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A argüição de descumprimento de preceito fundamental e a Avocatória

 

 

Celso Ribeiro Bastos* e Alexis Galiás de Souza Vargas**

 

 

Surge em boa hora, na legislação brasileira, a regulamentação do disposto no artigo 102, § 1o, da Constituição Federal. A Lei 9.882/99, editada para este fim, cria uma ação judicial denominada argüição de descumprimento de preceito fundamental, que, apesar de já constar originalmente do texto constitucional, jamais fora utilizada por falta de disciplina legal.

É sabido que o nosso sistema de controle da constitucionalidade já era considerado um dos mais ricos do mundo. Não obstante isso, o constituinte houve por bem acrescentar este outro instrumento, que vem enriquecer, ainda mais, o arsenal de defesa da Constituição, cobrindo uma lacuna que se fazia sentir.

A legislação em comento cria uma forma inovadora na fiscalização da constitucionalidade. Entre as novidades, destaca-se a possibilidade de controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal, que antes só era possível pela via difusa. Além disso, fica criado, também, o controle de constitucionalidade de atos não normativos, bem como de atos anteriores à Constituição.

Em que pese o alargamento do espectro dos atos atingidos pelo controle, as hipóteses de sua utilização restringem-se drasticamente, em relação aos demais instrumentos. Isto porque, ao contrário do que ocorre nas outras formas de controle concentrado (exercido através da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da Ação Declaratória de Constitucionalidade), em que se discute qualquer norma constitucional, na nova hipótese só cabe a ação se houver desrespeito a preceito fundamental. Este fator faz uma enorme diferença, pois não se trata de fiscalizar a lesão a qualquer dispositivo da que é, sem dúvida, a maior Constituição do mundo, mas tão somente aos grandes princípios e regras basilares deste diploma. Dentre estes, podemos de antemão frisar alguns que, dada sua magnitude e posição ocupada na Carta, não deixam dúvidas quanto à caracterização de fundamentais: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político, a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais.

Tem-se pois que, quando tratar-se de ato, ou omissão, capaz de atingir negativamente estes valores basilares, poderá ser provocado o Supremo Tribunal Federal para decidir sobre a questão constitucional, exclusivamente. Com isso, o Excelso Pretório cumpre o seu papel primordial de guardião-mor da Constituição e da ordem jurídica, bem como faz uma ponte entre o controle concentrado e o difuso, uma vez que sua decisão incidirá diretamente sobre os diversos processos judiciais. Para tanto, poderá suspender liminarmente as ações judiciais ou processos administrativos em curso, que deverão acatar a orientação pretoriana, a ser proferida no final do processo.

Com isso, permite-se antecipar o deslinde de uma questão jurídica que percorreria a via crucis do sistema difuso até chegar ao Supremo Tribunal Federal, para então, após decisão definitiva, ser comunicado o Senado Federal, que poderá suspender a eficácia da lei impugnada, podendo sanar definitivamente a inconstitucionalidade. Porém, a novel ação serve somente aos preceitos fundamentais, e nesse caso não se admite controvérsia ou demora. Há que se decidir univocamente sobre o tema magno, sob pena de ser atropelada a segurança jurídica e o Estado de Direito, que ficam seriamente prejudicados diante do dissenso acerca dos seus pilares de sustentação, que são os preceitos fundamentais da Lei Maior.

Entretanto, difere-se, em muito, da antiga avocatória, através da qual o Supremo Tribunal Federal podia chamar para si o julgamento de qualquer matéria politicamente interessante. Não se trata mais disso. Como dito, trata-se de mecanismo de controle da constitucionalidade, originalmente previsto na Lei Maior, que amplia a cidadania brasileira e a segurança jurídica, através do qual, mediante a provocação dos legitimados pelo artigo 103 da Carta Magna, o Excelso Pretório poderá suspender os processos liminarmente e proferir decisões com efeito vinculante apenas sobre a questão constitucional. O juiz de direito não é mais afastado da sua posição de julgador, como era anteriormente. Não há, no caso, julgamento do feito, mas tão somente uma baliza exata daquilo que se considera fundamental para a ordem jurídica. O deslinde da questão constitucional através da argüição de descumprimento de preceito fundamental não contraria o princípio do juiz natural, uma vez que o magistrado fica mantido no seu papel de julgador e o Supremo no papel de guardião da Constituição.

O Judiciário brasileiro já deu demonstrações de que pode ser assaltado por situações que o colocam em verdadeiro caos, onde várias decisões têm condições de prevalecer, mesmo sendo contraditórias entre si. Isso não pode ser admitido diante de preceitos fundamentais, sob pena de ruir todo o ordenamento a que dão sustentação. O sistema estava carente de um mecanismo que lhe conferisse mais racionalidade e segurança, para melhor servir ao cidadão. Um mecanismo que nos aproxime da aplicação integral da Carta Magna.

 

 

* é jurista, advogado constitucionalista em SP, professor de Direito Constitucional e Direito das Relações Econômicas Internacionais no curso de Pós-Graduação da PUC/SP e diretor geral do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (e-mail: ibdc@aldeiaglobal.com.br)

** é advogado constitucionalista em SP, mestrando em Direito Constitucional pela PUC/SP e membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (e-mail: alexis.ibdc@gdv.com.br)

 

 

Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_08/arg_descump_Celso.htm acesso no dia 30.08.05.