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A fundamentação da medida
provisória:
requisito de legitimidade constitucional e garantia do
Estado Democrático de Direito
Luís Carlos Martins
Alves Júnior
advogado em Brasília (DF), doutorando em Direito
Constitucional pela UFMG
RESUMO
A medida
provisória é um ato do Executivo com força provisória de lei (art. 62, CF). É
um instrumento novo do sistema constitucional brasileiro, inobstante a
experiência passada com os decretos-lei. Seu objetivo é possibilitar ao Chefe do
Executivo a adoção de medidas jurídicas em face de circunstâncias relevantes e
urgentes que imponham a ação imediata do Estado, inexistindo outros
instrumentos jurídicos capazes de satisfazerem a demanda.
Desde de sua
adoção, a partir de 1988, seu uso vem sendo abusivo, em flagrante desrespeito
ao mandamento constitucional que pressupõe a existência de circunstâncias
extraordinárias para a sua adoção. Os outros dois Poderes têm se curvado ante à
acintosa supremacia inconstitucional do Executivo, atentatória da separação dos
Poderes.
Considerando
que é um ato do Executivo, está ela adstrita aos elementos e requisitos que
legitimam os atos desse Poder. Dentre esses requisitos, têm-se a fundamentação,
que é o esclarecimento jurídico e fático da razão de se expedir determinado
ato. Assim, estar-se-á possibilitando o exame da existência ou não dos
pressupostos constitucionais legitimadores da medida provisória.
Portanto, o
que se defende é a necessidade de fundamentação da medida provisória, a fim de
que seja possível a adequada aferição do preenchimento dos pressupostos
constitucionais, por parte do Congresso Nacional (controle político) e por
parte do Judiciário (controle judicial). Com a viabilidade desse exame,
garante-se o princípio da separação dos Poderes, que sofre uma séria exceção
com a medida provisória e um perigoso atentado com o seu uso demasiado e
descriterioso, como vem acontecendo.
Quer-se,
outrossim, que o Judiciário firme uma posição de independência, assumindo o
papel que lhe foi outorgado pela Constituição: o de guardião dela. Assim, força
o Executivo a ser mais criterioso na adoção dessas medidas, garantindo a
supremacia do Texto constitucional, ante essas tentativas — até agora — de
violação dele.
EMENTA
Medida
provisória. Ato do Executivo. Natureza jurídico-política. Elementos e
requisitos dos atos administrativos. Necessidade de fundamentação. Controle
judicial dos pressupostos constitucionais: relevância e urgência. Legitimidade
constitucional e garantia do Estado Democrático de Direito.
"Persuada-se
o príncipe que... a lei morta não pode dar vida à república; considere que as
leis são os muros dela, e que se hoje se abriu uma brecha, por onde possa
entrar um só homem, amanhã será tão larga que entre um exército inteiro."
(Pe. Antônio Vieira)
INTRODUÇÃO
Dentre as
inovações da Constituição de 1988 tem-se a Medida Provisória (art. 62), em
substituição ao Decreto-Lei, que fazia parte da ordem constitucional anterior
(art. 58). O uso demasiado deste novel instituto, assim como as dúvidas que
ainda planam acerca de sua natureza, características, efeitos e, sobretudo, de
seus limites e controle, tornam por demais interessante e atual o seu estudo e
debate.
A fim de obter
algum êxito, visto que exíguo é o espaço que dispomos, centramos a análise em
um aspecto que reputamos o "cerne da questão", em se tratando de
EXPEDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS LIMITES CONSTITUCIONAIS: a fundamentação da
medida provisória, que, a nosso ver, é requisito de legitimidade constitucional
e garantia do Estado Democrático de Direito.
I. SEPARAÇÃO DOS PODERES E MEDIDAS PROVISÓRIAS
É consabido
que as medidas provisórias são exceções constitucionais ao princípio da
separação dos Poderes, que em nossa Constituição goza de enorme prestígio, haja
vista os arts. 2º e 60, § 4º, inciso III, assim como todo o Título IV, versando
sobre a Organização dos Poderes.
Em sendo uma
exceção constitucional é limitada. Exige-se a sua submissão ao crivo do
Congresso Nacional (art. 62), só tendo perfeição se aprovada pelo mesmo. Além
de que, caso haja lesão ou ameaça a direito (art. 5º, inciso XXXV), provocada
por medida provisória, esta não escapa da apreciação judiciária.
Essa
proeminência da separação dos poderes advém das lutas contra o Estado
absolutista. Alguns se insurgiram contra a concentração de poder estatal em
torno de um só, seja órgão ou pessoa. Dentre esses, temos Locke e Montesquieu,
que foram os mais importantes teoristas do moderno constitucionalismo, no
tocante à questão da divisão dos poderes.
No
Absolutismo, a produção normativa estatal concentrava-se na vontade do rei. Era
ele quem dizia o direito e quem dava a última, senão a única, palavra na
aplicação do mesmo. Em face do direito, o monarca criava, executava e decidia.
A teoria da separação
dos poderes não nega a indivisibilidade do poder estatal. Ocorre que o Estado
não é um só indivíduo, conforme célebre frase de Luís XIV — o Rei-Sol — (L`état
c’est moi). O sentido dos atos emanados do Estado, que se convencionou
chamar de vontade estatal, já não é somente a do monarca soberano, mas
sobretudo advinda do povo, através da soberania popular, expressada por seus
representantes, os legisladores. De sorte que, ao Monarca (não mais soberano)
ficava a atribuição ou poder de fazer valer a vontade emanada da lei, no
aspecto executivo ou administrativo.
Formava-se o
tripé que tinha como corolário a garantia dos direitos individuais e a
limitação do poder estatal, com o legislativo criando as leis, o executivo
administrando-as e o judiciário aplicando-as nos conflitos de interesses. Era a
teoria dos checks and balances, "freios e contrapesos", de
Bolingbroke.
A teoria da
separação dos poderes procura ser um mecanismo racional de limitação ao uso do
poder, do mesmo modo que é uma técnica de divisão das funções precípuas do
Estado (legislar, administrar e julgar). Esse princípio tornou-se verdade
insofismável no constitucionalismo ocidental. No Brasil, a atual Constituição é
estruturada sobre esse princípio.
Toda a
teorização em torno da estrutura e do exercício dos poderes estatais tem origem
empírica. Foi a experiência histórica que possibilitou a sistematização de
doutrinas concernentes ao poder. Em se tratando dos atos emanados do Poder
Executivo com força de lei não é diferente. A pureza do princípio da separação
dos poderes impunha uma total distinção entre os mesmos. As esferas de atuação
estavam delimitadas, sendo vedada a interferência de algum Poder nas
atribuições de outro.
Porém, a força
da realidade foi (e é) maior que as palavras inscritas na "folha de
papel". Mesmo sem prévia disposição constitucional, o Poder Executivo
começou a imiscuir-se nas atribuições dos outros Poderes, mormente do
Legislativo. Isso passou a ocorrer principalmente com a necessidade de maior atuação
do Estado na vida social. A rigidez da separação dos poderes, apanágio do
Estado liberal, sofria os seus primeiros abalos com o surgimento do Estado
social, que exigia uma maior e mais rápida atividade normativa estatal.
II. MEDIDAS PROVISÓRIAS E DECRETOS-LEIS
É conveniente
o estudo acerca das medidas provisórias com uma análise dos institutos que lhe
são afins. A denominação usada para esses institutos é, geralmente,
decreto-lei. Demonstrando a própria terminologia ser um ato híbrido, uma vez
que contém dois termos que pertencem, em regra, a duas categorias de atuação do
Estado: o decreto (Poder Executivo) e a lei (Poder Legislativo).
Para
Biscaretti di Ruffia, o primeiro exemplo de ingerência do executivo na
atividade legislativa, após a consagração da separação dos poderes, foi na
Itália, com o Decreto nº 738, de 27 de maio de 1848, que invocava a urgência
como razão de sua expedição. Apesar da falta de previsão constitucional (o
Estatuto Albertino), o referido decreto e os demais que advieram foram validados
tanto pela magistratura como pelo parlamento. Em razão, registre-se, do aspecto
urgência.
Também foi na
Itália que o constituinte brasileiro buscou a matriz das medidas provisórias.
No art. 77, da Constituição italiana de 1947, está disposto, em vernáculo:
"Quando
em casos extraordinários de necessidade e de urgência o governo adota, sob sua
responsabilidade, provimentos provisórios com força de lei, deve apresentá-los
no mesmo dia para a conversão às Câmaras, que, mesmo dissolvidas, serão especialmente
convocadas para se reunir no prazo de cinco dias. Os decretos perdem eficácia
desde o início, se não forem convertidos em lei no prazo de sessenta dias a
partir de sua publicação. As Câmaras podem, todavia, regulamentar com lei as
relações jurídicas surgidas com base no decreto"
É bem verdade
que na ordem constitucional brasileira anterior (1967/69) havia o instituto do
decreto-lei, in verbis, redação originária:
"Art.
58. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público
relevante, e desde que não resulte aumento de despesa, poderá expedir decretos
com força de lei sobre as seguintes matérias:
I -
segurança nacional;
II -
finanças públicas.
Parágrafo
único. Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o
aprovará ou o rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se,
nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido como aprovado".
Posteriormente,
esse artigo sofrera uma série de modificações, assim como toda a Constituição
de 1967, principalmente através da Emenda nº 01 de 1969. Na terminologia
originária, tinha-se "decreto com força de lei", que com a Emenda nº
01, passou a chamar-se de Decreto-Lei, como também foi acrescentado, no art.
58, o inciso III (criação de cargos públicos e fixação de vencimentos) e
no inciso II, mesmo artigo, acrescentou-se "inclusive normas
tributárias".
O atual Texto
Constitucional brasileiro dispõe:
"Art.
62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar
medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao
Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente
para se reunir no prazo máximo de cinco dias.
Parágrafo
único: As medidas provisórias perderão eficácia desde a edição, se não forem
convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo
o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes".
Da leitura
desses dois dispositivos e dos textos constitucionais nos quais estavam
insertos, extraem-se algumas semelhanças e diferenças entre os institutos.
Dentre as semelhanças, podemos dizer que: a) ambos os institutos fazem parte do
processo legislativo (art. 49, inciso V, C.F. de 1967 e art. 59, inciso V, C.
F. de 1988); b) são atos do executivo com força de lei; c) têm como
pressupostos constitucionais a urgência e/ou interesse público relevante; d)
devem ser apreciados pelo Congresso Nacional; e) as relações jurídicas oriundas
devem ser reguladas por lei, em sentido estrito.
Já nas
diferenças, podemos apontar: a) o caráter de provisoriedade das medidas; b) os
prazos de aprovação e de exame são diferentes; c) a possibilidade de emenda do
legislador, vedada no decreto-lei; d) a delimitação expressa do campo de
atuação do decreto-lei (incisos I, II e III); e) a aprovação tácita do
Congresso, em não havendo manifestação do mesmo acerca da matéria, no
decreto-lei; f) a exclusividade de expedição do decreto-lei somente pelo
Presidente da República (art. 188, das Disposições Gerais e Transitórias, e
art. 200, da Emenda nº 01, de 1969), sendo que a atual Constituição não vedou a
edição de medida provisória por parte dos outros chefes do poder executivo (Estados
e Municípios); h) nos decretos-lei os pressupostos são alternativos, urgentes
"ou" relevantes, enquanto que nas medidas provisórias os pressupostos
não são alternativos, urgente "e" relevante, ou seja, a partícula é
copulativa.
Entretanto,
podemos afirmar que a principal diferença entre esses dois institutos não
reside nos textos constitucionais, mas sobretudo no ambiente
político-constitucional. A realidade política anterior à 1988 era bastante
diferente. Havia uma imensa crise no constitucionalismo brasileiro.
Com o advento
da nova Constituição e uma maior participação popular em sua elaboração, aos
poucos ela vai atingindo o lugar que lhe cabe no ordenamento jurídico
brasileiro: o de superioridade, não apenas textual, mas supremacia fática. E,
essa supremacia, só é possível, se os atores políticos brasileiros
interpretarem corretamente os seus papéis, assim como se houver uma organização
da cidadania em busca da concretização constitucional.
III. NATUREZA DA MEDIDA PROVISÓRIA
Quanto à natureza
da medida provisória, como são atos do Poder Executivo, de forte conteúdo
político, quer-se dar uma natureza política. Ocorre que a medida provisória tem
nascedouro constitucional, portanto, tem natureza jurídico-constitucional.
Essa
politicidade tem como apanágio a discricionariedade do Presidente da República,
que, achando oportuno e conveniente, edita a medida provisória em face de
circunstâncias relevantes e urgentes, que seriam insatisfeitas com os
instrumentos jurídicos existentes no ordenamento.
Os atos do
Poder Executivo, especificamente do Chefe, podem ser distinguidos, basicamente,
em dois tipos: atos administrativos e atos de governo. Aclare-se que são atos
tipicamente de suas funções. Tanto o Legislativo, quanto o Judiciário, emitem atos
administrativos, no entanto não são suas funções típicas.
Não se deve,
todavia, confundir os atos políticos e os atos de governo. Apesar da distinção
não ser de todo clara e estanque. Porém, no sistema político brasileiro,
convencionou-se chamar ato de governo os que são emitidos pelo Poder Executivo,
com o objetivo de conduzir a política de execução das normas superiores do
Estado, diretamente emanadas da Constituição. Dentre eles, têm-se o veto, a
sanção, a nomeação dos ocupantes de cargos de confiança, a iniciativa do
processo legislativo, o decretos de intervenção, de estado de sítio ou de
defesa, e a edição de medida provisória.
Considerando
que os Poderes do Estado são poderes políticos, é inconveniente denominar de
ato político o que deveríamos chamar de ato de governo. Uma vez que os atos do
legislativo são eminentemente políticos, e não se confundem com os atos de
governo emanados do Executivo. Porém, assevera-se que os atos de governo têm
uma forte densidade política. Portanto, ato político é gênero, do qual são
espécies os atos legislativos e os de governo.
Os atos de
governo têm os mesmos elementos e pressupostos dos atos administrativos. Ou
seja, o conteúdo e a forma (elementos); e o sujeito, o motivo, a finalidade, a
motivação e a causa (pressupostos). Assim sendo, a perfeição, a validade e
eficácia do ato de governo está adstrita ao preenchimento desses pressupostos e
a existência daqueles elementos.
O jaez
político da atividade legislativa advém justamente de todo processo que a antecede.
É política na medida em que exige um modo de conduta dialógico. Isso inocorre
na edição de medidas provisórias. Ela só vai a debate político posteriormente,
no Congresso Nacional.
Quando da sua
edição, a medida provisória é um ato do Executivo, próprio, com características
especiais e só deve ser editada em circunstâncias excepcionais. Além de que é
política no sentido da lição de HELY LOPES MEIRELLES:
"É
forma de atuação do homem público quando visa a conduzir a Administração a
realizar o bem comum"
(In: Direito Administrativo Brasileiro, 20ª edição, atualizada por
Eurico de Andrade Azevedo e outros. Malheiros, São Paulo, 1995, p. 35)
A
caracterização da medida provisória quanto ao órgão emanador é clara. Tem como
editor o chefe do Poder Executivo. Sua força vinculante é a mesma da lei. Sendo
precária, no sentido que pode haver ou não sua conversão para se tornar lei.
Pressupondo circunstâncias especiais de relevância e urgência.
Arriscamos,
então, dizer que a medida provisória é um ato emanado do Presidente da
República, em circunstâncias excepcionais de relevância e urgência, com força
provisória de lei, que necessita da aprovação do Congresso Nacional para que
tenha força definitiva de lei, posto que é convertida em lei mesma, caso
contrário, perde sua eficácia desde o momento de sua edição.
A principal
conseqüência dessa natureza jurídico-constitucional é a possibilidade de
limites e de controle. Controle exercido pelo Congresso Nacional, quando aprova
ou rejeita a medida provisória. É bem verdade que o Congresso faz o que se
denomina de controle de constitucionalidade político, principalmente em torno
da eficácia, da conveniência e da oportunidade da medida. Assim como pode fazer
uma modificação no seu conteúdo.
No entanto, a
última palavra acerca da constitucionalidade de atos normativos, sejam emanados
do Legislativo, sejam do Executivo, compete ao Judiciário, especificamente ao
Supremo Tribunal Federal. Nenhum ato que adentrou no mundo jurídico e esteve
apto a produzir efeitos jurídicos escapa da apreciação judiciária (art. 5º,
inciso XXXV), caso haja alguma pessoa que se sinta lesado ou ameaçado pelos
efeitos de tal ato, pode questioná-lo no judiciário.
Dessa sorte,
as medidas provisória são passíveis do controle jurisdicional, como o são todos
os atos estatais. No específico das medidas provisórias, controla-se
inicialmente a sua constitucionalidade, no tocante à competência da autoridade
emissora - o chefe do Poder Executivo -, se tomaram as providências necessárias
para submetê-las à apreciação do Congresso Nacional e, principalmente, se
atenderam aos pressupostos constitucionais de urgência e relevância, que
inquinam de vício de inconstitucionalidade se inatendidos.
Então, compete
ao Judiciário o controle formal de edição de medida provisória, concernente aos
procedimentos que devem ser adotados e o controle material de
constitucionalidade, quanto ao conteúdo mesmo da medida, se atenta, ou não,
contra o sentido das normas constitucionais, e quanto aos pressupostos de
relevância e urgência, se os fatos ensejadores da edição estão contidos
naqueles pressupostos. Portanto, o controle dos pressupostos não é tarefa
apenas do Congresso Nacional, não é somente político, mas é também tarefa do
Judiciário, uma vez que tem um cariz jurídico-constitucional, infringindo
expresso dispositivo constitucional, se inexistentes. É condição necessária de
validade do ato.
IV. A FUNDAMENTAÇÃO DA MEDIDA PROVISÓRIA
Fundamentar ou
motivar o ato, na lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:
"É
a exposição dos motivos, a fundamentação na qual são enunciados (a) a regra de
direito habilitante, (b) os fatos em que o agente se estribou para decidir, e,
muitas vezes, obrigatoriamente,(c) a enunciação da relação de pertinência
lógica entre os fatos ocorridos e o ato praticado. Não basta, pois, em uma
imensa variedade de hipóteses, apenas aludir ao dispositivo legal que o agente
tomou como base para editar o ato".
(In: Curso de Direito Administrativo, 4ª edição, revista, ampliada e
atualizada. Malheiros, São Paulo, 1993, p. 181)
Afirmamos que
somente os atos emanados do Poder Legislativo, em sua atividade típica,
dispensam a fundamentação, em razão da própria sistemática do processo e
procedimento legislativos. Tanto o Judiciário (art. 93, IX e X) quanto o
Executivo devem fundamentar ou motivar os seus atos. Isso é corolário dos
princípios da publicidade e da moralidade, que norteiam a atividade estatal.
Exceções há
nos atos administrativos estritamente vinculados à determinação legal e aos
atos de governo altamente subjetivos, como a sanção ou como a exoneração em
cargos de estrita confiança. Em outros casos, tipo o veto, deve o Presidente da
República expor os motivos que ensejaram o mesmo (art. 66, § 1º), a fim de que
seja apreciado pelo Congresso Nacional.
Ao fundamentar
os atos emanados do Poder Executivo, a publicização é além do mero conhecimento
público do ato, é também das razões que ensejaram o mesmo, da adequação da
medida à realidade dos fatos. Publicizando os motivos, estar-se-á controlando a
própria moralidade de tais atos. Em sendo o Executivo o condutor da
administração pública, e a medida provisória um ato executivo de administração
superior dos interesses do Estado e da sociedade, torna-se indispensável a sua
fundamentação.
Ora, se atos
emanados do Poder Executivo que não têm o mesmo grau de importância (os
estritamente administrativos) devem ser fundamentados, impõe-se o dever
inarredável da fundamentação das medidas provisórias, principalmente em relação
dos pressupostos constitucionais de urgência e relevância. Para que a medida
provisória tenha validade, mister se faz a existência desses pressupostos, se
não, incorre-se no vício de inconstitucionalidade.
Eis, portanto,
o "cerne da questão": em havendo as circunstâncias excepcionais de
urgência e relevância, e não existindo no ordenamento jurídico instrumentos
legais capazes de solucionar e remediar os efeitos dos acontecimentos
excepcionais, devendo o Estado atuar prontamente, cabe ao Chefe do Poder
Executivo editar medida provisória com esse desiderato. Para tanto, como
garantia de legitimidade constitucional, deve-se fundamentá-la, demonstrando-se
a relevância e urgência. Não basta dizer que o Presidente considera relevante e
urgente, mas dizer o porquê de sê-lo. Expondo a relação de causalidade entre o
ato expedido e a finalidade perquirida.
Com a
fundamentação, torna-se mais tranqüilo o exame dos pressupostos
constitucionais. Não obstante a fluidez dos conceitos de relevância e de
urgência, deixando ao executor da medida a liberdade de escolher o momento
conveniente e oportuno para a sua edição. Mas essa discricionariedade é
limitada, justamente pelos pressupostos constitucionais, devendo os mesmos
serem examinados pelo Congresso Nacional, e, em havendo lesão ou ameaça a
direito, pelo Judiciário.
A idéia de
urgência e relevância à luz do direito brasileiro tem um significado próprio.
Na lição de CÁRMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA:
"Urgência
jurídica é, pois, a situação que ultrapassa a definição normativa regular de desempenho
ordinário das funções do Poder Público pela premência de que se reveste e pela
imperiosidade de atendimento da hipótese abordada, a demandar, assim, uma
conduta especial em relação àquela que se nutre da normalidade aprazada
institucionalmente".
(IN: Conceito de Urgência no Direito Público Brasileiro. Revista
Trimestral de Direito Público, nº 01, Malheiros, 1993, p. 234)
A urgência
requer uma pronta atuação, a fim de dirimir as conseqüências dos fatos.
Por relevante,
tomemos a lição de ROSENICE DESLANDES e ALEXANDRE BARROS CASTRO:
"Seja
de fato ou de direito, é a que se apresenta em toda exuberância, em toda
evidência, para ser acatada ou apreciada como justificativa do pedido, da
pretensão, ou da proteção do direito".
(In: Tributos x Medidas Provisórias no Direito Brasileiro, Carthago e
Forte, São Paulo, 1992, p. 32)
A dicção do
texto não permite interpretação diferençada: a circunstância deve ser relevante
e urgente, ambas devem ocorrer juntamente, o termo "e" é copulativo.
Portanto, é inicialmente válido o ato se atendido tais pressupostos
constitucionais. O exame desses pressupostos verifica-se mais facilmente
através da fundamentação do ato editor de medida provisória, quer pelo
Congresso Nacional (controle político), quer pelo Judiciário (controle
judicial).
Vacila-se,
ainda, na possibilidade do judiciário em examinar os pressupostos
constitucionais. Denominam-nos de políticos, alheios ao crivo judicial. Crêem
que seria uma tarefa política, competência vedada ao juiz. É uma idéia que
destoa da realidade constitucional brasileira, que coloca sob o crivo do
Judiciário a apreciação de qualquer ato estatal que esteja a apto a produzir
efeitos jurídicos, lesando ou ameaçando direito.
Na edição de
medida provisória, se existirem as circunstâncias excepcionais, deve o emissor
demonstrá-las através da fundamentação, posto que atende ao mandamento
constitucional que requer a ocorrência delas. Além de que, é uma garantia do
Estado Democrático de Direito, uma vez que exigindo-se a fundamentação, o
Executivo estaria inibido de editar tantas medidas provisórias em demasia, como
vem acontecendo. Seria mais complicado "arranjar" tantos fatos
relevantes e urgentes que necessitassem da edição de medidas provisórias, como
tem ocorrido desde a promulgação da atual Constituição.
Esse
descontrole na quantidade de medidas provisórias é um atentado contra o Estado
de Direito e contra a Ordem Democrática, pois dota o Executivo de um
instrumento jurídico bastante forte, tornando-lhe um verdadeiro "ditador constitucional",
que comete suas violências contra a ordem jurídica sob o manto da
constitucionalidade, que sabemos ser camuflada.
Apesar disso,
dizemos que o constituinte não vedou a edição de medidas provisórias em
quaisquer matérias, seja tributária, penal ou privativa de lei complementar,
nem mesmo aquelas que dizem respeito às leis delegadas. As vedações são a do
art. 62 e seu parágrafo único, e as impostas pelas E.C. nº 07 e nº 08, de
15/08/95. Essas, cremos, serem as vedações constitucionais expressas.
Evidentemente, que também àquelas que infrinjam materialmente o Texto
Constitucional.
Inobstante os
mais autorizados doutrinadores pátrios serem contra a edição de medida
provisória em algumas matérias, tipo a tributária, pensamos sê-lo possível. Em
nossa opinião, os argumentos usados não são suficientes para extrair tal
interpretação do Texto Constitucional.
Os primeiros
documentos de acordos políticos, limitando o poder estatal, relacionavam-se,
principalmente, com questões tributárias. A instituição de um tributo, só a
título exemplificativo, requer uma análise demorada e minuciosa, na qual
envolvem-se vários setores da sociedade, tendo como foro legítimo de debates o
Poder Legislativo. Lá, estão representados os mais variados interesses de uma
sociedade, sobretudo a hodierna, tão complexa.
Em sendo
assim, torna-se bastante delicada a existência de situações emergentes que
ensejem a criação de tributos, pelos motivos acima expostos. Daí porque a
impossibilidade de medida provisória acerca dessa matéria não é em razão dela
em si, mas, diante do fato de que é implausível justificar sua edição pela
existência de circunstâncias excepcionais, relevantes e urgentes. Ou seja,
inviável são as medidas provisórias em matérias tributária porque injustificáveis
são os fatos ensejadores de sua edição.
Entretanto,
caso haja circunstâncias excepcionais que requeiram a imediata atuação dos
poderes públicos, e que devem atuar em matéria tributária, inexistindo
instrumentos jurídicos capazes de atender às exigências para a solução do caso,
pode ser editada medida provisória. Como, por exemplo, a instituição de imposto
de guerra (art. 154, II). Entretanto, para a validade do ato, deve o mesmo ser
fundamentado, aclarando-se os motivos.
Portanto, se
houver, conforme requer o art. 62, circunstâncias excepcionais, relevantes e
urgentes, inexistindo instrumentos jurídicos capazes de solucionarem a questão,
pode o Presidente da República, fundamentando, editar medida provisória. Assim,
demonstra-se a ocorrência dos pressupostos constitucionais e se atendem os
princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, evitando-se os abusos do
poder conferido constitucionalmente, através de um controle imediato e eficaz.
Inexistindo a
fundamentação, inquina-se a medida provisória do vício de
inconstitucionalidade, por não conter requisito essencial capaz de possibilitar
o seu devido exame. Há uma presunção de inexistência dos pressupostos
constitucionais se não for a medida provisória devidamente fundamentada. Posto que,
a interpretação das exceções constitucionais deve ser restritiva.
Diferentemente daquela no sentido de oportunizar o maior número possível de
requisitos que ensejem os limites e controles dos atos estatais emanados do
Poder Executivo.
V. A POSTURA DO PODER JUDICIÁRIO
Um dos pilares
fundamentais para o fortalecimento do "sentimento de
constitucionalidade" é o Poder Judiciário. Relevante, também, é a posição
do Ministério Público. Aquele como "Guardião da Constituição" (art.
102), este como defensor do Regime Democrático e da Ordem Jurídica (art. 127).
A postura dessas instituições pode fazer da nova Constituição um fator de
modificabilidade da realidade social que vivemos.
Não se deve
incorrer no "simbolismo" das constituições pretéritas, sobretudo a
que antecedeu a atual, que procurava constitucionalizar, ou seja, camuflar de
legitimidade uma situação jurídico-política que se impôs pela força das armas,
e não pelo convencimento dialógico.
Com a
"oxigenação" do "sentimento de constitucionalidade", havida
depois de 1988, mais do que nunca, deve-se buscar transformar o texto
constitucional, a "folha de papel", em instrumento político a serviço
da vontade popular, dentro dos princípios de juridicidade. O discurso
constitucional retórico deve ceder espaço à efetiva concretização do texto, sob
pena de esvaziamento do conteúdo de constitucionalidade, em vista da decepção
provocada por sua inefetividade.
A desculpa de
serem os pressupostos constitucionais questões políticas e discricionárias,
sujeitas apenas ao alvedrio do Presidente da República, e por isso
insindicáveis ao Poder Judiciário, é própria de quem com receio de enfrentar os
problemas prefere não conhecer-lhes, numa postura covarde.
O não
reconhecimento do dever de examinar os pressupostos é uma omissão leviana do
Judiciário, demonstrando a não receptividade da atual Constituição. Faltando ao
Judiciário assumir os encargos que por ela lhe foram deferidos, principalmente
a sua guarda. Ao Judiciário outorga-se o poder de decidir o que é ou não
direito. Inafastável é o dever de julgar, sejam quais forem os atos públicos.
Outrossim, a
apreciação judiciária é independente do exame feito pelo Congresso Nacional. De
sorte que, não há o que se falar em convalidação da medida provisória, feita pelo
Congresso. Se demonstrada a carência dos pressupostos constitucionais ou se
materialmente a medida provisória fere a Constituição, deve a mesma ser
expurgada do mundo jurídico.
Se a
Constituição impõe a existência de determinados pressupostos para a validez de
um ato estatal, ao Judiciário é vedado escusar-se de apreciá-los, a fim de que
possa declarar válido ou não o ato emanado, a partir do exame daqueles
pressupostos.
CONCLUSÃO
A
fundamentação da medida provisória legitima constitucionalmente o ato,
ensejando o controle judicial dos pressupostos de relevância e urgência, assim
como garante o Estado Democrático de Direito, como sendo aquele no qual tem-se
como requisito a juridicidade, a publicidade, a moralidade e o interesse
público dos atos estatais.
O Poder Judiciário é o responsável pela integridade da Constituição, a sua imparcialidade e neutralidade não podem significar indiferença, sob pena de incorrermos no grave perigo de uma ditadura camuflada de constitucionalidade, que atentaria contra o Estado Democrático de Direito, violaria os direitos fundamentais e quebraria o princípio da separação dos Poderes.
Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=174
Acesso em: 02 de Maio de 2005