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I –
Introdução
Questiona-se
a constitucionalidade do anteprojeto de Emenda à Constituição Estadual que visa
concretizar a autonomia funcional, administrativa e financeira da Defensoria
Pública Estadual, conforme as novas regras da Emenda 45/2004 à Constituição
Federal. Passo a emitir opinião jurídica a respeito.
Referida
Emenda (chamada de "Reforma do Judiciário"), quanto à Defensoria
Pública Estadual, trouxe as seguintes previsões:
"Art.
134 (...)
(...)
§
2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e
administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites
estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no
art. 99, § 2º".
"Art.
168 – Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os
créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes
Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública,
ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, na forma da lei
complementar a que se refere o art. 165, § 9º".
No
âmbito da PGE, houve parecer do Procurador MARCOS COSTA VIANNA MOOG pela constitucionalidade
do anteprojeto, especialmente quanto à iniciativa de sua apresentação à
Assembléia Legislativa (art. 66, I, da Constituição Estadual).
Mas
o parecer do Procurador-Geral do Estado, Dr. JOSÉ WANDERLEY BEZERRA ALVES, além
de ter apontado a necessidade de algumas correções formais no anteprojeto (o
que já foi acolhido), sustenta, em resumo, que:
a)
a Emenda não concedeu autonomia financeira à Defensoria Pública Estadual;
b)
a alteração proposta quanto a dar iniciativa reservada para apresentar projetos
de leis à Defensoria Pública Estadual, para cuidar de seus assuntos internos,
afronta o art. 61, "caput", da Constituição Federal.
A
partir desse importante posicionamento do Procurador-Geral do Estado, que goza
de merecido respeito junto aos operadores do direito, é que passaremos à nossa
análise e conclusões.
II – A
autonomia financeira da Defensoria Pública Estadual
As
regras da Reforma do Judiciário sobre a Defensoria Pública Estadual visaram, essencial
e especificamente, dar condições ao órgão de ser mais eficiente na
prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem
insuficiência de recursos (na forma do inciso LXXIV, do art. 5º, da CF/88).
Isto
é inequívoco. Quando se discutia o Projeto da Emenda, o Ministro Márcio
Thomaz Bastos, reunido na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal,
em 10.02.04, posicionou-se favoravelmente à autonomia da Defensoria Pública,
considerando que o órgão deveria ser um espelho do Ministério Público. O jornal
Folha de S. Paulo, edição de 16.11.03, também revelou ser prioridade do Governo
Federal a Emenda da Reforma do Judiciário, listando como ponto essencial a
autonomia da Defensoria Pública. Já o jornal Correio Braziliense, de 17.03.04,
revelou: "a Defensoria terá autonomia para definir seu próprio orçamento.
Terá uma autonomia semelhante à do MP".
A
literatura jurídica recente, interpretando o que é claro, tem revelado, quanto
às novidades da Emenda de que se fala, "a previsão do real cumprimento do
princípio de acesso à ordem jurídica justa, estabelecendo-se a Justiça
Itinerante e a sua descentralização, como a autonomia funcional, administrativa
e financeira da Defensoria Pública Estadual" (PEDRO LENZA, "Reforma
do Judiciário", jus.com.br). No mesmo sentido: "Às Defensorias
Públicas Estaduais são agora asseguradas autonomia funcional, administrativa e
financeira e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites
estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no
art. 99, §2°, devendo os recursos e as dotações orçamentárias, compreendidos os
créditos suplementares, ser-lhes entregues, igualmente como ao Judiciário e
Ministério Público, até o dia 20 de cada mês, em duodécimos na forma de Lei
Complementar, conforme art.168" (AGAPITO MACHADO, "A nova reforma do
Poder Judiciário", jus.com.br).
Esta
conclusão decorre da interpretação conjunta das novidades jurídicas sob
comento (§ 2º do art. 134, c/c art. 168). Garantiu o Constituinte Derivado, é
certo, autonomia funcional e administrativa à Defensoria Pública, além da
autonomia financeira, decorrente das menções expressas à iniciativa para
elaboração de sua proposta orçamentária e à entrega mensal de seu duodécimo, da
mesma forma como ocorre com o Legislativo, com o Judiciário e com o Ministério
Público.
Aqui
é de lembrar, sempre e sempre respeitosamente, que "quando o texto
dispõe de modo amplo, sem limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo
a todos os casos particulares que se possam enquadrar na hipótese geral
prevista explicitamente" ("odiosa restringenda, favorabilia
amplianda", CARLOS MAXIMILIANO, "Hermenêutica e Aplicação do
Direito", Forense, 10ª ed., p. 246-247). Se a Constituição passou a falar
em iniciativa para elaboração de proposta orçamentária e em entrega mensal do
duodécimo à Defensoria Pública, é necessário extrair dessas noções jurídicas
que o órgão, efetivamente, passou a gozar também de autonomia financeira.
Realmente,
de que terá adiantado todo o firme propósito do Governo Federal (que levou
adiante o claro compromisso político de dar autonomia à Defensoria Pública),
além de tudo o que restou legislado, se das inovações jurídicas em questão não
se puder extrair a autonomia financeira do órgão ? De que adiantará reconhecer
que a Defensoria Pública tem autonomia funcional e administrativa, além de ter
o direito de elaborar sua proposta orçamentária e de receber mensalmente seu
duodécimo, se daí não se concluir (por imperativo até da lógica formal) que a
mesma também passou a ter autonomia financeira ? De novo é possível invocar
CARLOS MAXIMILIANO, no sentido de que todos que atuam na área jurídica sabem
que O DIREITO DEVE SER INTERPRETADO INTELIGENTEMENTE, "não de modo que a
ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões
inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte
eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito,
inócua, ou este, juridicamente nulo" (ob. cit., p. 166).
É
verdade que o constituinte, quando tratou da autonomia financeira do
Judiciário, o fez expressamente (art. 99, "caput"), mas também não é
menos verdade que ao tratar da autonomia financeira do Ministério Público tal
não se deu de forma expressa (§ 2º do art. 127).
Tudo
no Direito, até as regras aparentemente claras, devem ser interpretadas. O
legislador é um leigo. Muitas vezes diz mais do que quis ou menos do que
pretendeu. Veja-se um exemplo (com o que está de acordo o eminente
Procurador-Geral do Estado, conf. nota 1, pág. 2, da Manifestação 014/05): a
menção, na parte final do § 2º do art. 134, à regra do art. 99, § 2º, não pode,
de forma alguma, significar que a proposta orçamentária da Defensoria Pública
será encaminhada por intermédio do Presidente do Tribunal de Justiça, porque
isto não faz sentido algum, já que o encaminhamento da proposta
orçamentária da Defensoria Pública deverá se dar por ato da Chefia da
Instituição.
Para
finalizar o tópico, eis as importantes considerações do Juiz Federal DIRLEY DA
CUNHA JÚNIOR:
"Ora,
como de conhecimento convencional, é por meio das Defensorias Públicas que o
Estado cumpre o seu dever constitucional de garantir o acesso à
Justiça das pessoas desprovidas de recursos financeiros para fazer frente
às despesas com advogado e custas do processo. Nesse contexto, as Defensorias Públicas
revelam-se como um dos mais importantes e fundamentais instrumentos de
afirmação judicial dos direitos humanos e, consectariamente, de fortalecimento
do Estado Democrático de Direito, vez porque atua como veículo das
reivindicações dos segmentos mais carentes da sociedade junto ao Poder
Judiciário, na efetivação e concretização dos direitos fundamentais. Avanço
inigualável e inédito no sistema constitucional brasileiro, e sem paralelo no
direito comparado, a Democracia Brasileira atinge o que talvez seja o seu ápice
de amadurecimento e expansão, com a concessão às Defensorias Públicas
Estaduais, órgãos imprescindíveis para a afirmação da dignidade humana e, em
consequência, para a cidadania, de independência funcional, administrativa e
financeira, permitindo a iniciativa de sua proposta orçamentária
dentro dos limites fixados na lei de diretrizes orçamentárias. Com isso, passam
as Defensorias Públicas Estaduais a titularizar a prerrogativa
constitucional, irrecusável e indisponível, de elaborar as propostas de
orçamento do órgão para fazer frente às despesas de pessoal, estrutura e
funcionamento, de modo a melhorar e eficientemente garantir o acesso à Justiça
dos economicamente deficientes, subordinando-se, tão somente, aos limites
estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, em tudo semelhante ao que já
ocorre com os Poderes Legislativo e Judiciário e com o Ministério Público. E
para que tal autonomia não permaneça no vazio e no plano abstrato das
aspirações, a EC nº 45/04 deu nova redação ao art. 168, para determinar que os
recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos
suplementares e especiais, destinados aos órgãos da Defensoria Pública, lhes
sejam entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, em situação idêntica
da que já se verifica com os órgãos do Poder Legislativo e Judiciário e do
Ministério Público. O propósito axiomático da EC 45/04, ao garantir a autonomia
funcional, administrativa e financeira às Defensorias Públicas Estaduais, foi
prover esses órgãos de defesa da cidadania de melhorias com pessoal e
estrutura, para o seu bom funcionamento, conferindo-lhes a liberdade para,
quando da elaboração de suas propostas orçamentárias, contemplarem os subsídios
dos Defensores Públicos e a remuneração de seus Servidores, condignos e
compatíveis com a nobreza e elevada relevância, agora mais do que merecidamente
reconhecida, das funções que lhes foram constitucionalmente concedidas".
III – A
iniciativa reservada da Defensoria Pública para apresentação de projetos de
leis
É
certo que o Constituinte Reformador, apesar de ter garantido a autonomia
funcional, administrativa e financeira à Defensoria Pública, não adaptou a
Constituição Federal quanto à regra da necessária iniciativa reservada para
apresentação de projetos de leis que tratem de assuntos internos do órgão
(criação e extinção de cargos e fixação da remuneração de seus membros), porque
não se alterou a redação do art. 61 da CF/88. Mas daí a concluir pela
impossibilidade de a Defensoria ter iniciativa reservada quanto a projetos de
leis vai a uma distância enorme.
A
prevalecer o entendimento que estamos a examinar (Manifestação PGE/PAA Nº
014/2005), o que teríamos seria o seguinte: a Defensoria Pública tem autonomia,
porque tem orçamento próprio, não podendo gastar mais do que está à disposição
no orçamento, como é regra tradicional no direito brasileiro (art. 157 da
Constituição Estadual). Mas toda vez que precisar criar novos cargos ou fixar e
majorar remuneração de seus membros, o que sempre se dá por lei, precisará
solicitar ao Governador que apresente o projeto à Assembléia Legislativa.
Tal
conclusão não pode ser aceita, por desnaturar por completo as novidades
jurídicas criadas pela Emenda 45/2004. É o mesmo que garantir um direito mas
não lhe dar qualquer eficácia, desconsiderando, a mais não poder, a lição
dos doutos, que afirmam, em uníssona voz, que "a idéia de
efetividade, conquanto de desenvolvimento relativamente recente, traduz a mais
notável preocupação do constitucionalismo nos últimos tempos. Ligada ao
fenômeno da juridicização da Constituição, e ao reconhecimento e incremento de
sua força normativa, a efetividade merece capítulo obrigatório na interpretação
constitucional. OS GRANDES AUTORES DA ATUALIDADE REFEREM-SE À NECESSIDADE DE
DAR PREFERÊNCIA, NOS PROBLEMAS CONSTITUCIONAIS, AOS PONTOS DE VISTA QUE LEVEM
AS NORMAS A OBTER A MÁXIMA EFICÁCIA ANTE AS CIRCUNSTÂNCIAS DE CADA CASO"
(LUÍS ROBERTO BARROSO, "Interpretação e Aplicação da Constituição",
Saraiva, 1996, p. 218, sem destaque no original).
Guiar-se,
no assunto, unicamente pelo art. 61 da CF/88, deixando de analisar a
Constituição mais amplamente, à luz das recentes novidades jurídicas, também
significa desconsiderar que "a Constituição é a ordem jurídica fundamental
de uma sociedade em um determinado momento histórico e, como é um dinamismo, é
contemporânea à realidade. Daí porque tenho afirmado que não existe a
Constituição de 1988. O que hoje realmente há, aqui e agora, é a Constituição
do Brasil" (EROS GRAU, STF, ADIn 3367-1/DF, Rel. Min. Cezar Peluso).
Ou
seja: não existe mais, agora em maio/2005, a Constituição de 05.10.88, mas sim
a Constituição reformada, inclusive e especialmente pela Emenda 45/2004, que
introduziu no sistema a autonomia da Defensoria Pública. Como concretizar essa
autonomia se não se garantir à Defensoria Pública, e somente a ela, a
iniciativa para apresentação de projetos de leis que tratem de assuntos
"interna corporis" ?
KONRAD
HESSE ("A força normativa da Constituição", Sergio Fabris Editor,
1991, p. 24, tradução de Gilmar Ferreira Mendes) resolve a questão, ao
sustentar que de fato "a Constituição jurídica está condicionada pela
realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta do seu
tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada
se se levar em conta essa realidade".
Faz
algum sentido (juridicamente falando), reconhecer que o Judiciário tem
autonomia financeira e iniciativa reservada para seus projetos de leis, que o
Ministério Público tem autonomia financeira e iniciativa reservada para seus
projetos de leis, mas que a Defensoria Pública, apesar de ter autonomia, não
tem iniciativa reservada para seus projetos de leis ?
De
novo, para finalizar, recorremos ao bem fundamentado estudo do Doutor em
Direito Constitucional DIRLEY DA CUNHA JUNIOR:
"E
é a partir dessa perspectiva – autonomia financeira para elaboração de sua
proposta orçamentária que defina, entre as melhorias institucionais, e
atendidos tão-somente os limites estabelecidos na lei de diretrizes
orçamentárias, os recursos suficientes para pagamento dos seus membros e
servidores – que se deve reconhecer às Defensorias Públicas Estaduais a
iniciativa privativa de propor às Assembléias Legislativas a fixação dos
subsídios e da remuneração de seu pessoal, dentro dos limites da previsão
orçamentária e observados, obviamente, os respectivos sub-tetos (subsídio dos
Desembargadores do Tribunal de Justiça, para os Defensores Públicos; e o
subsídio do Governador do Estado, para os servidores do órgão). Essa
interpretação se impõe, não só porque é a única que confere maior efetividade
ao § 2º inserido ao art. 134 da CF/88 (que assegura a autonomia financeira), como
também porque é a que melhor compatibiliza e conforma o citado parágrafo ao
texto constitucional, em especial com os direitos fundamentais".
IV –
Conclusão
Daí
porque, respeitosamente (porque nossa opinião jurídica está em desacordo com
aquela expressada por jurista que tem nosso respeito e consideração, no caso, o
Procurador-Geral do Estado), e esperando seja considerado que "a melhor
interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu
aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar a
injustiças" (RSTJ 4/1.554), entendemos ser constitucional
o anteprojeto examinado, especialmente quanto aos temas da efetiva
autonomia financeira e da iniciativa reservada da Defensoria Pública para
apresentação de projetos de leis sobre assuntos de sua economia interna, única
forma válida de dar plena eficácia às novidades implantadas pela Emenda
45/2004, que, é fora de qualquer dúvida, DESVINCULOU A DEFENSORIA PÚBLICA DO
PODER EXECUTIVO.
Cabe
ao intérprete, agora, tudo fazer para incrementar, definitivamente, a mensagem
do art. 134 da Constituição, para tornar a Defensoria Pública em legítima e
verdadeira "instituição essencial à função jurisdicional do Estado".
Assim,
como constou da justificativa do anteprojeto, "reformar a Constituição
Estadual é princípio basilar para fazer cumprir a Constituição Federal e
proporcionar à Defensoria Pública tratamento igualitário às demais instituições
garantidoras da ordem constitucional, é reconhecer sua importância no
ordenamento jurídico e garantir os direitos sociais fundamentais na sociedade
sul-mato-grossense".
http://www1.jus.com.br/pecas/texto.asp?id=621