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Ação Civil Pública contra a taxa de iluminação pública: hipótese de defesa do consumidor ou do contribuinte?
Vladimir
Aras*
INTRODUÇÃO
Muitos municípios brasileiros têm
insistido na cobrança da Taxa de Iluminação Pública - TIP, embora os tribunais nacionais,
inclusive o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça,
tenham-na declarado inconstitucional em mais de uma oportunidade.
A ânsia exatória do Poder Público
tem prejudicado sobremaneira o cidadão, e os órgãos de defesa da cidadania têm
se prestado à tarefa de combater normas e condutas que prejudicam a
coletividade. No caso da TIP, que é uma taxa que viola os direitos de milhares
de pessoas, nos municípios pequenos e médios, e de milhões de habitantes dos
grandes conglomerados urbanos do País, o Ministério Público tem sido um dos
órgãos que mais tem se esforçado para eliminar da ordem jurídica tal
excrescência.
Todavia, certos posicionamentos
jurisprudenciais têm negado ao Ministério Público legitimidade ativa para
propor ações civis em defesa dos interesses dos cidadãos atingidos pela
cobrança da taxa de iluminação pública, sob o argumento de que aí se trata de
defesa do contribuinte (à qual o Parquet não estaria habilitado), e não de
defesa do consumidor. Tal entendimento vem sendo veiculado na Bahia, pelo
Tribunal de Justiça do Estado, que em várias ações civis públicas iniciadas
pelo MP tem-lhe negado legitimatio ad causam.
Assim a polêmica que nos levou a
escrever este artigo funda-se na seguinte indagação: ao posicionar-se contra a
TIP está o Ministério Público defendendo interesses de contribuintes ou também
defendendo interesses de consumidores?
CONCEITO DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA
Para responder a essa pergunta,
antes é preciso que recordemos que em recente audiência pública realizada em
Brasília, a ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica pretendeu estabelecer
condições gerais para regulamentar o fornecimento de energia elétrica para
iluminação pública.
De acordo com as consideranda da
resolução da Agência, visava-se a adequar tal serviço à Lei Federal n. 8.078/90
(Código de Defesa do Consumidor), à Lei Federal n.8.987/95 (Concessões de
Serviços Públicos) e a outras normas.
Segundo a ANEEL, "Iluminação
Pública é o serviço que tem por objetivo prover de luz ou claridade artificial,
no período noturno ou nos escurecimentos diurnos ocasionais, os logradouros
públicos", incluindo-se neste conceito os logradouros públicos que
necessitam de iluminação permanente no período diurno.
A resolução classifica como
iluminação pública o fornecimento de energia elétrica para iluminação de ruas,
praças, avenidas, túneis, passagens subterrâneas, jardins, vias, estradas,
passarelas, abrigos de usuários de transportes coletivos, e outros logradouros
de domínio público, de uso comum e livre acesso, cuja responsabilidade pelo
pagamento das contas e pelas demais obrigações legais, regulamentares e
contratuais seja assumida, exclusivamente, por pessoa jurídica de direito
público.
A resolução reconhece que a
responsabilidade pelos serviços de projeto, implantação, expansão, operação e
manutenção das instalações de Iluminação Pública é dos Municípios e dá outras
providências. No entanto, ao aprová-la perdeu-se grande oportunidade de se
definir, no âmbito da Agência e das concessionárias sujeitas à sua
fiscalização, se a taxa de iluminação pública é aceitável ou não, se pode ou
não ser incluída nas contas de consumo, já que em face dela é o consumidor de
energia elétrica quem acaba remunerando o serviço de iluminação pública
diretamente, mesmo que dele não se utilize e mesmo considerando que parte do
ICMS repassado aos Municípios pelos Estados-federados já tem a mesma
destinação.
A TIP E AS RELAÇÕES DE CONSUMO
Como se vê, um dos objetivos da
audiência pública realizada pela ANEEL não foi atingido, qual seja, o de
estabelecer normas para o fornecimento de energia elétrica para iluminação
pública, adequando-as ao Código de Defesa do Consumidor. Não se aperceberam (ou
não quiseram perceber) as concessionárias e a ANEEL que a TIP é uma mácula na
relação de consumo, é um estorvo para o consumidor e beneficia primordialmente
as concessionárias de energia elétrica, que garantem, com a cobrança, o
pagamento da conta de iluminação pública pelos Municípios que instituírem tal
taxa.
O desrespeito aos consumidores e a
omissão da ANEEL são gritantes. Com efeito, os consumidores de energia elétrica
ligados à rede de distribuição das concessionárias contratam com as
fornecedoras do serviço apenas a disponibilização da energia elétrica em seus
imóveis ou pontos de recepção. Nessa relação de consumo inexiste previsão de
que a nota fiscal de energia elétrica (a conta de luz) servirá para a cobrança
de valores estranhos ao consumo individual dos clientes. Já há aí no mínimo uma
surpresa desagradável para o consumidor, que pagará a iluminação pública por
ele próprio e também por quem dela se utiliza com maior ou menor intensidade,
mas que não está ligado à rede de distribuição.
É relevante notar que a cobrança da
TIP somente se viabiliza na medida da cooperação das concessionárias. Os
contribuintes da malfadada taxa só o são, porque são consumidores de energia.
São as empresas quem fornecem os seus cadastros de consumidores para o
lançamento da ilegal exação. São também as empresas que disponibilizam meios
técnicos e funcionários de seus quadros para o cálculo do tributo, após a
medição do consumo de energia elétrica em kWh (quilowatts hora) por mês.
Evidentemente, somente as
concessionárias podem fornecer as informações necessárias para a implantação e
a cobrança da TIP, tal como prevista nas leis municipais.
Ao assim agirem tais empresas estão
violando o equilíbrio e a lealdade contratual de suas relações para com os seus
consumidores.
Por outro lado, é bom que se diga
que o consumidor de energia elétrica não tem como eximir-se do pagamento da
taxa de iluminação pública, cuja inclusão nas contas de luz deve-se, de regra,
a convênios firmados entre terceiros (res inter alios). Ou paga-se a
taxa ou o consumidor terá sua energia elétrica cortada. O fornecimento será
suspenso porque um pagamento está associado ao outro, em conjuminância, não
podendo ser dissociado em virtude da utilização de códigos de barras nas notas
fiscais de energia. Daí haver desvantagem exagerada para o consumidor e efetivo
constrangimento ilegal a atingir relação de consumo. Isso é obvio, porque o que
justifica o corte do fornecimento de energia elétrica doméstica, comercial ou
industrial é a falta de pagamento do consumo da energia, não havendo previsão
legal de que a falta de pagamento do tributo, no caso a TIP, possa também levar
a isso.
A prática das concessionárias e dos
Municípios é também incompatível com a boa-fé, porque a imposição da TIP
surpreende o consumidor, que a respeito disso nada contratou junto à
concessionária de energia elétrica. Decorre daí que inexiste obrigação do
consumidor para com a concessionária de energia elétrica de pagar a taxa que
vai inserida na conta de consumo. Tais empresas não se podem valer de uma
relação de consumo para objetivos estranhos aos do intercâmbio fornecedor x
consumidor, mormente quando a "cláusula" abusiva é imposta
unilateralmente, sem qualquer autorização da classe consumidora ou prévia
consulta a ela.
Em matéria de TIP vê-se ainda o não
atendimento aos princípios consumeristas da eqüidade e do equilíbrio
contratual, autorizativos do reconhecimento da nulidade pleno jure de tal
procedimento por parte das concessionárias, até porque por meio dele são
violados também direitos básicos do consumidor, como o da informação (art. 6,
incisos III e IV, CDC).
Incluindo a TIP nas contas de
consumo, as concessionárias de energia elétrica também descumprem o dever de
lealdade para com os seus consumidores, porque fornecem abusivamente aos
Municípios (ou lhes facultam o acesso), sem aquiescência de quem quer que seja
e sem comunicação prévia, o cadastro dos consumidores de energia elétrica. A
prática é desleal (art. 6º, inciso IV, c/c o art. 43, §2º, CDC), porque visa a
onerar o consumidor, trazendo benefícios diretos e indiretos para as próprias
empresas concessionárias, que são as principais beneficiárias da taxa. De fato,
com a TIP as empresas asseguram o pagamento das faturas de iluminação pública
devidas pelos Municípios, evitando inadimplência, e ainda auferem lucro
adicional, sem risco, pela simples cobrança da taxa, como é o caso do convênio
que vigora em Feira de Santana e em outras cidades da Bahia, entre os
municípios e a COELBA - Companhia de Eletricidade da Bahia, controlada pelo
grupo espanhol Iberdrola.
CONSUMIDOR OU CONTRIBUINTE ?
Já se disse e se demonstrou que as
concessionárias de energia elétrica estão intimamente relacionadas com os
contribuintes da TIP, por serem eles os seus próprios consumidores. Noutros
termos, só há contribuintes da TIP, porque há consumidores das concessionárias
de energia elétrica. Consumidores e contribuintes nessa relação acabam se
confundindo, constituindo-se as concessionárias de energia elétrica então em
violadoras dos direitos consumeristas de seus clientes.
Não se pode defender o malsinado
tributo, lançando a objeção de que, em se tratando de TIP, as concessionárias
são meras arrecadadoras da taxa. No caso dos bancos, por exemplo, que, por
delegação do Poder Público, arrecadam tributos, não há necessariamente uma
relação jurídica entre o contribuinte e a instituição financeira. É que, para
pagar um tributo numa agência de um determinado banco, não é necessário que o
contribuinte seja também cliente desse banco. Aliás, não é necessário que seja
cliente de banco algum. Logo, a relação tributária nesses casos independe da (pre)existência
de relação de consumo entre o banco e o contribuinte.
No caso da TIP, a situação é
absolutamente diversa: só há a cobrança da TIP aos consumidores das
concessionárias de energia elétrica, e a ninguém mais.
Exemplificadamente, se há algum morador
de Feira de Santana-BA ou de Campo Grande-MS que use em sua residência apenas
energia proveniente de painéis solares ou de força eólica (não sendo ligado à
rede de energia elétrica de nenhuma concessionária), tal cidadão não será, em
hipótese alguma, contribuinte da TIP, mesmo que essa pessoa resida na avenida
mais iluminada de Feira de Santana ou na rua de luzes mais feéricas da capital
sul-matogrossense. Isto porque, não tendo esse hipotético cidadão de pagar
conta de luz da concessionária de energia elétrica, não será possível
quantificar a TIP e lançá-la na conta de consumo.
Contrariamente, um consumidor da
concessionária de energia elétrica, que resida no logradouro mais ermo e
obscuro de uma das muitas cidades do País que cobram a TIP, pagará a enviesada
taxa. E pagá-la-á mesmo não sendo servido por iluminação pública (existência de
postes à frente de sua residência ou nas proximidades), porque, no tocante à
TIP, o que importa mesmo é que o cidadão seja consumidor da concessionária de
energia elétrica.
Evidencia-se, assim, a imbricação
entre as relações de consumo e tributária (esta decorrente da TIP), e entre as
figuras do fornecedor-agente tributário delegado e do consumidor-contribuinte.
Ademais, deixe-se assentado de logo
que tanto as concessionárias de energia elétrica quanto os Municípios são
fornecedores de serviços. As primeiras fornecem o serviço de energia elétrica,
que prestam mediante concessão. Os segundos fornecem o serviço de iluminação
pública, que é de interesse local. Nesse sentido, todos os sujeitos envolvidos
integram relações de consumo, tendo seus próprios consumidores. Afinal, o
Código de Defesa do Consumidor dispõe que fornecedor é toda pessoa física ou
jurídica, de direito público ou privado (art. 3º), estando previsto no art. 22
da Lei n. 8078/90 que:
"Art. 22. Os órgãos públicos,
por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra
forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados,
eficientes e, quanto aos essenciais, contínuos".
Já consumidores, no sentido legal,
são as pessoas físicas ou jurídicas que adquirem ou utilizam serviço como
destinatário final. Os consumidores das concessionárias de energia elétrica
adquirem delas o serviço de fornecimento de energia elétrica. Os consumidores
dos Municípios utilizam o serviço de iluminação pública, por eles prestado.
O que se deve perceber é que todos
os contribuintes da TIP são consumidores das concessionárias de energia
elétrica; Mas nem todos os consumidores dos Municípios (como fornecedores do
serviço público de iluminação das vias) são contribuintes da TIP, tendo-se aí
um completo contra-senso e uma demonstração inequívoca de quão absurda é essa
imposição tributária, pois pode-se ser usuário do serviço de iluminação pública
sem se pagar um centavo por isso.
Se o interesse público da mantença
do serviço de iluminação pública pudesse ser usado como argumento para defender
a cobrança da TIP, seria forçoso concluir (como é), sob pena de se chegar a um
paradoxo, que todas as demandas civis que buscam eliminar essa taxa do mundo
jurídico dizem respeito a interesses dos consumidores, i.e., dos consumidores
de energia elétrica e dos consumidores do serviço público de iluminação, que
são prestados pelos Municípios e pelas concessionárias.
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
PARA DEFESA DE CONSUMIDORES E CONTRIBUINTES
Pelas razões acima alinhadas, não
procede o entendimento esposado por alguns juízes e doutrinadores de que ao
Ministério Público faltaria legitimidade para a propositura de ação civil
pública para a declaração da ilegalidade da cobrança da taxa de iluminação
publica, a famigerada TIP.
De regra, nestes casos, o Ministério
Público propõe ações civis para a defesa concomitante dos interesses dos
contribuintes municipais e dos consumidores de energia elétrica, que são
lesados pela cobrança da taxa de iluminação pública. Ou seja, em geral as ações
visam a defender tanto os contribuintes como um todo, quanto os consumidores de
energia elétrica com domicílio nos municípios onde propostas as ações.
Estritamente falando, tais ações
patrocinadas pelo Parquet não defendem interesses de contribuintes. Sendo
evidentes e cristalinas a ilegalidade e a inconstitucionalidade da taxa de
iluminação pública, conforme reconhecem de forma absolutamente unânime
tribunais e doutrinadores em todo o País, não se tem aí efetivamente uma
relação jurídico-tributária. Se a TIP é inconstitucional, a relação tributária
é inexistente.
Daí porque, em sentido estrito,
estará o MP a defender interesses dos consumidores de energia elétrica, que
formam a única coletividade de pessoas que pagam a TIP. A coletividade dos
contribuintes dessa taxa é formada exclusivamente por consumidores de energia
elétrica ligados à rede da concessionária de energia elétrica e por mais
ninguém.
Mas, por amor ao debate forense,
aceite-se apenas como argumento a existência dessa relação jurídico-tributária.
Ainda assim estará o Ministério Público legitimado à propositura da ação civil
para a eliminação da TIP de qualquer ordenamento jurídico municipal.
Na Bahia, uma das câmaras cíveis do
Tribunal de Justiça, tem rejeitado a legitimidade ativa do MP nas ações antes
referidas, sob a alegação de que acórdão do STJ no recurso especial n.
168.415-SP reconhece a ilegitimidade ad causam do órgão. A decisão do Tribunal
baiano é equivocada porque este não é um verdadeiro precedente para afastar a
legitimidade do Ministério Público. É que aquele decisum da Corte Superior
Federal refere-se ao IPTU, tributo que não está ligado a qualquer relação de
consumo, como ocorre com a TIP.
O IPTU decorre da propriedade
imobiliária. A TIP decorre dos consumos de energia elétrica e do serviço de
iluminação pública. O primeiro deriva de uma relação exclusivamente tributária.
A segunda, a TIP, é um verdadeiro caso de xifopagia entre uma relação
tributária (de existência totalmente questionável) e uma relação de consumo.
Uma (a relação tributária) não sobrevive sem a outra (a relação de consumo).
Por essa razão primária, em matéria de TIP, deve-se afastar das considerações
dos juízes, como fundamento de decidir, o citado acórdão, proferido no recurso
especial n. 168.415, por não se cuidar de precedente exato.
Mas o principal argumento dos que
negam legitimidade ao Ministério Público para combater a TIP tem sido o de que
consumidor e contribuinte são conceitos distintos, e que o MP só está
legitimado à defesa dos consumidores.
Equívoco é esse entendimento.
Em primeiro lugar porque jamais o
Parquet tem afirmado que consumidores e contribuintes são conceitos idênticos.
Em segundo lugar, porque, no que se
refere à TIP, a relação de consumo coexiste intimamente com a relação
tributária.
Em terceiro lugar, porque o
Ministério Público, nestas ações, propõe-se a defender interesses tanto de
contribuintes, quanto de consumidores.
Por fim, porque negar legitimidade
ativa ao Parquet, para a defesa de contribuintes, é negar execução a lei
federal, especificamente o art. 5º da Lei Complementar Federal n. 75/93, que
instituiu o Estatuto do Ministério Público da União:
"Art. 5º. São funções
institucionais do Ministério Público da União:
II - zelar pela observância dos
princípios constitucionais relativos:
a) ao sistema tributário, às
limitações do poder de tributar, à repartição do poder impositivo e das
receitas tributárias e aos direitos do contribuinte".
A norma federal aplica-se ao Parquet
estadual, porquanto, segundo o art. 80 da Lei Federal n. 8625/93 (Lei Orgânica
Nacional do Ministério Público):
"Art. 80. Aplicam-se aos
Ministérios Públicos dos Estados, subsidiariamente, as normas da Lei Orgânica
do Ministério Público da União".
Impossível então negar ao MP
legitimidade ativa para lides dessa natureza, em que se está a um só tempo
defendendo interesses dos consumidores e dos contribuintes, que, no que pertine
à TIP, confundem-se nas mesmas pessoas.
DO QUE TRATAMOS: APENAS DE RELAÇÃO
TRIBUTÁRIA OU TAMBÉM DE RELAÇÃO DE CONSUMO?
Não custa deixar bem claro que
nessas causas civis propostas para impedir a cobrança da taxa de iluminação
pública há, pelo menos, quatro relações jurídicas em jogo: CONTRIBUINTE x
FAZENDA PÚBLICA (a relação entre os contribuintes e a Fazenda Pública
Municipal). Esta relação na verdade só existe por força do argumento, já que a
cobrança da TIP é claramente inconstitucional. Sendo assim, essa específica
relação tributária não tem existência jurídica no regime constitucional pátrio.
CONSUMIDOR x MUNICÍPIO FORNECEDOR (a
relação jurídica entre os consumidores do serviço de iluminação pública e o
Município que o presta). Esta relação decorre da simples prestação desse
serviço à comunidade. Como serviço local, cabe aos Municípios atender à
iluminação pública. As Municipalidades percebem 25% do ICMS arrecadado pelos
Estados em seu território para fazer face às despesas com a iluminação de
logradouros públicos, entre outras coisas. As pessoas jurídicas de direito
público também são consideradas fornecedoras de serviços, e a prestação do
serviço de iluminação está no campo de abrangência do Código de Defesa do
Consumidor. O art. 3º do Código de Defesa do Consumidor estabelece que
"fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada (...) que
desenvolve atividades de (...) prestação de serviços". Há, portanto,
evidente interesse dos consumidores desse serviço de iluminação pública em não
se verem duplamente onerados. Por sua vez, "consumidor é toda pessoa
física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário
final" (art. 2º). Não se pode refutar que aí se incluem os consumidores
dos serviços públicos municipais, cujos interesses são defendidos pelo MP.
CONSUMIDOR x CONCESSIONÁRIA
FORNECEDORA (a relação entre os consumidores de energia elétrica e a empresa
fornecedora, como concessionária do serviço público de energia elétrica). Esta
relação decorre da prestação pela concessionária do serviço de fornecimento de
energia elétrica a estabelecimentos residenciais, comerciais e industriais. A
concessionária de energia elétrica, ao cobrar a TIP em suas contas de energia
elétrica, obriga seus consumidores a pagar uma taxa indevida, que tem a
finalidade precípua de remunerar a própria concessionária. Há nisso uma
violência contra o equilíbrio da relação de consumo, expondo o consumidor a
prática abusiva. É que as agências bancárias e os postos credenciados ao
recebimento das contas das concessionárias de energia elétrica não aceitam o
pagamento das contas com exclusão da TIP. O pagamento tem de ser integral e não
são previstas alternativas, como v.g. a consignação administrativa. Um tributo
comum, como o IPTU, quando não pago, sujeita o contribuinte a execução fiscal.
A TIP, quando não paga, sujeita o contribuinte ao corte do fornecimento de
energia elétrica, afetando relação de consumo. Acontece, porém, que os
convênios firmados pelas concessionárias de energia elétrica e pelos Municípios
não podem obrigar terceiros. Terceiros no caso são todos os consumidores das
concessionárias de energia elétrica. Tal situação se torna mais grave porque em
alguns municípios, essas empresas detêm o monopólio da concessão, não havendo
alternativa para o consumidor, senão submeter-se às suas imposições. A forma de
cobrança da TIP é, assim, arbitrária, sujeitando os consumidores de energia a
uma situação injusta e não equânime. Caso a conta não seja paga in totum, com a
TIP incluída, os consumidores correm o risco de ter o fornecimento de energia
elétrica suspenso, além de se sujeitarem a execução fiscal pelo Município.
Agindo em face dessa relação, o Ministério Público estará sim defendendo
consumidores.
CONCESSIONÁRIA ARRECADADORA x
MUNICÍPIO INSTITUIDOR (a relação de direito civil entre a concessionária de
energia elétrica e o Município sujeito ativo da relação tributária). Decorre do
convênio firmado entre as pessoas jurídicas envolvidas para a cobrança da taxa
de iluminação pública. Como a TIP é ilegal e inconstitucional, conforme o
pronunciamento unânime da doutrina e da jurisprudência de todos os Estados da
Federação, há evidente interesse público de defesa da moralidade
administrativa, da legalidade e da impessoalidade. Estes princípios constitucionais
acabam por ser violados, pois em geral as leis municipais estabelecem as
concessionárias de energia elétrica como únicas arrecadadoras da TIP, não se
realizando qualquer licitação para a escolha do agente arrecadador, que ainda
costuma reter em média 5% (cinco por cento) da arrecadação tributária
municipal, como lucro sem risco. Daí estar autorizado também por isso o
Ministério Público a propor ação civil para reclamar a declaração de nulidade
de convênios assim firmados.
Por conseguinte, vê-se em toda a
parte a imbricação entre a relação tributária e a relação de consumo, estando o
Ministério Público, em face da relevância social desses conflitos de
interesses, apto a atuar para defender tanto os contribuintes quanto os
consumidores. Acentue-se que, mesmo quando os Municípios pretendem isentar uma
parcela da população do pagamento dessa taxa, fazem-no pelo critério do
consumo. Daí porque, em Feira de Santana, por exemplo, "os pequenos
consumidores de energia elétrica, assim entendidos como aqueles que consumirem
até 100kWh por mês" não pagam a TIP.
CONCLUSÕES
Por tudo o que foi dito, a
existência de relação de consumo na hipótese enfrentada é inquestionável.
Afinal, as concessionárias de energia elétrica somente têm cobrado o tributo
instituído pelos Municípios porque têm feito tal cobrança de seus consumidores.
E de ninguém mais!
Se a cobrança da TIP fosse feita por
outros meios, independentemente da relação de consumo com as concessionárias,
menos haveria a opor à sua ilegalidade (ainda assim seria inconstitucional). O
que se pretende demonstrar é que todos os contribuintes que pagam a TIP são
identificados como tal apenas porque antes são consumidores de energia
elétrica. Isto é óbvio e salta aos olhos, porque o cálculo do valor devido a
título de taxa de iluminação pública é feito com base no consumo de energia
elétrica de cada imóvel ligado à rede de distribuição da concessionária de
energia elétrica.
Vale dizer, as concessionárias e os
Municípios somente identificam o valor do tributo ilegal após quantificarem o
consumo de energia. Assim, as duas relações jurídicas (de consumo e tributária)
estão absolutamente congeminadas. A segunda não subsiste sem a primeira.
Afinal, como quantificar e cobrar a TIP sem ter em consideração a relação de
consumo subjacente, que decorre da prestação do serviço de fornecimento de
energia elétrica pela concessionária?
Evidentemente, o recolhimento da TIP
impõe aos consumidores de energia elétrica um ônus indevido, cria um
desequilíbrio na relação jurídica de consumo e ofende o princípio
constitucional da igualdade. As outras pessoas que também se utilizam da
iluminação pública de uma determinada cidade, mas nela não têm imóveis, como os
viajantes, os turistas ou os meros visitantes não pagam a TIP nos locais por onde
passam exatamente porque não são consumidores da concessionária de energia
elétrica local!
Assim, a relação jurídica-base no
caso da multicitada taxa é a própria relação de consumo. A lesão aos interesses
desses consumidores surge com a imposição da TIP em suas contas pela utilização
do serviço público concedido. Os interesses são coletivos, porque os titulares
são determináveis, amoldando-se à subespécie de interesses homogêneos.
Conferir legitimidade ao Ministério
Público para a ação civil pública em que se busca a exclusão da TIP atende aos
objetivos da Política Nacional de Consumo, previstos no art. 4º do CDC, como os
da proteção dos interesses econômicos dos consumidores, a garantia da harmonia
nas relações de consumo e resulta no reconhecimento da vulnerabilidade do
consumidor no mercado.
Essa Política Nacional de Consumo
reclama a ação governamental para proteger efetivamente o consumidor, mediante
iniciativas diretas, extrajudiciais ou judiciais, como a que se tem quando o
Parquet assume a defesa dos consumidores das concessionárias de energia
elétrica.
O reconhecimento da legitimidade
ativa do MP também assegura o cumprimento do art. 6º, inciso VI, do CDC,
garantindo o acesso dos consumidores aos órgãos judiciários. E isto é mais
relevante em cidades como Feira de Santana onde não existe PROCON (embora tenha
meio milhão de habitantes), onde a Defensoria Pública Estadual não tem qualquer
estrutura e mal pode dar conta de suas relevantes atribuições junto às varas
criminais, cíveis e de família e onde há apenas uma vara da Fazenda Pública já
sobrecarregada com cerca de vinte mil processos. Com a legitimidade do MP,
viabiliza-se também o atendimento ao inciso VIII do mesmo artigo 6º do CDC, que
determina que é direito do consumidor a facilitação da defesa de seus
interesses.
A legitimação do Ministério Público
nessas hipóteses tem muito mais razão de ser do que a que decorre, por exemplo,
da Lei n. 7913/89, que confere ao Parquet a atribuição de agir em defesa dos
investidores no mercado de valores mobiliários, que são autênticos titulares de
interesses individuais homogêneos. A previsão legal equipara-se à da cobrança
da TIP. Basta ver o que prevê o art. 2º da Lei n. 7913/89, que se aplica
analogicamente às demandas acerca da TIP e considerar que espécie de interesses
a citada lei protege.
KAZUO WATANABE, na obra Código de
Defesa do Consumidor Comentado pelos autores do projeto (Forense Universitária,
5ª edição, p. 631), afirma que o interesse do legislador consumerista "foi
o de tratar molecularmente os conflitos de interesses coletivos, em
contraposição à técnica tradicional de solução atomizada, para com isso
conferir peso político maior às demandas coletivas, solucionar mais
adequadamente os conflitos coletivos, evitar decisões conflitantes e aliviar a
sobrecarga do Poder Judiciário, atulhado de demandas fragmentárias".
Diz mais o jurista KAZUO WATANABE
que "Tem sido, seguramente, com essa preocupação que a jurisprudência vem
admitindo a legitimação do Ministério Público para o ajuizamento de ação civil
pública para defesa de interesses da população contra a cobrança indevida de
taxa de iluminação pública (STJ, REsp. n. 49.272-6-RS). Alude-se à necessidade
de admissão de ação civil pública `para evitar as inumeráveis demandas
judiciais (economia processual) e evitar decisões incongruentes sobre idênticas
questões jurídicas¿. Acrescentaríamos a esses argumentos um outro que, em nosso
entender, demonstra a efetiva presença do requisito da relevância social:
muitos administradores públicos, mesmo sabedores de que uma lei instituidora de
imposto ou taxa é inconstitucional, insistem em editá-la e cobrar com base nela
o imposto ou taxa e assim agem fundados nos cálculos estatísticos que
evidenciam que apenas um número muito restrito de contribuintes se dá ao
trabalho de postular individualmente em juízo a tutela de seus direitos. Tem
inegável sentido social a ação civil pública movida com o objetivo de obstar
semelhante conduta ilícita da administração pública" (p. 641/642).
Assim, merecem tutela coletiva os
interesses dos munícipes e dos consumidores, como os de não serem compelidos a
exações tributárias ilegais, de terem um governo cumpridor das normas
constitucionais e da legislação hierarquicamente inferior e de não serem
submetidos a abusos nas relações consumeristas. Diante do evidente interesse
social que aflora do caso em exame e sob a inspiração do princípio da economia
processual e do desejo de uma Justiça célere, não há como negar legitimidade ao
Parquet para atuar em prol dos consumidores e contribuintes, consumidos e
atribulados pelos abusos do Poder Público, que não cessa de lançar sua fome
tributária sobre a coletividade.
Provoca temor imaginar que os
tribunais possam negar legitimidade ao Ministério Público para ações como as
que são propostas contra a taxa de iluminação pública. Se tal tendência, ainda
ao que parece limitada, espraiar-se pelas cortes superiores, haverá por todo o
Brasil uma enxurrada de ações individuais repetitivas, tratando dos mesmos
temas de direito, que acabarão aprofundando o problema da morosidade do
Judiciário na solução das demandas a ele apresentadas, prejudicando a
coletividade e beneficiando apenas gestores públicos sem idéias e empresas
privadas desejosas de lucro e facilidades.
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Data: 08/11/2004
Fonte: Vladimir Aras
*Promotor de Justiça Cidadania e de
Defesa do
Consumidor na comarca de Feira de Santana, Bahia - Brasil
Disponível
em: http://portalmpsc.mp.sc.gov.br/site/portal/portal_detalhe.asp?campo=2556
acesso em 12.09.05