da competência de
alterações trazido com a Lei nº 9981/00, prevalece a vigência do CBDF, cuja
alteração dependeria, no mínimo, de realização através de norma do mesmo nível
hierárquico.
Não basta, portanto, a competência definida pela legislação desportiva.
Convém enfrentar o problema sob a ótica do princípio da hierarquia das normas,
compulsando o regramento atinente ao processo legislativo em comparação com os
atos administrativos tidos como normativos.
De início, vale lembrar que o Poder Legislativo é, no sistema
constitucional pátrio, o Poder instituído cuja função típica é a edição de
normas gerais, abstratas, inovadoras da ordem jurídica, as denominadas leis
(2).
Como se disse, o tema proposto gira em torno do processo legislativo que,
novamente segundo José Afonso da Silva, "é o conjunto de atos (iniciativa,
emenda, votação, sanção e veto) realizados pelos órgãos legislativos visando a
formação das normas constitucionais, leis complementares e ordinárias,
resoluções e decretos legislativos (3)." Nesse espectro, o art.
59 da Carta Magna estabelece:
"Art. 59 -
O processo legislativo compreende a elaboração de:
I - emendas à
Constituição;
II -leis
complementares;
III - leis
ordinárias;
IV - Leis
delegadas;
V - medidas
provisórias;
VI - decretos
legislativos."
Observa-se que o comando constitucional acima dispõe sobre as normas
existentes no sistema jurídico pátrio, não mencionando expressamente se há ou
não uma hierarquia entre umas e outras (4). Nessa esteira, traz-se a
lume o entendimento de Celso Bastos (5):
"Não existe hierarquia entre as espécies normativas elencadas no
art. 59 da Constituição Federal. Com exceção das Emendas, todas as demais
espécies se situam no mesmo plano.
A lei complementar não é superior à lei ordinária, nem esta é superior à
lei delegada, e assim por diante.
O que distingue uma espécie normativa da outra são certos aspectos na
elaboração e o campo de atuação de cada uma delas.
Lei Complementar não pode cuidar de matéria de lei ordinária, da mesma
forma que lei ordinária não pode tratar de matéria de lei complementar ou de
matéria reservada a qualquer outra espécie normativa, sob pena de
inconstitucionalidade.
De forma que, se cada uma das espécies tem o seu campo próprio de
atuação, não há falar em hierarquia. Qualquer contradição entre essas espécies
normativas será sempre por invasão de competência de uma pela outra. Se uma
espécie invadir o campo de atuação de outra, estará ofendendo diretamente a
Constituição. Será inconstitucional."
Para se verificar a hierarquia (6), o critério a ser utilizado
deve ser o fundamento de validade das normas, como leciona Sérgio Pinto
Martins:
"Há hierarquia entre normas quando a norma inferior tem seu
fundamento de validade em regra superior. O conteúdo de validade ou não de uma
norma decorre da comparação segundo o critério de localização na hierarquia das
normas, no sentido de que a regra inferior retira seu fundamento de validade da
norma superior, sem contrariá-la, pois, se houver contradição, considera-se
inválida a norma inferior. (...) entre a lei complementar, ordinária, delegada
e a medida provisória não existe hierarquia, uma vez que todas retiram seu
fundamento de validade da própria Constituição. Cada uma tem campo próprio ou
função própria a ser observada, de acordo com o que determina a Constituição. A
diferenciação que existe entre elas seria da inciativa, do quorum de aprovação,
formalidades a observar" (7).
Em face da assertiva acima consignada, não resta dúvida que a
Constituição da República é hierarquicamente superior a todos os demais
preceitos normativos (8).
Todavia, as leis complementares, ordinárias, decretos, etc., regra geral,
estão no mesmo nível hierárquico, uma somente será superior a outra quando nela
encontra seu fundamento de validade. Exemplificando, um decreto sempre será
hierarquicamente inferior às leis, mesmo porque é oriundo do Poder Executivo.
Ora, nesse contexto, foi a lei que validou o ato administrativo que deu
origem ao CBDF e CBJDD (Lei Zico e, após, a Lei Pelé) estabelecendo que estes
continuam em vigor até a edição de novos códigos. Ademais, também foi a lei que
estabeleceu a competência para alteração de tal codificação aos conselhos
desportivos pertencentes ao Poder Executivo. Portanto, não seria uma simples
resolução de diretoria que teria o condão ou legalidade suficiente para
alterá-los.
Mesmo porque, as Resoluções de Diretoria são atos internos expedidos por
entidades de administração do desporto. Estas entidades, por determinação legal,
têm natureza de direito privado e, neste contexto, suas determinações não são
capazes de superar a normatividade das regras editadas pelo Poder Público.
Ainda que se reconheça a autonomia atribuída pela Constituição
Federal às entidades de administração do desporto, seria inadmissível admitir
que uma entidade privada gozasse de prerrogativa capaz de superar a
normatização expedida pelo Poder Público. Com efeito, a autonomia consiste
apenas em – e não mais do que – a discricionariedade autorizada dentro dos
limites estipulados pela norma aplicável.
Neste ponto, não apenas o princípio da hierarquia fundamentaria a
superioridade da norma editada pelo Poder Público. Trata-se, retornando ao
aspecto da competência, do reconhecimento de que a norma superior identifica o
órgão competente para editar a normatização inferior. De forma concreta, a
alteração do CBDF só poderia se realizar mediante instrumento jurídico de igual
ou superior hierarquia, editado, naturalmente, pelo ente competente para tal
atribuição.
A autonomia não se revela em instrumento capaz de distorcer a hierarquia
das normas e/ou desvirtuar a atribuições de competências estabelecida pelo
ordenamento jurídico. Como exemplo, pode-se mencionar a autonomia atribuída
pela Constituição às universidades públicas (art. 207, CF/88). Apesar de
gozarem de autonomia administrativa e de gestão financeira e patrimonial, as
universidades públicas estão indubitavelmente obrigadas a seguir as normas de
licitação para aquisição de bens e serviços (Lei n.º8666/93) e a realizar
concursos públicos para admissão de professores em seus quadros definitivos.
Mesmo os estados federados, autônomos por excelência, estão adstritos à
competência atribuída pela Constituição Federal e beneficiam-se da competência
residual apenas porque a própria Carta Magna assim prevê (art. 25, §1o,
CF/88).
Portanto, a autonomia deferida pela Carta Constitucional às entidades de
administração do desporto não significa independência do ordenamento jurídico.
Mesmo autônomas, ou melhor, exatamente porque autônomas, suas regulamentações
internas dependem de limites impostos pela legislação.
Em vista do exposto, pode-se asseverar que, diante da necessidade de
atualização da codificação desportiva, em razão de competência legislativa e da
hierarquia das normas, que propugna pela prevalência das disposições
insculpidas na Legislação Desportiva, tal alteração não poderia se aperfeiçoar
via Resolução de Diretoria – ato administrativo interno da entidade nacional de
administração do futebol - CBF.
Revelam-se, portanto, carentes de fundamento as decisões expedidas pelo
STJD da CBF, sustentadas em norma cuja redação foi ilegalmente alterada.
Portanto, é meramente virtual a classificação do campeonato brasileiro de 2003,
típica de jogos eletrônicos mesmo, porquanto o art. 301 do CBDF deve ser
aplicado consoante a sua redação atribuída pela Portaria Ministerial nº 328/87,
não prevalecendo a tese de pontos atribuídos ao adversário, por absoluta falta
de previsão legal.
Notas
01. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 16ª
ed., Malheiros, São Paulo, 1999, p. 481
02. Op. cit, p. 112. Trata-se
das leis, neste contexto, no seu sentido estrito. No sentido genérico, vale a
lição de Montesquieu, prevista no primeiro excerto de ‘O espírito das Leis’:
‘As leis, no seu sentido mais amplo, são relações necessárias que derivam da
natureza das coisas e, nesse sentido, todos os seres têm suas leis.’
03. Op. Cit, p. 523-524.
04. Nesse sentido: MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. São Paulo:
Atlas. 15 ed. 2002. P. 65 e 66.
05. In: Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 18a ed., 1997, p. 355.
06. Os limites deste trabalho não autorizam a inclusão da polêmica acerca
da hierarquização das normas proposta pela Escola de Viena, que vincula a
estrutura de escalonamento da ordem jurídica à criação do Direito por degraus.
07. Op. C, p. 66.
08. Sobre o tema, a recomendável abordagem de Jorge Miranda, in Teoria
do Estado e da Constituição, Forense: Rio de Janeiro. 2002. p. 485: ‘Como quer
que seja, não é preciso entronizar as teses da Teoria Pura para reconhecer que
as fontes e as normas se distribuem por níveis bastante diversos. Apesar de só
no século XX disso se ter tomado perfeita consciência, a supremacia da
Constituição decorre da sua função no ordenamento e os actos que lhe ficam
imediatamente subordinados não podem deixar de ter força superior aos que por
ela não são regulados.’
* Advogado, Membro da Comissão de Estudos Jurídicos Desportivos do Ministério
do Esporte e da Comissão Especial incumbida da elaboração do Código Brasileiro
de Justiça Desportiva; Secretário da Comissão de Direito Desportivo do Conselho
Federal da OAB e membro de Comissões de Direito Desportivo junto à seção
OAB-Paraná e subseção de Curitiba, Procurador-Geral do STJD do Futebol,
Presidente do STJD do Judô; professor de inúmeros cursos e autor de várias
publicações em Direito Desportivo.
* Advogado, associado de Hapner & Kroetz
Advogados, professor de Legislação Desportiva da Universidade do Esporte,
professor de Direito Constitucional do Unicenp - Centro Universitário Positivo,
presidente do Tribunal Permanente de Justiça Desportiva do Governo do Paraná,
especialista em Direito Administrativo e mestrando em Direitos Fundamentais e
Cidadania pela Faculdade de Direito de Curitiba.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4400>. Acesso em: 31 jul. 2006.