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A constitucionalização do Direito Administrativo e o controle de mérito do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário

 

Mauro Roberto Gomes de Mattos*



I - INTRODUÇÃO

O instituto da discricionariedade administrativa é uma técnica antiga e sempre foi entendido como uma faculdade legal do poder público, imune ao controle judicial.

Nasceu no Conselho de Estado da França e se desenvolveu por toda Europa Continental, fazendo-se presente no direito público europeu do século XVIII.

Não resta dúvida que a construção do poder discricionário da Administração Pública surgiu após a Revolução Francesa de 1789, onde os poderes constituídos foram criados e separados para que fossem independentes e harmônicos entre si, humanizando mais a sociedade.

Esta separação dos Poderes foi vital para a democracia, pois como a força central emanava do Rei, a criação do Poder Legislativo vinculou os súditos à lei, bem como o Poder Judiciário retirava do monarca o poder de julgar.

Esse equilíbrio de forças foi suficiente para acabar com o Estado Absolutista, onde o poder centralizado no monarca sufragava o direito alheio.

Com o fim do arbítrio que constituía a base do governo despótico, surgiram os princípios da legalidade, da soberania do povo e da separação de poderes como fundamento de outras formas de governo, vinculados ao espírito e à força da lei.

Nesse sentido, Montesquieu (1) parte do pressuposto de que a liberdade consiste no "direito de fazer tudo aquilo que as leis permitem."

Essa liberdade normativa passou a ser a base de manutenção dos atos públicos, que passaram a ser vinculados através da lei.

Por este fundamental princípio, o poder público começou a conviver com limites. Ou seja, o poder sendo limitado pelo próprio poder, para evitar abusos.

Sucede que, naquela época, o Poder Executivo da França participava na elaboração das leis, quando exercia uma faculté d’empêcher através do direito de veto suspensivo. Era o Executivo escolhendo a legalidade a qual ele pretendia vincular-se através do monarca hereditário.

Pois bem, a partir das idéias de Locke, Rousseau e Kant, dentre outros ilustres filósofos, dá-se a fixação da supremacia do Poder Legislativo, invertendo-se os conceitos anteriores, foi estabelecido que a lei era a voz do povo, pronunciada pelos seus representantes no parlamento.

Nessa vertente, Locke (2) defendia um governo regrado pela lei, subordinando-se ao Poder Legislativo, pelo fato dele ser o responsável pelo texto legal que disciplinaria o próprio Poder Executivo.

Locke afirmou também, que mesmo estando em um plano de superioridade, o Poder Legislativo estava sujeito a certas condições ou limites de exercícios.

Jean-Jacques Rousseau, (3) contribuindo também para a configuração do princípio da legalidade administrativa, partiu da idéia de inalienabilidade e indivisibilidade da soberania, identificada com o exercício da vontade geral, tendo em vista o comum ou a utilidade pública, através da lei que o soberano atua e encontra os seus poderes, sendo o Poder Legislativo o coração do Estado.

Por isto Rousseau, (4) deixou averbado que o Poder Executivo não é mais do que "a força aplicada à lei."

Dessa forma, contribuiu o jusfilósofo citado com a idéia de que os membros do poder executivo não possuem a faculdade de formar vontade autônoma, pois eles "não são senhores do povo, mas os seus oficiais", (5)devendo o Poder Executivo exercer a lei.

O terceiro precursor de uma concepção liberal do princípio da legalidade administrativa, Immanuel Kant, fundador de uma filosofia crítica que investigava as condições de objetividade do saber (a primeira versão de "Crítica da Razão Pura" é de 1781), defendia que a verdadeira expressão da soberania correspondia "a vontade coletiva do povo". (6)

Para Kant a racionalidade (vernunftrecht) moderna tem a missão de descobrir como a inteligência e a vontade humana podem alcançar suas finalidades supremas.

Dentro de uma sociedade, Kant entendia que a moralidade se atém ao critério do respeito e o direito (justiça) ao âmbito da coexistência pela lei, fruto da vontade popular.

Dessa maneira, Kant (7) entendia:

"El ‘sujeto transcendental’ es el ‘legislador de la naturaleza’: el ‘sujeto de la filosofía práctica’ es el ‘hombre noúmeno’. La ley práctica suprema y universal de la razón es la seguinte: que la razón sea quien determine las acciones libres. (...) El mundo de la ética es el de la ‘legislación interna’ que apunta al deber como móvil de la acción; yel del Derecho, que permite otros móviles, es el mundo de la ‘legislación externa’. Derecho es ‘el conjunto de las condiciones bajo las cuales el arbitrio de cada uno puede conciliarse con el arbitrio de los demás según una ley universal de libertad."

Diferenciando os três poderes, Kant (8) deixou assente que eles não podem usurpar o espaço funcional alheio, devendo o Estado se manter dentro das leis da liberdade. Sendo que a lei ostenta a verdadeira autoridade natural, ficando proibido alguém opor-se à vontade do legislador.

Essa tendência fortificada da lei como vontade suprema do povo se corporificou também nos séculos XIX e início do XX, onde os Poderes Executivo e Judiciário não podiam invadir a seara do texto legal, estabelecido pelo Poder Legislativo.

Como se viu, em uma primeira fase da história do direito público, o rei, representante do povo e senhor das razões, passou a ser chefe do então novo Poder Executivo, limitado pela lei, criada por um também Poder (Legislativo) novo, livre e autônomo.

A vinculação da Administração Pública à lei foi um grande passo para o direito público e para toda a humanidade, que passou a se submeter à regras legais e não à tirania do soberano.

Dito isto, constata-se que a Administração Pública, bem como os demais Poderes legalmente constituídos para se movimentar são obrigados a elaborar atos discricionários, estabelecidos por uma outorga da lei como condição de validade do juízo de valor, dentro de uma escolha livre de conveniência e de oportunidade.

O chamado poder discricionário, portanto é excepcional e está vinculado à lei, que por não ter condição de prever todas as situações, com alguma objetividade e em tese, delega ao administrador público a competência de promover um juízo particular de escolha sobre determinado assunto, como será demonstrado no tópico posterior.

Sucede, que a atual fase do direito público é voltada para a constitucionalização de suas normas, vinculadas à determinação suprema da Magna Carta.

Aliás, no campo filosófico, Hegel, (9) já considerava a Constituição como o "espírito de um povo", sendo "algo de incriado, embora produzido no tempo", tendo cada povo "a constitucionalização, que lhe convém e se lhe adequa".

Pela constitucionalização do direito é possível penetrar na essência de atos públicos até então inexplorados por outros Poderes. O que era vedado, em homenagem aos princípios e normas da Constituição Federal, passou a ser permitido. Pois o Poder Judiciário no atual século e no final do século passado, alçou a condição, dentre outras, de fiscal de todos os atos públicos.

Esta necessária fiscalização do Poder Judiciário sobre toda a sociedade, inclusive quanto aos atos públicos, possui o escopo de manter eficaz os princípios e as normas da Constituição, sem que se caracterize uma indevida ingerência de um poder sobre o outro.

Assim, o que era proibido – controle do ato administrativo discricionário – controle externo (Poder Judiciário) – passou a ser permitido pela Constituição Federal.

Apesar dessa alteração constitucional, a doutrina e a jurisprudência se encontram divididas, entendendo, sem unanimidade, que ainda é defeso a verificação do motivo, da oportunidade e conveniência do ato tido como discricionário pelo Poder Judiciário.

Entendemos que é necessário um amplo debate sobre o assunto, pois todo e qualquer ato público não está imune ao controle de mérito pelo Poder Judiciário, guardião maior da Constituição.

É preciso que haja a evolução total da doutrina, e que ela se desapegue da fase arcaica do direito administrativo, onde prevalecia a concepção de que um Poder não poderia invadir a competência do outro, sob pena de quebra do princípio da independência constitucional, para se dar conta que o Poder Judiciário quando invalida o ato público, discricionário ou não, não está cometendo uma intromissão indevida, pois ele resguarda a eficácia da normatividade da Constituição, restituindo a sua força e o dever de que todos devem construir seus atos em conformidade com os preceitos Maiores.

Assim, o rótulo do ato público pouco importa, em razão do efetivo controle judicial exercido pelo Poder Judiciário, como o responsável pela manutenção positiva da densidade da Carta Maior.

Na atualidade, há o fim do mito da perfeição da lei ("império da lei"), por ela estar subordinada diretamente à Constituição.

Houve uma profunda evolução do significado e do valor da Constituição, que acompanhou a radical mudança do modelo de Estado. (10) Assim a reserva da lei deu lugar à reserva de Constituição, alcançada pelo Estado-segurança (Sicherheitsstaat), que defende os interesses da sociedade através da segurança jurídica.

Em muitos casos, a lei é "um recipiente vazio", (11) onde o mito da sua perfeição já não vigora no direito público atual.

Ao diminuir o efeito da lei, sendo ela a responsável pelo poder discricionário da Administração Pública, tendo em vista que a legalidade administrativa deixou de se vincular somente ao texto legal, não resta dúvida que também é deferido o controle judicial de tais atos de forma ampla.

Isto porque os princípios e as normas da Constituição é que dão vigor à Lei e, conseqüentemente, a todo ato público, que deve guardar correlação direta com os mandamentos constitucionais, sob pena de invalidação.

Com o fim do dogma da perfeição da lei, passou a legalidade administrativa a se vincular a um sistema aberto de regras e de princípios constitucionais.

Devido a esta consolidação do Estado de Direito, as Constituições atuais possuem uma elaboração voltada aos direitos fundamentais do homem, invertendo-se a supremacia, visto que o Estado passou a ser controlado, para justamente proporcionar a todos o bem-estar.

Agrega-se a este fato a transformação do Estado, que deixou de ser agressiva para consolidar-se em uma Administração prestadora e constitutiva. (12)

Este recuo da Administração autoritária, fruto da evolução dos tempos, colocou de lado a agressividade para dar lugar à fase constitutiva de direitos, onde ela é chamada "a desempenhar uma atividade prestadora favorável aos particulares", (13) se adaptando ao atual ambiente do Estado Democrático de Direito.

Assim, "o acto administrativo deixou de ser visto apenas como uma agressão da esfera individual, para passar a ser igualmente um instrumento de satisfação de interesses individuais." (14)

O crescimento do Estado, com a expansão do Poder Executivo, trouxe em seu rastro o crescimento do seu controle pelo Poder Judiciário, inclusive quanto à conveniência, oportunidade e ao mérito dos atos administrativos. (15)

Isto porque, a efetividade da Constituição conquistou o status pleno de normas jurídicas, através das quais se lêem e se interpretam todos os atos públicos, inclusive os legislativos, consoante lição de Luís Roberto Barroso: (16)

"E a efetividade da Constituição, rito de passagem para o início da maturidade funcional brasileira, tornou-se uma idéia vitoriosa e incontestada.

As normas constitucionais conquistaram o status pleno de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que contemplam. Mais do que isso, a Constituição passa a ser a lente através da qual se lêem e se interpretam todas as normas infraconstitucionais. A Lei Fundamental e seus princípios deram novo sentido e alcance ao direito civil, ao direito processual, ao direito penal, enfim, a todos os demais ramos jurídicos. A efetividade da Constituição é a base sobre a qual se desenvolveu no Brasil, a nova interpretação constitucional."

Portanto, essa idéia de nova interpretação constitucional não se limita aos atos legislativos e nem tampouco aos atos administrativos, visto que a efetividade da Constituição projeta-se por todo o sistema jurídico, criando o princípio da juridicidade, com o condicionamento da discricionariedade aos princípios constitucionais. (17)

 

II – CONCEITUAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO VINCULADO E DISCRICIONÁRIO

O direito público designa ato administrativo como todo aquele praticado pelo Estado ou por delegação de poderes públicos, no exercício de funções administrativas, dirigidos aos negócios públicos, na forma da atribuição de competência.

A Administração Pública para se movimentar necessita da tomada de posição formal dos agentes públicos responsáveis para tal fim, em conformidade com a competência legal, erigida justamente para proporcionar o interesse público.

Lucia Valle Figueiredo, (18) utilizando-se da definição de Agustín Gordillo, estabelece como ato administrativo:

"Ato Administrativo é a norma concreta, emanada pelo Estado, ou por quem esteja no exercício da função administrativa, que tem por finalidade criar, modificar, extinguir ou declarar relações jurídicas entre este (o Estado) e o administrado, suscetível de ser controlada pelo Poder Judiciário."

Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, (19) ato administrativo é:

"Ato administrativo é, assim, a manifestação unilateral de vontade da administração pública, que tem por objeto constituir, declarar, confirmar, alterar ou desconstituir uma relação jurídica, entre ela e os administradores ou entre seus próprios entes, órgãos e agentes."

Conceituando ato administrativo, Celso Antônio Bandeira de Mello, (20) aduna como:

"Declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional."

Fiorini, em sua obra clássica sobre o tema, ensina: (21)

"El acto administrativo se presenta como el producto concreto de las normas que rigen al Estado en el sector que actúa, el poder administrador y también el extenso ámbito que se denomina actividad administrativa estatal. Estos actos no son creación inmediata de la voluntad natural de un sujeto que invoca la representación del Estado, pues él es un instrumento condicionado de esa parte de la actividad jurídica estatal."

Outro expoente do direito administrativo argentino, Manuel Maria Diez, (22) em fundamental obra sobre o ato administrativo, deixou consignado:

"Podemos decidir que el acto administrativo puro es una declaración concreta y unilateral de voluntad de un órgano de la administración activa en ejercicio de la potestad administrativa."

Por outro lado, pela divisão de funções entre os Três Poderes do Estado, em sentido lato, pode-se dizer que todo o ato praticado no exercício da função é ato da Administração, (23) que possui uma maior amplitude do que a expressão ato administrativo.

Como visto anteriormente, ato administrativo abrange apenas determinada categoria de atos praticados quando o agente público se encontra no exercício da função, ao passo que atos da administração são todas e quaisquer manifestações do Poder Público.

Por sua vez, os atos administrativos podem ser vinculados ou discricionários.

Os atos administrativos vinculados são aqueles em que a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização, sem nenhuma margem de liberdade de decisão para o responsável pela feitura do respectivo ato.

Já os atos administrativos discricionários, que nos interessa no presente estudo, são os que vem despertando discordância de parte da doutrina, que ainda se aferroa à sua impenetrabilidade por parte do Poder Judiciário.

Esta frente de discussão se dá pelo fato do ato administrativo discricionário ser aquele em que a Administração pratica com liberdade de escolha do seu conteúdo, de seu destinatário, de sua oportunidade e de como ele será realizado. (24)

A diferença do ato administrativo vinculado para o discricionário é o grau de liberdade de decisão concedida pelo legislador, que este último possui. Sendo certo que esta liberdade é quantitativa, mas não qualitativa, pois o ente público na atual fase do direito administrativo vincula-se às normas e princípios da boa-administração, o que significa dizer que não existe mais ato imune ao controle judicial, pouco importando se ele é discricionário ou vinculado.

O ato administrativo discricionário (motivação do objeto) também é vinculado à lei, sendo totalmente desnecessária a distinção utilizada anteriormente pela doutrina, que fazia um divisor de águas para definir o ato controlado e o ato que ficava fora do alcance do Poder Judiciário, quando instado a se pronunciar.

Assim, a competência, a forma e a finalidade do ato administrativo discricionário são vinculados à lei, tendo uma maior dose de liberdade a decisão do administrador quanto à motivação e ao objeto. Daí a grande discussão, pois esta margem de discricionariedade quanto ao mérito (oportunidade e conveniência) ainda encontra resistência por alguns segmentos do Poder Judiciário e também por parte da doutrina.

Entendemos que o ato administrativo é discricionário incluindo-se a sua conveniência e oportunidade, vinculado não só pela lei mas também pelos princípios constitucionais objetivos destinados à Administração Pública (art. 37, CF), de forma permanente.

Não se concebe mais, na atual fase do direito administrativo, que um ato discricionário não priorize a eficiência, a impessoalidade, a moralidade, a razoabilidade, a legalidade, dentre outros vitais princípios constitucionais.

Esse reconhecimento pela dogmática da "dependência constitucional do Direito Administrativo", (25) busca a realização dos direitos fundamentais do indivíduo, que deixou de ser súdito para ser cidadão, ocupando papel central no desenvolvimento do Estado.

O ambiente jurídico-constitucional dos modernos Estados de Direito teve o condão de abolir o conceito de inferioridade do administrado, para protege-lo como destinatário dos direitos fundamentais expressos pela Magna Carta. Passa o indivíduo a ser titular de um direito subjetivo em relação à Administração, "sempre que de uma norma jurídica que não vise apenas a satisfação do interesse público, mas também a protecção dos interesses dos particulares, resulte uma situação de vantagem objectiva, concedida de forma intencional, ou ainda quando dela resulte a concessão de um mero benefício de facto decorrente de um direito fundamental." (26)

Esta é a nova fase do direito administrativo constitucional, regrado pelos preceitos maiores em todos os seus segmentos para melhor servir a sociedade.

A justificação do poder discricionário na visão de Luiz Roberto Barroso (27) é excepcional:

"A justificação do poder discricionário – sempre excepcional já que a regra geral é a estrita vinculação da Administração à Lei – decorre da incapacidade de se prever, com alguma objetividade e em tese, a solução mais adequada, mais justa, mais correta para determinadas situações. A discricionariedade é, portanto, serva do interesse público e um instrumento para melhor atender à finalidade pública estabelecida na lei que confere à Administração a competência discricionária."

Não constitui privilégio da Administração o ato discricionário, pois ele terá que bem servir à coletividade, sendo patrimônio da cultura humana, consoante magistério de Francisco Campos: (28)

"Ora, os juízos do tipo denominado discricionário, ao invés de constituírem privilégio da Administração, fazem parte do patrimônio comum da cultura humana, e o seu domínio, ao contrário de respeito à esfera do Poder Público, compreende todo o imenso campo da estima moral, artística, política e da vida prática em geral. O critério que preside à formação de tais juízos é a de natureza puramente regulativa ou se limita tão somente a designar a direção geral a ser seguida, sem, contudo fixar, de maneira concreta ou inequívoca, um ponto preciso de referência. A liberdade que caracteriza o prejuízo discricionário não resulta, portanto, da qualidade da pessoa que o formula, mas da estrutura lógica desse juízo, da natural ambigüidade que caracteriza o seu conteúdo significativo. Nisto e tão somente nisto é que consiste a justificação do poder discricionário da Administração."

É, em outras palavras, o que escreve Kelsen, (29) quando demonstra que o juízo discricionário não é um privilégio da Administração, mas há que ocorrer na aplicação de normas gerais ou abstratas:

"Demonstra-se facilmente que toda aplicação do direito, isto é, toda concretização de normas gerais, toda passagem de um grau superior a um grau inferior da criação jurídica não é mais do que o preenchimento de um espaço vazio, o exercício de uma atividade dentro das lindes fixadas pelas normas de grau superior. A determinação dos graus inferiores pelos superiores nunca pode ser completa. Haverá sempre oportunidade para as normas inferiores de imputar às superiores um conteúdo de que lhes falta. De outro modo, seria impossível o desenvolvimento do processo de criação jurídica, e a criação de normas individuais seria supérflua. Existe, igualmente, entre o conceito abstrato e a representação concreta uma diferença material, ou de conteúdo. Esta necessária diferença entre os graus superiores e inferiores da concretização jurídica é o que se chama ‘juízo discricionário’."

A insuficiência da lei em relação ao caso concreto é que cria a necessidade do ato administrativo discricionário.

Não se questiona a validade e nem a necessidade do ato administrativo discricionário, pois é cediço, não despertando controvérsia que a Administração Pública se movimenta em algumas situações, através de atos discricionários. Dentro dos limites das regras constitucionais, a autoridade pública tem a liberdade de determinar a significação e o conteúdo de um conceito enunciado na lei.

Isto não é possível em relação a todos os conceitos, e segundo Jellinek (30) apenas quando ele é indeterminado é que se admite o juízo discricionário:

"O conceito indeterminado é que abre oportunidade à discricionariedade do Juízo. É necessário que isto seja bem compreendido. Nem sempre que a lei emprega um conceito indeterminado resulta que, só por esse fato, ela autorize uma atividade discricionária, toda atividade fundada em juízo discricionário pressupõe uma ordem legal, traduzida em conceito indeterminado (...) Juízo discricionário é também a faculdade de delimitar ou circunscrever um conceito legal indeterminado, com a ressalva de que não incorra em erro."

Assim, o ordenamento jurídico-administrativo na atualidade apesar de, em determinados casos, permitir um juízo discricionário do administrador, fica limitado aos critérios de orientação contidos na Constituição Federal, como será demonstrado mais a frente.

Mesmo com esse grau de liberdade, o ato discricionário vincula-se à lei e aos comandos constitucionais, não podendo ser construídos de forma arbitrária.

Essa é também a orientação de Maria Sylvia Zanella Di Pietro: (31)

"Mas esses poderes, no Estado de Direito, entre cujos postulados básicos se encontra o princípio da legalidade, são limitados pela lei, de forma a impedir os abusos e as arbitrariedades a que as autoridades poderiam ser levadas.

Isto significa que os poderes que exerce o administrador público são regrados pelo sistema jurídico vigente. Não pode a autoridade ultrapassar os limites que a lei traça à sua atividade, sob pena de ilegalidade."

A discricionariedade será levada a efeito pela Administração Pública quando a lei expressamente permitir tal posicionamento. Exemplo concreto do afirmado é o caso da remoção ex officio do servidor público, quando ela se dá a critério do ente público, para atender a necessidade e a respectiva conveniência.

Todavia, se houver abuso na remoção ex officio, determinada não para permitir que o interesse público seja privilegiado e sim como uma forma de punir o servidor removido, fica claro que o Poder Judiciário poderá anular o ato discricionário sem ferir a independência dos Poderes, tendo em vista que o ato é viciado, desviando o poder em detrimento da legalidade e da eficiência, princípios assentes no caput do art. 37, da CF.

Outra situação de discricionariedade é quando a lei for omissa, pois ela não é capaz de prever todas as situações supervenientes ao momento de sua promulgação. Neste caso, o administrador público usará a liberdade conferida pela lei para praticar um ato de sua competência, sem contudo, abdicar de cumprir os mandamentos constitucionais, estabelecidos para disciplinar a Administração Pública e garantir também direitos fundamentais para os administrados.

Qualquer excesso no ato discricionário também resultará em um efetivo controle do Poder Judiciário.

Por fim, outra possibilidade de ato discricionário por parte do poder público é quando a lei estabelece determinada competência, sem estabelecer a conduta a ser adotada. Nessa hipótese, mais freqüente quando é envolvido o poder de polícia do ente público, deverão também serem observados, os princípios e as normas da Constituição Federal.

 

III – DA CORRENTE DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL CONTRÁRIA AO EFETIVO CONTROLE DO ATO DISCRICIONÁRIO

Os que defendem a eternização do ato administrativo discricionário partem do pressuposto, dentre outros argumentos, que os três Poderes, por serem harmônicos e independentes não podem sofrer sobreposição de funções dentro de cada Poder, sendo vedada a invasão e usurpação de atribuições.

Essa corrente doutrinária, descarta "a passagem do ato administrativo a idade da razão", (32) para vincula-lo a um período historicamente autoritário, onde a Administração Pública, para satisfazer seus interesses, era independente, colocando-se acima da sociedade, como uma auto-proteção.

Sem a reflexão da evolução da Administração Pública para um plano constitucional-normativo, onde a natureza da sua função passou a ser regrada por princípios objetivamente definidos, nunca seremos capazes de entender o seu atual e fundamental papel.

A primeira fase do direito administrativo, aquela dos primórdios da Revolução Francesa fixou a noção de ato administrativo para delimitar as ações da Administração Pública "excluídas por lei da fiscalização dos tribunais judiciais". E foi pela Lei de 16 Fructidor do Ano III (1795), que em consonância com o princípio da separação dos Poderes, houve a subtração dos atos administrativos da jurisdição dos tribunais judiciais.

Esta providência foi oriunda da desconfiança do poder revolucionário, tendo como pano de fundo o fato dos magistrados terem sido nomeados no "Antigo Regime", o que significava um controle judicial ainda nas mãos da nobreza.

Surgiu, via de conseqüência, a noção de ato administrativo como forma a individualizar as atuações da Administração Pública sobre os quais o Poder Judiciário não poderia invadir. Ou seja, "tratava-se de um conceito que funcionava ao serviço da Administração perante o poder judicial." (33)

Ou, recordando-se a metáfora de Vasco Pereira da Silva, (34) sobre a evolução do Estado à história de Robinson Crusoé, como uma forma de desmistificação da impenetrabilidade do ato administrativo, dividida em dois momentos distintos, em conformidade com a cronologia, tem-se: "(...) Ao chegar à ilha, Robinson começa por se fortificar, reunindo todas as armas salvas do navio; só num segundo momento, quando se sentia já suficientemente seguro, ele parte à descoberta de sua ilha, estabelecendo relações de liberdade com as coisas, acabando por encontrar o Sexta-feira."

Dessa forma, o Estado, em um primeiro e decisivo momento, teve que concentrar o Poder (Estado ditatorial, segundo concepções de Maquiavel, Bodin, Hobes e Rousseau), para em um segundo momento, já fortalecido, procurar o homem, para estabelecer uma organização política, preconizada por uma construção de idéias garantidoras da liberdade e dos direitos individuais do cidadão através do expediente técnico da separação dos poderes, correspondente a um período liberal (cf. Locke e Montesquieu).

O Estado liberal surge, portanto, após o atingimento da sua segunda fase histórica, onde fortalecido ele vai encontrar a sua 3ª e atual fase, que é a de um Estado Democrático de Direito, fiscalizado, por completo, por princípios constitucionais e pela norma jurídica para atingir o seu ideal.

Sucede, que ainda não houve, por parte da doutrina nacional, o total desprendimento da primeira fase do Estado, entendendo que quanto ao efetivo controle do ato administrativo discricionário, haveria uma indesejada intromissão à separação dos poderes, sendo vedado ao Poder Judiciário a devida e constitucional fiscalização.

Nesse sentido, Manuel de Oliveira Franco Sobrinho, (35) defendendo a especialização de cada Poder prelecionou:

"Cada poder, portanto, tem o seu mister específico, de ordem interna especial jurídica. Partilha soberania não apenas teoricamente. Não disputa, porque possui self-government.

A separalidade dos outros Poderes é uma simples questão de meios de ação (círculos) compreendendo a tríplice ordem constitucional.

As três funções orgânicas, legislativa, executiva e judiciária, desempenham atividades saídas de regras jurídicas constitucionais, por onde se vê a diferenciação do poder estatal em legislativo, executivo e judiciário, caracteriza a rigidez de dogmas verdadeiros (reais) ligados à distribuição de poderes."

Analisando a evolução do Direito Administrativo, em precioso estudo, Cláudio Ari Mello (36) fez uma fiel descrição de como era vista a zona livre de jurisdição do Poder Executivo do passado, imune o ato administrativo discricionário a qualquer tipo de controle externo:

"O Direito Público concebido sob esse contexto engendrou uma administração pública cujas atividades estariam substancialmente previstas na legislação que fixaria os elementos básicos da atuação administrativa e as finalidades a serem alcançadas, estabelecendo uma vinculação positiva do administrador à lei, segundo a qual a administração só poderia fazer o que estivesse expressamente autorizado nas normas legais. Como nenhum tipo de atividade humana, nem mesmo a legislação, pode antever, predizer e projetar todos os fatos, humanos e naturais, que exigirão a ação governamental, ao lado da estrita vinculação do administrador às normas legais, sempre remanesceu um espaço de liberdade de escolha ou de decisão, ou seja, de discricionariedade administrativa. Como esse ‘vácuo legal’ era uma deferência do legislador à contingencialidade da ação administrativa, e fiscalização judicial estava inteiramente interditada. Onde houvesse discrição, não haveria jurisdição. A evolução da dogmática e da experiência pretoriana do direito administrativo produziu uma teoria ampla da discricionariedade que procurou delimitar os campos da vinculação e da discrição do administrador e definir as fronteiras do controle judicial, criando uma zona livre de jurisdição no âmbito do Poder Executivo."

Diógenes Gasparini (37) é um dos grandes administrativistas que entende que os atos administrativos discricionários não podem ser questionados quanto ao mérito (conveniência e oportunidade):

"Discricionários são os atos administrativos praticados pela Administração Pública conforme um dos comportamentos que a lei prescreve. Assim, cabe à Administração Pública escolher dito comportamento. Essa escolha, se faz por critérios de conveniência e oportunidade, ou seja, de mérito. Há conveniência sempre que o ato interessa, convém ou satisfaz ao interesse público. Há oportunidade quando o ato é praticado no momento adequado à satisfação do interesse público. São juízos subjetivos do agente competente sobre certos fatos e que levam essa autoridade a decidir de um ou de outro modo.

Costuma-se, sem muito cuidado, dizer que o ato administrativo discricionário é insuscetível de exame pelo Judiciário. Tal afirmação não é verdadeira. O que não se admite em relação a ele é o exame por esse Poder da conveniência e da oportunidade, isto é, do mérito da decisão tomada pela Administração Pública, conforme vêm decidindo nossos Tribunais (RF, 225:96 e RT 446:213)."

Praticado dentro do âmbito que admite a lei, Odete Medauar, (38) também se perfilha aos que entendem ser inapreciável pelo Poder Judiciário a análise da oportunidade do ato discricionário elaborado pelo Poder Executivo:

"Em ordenamentos estrangeiros, os termos ‘oportunidade’ ou ‘juízo de oportunidade’ traduzem a apreciação do mérito. Em alguns temas aparece o contraponto entre legalidade e mérito, em especial, nos estudos sobre o ato administrativo, como aspectos do mesmo, e nos estudos sobre controle jurisdicional da Administração, quando se discute o alcance desse controle, mencionando-se que ao Judiciário descaberia exame do mérito das decisões da Administração."

Não é outro o posicionamento de Lúcia Valle Figueiredo: (39)

"A jurisprudência brasileira, acompanhada pela doutrina tradicional, considerava que os atos discricionários não se submeteriam a controle, no pertinente a seu mérito. O caminho da evolução foi – sem dúvida – a afirmação de que ao Judiciário caberia controlar toda a atividade administrativa desde que não invadisse o mérito das decisões discricionárias.

E por mérito do ato compreendiam-se as razões de conveniência e oportunidade que teriam fundamentado a decisão do administrador."

Agrega-se a esta corrente a ilustre professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, (40) que apenas concorda com o controle do Poder Judiciário sobre o ato administrativo discricionário em caso de ilegalidade formal:

"Com relação aos atos discricionários, o controle judicial é possível mas terá que respeitar a discricionariedade administrativa nos limites em que ela é assegurada à Administração Pública pela lei.

Isto ocorre precisamente pelo fato de ser a discricionariedade um poder delimitado previamente pelo legislador; este, ao definir determinado ato, intencionalmente deixa um espaço para livre decisão da Administração Pública, legitimando previamente a sua opção; qualquer delas será legal. Daí por que não pode o Poder Judiciário invadir esse espaço reservado, pela lei, ao administrador, pois, caso contrário, estaria substituindo por seus próprios critérios de escolha, a opção legítima feita pela autoridade competente com base em razões de oportunidade e conveniência que ela, melhor do que ninguém, pode decidir diante de cada caso concreto."

Ao finalizar o pensamento dos ilustres administrativistas aos quais nutrimos a maior admiração por seus magistrais e imprescindíveis trabalhos, agrega-se a eles o imortal Hely Lopes Meirelles, (41) que faleceu logo após a promulgação da atual Carta Magna:

"Poder Discricionário é o que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo (...)

O que o Judiciário não pode é, no ato discricionário, substituir o discricionário do administrador pelo do Juiz."

Em seu Curso de Direito Constitucional, Celso Ribeiro Bastos, (42) em nota de rodapé, citou o REO nº 165.977/STF, que corrobora as colocações doutrinárias citadas anteriormente:

"Ao Judiciário é vedado, no exercício do controle jurisdicional, apreciar o mérito dos atos administrativos, para dizer do acerto da Justiça, da utilidade, da moralidade, etc., de cada procedimento. Não pode o juiz substituir-se ao administrador; compete-lhe, apenas, conte-lo nos estritos limites da ordem jurídica ou compeli-lo a que os retorne."

O STJ, pelo RESP nº 169.876-SP, colacionado por Carlos Pinto Coelho Motta, em seu Curso Prático de Direito Administrativo, também já decidiu de forma similar aos judiciosos posicionamentos que defendem a impossibilidade do Poder Judiciário invadir a seara do mérito do poder discricionário administrativo:

"Administrativo. Processo Civil. Ação Civil Pública. 1. O Ministério Público está legitimado para propor ação civil pública para proteger interesses coletivos. 2. impossibilidade de o juiz substituir a Administração Pública determinando que as obras de infra-estrutura sejam realizadas em conjunto habitacional. Do mesmo modo, que desfaça construções já realizadas para atender a projetos de proteção ao parcelamento do solo urbano. 3. Ao Poder Executivo cabe a conveniência e a oportunidade de realizar atos físicos de administração (construção de conjuntos habitacionais). O Judiciário não pode, sob o argumento de que está protegendo direitos coletivos, ordenar que tais realizações sejam consumadas. 4. As obrigações de fazer permitidas pela ação civil pública não têm força de quebrar a harmonia e independência dos Poderes. 5. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário está vinculado a perseguir a atuação do agente público em campo de obediência aos princípios da legalidade, da moralidade, da eficiência, da impessoalidade, da finalidade e, em algumas situações, o controle do mérito. 6. As atividades de realização dos fatos concretos pela Administração depende de dotações orçamentárias próprias e do programa de prioridades estabelecidas pelo governante. Não cabe ao Poder Judiciário, portanto, determinar as obras que deve edificar, mesmo que seja para proteger o meio ambiente. 7. Recurso provido. (...) Entretanto, se provida a pretensão, estar-se-ia ofendendo o Princípio da Separação de Poderes, preceituado no art. 2º da Constituição Federal. Como é sabido, o Poder Público só pode fazer o que a lei manda (poder vinculado) ou autoriza (poder discricionário).. os atos que se classificam como vinculados têm seus contornos quase que totalmente delineados pela lei, que deve fielmente ser observada pelo agente público, sob pena de nulidade do ato. Sendo a prática de tais atos um dever da Administração, a contrario sensu, constituem um direito dos administrados. Assim, a omissão do agente público na prática de tais atos ou a sua prática sem a fiel observância do enunciado da lei, em todas as suas especificações, traria ofensa a direito do administrado que, no primeiro caso, poderia, através do Poder Judiciário, compelir a Administração à prática do ato, e, no segundo, a declarar a sua nulidade. O mesmo não ocorre, porém, com relação aos atos discricionários. Nesta categoria de atos, embora o agente público, e deva ser competente para praticá-lo, tem liberdade de escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo. Cabe, pois, ao agente público escolher sobre a conveniência e oportunidade para prática dos atos discricionários. Nisso não pode o Poder Judiciário substituí-lo (...) o que não pode, repita-se, é determinar que o agente público pratique um ato discricionário cuja escolha de conveniência e oportunidade lhe pertence." (g.n.)

Como visto, a doutrina e a jurisprudência declinadas defendem que não compete ao Poder Judiciário apreciar o mérito de atos administrativos discricionários.

Estas lições deixaram grafado não competir ao Poder Judiciário o exame do mérito, da oportunidade e da conveniência do ato administrativo discricionário, visto que a lei confere poderes para a prática de tal ato.

Também convergíamos com estes avalizados posicionamentos, desgarrando-nos dessas correntes doutrinárias após a edição da Carta Federal de 5 de outubro de 1988, que de forma inédita constitucionalizou a Administração Pública, criando princípios e normas que vinculam a todos, independentemente da forma ou da solenidade do ato administrativo, ou seja, se ele é ou não discricionário.

A seguir, deixaremos nítido o nosso posicionamento.

 

IV – DA DIVISÃO DE FUNÇÕES DOS PODERES E A SUA COMPETENTE HARMONIZAÇÃO COM A UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO.

Após todo o relato dos eminentes administrativistas citados anteriormente se extrai a firme convicção de que o ato administrativo discricionário não poderia ser revisto pelo controle do Poder Judiciário, quando se trata do juízo de mérito, oportunidade e conveniência do administrador público.

Sucede que tais pensamentos foram construídos em uma época em que o direito constitucional ainda não havia constitucionalizado todos os ramos do direito, passando a ser o verdadeiro protagonista nas relações públicas e privadas. Aliás este é um dos traços fundamentais do constitucionalismo moderno, (43) que rompendo as fronteiras anteriores é o regente de todos os ramos do direito.

A incorporação desses princípios constitucionais constitui marco da evolução do direito público, que possuía na justiça administrativa a marca do Antigo Regime deposto pela Revolução Francesa.

Ou seja, foi criada uma justiça administrativa como fruto das idéias liberais que despontavam, contudo ainda prevaleciam os velhos conceitos do regime anterior. Daí a necessidade de uma separação de poderes, que culminou com a criação do contencioso administrativo, tendo como objetivo a proteção do Estado, com "a proibição dos Tribunais judiciais conhecerem dos litígios é, em grande parte, explicável como uma reação contra o modo de atuação dos parlamentos no Antigo Regime". (44) Sendo que a criação do Conselho de Estado, exercendo funções em matéria de contencioso administrativo se assemelha à figura, mal comparando com o Conselho do Rei, existente no Antigo Regime. (45)

Na realidade, o Estado pensado por Maquiavel tinha como função desgarrar-se do poder típico da Idade Média, através da criação de uma entidade que unificava entre si os poderes da sociedade, encarnada na pessoa do príncipe.

Por isto, o Estado, como realidade, foi criado artificialmente pelo homem para atingir determinados objetivos, tendo na Administração Pública a mesma identidade, e por isso, naquela época, ela era imune de qualquer intervenção externa. (46)

Visou, portanto, a Teoria da Separação de Poderes de Montesquieu, no "De l’Esprit des Lois", inspirada na experiência de Locke, sendo que os britânicos (que desconheciam a noção de Estado), (47) manter impenetráveis os atos da Administração Pública ao poder judicial, (48) como explicam Dupis e Guédon: (49) "a revolução queria instaurar a separação de poderes e, no fundo, a separação das autoridades administrativas e judiciais é entendida, na época, como uma conseqüência natural."

Foi preciso, em um primeiro momento, para o próprio bem da humanidade, ter na separação de poderes um mito, para atingirmos a devida maturidade do direito público.

Assim a presente constitucionalização dos direitos tomou força após a segunda grande guerra mundial, onde a proeminência dos direitos fundamentais do ser humano passou a ser a grande preocupação universal, surgindo novos valores éticos e morais, como forma de se desgarrar do citado mito da separação dos poderes.

Assim, os direitos fundamentais do homem incorporados ao constitucionalismo atual passou a ser o traço marcante do Estado do Bem-Estar Social.

A doutrina alemã foi uma das primeiras a enfrentar o presente tema, e após a natural evolução passou a permitir o controle judicial dos atos administrativos, inclusive os discricionários através do "enfoque jurídico funcional" (50) (funktionell-rechtliche Betrachtungs-weise), fruto da Constituição como procedimento do Estado prestador de serviços e como uma forma de realização dos direitos fundamentais, na dimensão de direitos de participação. (51)

*advogado no Rio de Janeiro, vice-presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público (IADP), membro da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social, membro do Internacional Fiscal Association (IFA), conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social

 

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