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Argüição de descumprimento de preceito fundamental
Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho*
Publicada a Lei n.º 9.882, de 3 de dezembro de 1999,
cujas disposições disciplinam o processo e julgamento da argüição de
descumprimento de preceito fundamental, instituto previsto no § 1.° do artigo
102 da Constituição Federal, e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil promoveu Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.231-8, Relator o Exmo
Sr. Ministro NÉRI DA SILVEIRA, contra a íntegra da referida Lei, e, em
especial, contra o teor do parágrafo único do artigo 1º, do § 3º do artigo 5º,
do artigo 10, caput, e seu § 3º, e, por fim, do artigo 11, todos da Lei
Federal acima reportada, sob a alegação de inobservância dos artigos 102, § 1.°
(Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental), 5.° , XXXVII (Princípio
do Juiz Natural), 5.° , LIV (Princípio do Devido Processo Legal), 92 e
seguintes. (Organização do Poder Judiciário), 2.° (Princípio da Separação de
Poderes), 52, X (Competência do Senado Federal), 1.° (Princípio do Estado
Democrático de Direito), 5.° , II (Princípio da Legalidade).
02. A propósito, o texto da norma cuja
inconstitucionalidade é argüida é o seguinte:
"Art. 1º. A argüição prevista no § 1º do art. 102
da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e
terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de
ato do Poder Público.
Parágrafo único. Caberá também argüição de
descumprimento de preceito fundamental:
I – quando for relevante o fundamento da controvérsia
constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal,
incluídos os anteriores à Constituição;
II – (VETADO).
Art. 2º. Podem propor argüição de descumprimento de
preceito fundamental:
I – os legitimados para a ação direta de
inconstitucionalidade;
II – (VETADO).
§ 1º Na hipótese do inciso II, faculta-se ao
interessado, mediante representação, solicitar a propositura de argüição de
descumprimento de preceito fundamental ao Procurador-Geral da República, que,
examinando os fundamentos jurídicos do pedido, decidirá do cabimento do seu
ingresso em juízo.
§ 2º (VETADO).
Art. 3º. A petição inicial deverá conter:
I – a indicação do preceito fundamental que se
considera violado;
II – a indicação do ato questionado;
III – a prova da violação do preceito fundamental;
IV – o pedido, com suas especificações;
V – se for o caso, a comprovação da existência de
controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que
se considera violado.
Parágrafo único. A petição inicial, acompanhada de
instrumento de mandato, se for o caso, será apresentada em duas vias, devendo
conter cópias do ato questionado e dos documentos necessários para comprovar a
impugnação.
Art. 4º. A petição inicial será indeferida
liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de argüição de descumprimento
de preceito fundamental, faltar alguns dos requisitos prescritos nesta Lei ou
for inepta.
§ 1º Não será admitida argüição de descumprimento de
preceito fundamental quando houver outro meio eficaz de sanar a lesividade.
§ 2º Da decisão de indeferimento da petição inicial
caberá agravo, no prazo de cinco dias.
Art. 5º. O Supremo Tribunal Federal, por decisão da
maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na
argüição de descumprimento de preceito fundamental.
§ 1º Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão
grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad
referendum do Tribunal Pleno.
§ 2º O relator poderá ouvir os órgãos ou autoridades
responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advogado-Geral da União ou o
Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias.
§ 3º A liminar poderá consistir na determinação de que
juízes e tribunais suspendam o andamento de processos ou os efeitos de decisões
judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria
objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se
decorrentes da coisa julgada.
§ 4º (VETADO).
Art. 6º. Apreciado o pedido de liminar, o relator
solicitará as informações às autoridades responsáveis pela prática do ato
questionado, no prazo de dez dias.
§ 1º Se entender necessário, poderá o relator ouvir as
partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações
adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre
a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de
pessoas com experiência e autoridade na matéria.
§ 2º Poderão ser autorizadas, a critério do relator,
sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento dos interessados no
processo.
Art. 7º. Decorrido o prazo das informações, o relator
lançará o relatório, com cópia a todos os ministros, e pedirá dia para
julgamento.
Parágrafo único. O Ministério Público, nas argüições
que não houver formulado, terá vista do processo, por cinco dias, após o
decurso do prazo para informações.
Art. 8º. A decisão sobre a argüição de descumprimento
de preceito fundamental somente será tomada se presentes na sessão pelo menos
dois terços dos ministros.
§ 1º (VETADO).
§ 2º (VETADO).
Art. 9º. (VETADO).
Art. 10. Julgada a ação, far-se-á comunicação às
autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados,
fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito
fundamental.
§ 1º O presidente do Tribunal determinará o imediato
cumprimento da decisão, lavrando-se o acórdão posteriormente.
§ 2º Dentro do prazo de dez dias contado a partir do
trânsito em julgado da decisão, sua parte dispositiva será publicada em sessão
especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União.
§ 3º A decisão terá eficácia contra todos e efeito
vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público.
Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou
ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito
fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional
interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços
de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que só
tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que
venha a ser fixado.
Art. 12. A decisão que julgar procedente ou
improcedente o pedido em argüição de descumprimento de preceito fundamental é
irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória.
Art. 13. Caberá reclamação contra o descumprimento de
preceito da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na forma do seu
Regimento Interno.
Art. 14. Esta lei entra em vigor na data de sua
publicação.
03. Neste trabalho, procuraremos apresentar uma
interpretação que salve a tão esperada lei disciplinadora da argüição de
descumprimento de preceito constitucional fundamental, na iminência de o
Plenário do Supremo Tribunal Federal se manifestar sobre suas normas no exame
de pedido de medida liminar.
04. Inicialmente é alegado que o conteúdo do parágrafo
único do artigo 1.° da Lei n.° 9.882/99 seria inconstitucional, sob o argumento
de que ampliaria a previsão insculpida no artigo 102, § 1.° da Constituição Federal,
ao admitir a argüição nas hipóteses de relevante fundamento da controvérsia
constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal,
incluídos os pré-constitucionais.
05. A Constituição Federal, de 1988, previu, no § 1º
do artigo 102, a argüição de descumprimento de preceito constitucional
fundamental, a ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.
06. Insta observar que a Constituição da República
estabelece, por meio da previsão dessa ação, mais um instrumento de defesa
concentrado ou abstrado de constitucionalidade, desta feita dando maior
proteção aos seus preceitos fundamentais, ou seja, aos grandes princípios e
regras basilares da Constituição.
07. Tendo sido constitucionalmente prevista a referida
ação de forma genérica, quis a nossa Carta Magna que a argüição de
descumprimento de preceito fundamental fosse amplamente regulamentada por lei
ordinária, dentro do espírito constitucional de se obstar que quaisquer atos
comissivos ou omissivos, bem como leis ou atos normativos atinjam esses valores
constitucionais basilares.
08. Veio a lume, finalmente, a Lei nº 9.882/99, que,
atendendo à vontade da Constituição, amplia o controle de constitucionalidade,
dando a necessária ênfase à defesa dos preceitos fundamentais, especialmente
nos casos ainda não amparados pelos os outros meios de controle concentrado de
constitucionalidade, como a possibilidade de controle abstrato de lei
municipal, antes só controlada pela via difusa ou concreta, bem como de leis e
atos normativos anteriores à Constituição.
09. Como testemunham CELSO RIBEIRO BASTOS e ALEXIS
GALIÁS DE SOUZA VARGAS:(1) "Com isso, o Excelso Pretório cumpre o
seu papel primordial de guardião-mor da Constituição e da ordem jurídica, bem
como faz uma ponte entre o controle concentrado e o difuso, uma vez que sua
decisão incidirá diretamente sobre os diversos processos judiciais. Para tanto,
poderá suspender liminarmente as ações judiciais ou processos administrativos
em curso, que deverão acatar a orientação pretoriana, a ser proferida no final
do processo. Com isso, permite-se antecipar o deslinde de uma questão jurídica
que percorreria a via crucis do sistema difuso até chegar ao Supremo
Tribunal Federal, para então, após decisão definitiva, ser comunicado o Senado
Federal, que poderá suspender a eficácia da lei impugnada, podendo sanar
definitivamente a inconstitucionalidade. Porém, a novel ação serve somente aos
preceitos fundamentais, e nesse caso não se admite controvérsia ou demora. Há
que se decidir univocamente sobre o tema magno, sob pena de ser atropelada a
segurança jurídica e o Estado de Direito, que ficam seriamente prejudicados
diante do dissenso acerca dos seus pilares de sustentação, que são os preceitos
fundamentais da Lei Maior."
10. GILMAR FERREIRA MENDES (in RJ-IOB 4/2000,
texto 1/14441, p. 111) faz também uma avaliação positiva da Lei 9.882/99:
"O novo instituto, sem dúvida, introduz profundas
alterações no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade.
Em primeiro lugar, porque permite a antecipação de
decisões sobre controvérsias constitucionais relevantes, evitando que elas
venham a ter um desfecho definitivo após longos anos, quando muitas situações
já se consolidaram ao arrepio da interpretação autêntica do Supremo
Tribunal Federal.
Em segundo lugar, porque poderá ser utilizado para -
de forma definitiva e com eficácia geral - solver controvérsia relevante sobre
a legitimidade do direito ordinário pré-constitucional em face da nova
Constituição que, até o momento, somente poderia ser veiculada mediante a
utilização do recurso extraordinário.
Em terceiro, porque as decisões proferidas pelo
Supremo Tribunal Federal nesses processos, haja vista a eficácia erga omnes
e o efeito vinculante, fornecerão a diretriz segura para o juízo sobre a
legitimidade ou a ilegitimidade de atos de teor idêntico, editados pelas
diversas entidades municipais. A solução oferecida pela nova lei é superior a
uma outra alternativa oferecida, que consistiria no reconhecimento da
competência dos Tribunais de Justiça para apreciar, em ação direta de
inconstitucionalidade, a legitimidade de leis ou atos normativos municipais em
face da Constituição Federal. Além de ensejar múltiplas e variadas
interpretações, essa solução acabaria por agravar a crise do Supremo Tribunal
Federal, com a multiplicação de recursos extraordinários interpostos contra as
decisões proferidas pelas diferentes Cortes estaduais.
O bom observador poderá perceber que o novo instituto
contém um enorme potencial de aperfeiçoamento do sistema pátrio de controle de
constitucionalidade."
11. Constata-se, pois, que está, perfeitamente, no
espírito do artigo 102, § 1º, da Constituição, a norma do parágrafo único do
artigo 1º da Lei 9.882/99, que, inclusive, teve o cuidado de prever, como um
dos requisitos da ação, quando for o caso, a demonstração da existência de
relevante controvérsia judicial sobre a aplicação do preceito fundamental
considerado violado, nos moldes da própria ação declaratória de
constitucionalidade.
12. Vale aduzir que a norma constitucional que traz a
lume o instrumento da argüição de descumprimento de preceito fundamental é
norma de eficácia limitada, cuja aplicação deve subsumir-se à lei
infraconstitucional regulamentadora. O conceito de norma de eficácia limitada é
amplamente consagrado por nossos Tribunais, conforme se depreende pela análise
do aresto abaixo transcrito:
"TAXA DE JUROS REAIS – LIMITE FIXADO EM 12% A.A
(CF, ART. 192, § 3.) – NORMA CONSTITUCIONAL DE EFICÁCIA LIMITADA –
IMPOSSIBILIDADE DE SUA APLICAÇÃO IMEDIATA – NECESSIDADE DA EDIÇÃO DA LEI
COMPLEMENTAR EXIGIDA PELO TEXTO CONSTITUCIONAL – APLICABILIDADE DA LEGISLAÇÃO
ANTERIOR A CF/88 – RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO – A regra
inscrita no art. 192, § 3., da Carta Política – norma constitucional de
eficácia limitada – constitui preceito de integração que reclama, em caráter
necessário, para efeito de sua plena incidência, a mediação legislativa
concretizadora do comando nela positivado. Ausente a lei complementar reclamada
pela Constituição, não se revela possível a aplicação imediata da taxa de juros
reais de 12% a.a. prevista no art. 192, § 3., do texto constitucional." (2)
13. Destarte, o próprio Poder Constituinte delegou ao
legislador ordinário a competência para regulamentar o instituto, com o
objetivo precípuo de instituir mais uma mecanismo de defesa e garantia da
observância dos preceitos fundamentais resguardados na Constituição. Caberia,
pois, ao legislador ordinário a elaboração de uma norma regulamentar que
atendesse amplamente aos objetivos do instituto, conforme previsto
constitucionalmente, o que se deu com o advento da Lei n.° 9.882/99.
14. A interpretação alvitrada pelo Conselho Federal da
OAB ao disposto no artigo 102, § 1.° é por demais restritiva, não atendendo aos
reclamos da efetivação do controle de constitucionalidade que compete ao
Supremo Tribunal Federal.
15. A propósito, mesmo antes da edição da norma em
discussão, JOSÉ AFONSO DA SILVA já previra a regulamentação da argüição de
descumprimento de preceito fundamental com a conotação que lhe atribuiu a Lei
n.° 9.882/99, conforme se lê:
"(...) aquele dispositivo poderá ser fértil como
fonte de alargamento da jurisdição constitucional da liberdade a ser exercida
pelo nosso Pretório Excelso. A lei prevista poderia vir a ter a importância da
Lei de 17.4.51 da República Federal da Alemanha que instituiu o Verfassungsbeschwerde,
que se tem traduzido ao pé da letra por agravo constitucional ou recurso
constitucional, mas que, em verdade, é mais do que isso, conforme se vê da
definição que lhe dá Cappelletti: o ‘recurso constitucional consiste no meio de
queixa jurisdicional perante o Tribunal Constitucional federal (com sede
Karlsruhe), a ser exercitado por particulares objetivando a tutela de seus
direitos fundamentais, assim como de outras situações subjetivas
constitucionais lesadas por um ato de qualquer autoridade pública’. Em alguns
casos ele serve para impugnar decisões judiciais, e, aí, sua natureza de meio
de impugnação, de recurso, é patente. Em outros, contudo, é meio de invocar a
prestação jurisdicional em defesa de direitos fundamentais. Parte de seus
objetivos são cobertos pelo nosso mandado de segurança. Mas ele tem objetivos
mais amplos do que este, e não está limitado à defesa de direito líquido e
certo, pessoal. O Verfassungsbeschwerde é originário de Baviera, cuja
regulamentação legal prevê o cabimento de Popularklage, isto é, a
atribuição do direito de ação a quisquis de populo (ação popular),
declarando que a inconstitucionalidade por ilegítima restrição de um direito
fundamental pode ser feita valer por qualquer pessoa mediante ‘recurso’ junto
da Corte Constitucional. O texto em exame, permite-nos avançar na mesma direção
e será um instrumento de fortalecimento da missão que a Constituição reservou
ao Supremo Tribunal Federal." (3)
16. Interpretando-se sistemática e historicamente o
artigo 102 § 1.° da Constituição Federal, cabe repisar que o instituto foi
introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional n.°
03/93, que implantou inovações especificamente no sistema de controle
concentrado de constitucionalidade, a exemplo da ação declaratória de
constitucionalidade.
17. Dessa forma, a mens legislatoris foi a de
introduzir, a partir da previsão do instituto, nova espécie de controle
concentrado de constitucionalidade, com o escopo de atender aos casos em que
não seriam cabíveis as demais espécies de controle, oferecendo máxima eficácia
aos preceitos constitucionais.
18. Tanto é assim que o novo mecanismo não se presta a
extirpar do ordenamento jurídico as demais formas de controle, como o difuso,
mas de aprimorar a sua aplicação, tendo em vista, inclusive o seu caráter de
subsidiariedade, previsto no artigo 4.° § 1.° da Lei 9.882/99. Revela-se, por
conseguinte, plena harmonia entre os instrumentos de controle de constitucionalidade,
em atenção ao incremento da eficácia das normas constitucionais. Esta foi,
aliás, a posição adotada pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, em voto proferido no
julgamento da ADC n.° 01, cujo trecho transcrevemos:
"a experiência tem demonstrado que será
inevitável o reforço do sistema concentrado, sobretudo nos processos de massa;
na multiplicidade de processos que inevitavelmente, a cada ano, na dinâmica da
legislação, sobretudo da legislação tributária e matérias próximas, levará, se
não se criam mecanismos eficazes de decisão relativamente rápida e uniforme, ao
estrangulamento da máquina judiciária, acima de qualquer possibilidade de sua
ampliação e, progressivamente, ao maior descrédito da Justiça, pela sua total
incapacidade de responder à demanda de centenas de milhares de processos
rigorosamente idênticos, porque reduzidos a uma só questão de direito". (4)
19. Por conseguinte, revela-se em perfeita consonância
com a Constituição Federal a norma insculpida no parágrafo único do artigo 1.°
da Lei n.° 9.882/99, que regulamenta as hipóteses de cabimento da argüição de
descumprimento de preceito fundamental.
20. É insubsistente, ainda, a alegação de
inconstitucionalidade do § 3° do artigo 5° , da Lei n.° 9.882/99, que cuida da
concessão de liminares na argüição de descumprimento de preceito fundamental,
detalhando os seus efeitos. Argumenta a OAB que o referido dispositivo
contraria os princípios do devido processo legal, do juiz natural e do
pluralismo, procurando comparar o instituto à antiga avocatória prevista na
Constituição de 1967, introduzida pela Emenda Constitucional n.° 07.
21. Inicialmente, urge de bom alvitre ressaltar a
infelicidade dessa comparação, porquanto se tratam de institutos com natureza e
objetivos diferenciados, devidamente esclarecidos por CELSO RIBEIRO BASTOS e
ALEXIS GALIÁS DE SOUZA VARGAS (artigo já mencionado):
"Entretanto, difere-se, em muito, da antiga
avocatória, por meio da qual o Supremo Tribunal Federal podia chamar para si o
julgamento de qualquer matéria politicamente interessante. Não se trata mais
disso. Como dito, trata-se de mecanismo de controle da constitucionalidade,
originalmente previsto na Lei Maior, que amplia a cidadania brasileira e a
segurança jurídica, com a qual, mediante a provocação dos legitimados pelo
artigo 103 da Carta Magna, o Excelso Pretório poderá suspender os processos
liminarmente e proferir decisões com efeito vinculante apenas sobre a questão
constitucional. O juiz de direito não é mais afastado de sua posição de
julgador, como era anteriormente. Não há, no caso, julgamento do feito, mas
tão-somente uma baliza exata daquilo que se considera fundamental para a ordem
jurídica. O deslinde da questão constitucional mediante a argüição de
descumprimento de preceito fundamental não contraria o princípio do juiz
natural, uma vez que o magistrado fica mantido no seu papel de julgador e o
Supremo Tribunal Federal de guardião da Constituição. O Judiciário brasileiro
já deu demonstrações de que pode ser assaltado por situações que o colocam em
verdadeiro caos, onde várias decisões têm condições de prevalecer, mesmo sendo
contraditórias entre si. Isso não pode ser admitido diante de preceitos
fundamentais, sob pena de ruir todo o ordenamento a que dão sustentação. O
sistema estava carente de um mecanismo que lhe conferisse mais racionalidade e
segurança, para melhor servir ao cidadão. Um mecanismo que nos aproxime da
aplicação integral da Carta Magna. " (5)
22. Ademais, conforme enfatizado, a argüição de
descumprimento de preceito fundamental é instrumento de controle abstrato de
constitucionalidade, que, como espécie de processo objetivo, não se submete aos
princípios próprios do processo subjetivo, tais quais o do devido processo
legal e do juiz natural, invocados pelo autor como violados pelas disposições
da Lei n.° 9.882/99. A propósito, esse entendimento já foi manifestado pelo
Ministro MOREIRA ALVES no julgamento da questão de ordem levantada na ADC n.°
01-1/DF:
"Sobre o tema, é sabido que o STF, no julgamento
da questão de ordem suscitada na ADC n.° 01-1/DF (Rel. Min. MOREIRA ALVES, RTJ
157/371), assentou a validade da ação declaratória de constitucionalidade
criada pela EC n.° 03/93, inclusive quanto aos efeitos vinculantes de suas
decisões finais. Analisando os fundamentos do voto vencedor do Min. MOREIRA
ALVES (RTJ 157/371), denota-se que o Tribunal afastou as alegações de
inconstitucionalidade embasadas nos incisos III (separação dos Poderes) e IV
(direitos individuais relativos ao acesso ao Judiciário, ao devido processo
legal e ao princípio do contraditório e da ampla defesa), ao fundamento de que,
em tratando de um processo objetivo de controle de constitucionalidade,
"não se aplicam os preceitos constitucionais que dizem respeito
exclusivamente a processos subjetivos (processos inter partes) para a
defesa concreta de interesses de alguém juridicamente protegidos".
Ademais, sustentou sua Excelência que, "se o acesso ao Judiciário
sofresse qualquer arranhão... esse arranhão decorria da adoção do próprio
controle concentrado, a qual se fez pelo Poder Constituinte originário, e não
exclusivamente da instituição de um de seus instrumentos...".
Em seguida, na ADC n.° 04/DF (DJU de 16/02/98),
assentou a Corte Suprema a viabilidade da concessão de efeitos vinculantes às
decisões liminares nas ações declaratórias de constitucionalidade, ainda que o
art. 2° , § 2° , da CF/88 (redação da EC n.° 03/93) somente os preveja em
relação às "decisões definitivas de mérito".
Ademais, na decisão monocrática na Reclamação n.° 167,
percebe-se que o Min. SEPÚLVEDA PERTENCE já aderiu à corrente da extensão dos
efeitos vinculantes também às decisões definitivas das ADIns, desde que
cabível, em tese, a propositura de ADC (RDA 206/246, apud GILMAR
FERREIRA MENDES, Anteprojeto de lei sobre processo e julgamento da ação
direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade,
CDCCP n.° 29, p. 31)". (6)
23. Dessa forma, incrementando o controle concentrado
de constitucionalidade, ao contrário do que afirma o autor, o artigo 5° , § 3°
, da lei atacada não constitui afronta, mas reforço, ao Estado Democrático de
Direito e ao pluralismo, na medida em que traz maiores subsídios para assegurar
a eficácia dos preceitos constitucionais fundamentais, evitando que os
Tribunais, muitas vezes, continuem a aplicar normas declaradas
inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição.
24. A esse respeito, vale repetir o magistério CELSO
RIBEIRO BASTOS e ALEXIS GALIÁS DE SOUZA VARGAS:
"(...) quando tratar-se de ato ou omissão, capaz
de atingir negativamente esses valores basilares, poderá ser provocado o
Supremo Tribunal Federal para decidir sobre a questão constitucional,
exclusivamente. Com isso, o Excelso Pretório cumpre o seu papel primordial de
guardião-mor da Constituição e da ordem jurídica, bem como faz uma ponte entre
o controle concentrado e o difuso, uma vez que sua decisão incidirá diretamente
sobre os diversos processos judiciais. Para tanto, poderá suspender
liminarmente as ações judiciais ou processos administrativos em curso, que
deverá acatar a orientação pretoriana, a ser proferida no final do
processo". (7)
25. A verdade é que parece um verdadeiro absurdo o
fato de o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pretender
identificar o guardião de nossa Constituição - o órgão de cúpula do Poder
Judiciário - o Suprema Tribunal Federal como se fosse um tribunal de exceção.
26. Ademais, a nossa Corte Constitucional tem
construído o entendimento de que, na ação direta de inconstitucionalidade, a
medida liminar concedida, suspendendo a eficácia de uma norma, traz, como
conseqüência, a suspensão também de todos os processos em que tal norma poderia
ser aplicada.
27. Exatamente nesse sentido é o magistério do
Ministro MOREIRA ALVES (8) em conferência inaugural do XXIII Simpósio
Nacional de Direito Tributário, proferida na Capital paulista em outubro de
1998:
"Esse problema gerou, no Tribunal, há pouco
tempo, uma discussão que terminou com uma conclusão unânime: toda vez que a
Corte suspende a eficácia de uma norma, na realidade, o efeito dessa suspensão
é um efeito muito mais grave do que à primeira vista parece ser. Ou seja, toda
vez em que há suspensão da eficácia de uma norma, todos os processos em que há
necessidade da aplicação daquela norma ou, pelo menos, do exame de sua
aplicação para saber se a ela se subsume o caso concreto ou não devem ser
suspensos. E devem ser suspensos por uma razão singelíssima, é que esta norma
tem a sua eficácia suspensa apenas provisoriamente. Conseqüentemente, é
possível que, no julgamento final da ação direta de inconstitucionalidade, a
decisão seja contrária à adotada quando da concessão dessa liminar. E,
conseqüentemente, aquela norma que fora suspensa, volta a ter sua eficácia
plena. (...)
Então, vejam os senhores, esta foi a primeira
conclusão a que chegou o Supremo tribunal Federal. E por isso mesmo, quando o
seu plenário foi julgar um recurso extraordinário a respeito de uma norma cuja
eficácia o próprio Supremo, também por seu Plenário, havia suspendido, em ação
direta de inconstitucionalidade, chegou-se à conclusão de que, como também o
Tribunal está vinculado a suas decisões - pois a eficácia erga omnes também
se projeta sobre ele - , o recurso deveria aguardar a decisão da ação direta de
inconstitucionalidade. Então, o Tribunal entendeu que, nesse caso, ele não
poderia julgar o recurso extraordinário."
28. A guerreada disciplina legal do artigo 5° , § 3° ,
da Lei n.° 9.882/99 segue o entendimento de nossa Corte Constitucional a
respeito quanto às ações de controle concentrado de constitucionalidade, de modo
que não há, na espécie, qualquer inconstitucionalidade.
29. Na mesma esteira, tendo-se em vista a natureza de
controle concentrado da argüição de descumprimento de preceito fundamental, não
cabe afirmar a inconstitucionalidade do artigo 10, caput, e § 3° , da
Lei 9.882/99, que tratam dos efeitos das decisões de mérito do instituto.
30. Com efeito, procura a OAB induzir ao entendimento
que o referido dispositivo empresta natureza de ato legislativo às sentenças
proferidas em argüições de descumprimento de preceito fundamental. Todavia,
convém esclarecer que conferir interpretação às normas constitucionais consiste
na própria função do Supremo Tribunal Federal, no controle concreto, com
efeitos inter partes, ou no abstrato, com efeitos erga omnes, em
que essa interpretação se dá objetivamente em relação ao modo de interpretação
e aplicação da norma em si mesma considerada.
31. De fato, a alegação de que a decisão de mérito
teria natureza de ato legislativo não convence, na medida em que é da essência
do pronunciamento judicial dar a correta exegese da norma jurídica já
existente, esta sim, de origem legislativa.
32. Destarte, tratando-se a argüição de descumprimento
de preceito fundamental de espécie de controle abstrato de constitucionalidade,
é da sua própria natureza que os efeitos das decisões proferidas em seu âmbito
tenham eficácia erga omnes e efeitos vinculantes, sem que seja ferido
qualquer preceito normativo ou a competência de qualquer outro órgão, haja
vista, inclusive, a autorização constitucional para que o legislador ordinário
regulamente o instituto.
33. Essa vinculação obrigatória decorre da própria
racionalidade do sistema concentrado de constitucionalidade, onde compete ao
Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição.
34. No que respeita especificamente ao disposto no
artigo 52, X, da Constituição Federal, importa esclarecer que a hipótese ali
prevista refere-se apenas ao controle difuso, não guardando nenhuma relação com
a argüição de descumprimento de preceito fundamental.
35. Não bastassem todas as impugnações acima, cabe
ainda responder o questionamento da constitucionalidade do artigo 11, da Lei
n.° 9.882/99, que, segundo o Conselho Federal da OAB, feriria o Estado
Democrático de Direito e o Princípio da Legalidade.
36. O comando normativo emanado do dispositivo atacado
reproduz doutrina de origem alemã acerca dos efeitos das decisões provenientes
do controle concentrado de constitucionalidade, em que, muitas vezes, torna-se
impossível, ou pelo menos inconveniente, a declaração de inconstitucionalidade
de uma norma, com a respectiva sanção de nulidade, prevendo a legislação alemã,
bem como o entendimento espanhol de construção exclusivamente jurisprudencial,
formas de ser declarada a inconstitucionalidade de uma norma, sem que obrigatoriamente
se estabeleça a correspondente e imediata sanção de nulidade, adotando o órgão
julgador outras formas de decisão.
37. Em razão do reconhecimento, por parte do próprio
Supremo Tribunal Federal, de que as formas de controle de constitucionalidade existentes
seriam insuficientes ao pleno atendimento das demandas da sociedade em termos
de controle de constitucionalidade, foram ressaltados na exposição de motivos
da Lei n.° 9.882/99 os seguintes argumentos:
"O próprio Supremo Tribunal Federal tem apontado
as insuficiências existentes no âmbito das técnicas de decisão no processo de
controle de constitucionalidade. Os casos de omissão parcial mostram-se
extremamente difíceis de serem superados no âmbito do controle de normas em
razão da insuficiência das técnicas de controle disponíveis.
Entendeu, portanto, a Comissão que, ao lado da
ortodoxa declaração de nulidade, há de se reconhecer a possibilidade de o
Supremo Tribunal, em casos excepcionais, mediante decisão da maioria
qualificada (dois terços dos votos), estabelecer limites aos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com
eficácia ex nunc ou pro futuro, especialmente naqueles casos em
que a declaração de nulidade se mostre adequada (v.g.: lesão positiva ao princípio
da isonomia) ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de
nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da
vontade constitucional". (9)
38. Embora o Supremo Tribunal Federal nunca tenha
determinado a aplicação do efeito ex nunc de suas decisões de mérito no
controle concentrado de constitucionalidade, muitas vezes, Ministros de nossa
Corte Constitucional têm admitido essa possibilidade, mesmo antes de previsão
legal nesse sentido, nos casos, por exemplo, de ocorrência de uma forte e
antiga presunção de constitucionalidade da lei, por fim, julgada
inconstitucional, tendo em vista a segurança jurídica, a boa fé do Poder
Público e as conseqüências econômicas avassaladoras para o País que a
declaração de inconstitucionalidade com efeito ex tunc poderia trazer.
39. Desse modo, o artigo 11 da Lei n.° 9.882/99 deve
ser interpretado teleologicamente, no sentido de se permitir a garantia do fiel
cumprimento do texto constitucional, na medida em que, conferindo ao órgão
julgador maior flexibilidade na determinação dos efeitos a serem emprestados às
decisões provenientes de processos referentes a controle concentrado de
constitucionalidade, torna possível a declaração de inconstitucionalidade de
norma, sem que tal declaração cause danos irreparáveis aos jurisdicionados e ao
País. Assim, é viabilizada a delimitação dos efeitos da decisão de mérito na
argüição de descumprimento de preceito fundamental com o objetivo de se evitar
o que muitas vezes ocorre nas demais espécies de controle concentrado, em que
se deixa de declarar a inconstitucionalidade de norma inconstitucional para se
evitar um mal maior.
40. É também insubsistente a alegação de que a
declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos expressamente impugnados
pelo Conselho Federal da OAB implicaria na necessária nulidade de toda a Lei
n.° 9.882/99.
41. A assertiva é por demais exagerada, pois jamais
poderia a OAB simplesmente presumir que não teria o legislador instituído a
norma se não fossem os conteúdos dos seus artigos 1.° , parágrafo único, 5.° ,
§ 3.° , 10, § 3.° e 11.
42. Além de não procederem os argumentos expendidos
para a afirmação de inconstitucionalidade dos artigos acima mencionados, a Lei
n.° 9.882/99 é plenamente passível de aplicação sem o estabelecimento de tais
disposições. É certo que a lei não mais atenderia a todos os seus objetivos,
quais seriam, os de oferecer eficácia plena à tutela dos direitos
constitucionais, por meio de um controle concentrado de constitucionalidade,
cujos efeitos variariam de acordo com o caso colocado à apreciação do
Judiciário. Contudo, restariam outras hipóteses de aplicação da lei, como, por
exemplo, em relação ao caput do seu artigo 1.° .
43. Portanto, indubitável é o fato de que, ainda que
sejam suprimidos os artigos em apreciação, o que não acreditamos, deve a lei
permanecer em aplicação no que tange ao restante de seu conteúdo.
44. Em função dos argumentos engendrados, que denotam
a inexistência, na hipótese, do requisito da plausibilidade do direito, espera-se
o indeferimento da medida liminar requerida pelo Conselho Federal da OAB na
aludida ADIn, com a posterior improcedência do pedido formulado no mérito,
declarando-se a constitucionalidade cabal da Lei Federal 9.882, de 03 de
dezembro de 1999.
_________________________________________________
(1) "Preceito fundamental e a avocatória",
in Suplemento Direito e Justiça do Jornal Correio Brasiliense de
26 de junho de 2000.
(2) STF – RE
170.131 – RS – 1ª T. – Rel. Min. Celso de Mello – DJU 24.06.1994.
(3) SILVA, José Afonso. Curso de Direito
Constitucional Positivo. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p.
482.
(4) Voto do Ministro Sepúlveda Pertence na ADC n° 01.
(5) BASTOS, Celso Ribeiro e outro. Preceito
Fundamental e a Avocatória. Correio Braziliense, Brasília, 26 jun. 2000,
Direito e Justiça.
(6) BERNARDES, Juliano Taveira. Lei 9882/99:
Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
http:www.jus.com.br/doutrina/lei9882.html. Recuperado em 07.07.00.
(7) BASTOS, Celso Ribeiro e outro. Preceito
Fundamental e a Avocatória. Correio Braziliense, Brasília, 26 jun. 2000,
Direito e Justiça.
(8) In "Pesquisas tributárias nova série 5 -
Processo Administrativo tributário", coord. Ives Gandra Martins, São
Paulo: R.T./C.E.U., 1999, páginas 20 e 21.
(9) Trechos da exposição de motivos n.° 189, de 07 de
abril de 1997, que acompanho a Mensagem do Excelentíssimo Senhor Presidente da
República, ao remeter à Câmara dos Deputados o projeto de lei que resultou na
lei n.° 9.868/99.
*Consultor
da União. Procurador da Fazenda Nacional de Categoria Especial. Professor de
Direito Financeiro e de Direito Tributário da Universidade Católica de Brasília
- UCB.
Disponível
em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_16/artigos/art_argüiç¦o.htm
acesso em 12.09.05