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A soberania do povo na fiscalização do exercício de sua soberania
Celso Antônio Três*
Resumo
A soberania do povo, em nome do qual todo o poder é
exercido, tem no direito ao voto universal e secreto o meio de expressão da
soberania popular. Tal direito carece de amplo exercício de fiscalização para
sua completa efetivação. Fiscalização esta que deve ser exercida e
compreendida, motu próprio, pelo eleitor comum, mediano, titular primeiro desta
soberania.
O soberano que não é instrumentado a fiscalizar o
exercício de sua soberania não é soberano. De nada vale um poder, uma
prerrogativa, desprovido dos meios necessários à sua verificação pelo seu
titular.
Conclui-se que urge conciliar a irremovível instrumentação
da soberania popular com as conveniências da tecnologia. Proceder-se a votação
e a apuração eletrônica, acompanhada da impressão física das cédulas, de forma
a garantir a palpável, testemunhável, eventual aferição que venha a fazer-se
necessária, é uma das soluções.
1. Introdução
A história da democracia evolui na razão direta do
direito, liberdade e segurança do voto.
Quanto ao direito, pode-se elencar duas instâncias.
Primeiro, o desafio de alternância na gestão pública. O
poder imperial baseava-se na aristocracia de nascimento. Reinado de inspiração
divina. Hereditariedade do soberano.
Segundo, a luta em universalizar a interação coletiva na
"res publica". A participação, direta ou mediante representantes
eleitos, progressivamente, foi debelando as diversas discriminações, a exemplo
da econômica (v.g., voto censitário), religiosa (v.g., castas), racial (v.g,
escravos), sexual (v.g., mulheres), cultural (v.g., analfabetos),
profissional(v.g., militares de estamentos inferiores), etc., bem assim os
inúmeros artifícios elitistas, como eleições indiretas, colégios eleitorais
viciados (v.g., senadores "biônicos"), exclusão de unidades da
federação (v.g., zonas de segurança), afora a brutalidade explícita da força, a
exemplo dos golpes de estado (v.g., atos institucionais).
Sem descurar da sábia máxima, "o preço da liberdade é
a eterna vigilância", pode-se afirmar que o Brasil, inobstante as marchas
e contramarchas, galgou essa universalização do direito ao voto.
A liberdade, contudo, está em permanente busca de sua
plenitude. Qualquer vício na vontade do eleitor cerceia a liberdade de seu
voto. Desde a truculência do cabresto coronelista, passando pela coação moral
do poder econômico, corrupção do sufrágio, voto famélico, atingindo a insidiosa
trucagem da propaganda eleitoral, chegando a sutil manipulação das pesquisas e
veiculação dos fatos políticos do pleito, são diversas formas de uma idêntica
agressão, qual seja, usurpar a soberana decisão do cidadão definir em quem ele
quer votar. O sigilo do sufrágio (art. 14, "caput", da C. F.), a
ampla criminalização de sua cooptação (art. 299 do Código Eleitoral), a estrita
regulação da propaganda eleitoral (arts. 36 a 57 da Lei nº 9.504/97), são
expressões de igual necessidade, tutelar a liberdade no exercício do voto.
De sua parte, a segurança do sufrágio, entendida como a
rigorosa fidelidade entre a vontade expressa pelo eleitor e o resultado apurado
e declarado pela instituição eleitoral, também carece de constante
aprimoramento. Afora a probidade e competência das autoridades eleitorais, o
"modus faciendi" da votação e apuração cumpre decisiva função na
busca dessa segurança. A consistência e eficiência desse coíbe os desvios
daquelas.
2. Análise
Sabidamente, a criação da Justiça Eleitoral, 1932, foi
decisiva ao saneamento dos pleitos contra as repetidas fraudes. Nas primeiras
eleições, indiretas, às Câmaras Municipais, ainda quando o Brasil era colônia
de Portugal, o eleitor de primeiro grau aproximava-se da mesa eleitoral e dizia
ao escrivão, em segredo, o nome de seis pessoas, os eleitores de segundo grau.
O escrivão, por sua vez, anotava as indicações e, terminada a votação, os
juizes e vereadores apuravam os vencedores.
No Império e Primeira República, o voto, inobstante
fechado, não era secreto. O sufrágio sempre era consumado sob a presença de
alguém. Não havia previsão da cabine indevassável na seção eleitoral, nem a
prescrição de cédula oficial.
A identificação do voto, em princípio, fator de segurança,
reprimindo a adulteração quando da apuração, dobra-se ao imperativo da
liberdade, uma vez que o mais absoluto sigilo é decisivo à defesa contra
constrangimentos em prejuízo do cidadão eleitor. Princípio justificador de
todos os cuidados, a exemplo do que preconiza espaço na urna suficiente a não
permitir que as cédulas acumulem-se na ordem na qual foram introduzidas(art.
103, IV, do Código Eleitoral).
Quanto ao ato de votar, sinteticamente, evoluiu-se ao
seguinte processo recebimento da senha, apresentação do título, assinatura nas
folhas de votação, recepção da cédula, entrada na cabine indevassável,
introdução da cédula na urna, rubrica do presidente nas folhas de votação,
recebimento do título pelo eleitor, datado e rubricado pelo presidente da mesa.
No que refere à apuração dos votos, em suma, é manual,
pública, procedida pela Justiça Eleitoral, auxiliada por escrutinadores por ela
convocados, sob a fiscalização do Ministério Público e Partidos Políticos.
Quanto à votação, a urna eletrônica alterou o último e
mais relevante ato, a recepção do sufrágio. No que refere à apuração, modificou
radicalmente, automatizando o processo.
Nada de manual, táctil, visível, audível, odorante ou
sápido.
A urna eletrônica traz o fenômeno da intangibilidade. Aos
triviais sentidos do cidadão (Eleitor, Juizes Eleitorais, Membros do Ministério
Público, Candidatos, Membros de Partidos Políticos, etc.), o magnetismo da
informática é incorpóreo, não testemunhável. Urge confiar no atestado técnico.
Tão somente eles, os técnicos, e apenas eles, estarão aptos a debater e a
conhecer do assunto.
A aferição da urna eletrônica restringe-se ao hermetismo
da ciência avançada. Pela simples razão que nenhum ato é imune à fraude, a
informática, nada mais que um produto do engenho humano, também insere-se nessa
vala comum. Basta ver a adulteração de inúmeros sistemas, considerados, até
então, indevassáveis. Como toda a tecnologia de ponta, sua lógica é a da
espiral do incessante aperfeiçoamento. Eterna e recíproca superação entre os
mecanismos de proteção e os artifícios da violação.
3. Conclusão
Contudo, mesmo fosse cientificamente possível garantir a
segurança técnica, isso não seria suficiente. Impõe-se disponibilizar ao
cidadão, através de suas faculdades normais, motu próprio, a possibilidade de
sindicar a devida observância à sua vontade eleitoral.
A Constituição da República, de forma lapidar e
definitiva, estabelece a pedra fundamental do Estado Brasileiro, após
certificar que "... todo o poder emana do povo..." (art. 1º,§ único,
da C.F.), diz que "a soberania popular é exercida pelo sufrágio universal
e pelo voto direto e secreto ..."(art. 14, "caput", da C.F.).
De sua parte, um dos sustentáculos do Direito
Constitucional, vital a conferir efetividade aos preceitos fundamentais, é a
conhecida teoria/doutrina dos poderes implícitos, traduzida pelo extraordinário
Mestre Paulo Bonavides, ao dizer que "... na interpretação de um poder,
todos os meios ordinários e apropriados a executá-lo são considerados sempre
parte do próprio poder..."(Curso de Direito Constitucional, Malheiros, 10ª
edição, p. 432).
De que vale um poder, uma prerrogativa, desprovido dos
instrumentos necessários à sua efetivação?!?!?
Soberania pressupõe poder supremo. Onde está a supremacia
do povo em um processo cuja apuração não é instrumentado por mecanismos que
permitam-lhe certificar-se da soberania de sua vontade?!?!?. Pior. Sequer os
agentes operadores, Membros da Justiça Eleitoral, do Ministério Público, dos
Partidos Políticos, Candidatos, são, diretamente, dele dotados. Apenas
assistidos por técnicos.
Soberano que não é instrumentado a fiscalizar o exercício
de sua soberania não é soberano.
É inerente, "ratio essendi" da soberania
popular, que todo o processo eleitoral, alistamento, registro de candidaturas,
propaganda política, votação, apuração, diplomação, etc., sejam aferíveis pelo
titular dessa soberania, o povo. Aferíveis, diga-se, por todo o eleitorado,
desde o mais rutilante PhD até o excluído analfabeto. A propósito, nunca é
demais lembrar que o Brasil é País dos excluídos.
Inegáveis os avanços da urna eletrônica. O Código
eleitoral de 1932 já prescrevia a utilização de "máquinas de votar".
A imagem favoreceu a correta identificação dos candidatos pelo eleitor,
reduzindo o número de erros e sufrágios nulos. A rapidez na apuração cerceou
delongas que, muitas vezes, ensejavam fraudes. De sua parte, a supressão do
contato humano, igualmente dificultou distorções. Todavia, enquanto a
adulteração tradicional fazia-se voto a voto, a eletrônica procede-se no
atacado. Pior. Seu rastro, quando existente, é infinitamente menos perceptível.
Urge conciliar a irremovível instrumentação da soberania
popular com as conveniências da tecnologia. Proceder-se a votação e a apuração
eletrônica, acompanhada da impressão física das cédulas, de forma a garantir a
palpável, testemunhável, eventual aferição que venha a fazer-se necessária, uma
das soluções.
*Procurador
da República
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5595>. Acesso em: 09 nov. 05.