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Direito
de quê? Ou a saga de uma trupe
Giuliano Fabrício
Miotto Borges de Freitas *
Nós, estudantes de direito, estamos nos afundando irremediavelmente nos
obscuros poços da mediocridade, hipocrisia e do pedantismo. Todas estas vis
manifestações do egocentrismo, que têm seu nascedouro desde antes do
vestibular, crescem no decorrer do curso e atingem o seu ápice numa ostentosa
festa de formatura, sem que ninguém ouse discuti-las abertamente. Sem que haja,
ainda, qualquer movimento no sentido de resgatar o sonho dos jusfilósofos e dos
sociólogos, de um mundo em que os operadores do Direito sejam pessoas
preocupadas com o ideal de uma Justiça pura e justa (desculpem-me o pleonasmo).
Nossa saga, ou pelo menos da quase totalidade dos estudantes de direito,
tem sua gênese nas salas dos "cursinhos" de pré-vestibular, onde nos
destacamos em três grupos básicos:
No primeiro, estão incluídos alguns gananciosos seres que perdem um bom
tempo de sua ordinária adolescência, imaginando o quanto o curso de direito
lhes será útil para alcançarem ou manterem o nirvana que uma boa quantidade de
dinheiro pode proporcionar. Como exemplo do primeiro grupo, podem ser
vislumbrados, entre outros, alguns (não todos) filhos de famílias de
tradicionais direiteiros e cujo nome é idêntico ao do pai, exceto pela aposição
no final de um "Júnior", "Filho" ou "Neto".
Ressalte-se que no caso de utilização do "Neto", temos uma idiotia
que remonta a tempos idos. Ainda neste grupo, existem uns rapazes e moças de
classe média baixa que resolvem estudar direito para mudarem a situação
periclitante de suas finanças ou por pura jactância, esperam poder exibir num
futuro próximo seus carros importados e roupas sisudas.
Num hipotético segundo grupo, existem uns poucos sujeitos muito inteligentes,
que estão a três ou quatro anos peregrinando por cursinhos, salas de
específicas, médiuns, pastores da universal, terrenos de umbanda, quimbanda e
tudo o mais que termine com "banda", sempre atrás de alguma
ajuda para vencerem a barreira do "vestiba". Geralmente já
decoraram a maioria dos livros e apostilas e somente não passaram ainda, devido
à uma inexplicável onda de má-sorte. O detalhe mais importante que diferencia
esse grupo é o fato de que seus integrantes, na verdade, estão tentando vestibular
para Medicina, Odontologia ou Relações Internacionais na UNB, USP, UFG etc.
Entretanto, depois de furarem as cadeiras de estudo e, até mesmo, adquirirem
varizes nas veias anorretais, eles se cansam e optam por fazer direito na
Católica, Anhangüera ou na Universo (recentemente fomos agraciados também com a
UNIP), figuram entre os primeiros colocados, tornam-se os melhores alunos,
viram juizes ou promotores e vão dormir tranqüilos, mas eternamente frustrados.
Continuando esta absurda classificação, encontramos num terceiro grupo a
maioria dos estudantes de direito, quais sejam, aqueles que não decidiram ainda
um rumo a seguir na vida, que sempre tiveram vontade de estudar música,
história ou filosofia, mas que nem mesmo tinham certeza disto e entraram no
mundo do direito porque ouviram dizer que os cursos acima não estão com nada e
que, fazendo direito, iriam acabar encontrando alguma graça no decorrer do
curso (sem falar no mar de possibilidades dos concursos públicos). Este grupo
também abraça aqueles que estão cansados de ficar o dia inteiro recebendo
ordens de um patrão mal-humorado e fazem direito visando sair do marasmo de
suas vidas.
Antes de prosseguirmos, perfaz-se necessário esclarecer que essa
classificação inicial, bem como as que se seguirão, não têm nenhum fundamento
científico e não esgotam-se em si, podendo serem encontrados algumas
subespécies ou espécimes inclassificáveis, os famosos "peças-raras".
Podendo, inclusive serem questionadas por qualquer sujeito que, desocupado como
eu, ache um "tempinho" para ser perdido.
Na fase seguinte, é de bom alvitre comparar o festival do vestibular com
a fecundação de um óvulo. Os espermatozóides são as centenas de garotos e
garotas que digladiam-se, espremem-se e correm aleatoriamente para encontrarem
o seu alento no interior do óvulo que materializa-se na tão almejada vaga da
faculdade. Que, quando alcançada, gera uma pungente alegria que irradia por
toda a nossa Cidade, que praticamente decreta feriado, para que todos possam
assistir o passeio dos "sortudos" amarrados em carros e sujos de
ovos, terra, tinta multicolorida, batom entre outros.
Uma vez dentro deste invólucro protetor, começa a formação dos novos "operadores
do dinheiro", desculpem-me, do "Direito".
E os professores e livros dão o alimento para crescermos e onde alguns fetos
mais animados, chegam a buscar outras fontes de saber em escritórios
"exploracacia". E é sobre algumas características desses curiosos
espécimes que vamos nos deter nos parágrafos que se seguem.
Superado o estágio anterior, entramos deslumbrados num palco italiano que
abre-se na parte anterior, não havendo nenhuma outra saída e um obscuro
poscênio. Na parte lateral deste palco a orquestra toca uma música monótona a
qual devemos dançar sem parar e sem direito a pedidos da platéia. Se alguém
grita para que a música cesse ou seja mudada, é educadamente convidado a
retirar-se do recinto. O poscênio é tão diminuto e escondido e tão abafado pelo
som da orquestra e pelas cortinas de ferro que o cobrem, é como se não estivesse
ali. Este bastidor é constituído pelos Centros Acadêmicos, os Diretórios, os
Movimentos Estudantis e alguns elementos isolados que vivem alheios a tudo, mas
conscientes. Estes são o alvo de críticas tanto da platéia, quanto dos
diretores e atores da peça. Os espectadores censuram a sua inércia irritante,
recusam-se a pagar a taxa que vem inclusa na mensalidade e detestam os seus
integrantes. Eu mesmo já me peguei algumas vezes excomungando alguns deles. De
qualquer forma, o melhor de tudo é que todos nós proferimos sentenças
condenatórias sem ao menos saber o que acontece nestas salas ocultas. Ou seja,
atiramos as pedras sem atentarmos a qual pecado foi cometido, ou se foi. As
pessoas chamam isso de pré-julgamento, eu chamo de uma condicionante proporcionada
pela inebriante música oficial que faz com que odiemos os sons desarmônicos ou
os gritos aflitos daqueles que operam atrás do palco.
Já na universidade, nosso aprendizado alienante ensina-nos a trabalhar
nossa dialética, eloqüência, a capacidade de sofismar e todas as demais
características descritas no início do texto, tudo em prol de um objetivo
egoísta e competitivo. É incrível, mas nós que deveríamos ser a voz que grita
em favor da injustiça, não passamos de meros homúnculos lutando entre si por um
pedaço cada vez maior do bolo de dinheiro que circula nas classes altas e
empresas. Ou seja, ao invés de nos unir pelo bem da justiça, o que beneficiaria
a todos, preferimos brigar cada qual por seu pedaço, individualmente. Graças a
Deus existem algumas exceções a esta regra.
Para aqueles que não conhecem o curso de direito e seus personagens,
escolhi como primeiro exemplo um tipo muito comum para iniciar os indivíduos
desavisados. Trata-se do pseudo-doutor "X". O pseudo-doutor
"X" é um sujeito muito esperto, ele sabe alguns artigos da
Constituição e do CPC de cor, discute calorosamente com os professores e
colegas sempre baseado em doutrinas de fundamento duvidoso e, positivista como
ele é, tira sempre boas notas (mesmo que às custas de cola). É geralmente
benquisto pelos colegas que o vêem como um modelo a ser seguido. Normalmente o
pseudo-doutor "X" já trabalha em algum escritório de advocacia e anda
sempre janota. Neste ponto ele é um primor, sapatos sempre engraxados, camisa
bem passada, gravata elegante e terno preto ou azul escuro. Detalhe, a cor
escura visa dar um ar de imponência e impingir respeito nos seus
interlocutores. Na maioria das vezes estes apetrechos são herdados do pai, que
já é advogado ou afeito ao uso de fantasias sociais. Ele justifica-se acerca do
seu excesso de zelo afirmando que são os "ossos do ofício", ou
"vejam só como advogado sofre, sempre de terno e gravata", ou ainda
"é preciso vestir-se assim para se obter respeito dos escreventes, juizes
e outros". Dessa forma, ele tenta dar um ar de sacrifício ao que na
verdade não passa de narcisismo elevado ao quadrado.
Este pseudo-doutor "X" é dotado de grande poder de retórica,
que exterioriza com silogismos críticos. Às vezes tem um carro que foi dado
pelo papai e passa quase todo o curso (senão todo ele) sustentado por este. Com
um ano de formado já planeja comprar um "Vectra" ou um "Audi
A4". Geralmente, este tipo está na mesma linha, já mencionada dos
"Juniores", "Filhos" ou "Netos", mas alguns deles
têm nome próprio, fato este que não os dá nenhuma personalidade própria. Alguns
elementos deste tipo fazem-me lembrar um texto que eu li sobre aqueles
pesquisadores que descobrem alguma nova doença e a batizam com seu nome (tipo
Mal de Alzheimer, de Parkinson etc.). Da mesma forma, esta prática passa uma
idéia de criação. Basta lembrar que o Dr. Frankstein deu seu nome para o
monstro que criou. Seguindo esta linha de raciocínio, quando damos nosso nome a
um filho, estaríamos criando nossos monstros ou batizando nossas doenças.
Um outro tipo de estudante de direito é aquele que acha que já sabe tudo.
Ainda não é ninguém, mas sente-se como um deus de sua área de
abrangência. Mal cumprimenta os colegas, ou simplesmente finge não os conhecer.
Puxa o saco de todos os Professores e espera que eles o adotem como pupilos.
Este tipo geralmente vai se tornar um promotor de justiça ou um delegado.
Escolhem estas profissões para poderem seguir pela vida fazendo o que bem
entender com as suas vítimas, ou os seres inferiores que cruzarem seu caminho.
Têm características típicas de sádicos e são capazes de ignorar a própria
imagem no espelho, pois chega um momento que se esquecem quem já foram um dia.
A maioria deles sofre de halitose.
Temos também aquela pessoa que termina o curso em quatro anos, ou seja,
atropela a ordem natural de um curso muito importante, paga terceiros para
fazerem os trabalhos que são tantos, mas lhe é impossível fazer sozinha, pois
está com sobrecarga de matérias. Quando entra na faculdade, prende a respiração
e somente a solta após as glórias da formatura.
Acho que vou perder algumas linhas para comentar sobre este festival, o
tão esperado ritual onde uma quantidade enorme de dinheiro é despendida para
que todos se divirtam, menos o formando e seus pais. O formando não se diverte
devido à maratona de fotos, preparativos, reuniões que participa para, no dia
do baile, ficar tentando agradar a todos, não agradando ninguém e pagando toda
a conta para dormir bêbedo. Sua família não se diverte pois estouram o
orçamento familiar, têm que agüentar os desaforos do (a) filho (a) que está uma
pilha de nervos e que fica dando patada em todos, são os que de
fato pagam a conta e desesperam-se quando descobrem que o (a) formando (a)
ainda não está apto (a) ao mercado de trabalho, ou seja, vai ter que fazer mais
uns dois ou três anos de cursos jurídicos caríssimos.
Alguns desses tipos podem ser facilmente encontrados, depois de formados,
nas bibliotecas do Fórum, da Justiça do Trabalho ou da OAB, são boas pessoas,
muito bem humoradas e, embora desempregadas, não abrem mão de uma boa farra.
Com o dinheiro da mesada, é claro.
Alguém perguntaria: - Qual o pior mal cometido por todas essas pessoas
e as demais aqui não citadas? Infelizmente, o maior infortúnio cometido por
nós é o fato de não gastarmos nosso tempo e juventude na construção de um mundo
melhor. Não conseguirmos ver nada além do próprio umbigo e não ouvirmos senão o
ronco de nossos estômagos. É o mal de vivermos cercados de dilemas comezinhos,
de, na primeira oportunidade, humilharmos qualquer pessoa que não saiba o que
são autos do processo. De fazermos isto somente para mostrar ao mundo
que aprendemos um novo idioma: O "juridiquês". - Será possível que
vocês nunca entenderão o verdadeiro significado de ser um profissional do
direito? Como provar-lhes a existência de um mundo onde a fome e a desesperança
são reais? Penso seriamente se teremos o discernimento necessário para
sabermos quando estaremos defendendo uma "justiça" criada somente
para atender os interesses da elite, ou os verdadeiros e supremos interesses da
humanidade, baseados na ética e na moral. Aqui entenda-se como sendo
"justiça" o conjunto de leis que impedem que o cidadão comum acesse o
mundo jurídico e possa viver livre da opressão da classe dominante. A minha esperança
é de que um dia tenhamos o bom senso de descobrir que o império da Lei não
contém em si, enquanto palavra morta, a essência da Justiça e que esta somente
se concretizará com os nossos atos, movidos apenas por altruísmo, moralidade,
ética e bom senso. Se houver este dia, talvez entendamos que a verdadeira norma
fundamental, citada por Kelsen, tem sua morada no âmago do nosso ser. Ou
melhor, dentro das mais elevadas virtudes da alma humana, elencadas como
mandamentos descritos, tanto na Bíblia, quanto em todos os ensinamentos
religiosos e filosóficos. Platão, defendia a dualidade existente entre o bem e
o mal, aquele representado pela alma, este pela matéria. Plutino, filósofo dos
tempos da famosa Biblioteca de Alexandria, defendia que somente existe o bem e
que o mal é apenas o afastamento da luz de Deus, donde o bem é irradiado.
Assim, façamos nossa opção filosófica, para depois ou pularmos para o lado do
bem, nos dedicando ao espírito, ou direcionar nossa caminhada para a luz da
bonomia divina. Por fim, sabemos que você que está lendo este simples desabafo,
se for aluno do curso de direito, já foi, ou pretende ser, não se enquadra em
nenhum dos tipos listados. Isto porque apenas foi discorrido acerca de um mundo
imaginário e não de pessoas reais. Todo o discurso foi baseado em um pesadelo
que tive e, principalmente, na Universidade que estudamos, não existem estas
mazelas.
NOTAS
(1) Verbete:
trupe: 1. Grupo de artistas ou comediantes.
* Acadêmico de Direito da Universidade Católica de
Goiás.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1890>. Acesso em: 25 jul. 2006.