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A imposição do princípio da equivalência material na teoria contratual contemporânea
Daniela Vasconcellos Gomes*
O direito civil clássico tem um caráter
formalista e patrimonialista, fruto do individualismo predominante durante toda
a modernidade. De modo que havia maior preocupação com a segurança jurídica que
com o equilíbrio das partes nas relações interprivadas. Nesse contexto, a
igualdade formal entre os contratantes era considerada suficiente para uma
suposta justiça contratual, pois a contratação seria fruto da livre convenção
das partes envolvidas. Entretanto, as diversas formas de desigualdades sociais
fizeram com que as partes mais fortes sempre conseguissem impor seus interesses
na realização das contratações.
Na sociedade contemporânea, inicia-se um processo de revalorização do
indivíduo, em detrimento de aspectos puramente patrimoniais. Para que uma
relação obrigacional possa ser socialmente aceita, é preciso que os interesses
das partes envolvidas estejam em harmonia, e que haja equilíbrio nas
contraprestações convencionadas. Assim, atualmente o ordenamento jurídico
estabelece diversos dispositivos para que se busque a efetiva igualdade nas
relações. Tratar-se-á, assim, nesse breve estudo, da teoria da imprevisão, e
dos institutos da lesão e do estado de perigo, sob a ótica do direito civil
contemporâneo.
1 Algumas considerações sobre o princípio da equivalência material
O princípio da equivalência material é manifestação da busca da efetiva
igualdade entre as partes na relação contratual. Quando a igualdade
jurídico-formal característica da concepção liberal mostrou-se insuficiente
para garantir o equilíbrio das prestações nos contratos, esse princípio passou
a ter grande importância na teoria geral dos contratos. A equivalência material
busca harmonizar os interesses das partes envolvidas, e realizar o equilíbrio
real das prestações em todo o processo obrigacional (LOBO, 2002, p. 192).
Esse princípio relativiza o princípio clássico do pacta sunt servanda, que
determina que, estabelecidas as condições do acordo, essas possuem força
obrigatória e devem ser cumpridas a qualquer custo, independentemente da
realidade fática. Isso porque com o reconhecimento de que a simples igualdade
formal não basta para se alcançar a justiça contratual, foi preciso levar em
consideração as condições reais para a execução do contrato realizado. Assim, o
contrato continua obrigatório, mas à medida que se mantenha dos limites de
equilíbrio entre as prestações.
É importante ressaltar que o princípio da obrigatoriedade foi abrandado, mas
não desapareceu. Aliás, isso nem seria possível, em nome da segurança jurídica
– valor tão importante para o Direito como os valores éticos e sociais. O que
ocorre é não se admite mais que, em nome da obrigatoriedade, possa haver
proveito injustificado de umas das partes em detrimento da outra conseqüência
de disparidades entre elas (BIERWAGEN, 2002, p. 30).
Essa preocupação com a comutativadade nas prestações está expressa no Código
Civil de 2002 com a previsão da teoria da imprevisão (art. 317 e 478 a 480/CC),
e dos institutos do estado de perigo (art. 156/CC) e da lesão (art. 157/CC),
que permitem a revisão das condições contratadas.
1.1 A teoria da imprevisão
Segundo Fiúza (2003, p. 297-298), o art. 317 do Código Civil, tal como se
apresentava na redação aprovada inicialmente pela Câmara, disciplinava a
aplicação da correção monetária. Após revisão final, foi suprimida tal
referência e o dispositivo ficou com o mesmo sentido do disposto no art.
478/CC, que trata da imprevisão.
Na teoria da imprevisão (art. 478/CC), na hipótese de superveniência de
acontecimentos imprevisíveis e extraordinários, que tornem a prestação
excessivamente onerosa para um dos contratantes e extremamente vantajosa para o
outro, é possível pedir a resolução do contrato ou a revisão de seus termos,
para restabelecer o equilíbrio econômico entre prestação e contraprestação
(THEODORO JUNIOR, 2003, p. 12; BIERWAGEN, 2002, p. 66-67).
A aplicação da fórmula rebus sic stantibus é possível nos contratos de trato
sucessivo ou a termo, em que o princípio pacta sunt servanda, que rege a força
obrigatória dos contratos, é limitado. Assemelha-se ao fato fortuito ou força
maior, mas a diferença é que na onerosidade excessiva o evento extraordinário e
imprevisível determina apenas uma dificuldade, e não a impossibilidade de
prestar.
1.2 O estado de perigo
No estado de perigo, a parte, premida pela necessidade de se salvar, ou de
salvar pessoa de sua família, de um grave dano conhecido pela outra parte,
assume obrigação extremamente onerosa. O agente só assume a obrigação em razão
de a vida ou a saúde, própria ou de seu familiar, estar em perigo. Em condições
normais, a pessoa não assumiria tal negócio, pois paga-se o preço
desproporcionado para obtenção de socorro.
Alguns exemplos de estado de perigo encontrados na doutrina: 1) Uma vítima de
um acidente que, para ser salva logo, promete grande recompensa (por exemplo,
doar todo o seu patrimônio) ou assume negócio exagerado. 2) Alguém, vendo um
membro de sua família em grave estado de saúde, sob risco de morte ou mal
grave, aceita contratar o único médico disponível ou que pôde ser encontrado
naquelas circunstâncias (seja pela sua disponibilidade, seja pela sua
especialidade, etc.), pagando honorários muito superiores ao de mercado. 3) Os
pais, tendo o filho seqüestrado, vendem o patrimônio a preço inferior ao de
mercado para pagar valor requisitado em resgate. 4) Um paciente chega em
caráter de urgência ao hospital e é exigido de seus parentes a constituição de
uma garantia cambial ou fidejussória para que possa ser prestado o atendimento.
A configuração do estado de perigo compõe-se de requisitos objetivos e
subjetivos. O primeiro diz respeito à ameaça de grave dano – atual ou iminente
– à própria pessoa ou à pessoa de sua família, que leva a pessoa à assunção de
obrigação excessivamente onerosa. O segundo, ao conhecimento do perigo pela
outra parte, que obtém vantagem com a situação (THEODORO JUNIOR, 2001, p.
252-253).
A ameaça de dano não significa desequilíbrio de prestações, pois o estado de
necessidade pode conduzir a negócios unilaterais, em que a prestação assumida é
exclusivamente pela vítima (v.g. remissão de dívida, promessa de recompensa,
renúncia de direitos, testamento). Ou seja, o negócio acarreta uma oneração
para a vítima do estado de perigo não compatível com o negócio que se
praticasse fora do contexto de perigo (THEODORO JUNIOR, 2001, p. 252-253). O
magistrado, ao verificar o estado de perigo, deverá examinar o caso concreto
posto à análise, para verificar a onerosidade excessiva. Deve ser verificado
caso a caso, pois o que é negócio onerosamente excessivo para uns, não o será
para outros. Deverá, assim, ser levada em consideração a situação financeira do
promitente. O juiz decidirá pelo bom senso, conforme determina o art. 5º/LICC.
O estado de perigo se encontrava, em restritas hipóteses, dentro da coação.
Segundo Humberto Theodoro Junior (2001, p. 252), o estado de perigo se aproxima
da coação moral, porque a vítima que contrata sob seu impacto não tem,
praticamente, condições para declarar livremente sua vontade negocial. Mas o
estado de perigo difere da coação porque nele “o beneficiário não empregou
violência psicológica ou ameaça para que o declarante assumisse obrigação
excessivamente onerosa. O perigo de não salvar-se, não causado pelo favorecido,
embora de seu conhecimento, é que determinou a celebração do negócio
prejudicial” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002, p. 380)
1.3 A lesão
A lesão configura-se quando uma das partes obtém uma vantagem desproporcional,
em prejuízo da parte que contratou por inexperiência ou diante de uma
necessidade urgente (art. 157, caput/CC). Muitas vezes significa “o abuso do
poder econômico de uma das partes, em detrimento da outra, hipossuficiente na
relação jurídica” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002, p. 370).
Alguns exemplos de lesão encontrados na doutrina: 1) A venda de um computador
com configuração ultrapassada, que, embora anunciado corretamente (modelo,
capacidade de memória, periféricos, etc.), é vendido por um preço exorbitante,
aproveitando-se da inexperiência do comprador. 2) Alguém prestes a ser
despejado, procura outro imóvel para morar, cujo proprietário, mesmo não tendo
conhecimento do fato, eleva o preço do aluguel. Diante da necessidade de
abrigar sua família, o inquilino acaba aceitando o contrato, para evitar a
situação vexatória. 3) Um agricultor lavra a terra pela primeira vez, e
necessita de produtos químicos para acabar com as pragas em sua plantação. Ele
contrata livremente com o vendedor, que se aproveita da sua inexperiência na
agricultura e cobra preço excessivo. O lavrador, por ser inexperiente, não
conhece a verdadeira qualidade, nem o custo real do produto. Ele paga o preço
cobrado, diante da necessidade que tem de evitar a praga que pode se alastrar
por toda a plantação.
Na constatação da premente necessidade, da inexperiência ou da leviandade,
deve-se levar em consideração as condições pessoais do lesado, assim como
ocorre na apreciação da coação. Mas na lesão, diferentemente do estado de
perigo, é irrelevante a situação econômica do lesado.
Como ensinam Gagliano e Pamplona Filho (2002, p. 374), a premente necessidade
tem fundamento econômico e reflexo contratual. Trata-se de uma necessidade
contratual, que se caracteriza uma situação extrema, que impõe ao necessitado a
celebração do negócio prejudicial. Pode ser de ordem material ou espiritual,
desde que se tratem de coisas importantes para a sobrevivência digna da pessoa.
A inexperiência pode ser entendida como a falta de habilidade para o trato nos
negócios, mas não significa, necessariamente, falta de instrução ou de cultura
geral. Essa definição aproxima a lesão do erro, mas no caso da lesão, a
inexperiência é aproveitada pelo contratante mais forte, capaz ou conhecedor,
em detrimento do débil ou inexperiente, sem se configure o erro ou mesmo o
dolo. O inexperiente nota a desproporção, mas em razão da falta de experiência
de vida, acaba concordando irrefletidamente com ela, sem perceber as
conseqüências prejudiciais que trará, chegando a um resultado que,
conscientemente, não desejaria. Até mesmo uma pessoa culta pode ser lesada, se
desconhecer certas circunstâncias que a levem a se envolver, especialmente em
determinados tipos de contratos, que exigem conhecimentos técnicos ou de usos e
costumes locais, não acessíveis a ela (LOUREIRO, 2002, p. 228; GAGLIANO;
PAMPLONA FILHO, 2002, p. 374). Um médico, por exemplo, pode ter grande
conhecimento específico em sua área, mas se, pela primeira vez, vai adquirir um
imóvel, pode lhe faltar informações sobre documentos necessários para a
contratação, o registro que transmite a propriedade, ou pode ser pessoa
desligada de assuntos econômicos e desconhecer o real valor do bem ou as regras
de financiamento, e ser lesado (SANTOS, 2002, p. 186).
A leviandade caracteriza uma atuação impensada, inconseqüente, em que a
realização do negócio acontece sem a necessária reflexão em torno das
conseqüências provindas do acordo. O que não pode ocorrer é atitude culposa,
seja por negligência ou imprudência (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002, p.
374-375). Embora o Código Civil brasileiro não mencione a leviandade como elemento
subjetivo que pode causar a lesão, como ocorre no Código Civil alemão e no
Código Civil argentino, a doutrina reconhece que, se ocorrer esse estado de
ânimo, o ato pode estar recoberto pela lesão. No Brasil, a leviandade já era
considerada elemento da lesão na Lei 1.521/51, que trata dos crimes contra a
economia popular (SANTOS, 2002, p. 190-191).
O contrato pode ser anulado ou revisto nesse caso porque é contrário ao
princípio da boa-fé, imposto pelo art. 422/CC, a realização de um negócio com
extrema vantagem de uma parte em detrimento da outra, que contrata em situação
de inferioridade (THEODORO JUNIOR, 2001, p. 250).
Assim, na sua aferição, são considerados o requisito objetivo – clara
desproporção entre as prestações, que leva à obtenção de lucro exagerado e
incompatível com a normal comutatividade do contrato – e o subjetivo – o
aproveitamento por uma das partes do estado psicológico do outro, consistente
em premente necessidade, inexperiência ou leviandade (THEODORO JUNIOR, 2001, p.
248; GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002, p. 374).
A desproporção entre as prestações por si só não caracteriza a lesão, porque
nem sempre as prestações serão necessariamente equivalentes. De modo que não há
lesão quando um contratante compra a valor muito elevado um imóvel que lhe
agrada por ter ele um valor histórico ou sentimental (por ser uma antiga
residência da família, por exemplo). Por outro lado, a manifesta desigualdade
pode ser um sinal da existência do vício da vontade. Ou seja, para ser
configurada a lesão é preciso que exista algo além da manifesta desigualdade
das obrigações, que é justamente a exploração de uma das partes pela outra, que
se aproveita da situação de necessidade, inexperiência ou leviandade do
primeiro (LOUREIRO, 2002, p. 224).
Assim, é através da teoria da imprevisão e dos institutos da lesão e do estado
de perigo que a legislação vigente pretende manter o equilíbrio contratual nas
contratações. São medidas de proteção aos contratantes de grande importância,
pois sem a equivalência material das prestações, não há como se falar em
justiça contratual.
De modo que ao jurista de hoje é imprescindível o abandono do formalismo e do
absolutismo de outras épocas, e a aceitação da relativização de certos
conceitos, na busca de soluções para as questões que se apresentam na realidade
contemporânea (WALD, 2002, p. 30). Somente com a efetivação dos valores éticos
e sociais impostos com a recente legislação civil é que a realidade jurídica
estará de acordo com os ditames constitucionais e, principalmente, com os
anseios da sociedade.
Considerações finais
Diante das diversas desigualdades e injustiças percebidas em inúmeros contratos
realizados, no direito civil contemporâneo abandona-se a idéia que a igualdade
formal é suficiente para a consecução da justiça contratual, e parte-se em
busca da igualdade material das partes, para que seja possível um maior
equilíbrio nas relações.
Assim, o atual ordenamento jurídico brasileiro estabelece diversos dispositivos
para que se busque a efetiva igualdade nas relações. Através da teoria da
imprevisão e dos institutos da lesão e do estado de perigo, entre outras
possibilidades existentes, é possível relativizar certos ditames que visavam a
segurança jurídica, em prol de uma menor disparidade de condições entre os
contratantes.
O Direito e a sociedade como um todo ainda haverão de evoluir muito na questão
da justiça contratual, mas devemos reconhecer que já avançamos bastante, ao
trilharmos esse caminho de maior proteção para as partes contratantes mais
desprotegidas. É importante ressaltar ainda que cabe aos operadores do Direito
a missão de colocar em prática essas possibilidades abertas pelo legislador
pátrio, em busca de uma sociedade mais justa e solidária. Pois não basta a
existência de uma legislação protetiva, é preciso sua efetividade social.
Referências
BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos
no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002
FIÚZA, Ricardo (Coord). Novo Código Civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2003.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil:
parte geral. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002.
LOBO, Paulo Luiz Netto. Princípios sociais dos contratos no Código de Defesa do
Consumidor e no novo Código Civil. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo,
n. 42, p. 187-195, abr.-jun. 2002.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria geral dos contratos no novo código civil. São
Paulo: Método, 2002.
SANTOS, Antônio Jeová. Função social: lesão e onerosidade excessiva nos
contratos. São Paulo: Método, 2002.
THEODORO JUNIOR, Humberto. O contrato e seus princípios. Rio de Janeiro: Aide,
2001.
________. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
WALD, Arnoldo. A função social e ética do contrato como instrumento jurídico de
parcerias e o novo Código Civil de 2002. Revista Forense. Rio de Janeiro, v.
98, n. 364, p. 21-30, nov.-dez. 2002.
*Descrição do Autor
Especialista em Direito Civil Contemporâneo pela Universidade de Caxias do
Sul;mestranda em Direito Ambiental na Universidade de Caxias do Sul; componente
do Grupo de Pesquisa Metamorfose Jurídica (CNPq/UCS); advogada.
GOMES, Daniela Vasconcellos. A imposição do princípio da equivalência material na teoria contratual contemporânea. Disponível em: <>. Acesso em: 31 jul. 2006.