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Algumas
anotações sobre o Estatuto do Torcedor
Lincoln Pinheiro Costa *
Considerações Iniciais:
Promulgada em 15 de maio de 2003, a Lei nº 10.671, mais
conhecida como Estatuto do Torcedor, veio responder aos anseios dos
desportistas brasileiros que desejam a prevalência da ética, da moralidade e da
transparência no desporto profissional, especialmente o futebol.
De início, vale ressaltar a importância do tratamento
legislativo desta matéria, pois o futebol é, ao lado do carnaval, a principal
manifestação cultural do povo brasileiro, um esporte popular que mexe com a
paixão da maioria dos brasileiros, de todas as classes sociais.
Paralelamente ao Estatuto do Torcedor temos a Lei Pelé,
Lei nº 9615/98, que instituiu normas gerais sobre desporto. Seu conteúdo vai no
mesmo sentido moralizador do Estatuto do Torcedor e desde sua entrada em vigor
foi severamente criticada por alguns dirigentes esportivos, tendo sofrido
importantes modificações, a última delas pela Lei nº 10.672, de 15 de maio de
2003.
Os Pontos Mais Polêmicos:
A entidade responsável pela organização da competição, bem
como a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo, foram
equiparadas ao fornecedor, conforme definido no Código de Defesa do Consumidor
- CDC.
Isto quer dizer que toda responsabilidade atribuída ao
fornecedor pelo CDC também pode ser cobrada da entidade organizadora da
competição e da entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo.
Os torcedores têm, inclusive, os mesmos instrumentos
processuais que os consumidores para defesa em juízo, notadamente a
legitimidade do Ministério Público para a promoção de ações coletivas.
Em função da equiparação das entidades responsáveis pela
organização da competição ao fornecedor, medidas como a alteração da tabela da
competição, como mudança de data, local e horário das partidas, poderão ser
invalidadas judicialmente, valendo acrescentar que é proibido alterar o
regulamento após sua divulgação definitiva, conforme dispõe o art. 9º, § 5º do
Estatuto.
Importante ressaltar a competência da Justiça Federal para
julgar causas relativas ao desporto, pois a Lei nº 10672, de 15 de maio de
2003, alterou o § 2º do art. 4º da Lei nº 9615/98 que ficou assim redigido:
§
2o A organização desportiva do País, fundada na liberdade de
associação, integra o patrimônio cultural brasileiro e é considerada de elevado
interesse social, inclusive para os fins do disposto nos incisos I e III do
art. 5o da Lei Complementar no 75,
de 20 de maio de 1993. (Redação dada pela Lei nº
10.672, de 15.5.2003)
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.672.htm>
Estando, portanto, a organização desportiva do país
integrada no patrimônio cultural brasileiro e cabendo ao Ministério Público
Federal promover a sua defesa, a Justiça Federal é a competente para a causa,
tendo em vista o disposto no art. 70 da Lei Complementar nº 75/93.
Outro ponto moralizador que merece destaque é a
obrigatoriedade da escolha dos árbitros por meio de sorteio público, pois a
escalação de árbitros era uma das medidas que mais geravam reclamações e
suspeitas, em virtude da falta de transparência e critério que caracterizavam a
organização das competições.
Obrigatoriedade do Critério Técnico:
Se o futebol brasileiro era elogiado por sua técnica, era
muito criticado por sua desorganização.
Agora a lei estabelece a obrigatoriedade de se organizar
pelo menos uma competição de âmbito nacional com sistema de disputa em que as
equipes participantes conheçam, previamente, a quantidade de partidas que
disputarão, bem como seus adversários, ou seja, o chamado campeonato por pontos
corridos em que o campeão é aquele que somar mais pontos durante a competição,
premiando, assim, o critério técnico e evitando-se injustiças tantas vezes já
ocorridas no certame nacional.
Garante-se também que as equipes tenham atividade por pelo
menos dez meses do ano, possibilitando-lhes auferir receitas e gerar empregos,
salientando-se que o desporto profissional é, por definição legal, atividade
econômica.
Ainda no que concerne ao critério técnico, a Lei nº 10671,
de 15 de maio de 2003, veda expressamente, em seu art. 10, § 2º, a adoção de
qualquer outro critério, especialmente o convite.
Sendo assim, a Copa Sul-americana, anunciada para
acontecer no segundo semestre deste ano e cuja tabela foi divulgada no endereço
eletrônico <http://www.conmebol.com/scripts/runisa.dll?S7:gp:517084:71185+/gl/compet+1154+2003+S>,
já nasce eivada de ilegalidade porque o Juventude de Caxias do Sul (RS), apesar
de ter conquistado o direito de nela participar pelo critério técnico, como
determina o art. 10, § 1º do Estatuto do Torcedor, foi alijado pelos
organizadores, sendo substituído por outras agremiações que não obtiveram
índice técnico para a referida competição.
Nem se alegue que a Copa Sul-americana, por ser organizada
pela Confederação Sul-americana de Futebol, não estaria sujeita à lei nacional,
devido à personalidade estrangeira daquela entidade.
Quando uma entidade com personalidade jurídica estrangeira
organiza competição com a participação de agremiações nacionais e com jogos
disputados no território nacional, é obrigatória a observância da lei
brasileira, sob pena de nulidade.
Além disso, as entidades de prática desportiva nacionais,
convidadas para a referida competição, são equiparadas a fornecedores, conforme
já explanado, e nesta condição também são responsáveis pela legalidade da
competição.
A Responsabilidade dos Dirigentes:
Um ponto muito criticado por alguns dirigentes que se
posicionaram contra o Estatuto do Torcedor foi o art. 19, que assim prescreve:
Art.
19. As entidades responsáveis pela organização da competição, bem como seus
dirigentes respondem solidariamente com as entidades de que trata o art. 15 e
seus dirigentes, independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos
causados a torcedor que decorram de falhas de segurança nos estádios ou da
inobservância do disposto neste capítulo.
Muitos provocaram alarme, dizendo que seriam presos caso
algum torcedor sofresse alguma agressão nos estádios.
Simplesmente cuida a lei da responsabilidade objetiva pela
reparação do dano, na esteira do que já prescreve a legislação consumerista.
Também reclamaram da obrigatoriedade da numeração dos
ingressos e do direito do torcedor ocupar o local correspondente ao número
constante do ingresso, afirmando para isso haveria necessidade de instalação
das cadeiras numeradas, majorando os custos.
A leitura atenta da lei, contudo, revela que não é
obrigatória a instalação de cadeiras numeradas, bastando numerar o local de
cada torcedor na própria arquibancada.
Deve-se observar que nem existe a obrigatoriedade de todos
os lugares serem numerados, pois além de se assegurar a existência da
denominada "geral", o local em que os torcedores assistem à partida
em pé, nada impede que os estádios sejam divididos em setores, ficando uma
parte sem numeração onde os torcedores que assim preferirem, especialmente os
integrantes de torcidas organizadas, possam se agrupar para agitar suas
bandeiras e fazer suas coreografias, participando de uma forma ativa do
espetáculo, ao contrário daqueles que preferirem sentar e assistir passivamente
ao espetáculo.
O Estatuto interfere também na administração da entidade
de prática desportiva, a exemplo do que já fazia a Lei Pelé, exigindo
transparência financeira da entidade, bem como a abertura de um canal de
comunicação direta com o torcedor.
A Justiça Desportiva:
A Justiça Desportiva que tem, inclusive, status constitucional,
já foi protagonista de algumas das páginas mais vergonhosas do futebol
brasileiro.
Agora, ela também está submetida aos princípios da ética,
da moralidade e da transparência que norteiam o Estatuto do Torcedor, exigindo-se
a motivação de suas decisões e a publicidade de seus julgamentos, ficando
proibido o segredo de justiça. Acrescente-se que o Conselho Nacional de
Esportes – CNE terá o prazo de seis meses para adequar o Código de Justiça
Desportiva ao disposto na Lei Pelé e no Estatuto do Torcedor.
Seria desejável a mudança da sede do Superior Tribunal de
Justiça Desportiva – STJD para a capital federal, onde teria menor influência
da imprensa esportiva, bem como a fixação de regras transparentes e limitação
temporal para a investidura de seus membros.
As Transmissões Televisivas:
Um item de fundamental importância no qual o Estatuto do
Torcedor foi omisso refere-se às transmissões das partidas do campeonato pela
TV aberta.
Esta situação tem gerado muitos protestos dos torcedores
porque a emissora que detém os direitos de transmissão das partidas do
campeonato nacional privilegia o televisionamento de jogos envolvendo equipes
sediadas nas praças onde se localizam os anunciantes, em detrimento das equipes
dos outros estados da federação.
Não é demais recordar que o futebol, fazendo parte do
patrimônio cultural brasileiro, deve ser fortalecido regionalmente,
estabelecendo a Constituição, de forma expressa, que a programação televisiva
atenderá de forma preferencial à finalidades educativas, artísticas, culturais
e informativas e ainda à regionalização da programação.
Desta forma, as transmissões ao vivo das partidas pela TV
aberta, a única acessível aos torcedores de baixa renda, deveria obedecer ao
critério da regionalização, transmitindo-se para determinada unidade da
federação a partida envolvendo o representante daquele Estado no campeonato
nacional.
A inexistência de dispositivo legal nesse sentido não
significa que o torcedor não tenha direito à regionalização das transmissões.
Isto porque o torcedor tem em sua proteção os mesmos
direitos do consumidor, incluindo o acesso à Justiça para garanti-los.
O Ministério Público Federal, responsável pela defesa do
patrimônio cultural brasileiro, no qual se insere o futebol, poderá acionar na
Justiça os responsáveis pela escala das partidas televisionadas por TV aberta,
exigindo-se que se respeite o torcedor de todos os clubes, transmitindo-se as
partidas de forma regionalizada e corrigindo-se esta distorção hoje verificada.
Não se pode alegar, em defesa do status quo, a
existência de eventual cláusula contratual que atribua à emissora detentora dos
direitos de transmissão a livre escolha das partidas transmitidas ao vivo,
pois, em virtude da função social do contrato, a liberdade de contratar
encontra limitação na idéia de ordem pública, onde o interesse individual não
pode prevalecer sobre o interesse social, o interesse da coletividade.
Conclusão:
Pode-se afirmar que o Estatuto do Torcedor representa um
avanço na organização e administração do desporto profissional, havendo razão
para o otimismo quanto ao futuro, quando, esperamos, não veremos mais
escândalos e fraudes nesta importante atividade.
* Juiz federal do Tribunal Regional Federal da 1ª
Região - Seção Judiciária de Goiás.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4417>. Acesso em: 31 jul. 2006.