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A moderna interpretação constitucional
Amandino Teixeira Nunes Junior
consultor legislativo da Câmara dos Deputados,
professor do UniCEUB e do IESB, em Brasília (DF),
mestre em Direito pela UFMG,
doutorando em Direito pela UFPE
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SUMÁRIO: 1.Introdução; 2. Direito
como fenômeno cultural; 3.Constituição como espécie normativa singular;
4.Interpretação constitucional, 4.1.Conceito, 4.2.Especificidade da
interpretação constitucional, 4.3.Método de interpretação constitucional,
4.3.3.1.Método integrativo ou científico- Espiritual, 4.3.3.2.Método tópico,
4.3.3.3.Método concretista de Peter Häberle, 4.4.Princípios de interpretação
constitucional, 4.4.1.Princípio da unidade da constituição, 4.4.2.Princípio da
concordância prática ou da harmonização, 4.4.3.Princípio da força normativa da
constituição, 4.4.4.Princípio da máxima efetividade, 4.4.5.Princípio do efeito
integrador, 4.4.6.Princípio da interpretação conforme á constituição,
4.4.7.Princípio da proporcionalidade; 5. Modernas técnicas de interpretação
constitucional, 5.1.Declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de
nulidade, 5.2.Declaração de inconstitucionalidade com apelo ao Legislativo,
5.3.Interpretação conforme à constituição; 6.Conclusão; Bibliografia, Notas.
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O presente artigo pretende identificar e sistematizar
os métodos, os princípios e as técnicas da moderna teoria da interpretação
aplicáveis ao Direito Constitucional. No seu desenvolvimento, procura-se dar
realce tanto ao Direito pátrio como ao Direito estrangeiro, reservando-se
especial atenção para a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro e
do Tribunal Constitucional Federal alemão.
O estudo que aqui se empreende não tem por objeto
formular uma teoria geral sobre o tema. Ele se volta, basicamente, para a
atividade interpretativa especificamente constitucional, e procura fundamentar
e sistematizar o conhecimento necessário para alcançar tão importante
desiderato.
Neste sentido, procura-se, inicialmente, examinar o
Direito como fenômeno cultural, cuidando de afastá-lo dos fenômenos ditos
naturais. Adiante, faz-se a apreciação de algumas peculiariedades que
singularizam as normas constitucionais, diferenciando-as das demais normas
jurídicas.
Em seguida, percorre-se a interpretação constitucional
propriamente dita. Analisam-se, assim, o conceito, a especificidade, os métodos
e os princípios de interpretação constitucional.
Passa-se, logo após, ao exame detalhado e individual
das modernas técnicas de interpretação constitucional existentes.
Finalmente, à guisa de conclusão, procura-se
apresentar, esquematicamente, uma síntese das idéias expostas ao longo do
trabalho.
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2. DIREITO COMO FENÔMENO CULTURAL
O conceito de Direito não é um problema que a Ciência
Jurídica ou a Filosofia do Direito tem por resolvido em definitivo. Muitos
juristas e jusfilósofos têm se preocupado com o tema, deixando suas valiosas
contribuições sem, entretanto, dar uma resposta à questão com caráter de
definitividade.
Não obstante esse fato, é preciso ter em mente que o
Direito é um fenômeno cultural e, como tal, afasta-se radicalmente das ciências
ditas naturais, visto que, quanto a estas, as conclusões obtidas se revestem
das verdades resultantes do método empírico-indutivo a que se submetem as
realidades próprias das ciências naturais.
A propósito, ensina Inocêncio Mártires Coelho:
"Em relação a esses objetos, observados os fenômenos
e formulada uma hipótese – como "explicação antecipada e reacional"
para a sua ocorrência -, se essa solução provisória, após submetida a
experimentação, vier a se verificar, então o cientista da natureza dará por
concluído o seu trabalho, enunciando uma lei, que traduzirá, em linguagem
sintética e generalizadora, as relações constantes e necessárias que existem
entre os fenômenos observados." (1)
E, adiante, aduz o eminente autor:
"Já os objetos culturais – porque são ontologicamente
valiosos – exigem para o seu conhecimento um método específico e adequado, um
método empírico-dialético, que se constitui pelo ato gnosiológico da
compreensão, através do qual, no ir e vir ininterrupto da materialidade do
substrato à vivência do seu sentido espiritual, procuramos descobrir o
significado das ações ou das criações humanas. Neste setor da realidade, a
busca de explicações constituiria um absurdo tão grande quanto julgar os
fenômenos da natureza." (2)
Destarte, os objetos culturais podem variar em
significado e, por conseguinte, ser a eles agregados valores. Diante dos
objetos culturais podem ser, assim, produzidas interpretações sempre renovadas
e sempre integradas às anteriores.
Já os objetos naturais não variam em significado.
Assim, uma lei física é sempre a mesma em qualquer lugar do planeta, não lhe
cabendo qualquer sorte de interpretação. Vale, tão-somente, o quanto for
observado e comprovado através da experiência.
É, pois, entre os objetos do mundo da cultura
(compreendido como aquele criado pelo homem: o mundo do espírito) que se insere
o Direito.
Em síntese magistral, diz-nos Gustav Radbruch:
"Compreender, quer dizer aqui o mesmo que
apreender um facto cultural, precisamente um facto cultural, isto é, nas suas
ligações e relações com o valor da cultura que lhe corresponde. E se isto é
assim duma maneira geral, é evidente que o especial "compreender" da
ciência jurídica não poderá ser senão o sabermos aprender também o direito como
realização do respectivo conceito; isto é, como um dado cujo sentido é o de
realizar a idéia de direito; ou ainda como uma tentativa de realização dessa
idéia." (3)
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3. CONSTITUIÇÃO COMO ESPÉCIE
NORMATIVA SINGULAR
Inocêncio Mártires Coelho, em expressiva passagem,
assevera que:
"Sendo ambas – Lei e Constituição – espécies de
normas jurídicas, criações do homem, portanto, submetem-se à conceituação
genérica do Direito como fenômeno cultural, realidade significativa..."
(4)
Conquanto seja uma espécie de norma jurídica, e como
tal deve ser interpretada, a Constituição merece exame destacado dentro do
ordenamento jurídico, considerando as singularidades que suas normas
apresentam.
Luís Roberto Barroso enumera quatro singularidades das
normas constitucionais: a) superioridade hierárquica; b) natureza da linguagem;
c) conteúdo específico; d) caráter político. (5)
A superioridade hierárquica expressa a supremacia da
Constituição e "é a nota mais essencial do processo de interpretação
constitucional. É ela que confere à Lei Maior o caráter paradigmático e
subordinante de todo o ordenamento, de forma tal que nenhum ato jurídico possa
subsistir validamente no âmbito do Estado se contravier seu sentido." (6)
Por sua vez, a natureza da linguagem refere-se à
veiculação, no texto constitucional, de normas de índole principiológica que
apresentam "maior abertura, maior grau de abstração e, conseqüentemente,
menor densidade jurídica." (7)
J. J. Gomes Canotilho reconhece um "espaço de
conformação" aos órgãos concretizadores. Consigna o ilustre mestre de
Coimbra:
"Situadas no vértice da pirâmide normativa, as
normas constitucionais apresentam, em geral, uma maior abertura (e,
consequentemente, uma menor densidade) que torna indispensável uma operação de
concretização na qual se reconhece às entidades aplicadoras um "espaço de
conformação" ("liberdade de conformação",
discricionariedade") mais ou menos amplo." (8)
De outra feita, a Constituição é sede de determinadas
categorias de normas que refogem à estrutura típica das normas dos demais ramos
do Direito. Citem-se as normas determinadoras de competências, as normas de
organização, as normas de garantias de direitos fundamentais e as normas
programáticas.
Não se destinam tais normas a prescrever condutas de
indivíduos ou de grupos sociais. Têm elas as funções precípuas de estruturar
organicamente o Estado, regular os direitos fundamentais e as respectivas
garantias e indicar os valores a serem preservados e os fins sociais a serem
atingidos.
Finalmente, a Constituição apresenta normas de caráter
político "quanto à sua origem, quanto ao seu objeto e quanto aos
resultados de sua aplicação." (9)
Isto significa que as normas constitucionais resultam
de um poder político fundamental — o poder constituinte originário —,
juridicizam o fenômeno político e acarretam consequências para o conjunto de
instituições e poderes (partidos políticos, grupos de interesses, categorias
empresariais e trabalhistas, opinião pública, etc.) quando concretizadas e
aplicadas.
Na verdade, a Constituição é, como acentua Pontes de
Miranda, "o conjunto de regras jurídicas onde as forças políticas
encontram o seu leito, o seu equilíbrio." (10) É, em suma, o estatuto jurídico-político
do Estado.
Essas peculiaridades singularizam, pois, as normas
constitucionais, exigindo princípios e métodos específicos para a sua
interpretação, como se verá adiante.
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4. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
4.1. CONCEITO
A interpretação constitucional busca compreender,
investigar e revelar o conteúdo, o significado e o alcance das normas que
integram a Constituição. É uma atividade de mediação que torna possível concretizar,
realizar e aplicar as normas constitucionais.
Nas palavras de J. J. Gomes Canotilho:
"Interpretar as normas constitucionais significa
(como toda a interpretação de normas jurídicas) compreender, investigar e
mediatizar o conteúdo semântico dos enunciados lingüísticos que formam o texto
constitucional. A interpretação jurídica constitucional reconduz-se, pois, à
atribuição de um significado a um ou vários símbolos lingüisticos escritos na
constituição." (11)
Ressalte-se que o preclaro professor português destaca
o caráter lingüístico da interpretação constitucional (como de resto de
qualquer interpretação), "a exigir que os interlocutores falem a mesma
linguagem, como condição de possibilidade de sua mútua compreensão, porque –
como adverte Gadamer — quem fala uma linguagem que mais ninguém fala, em
realidade não fala." (12)
Em síntese, a interpretação constitucional consiste num
processo intelectivo por meio do qual enunciados lingüisticos que compõem a
constituição transformam-se em normas (princípios e regras constitucionais),
isto é, adquirem conteúdo normativo.
4.2. ESPECIFICIDADE DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Inocêncio Mártires Coelho adverte que existe, na
doutrina, grande discussão sobre a existência de uma interpretação
especificamente constitucional, ou, ao revés, não passa tal pretensão de um
anseio de autores entusiasmados. Escreve o ilustre autor:
"A propósito, qualquer levantamento realizado
entre os doutrinadores contemporâneos mais conceituados evidenciará que é
grande esse entusiasmo, muito embora, a rigor, a especificidade da
interpretação constitucional se restrinja à parte dogmática das constituições,
isto é, àquela parte onde estão compendiados os direitos fundamentais,
interpretando-se os preceitos restantes de acordo com os "métodos"
tradicionais." (13)
Ernest-Wolfgang Böckenförde, reforçando esse
entendimento, coloca os direitos fundamentais como pano de fundo para embasar
sua teoria de interpretação especificamente constitucional. (14)
Nesta mesma perspectiva situa-se Robert Alexy, quando
coloca objeções a uma divisão dicotômica entre princípio e regra e desenvolve
fecunda doutrina em obra dedicada aos direitos fundamentais. (15)
Advirta-se que a interpretação constitucional destinada
à parte dogmática das constituições – e, portanto, aos direitos fundamentais –
serve-se de princípios próprios, aplicáveis apenas às normas constitucionais de
índole principiológica, deixando-se às regras constitucionais os métodos hermenêuticos
do direito em geral.
Diante desse panorama, em que se reconhece a existência
da especificidade da matéria constitucional – ainda que se possa restringir-se
à parte dogmática das constituições -, torna-se evidente que a interpretação
especificamente constitucional é, essencialmente, uma hermenêutica de
princípios – isto é, "mandatos de otimização" que "podem e devem
ser aplicados na medida do possível e com diferentes graus de efetivação. (16)
Em síntese, "a doutrina do direito constitucional
pressupõe hoje uma metódica constitucional adequada. Em termos aproximados, a
metódica constitucional procura favorecer os métodos de trabalho aos
aplicadores - concretizadores das normas e princípios
constitucionais."(17)
4.3. MÉTODOS DE
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Paulo Bonavides assinala que "a moderna
interpretação da Constituição deriva de um estado de inconformismo de alguns
juristas com o positivismo lógico-formal que tanto prosperou na época do Estado
liberal." (18)
Com efeito, até a Constituição de Weimer, vivia-se o
período de ouro das constituições normativas, do formalismo jurídico, típico do
Estado liberal. "Por onde veio a resultar um Direito Constitucional
fechado, sólido, estável, mais jurídico do que político, mais técnico do que
ideológico, mais científico do que filosófico. Um Direito Constitucional
compacto, sistemático, lógico, que não conhecia crises nem se expunha à tensões
e às graves tormentas provocadas pelo debate ideológico da idade
contemporânea." (19)
Com o aparecimento do Estado Social, quando as
constituições assumem a forma de autênticos pactos reguladores de sociedades
heterogêneas e pluralistas, arvoradas por grupos e classes com interesses antagônicos
e contraditórios, surge uma nova interpretação constitucional, que "já não
se volve para a vontade do legislador ou da lei, senão que se entrega à vontade
do intérprete ou do juiz, num Estado que deixa assim de ser o Estado de Direito
clássico para se converter em Estado de justiça, único onde é fácil a união do
jurídico com o social... " (20)
Os modernos métodos de interpretação constitucional
caracterizam-se, pois, pelo abandono do formalismo clássico e pela construção
de uma hermenêutica material da Constituição.
Paulo Bonavides destaca três métodos atuais de
interpretação constitucional: a) método integrativo ou científico-espiritual;
b) método tópico; c) método concretista. (21)
4.3.1 MÉTODO INTEGRATIVO OU CIENTÍFICO-ESPIRITUAL
O método integrativo ou científico-espiritual foi
desenvolvido por juristas alemães, capitaneado por Rudolf Smend, que assinala:
"La
Constitución no puede ser comprendida sólo como un estatuto de la organización,
que estructura el Estado y que faculta e impone ciertas actividades al mismo,
sino a la vez, como una forma victal de los ciudadanos que participan en la
vida del Estado." (22)
Na doutrina de Rudolf Smend, a base de valoração, vale
dizer, os valores expressos e tutelados pela Constituição (econômicos, sociais,
políticos e culturais) operam como valores de interpretação coletivos dos
cidadãos e, destarte, devem ser compreendidos e aplicados.
Como acentua Paulo Bonavides:
"A concepção de Smend é precursoramente sistêmica
e espiritualista: vê na Constituição um conjunto de distintos fatores
integrativos com distintos graus de legitimidade. Esses fatores são a parte fundamental
do sistema, tanto quanto o território é a sua parte mais concreta." (23)
Adiante, aduz o ilustre professor cearense:
"O intérprete constitucional deve prender-se
sempre à realidade da vida, à "concretude" da existência,
compreendida esta sobretudo pelo que tem de espiritual, enquanto processo
unitário e renovador da própria realidade, submetida à lei de sua integração.
" (24)
4.3.2.MÉTODO TÓPICO
Por sua vez, o método tópico foi desenvolvido pelos
juristas alemães Theodor Viehweg e Josef Esser. A primeira obra sobre o
assunto, denominada "Tópica e Jurisprudência", de autoria de Viehweg,
foi publicada em 1953.
O método tópico caracteriza-se como uma "arte de
invenção" e, como tal, uma "técnica de pensar o problema",
elegendo-se o critério ou os critérios recomendáveis para uma solução adequada.
Referindo-se ao método tópico, Paulo Bonavides faz a
seguinte ponderação:
"Da tópica clássica, concebida como uma simples
técnica de argumentação, a corrente restauradora, encabeçada por aquele jurista
de Mogúncia, compôs um método fecundo de tratar e conhecer o problema por via
do debate e da descoberta de argumentos ou formas de argumentação que possam,
de maneira relevante e persuasiva, contribuir para solucioná-lo
satisfatoriamente". (25)
A principal crítica feita ao método tópico é a de que
"além de poder conduzir a um casuísmo sem limites, a interpretação não
deve partir do problema para a norma, mas desta para os problemas." (26)
Com a tópica, a norma e o sistema perdem o primado: são rebaixados à condição
de meros pontos de vista ou "tópoi", cedendo lugar à hegemonia do
problema.
4.3.3.MÉTODO CONCRETISTA
Finalmente, o método concretista foi desenvolvido por
três juristas alemães Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle. Cada um
deles ofereceu valiosos contributos para o desenvolvimento desse método.
O método concretista gravita em torno de três elementos
essenciais: a norma que vai concretizar, a compreensão prévia do intérprete e o
problema concreto a solucionar.
Como salienta Paulo Bonavides:
"Os intérpretes concretistas têm da Constituição
normativa uma concepção diferente daquela esposada pelos adeptos de outros
métodos, porquanto não consideram a Constituição um sistema
hierárquico-axiológico, como os partidários da interpretação integrativa ou
científico-espiritual, nem como um sistema lógico-sistemático, como os
positivistas mais modernos. Ao contrário, rejeitam o emprego da idéia de
sistema e unidade da Constituição normativa, aplicando um "procedimento
tópico"de interpretação, que busca orientações, pontos de vista ou
critérios-chaves, adotados consoante a norma e o problema a ser objeto de
concretização. É uma espécie de metodologia positivista, de teor empírico e
casuístico, que aplica as categorias constitucionais à solução direta dos
problemas, sempre atenta a uma realidade concreta, impossível de conter-se em
formalismos meramente abstratos ou explicar-se pela fundamentação lógica e
clássica dos silogismos jurídicos"(27)
4.3.3.1 MÉTODO CONCRETISTA DE
KONRAD HESSE
O método concretista de Konrad Hesse parte da
hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer. Para Hesse, o teor da norma só
se completa no ato interpretativo. A concretização da norma pelo intérprete pressupõe
um compreensão desta; essa compreensão pressupõe uma pré-compreensão.
Como lembra Lenio Luiz Streck:
"Assim, partindo de Gadamer, Hesse mostra como o
momento da pré-compreensão determina o processo de concretização: a concretização
pressupõe a compreensão do conteúdo do texto jurídico a concretizar, a qual não
cabe desvincular nem da pré-compreensão do intérprete nem do problema concreto
a solucionar. O intérprete não pode captar o conteúdo da norma desde o ponto de
vista quase arquimédico situado fora da existência histórica, senão unicamente
desde a concreta situação histórica na qual se encontra, cuja elaboração
(maturidade) conformou seus hábitos mentais, condicionando seus conhecimentos e
seus pré-juízos."(28)
Para Hesse, a
concretização e a compreensão só são possíveis em face do problema concreto, de
forma que a determinação do sentido da norma constitucional e a sua aplicação
ao caso concreto constituem um processo unitário.
Nas palavras textuais de Hesse:
"Finalmente, a interpretação tem significado
decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição.
A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização
da norma ("Gebot optimaler Verklichung der Norm"). Evidentemente,
esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela
subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o Direito e, sobretudo a
Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida,
não se afigura possível que a interpretação faça desta tábula rasa. Ela há de
contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições
normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue
concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa
dentro das condições reais dominantes numa determina da situação."(29)
4.3.3.2. MÉTODO CONCRETISTA DE FRIEDRICH MÜLLER
O método concretista de Friedrich Müller, segundo Paulo
Bonavides, "tem sua base medular ou inspiração maior na tópica, a que ele
faz alguns reparos, modificando-a em diversos pontos para poder chegar aos
resultados da metodologia proposta."(30)
Para Friedrich Müller, o "texto de um preceito
jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo"(31),
que, após interpretado, transforma-se no programa normativo.
Além do texto, a norma constitucional compreende também
um domínio normativo, isto é, pedaço da realidade concreta, que o programa
normativo só parcialmente contempla.
Segundo Friedrich Müller, a norma constitucional não se
confunde com o texto da norma. Ela é mais que isso: é formada pelo programa
normativo e pelo domínio normativo. "De sorte que a interpretação ou
concretização de uma norma transcende a interpretação do texto, ao contrário
portanto do que acontece com os processos hermenêuticos tradicionais no campo
jurídico. (32)
É importante ressaltar ainda que a "análise dos
dados lingüisticos (programa normativo) e a análise dos dados reais (domínio
normativo) são dois processos parciais, separados entre si, dentro do processo
de concretização. " (33) Cabe ao intérprete da norma articular tais
processos.
Para Friedrich Müller, portanto, a normatividade
constitucional consiste no efeito global da norma com seus dois componentes
(programa normativo e domínio normativo), no processo de concretização, que só
se completa quando se chega à norma de decisão, isto é, à norma aplicável ao
caso concreto.
4.3.3.3. MÉTODO CONCRETISTA DE PETER HÄBERLE
De registrar, com Paulo Bonavides, que:
"A construção teórica de Häberle parece
desdobrar-se através de três pontos principais: o primeiro, o largamento do
círculo de intérprete da Constituição; o segundo, o conceito de interpretação
como um processo aberto e público; e, finalmente, o terceiro, ou seja, a
referência desse conceito à Constituição mesma, como realidade constituída e
"publicização" ("verfassten Wirklichkeit und
Öffentlichkeit")"(34)
Com efeito, o próprio Peter Häberle expõe
magistralmente sua tese:
"Propõe-se, pois, a seguinte tese: no processo de
interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos
estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo
possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de
intérpretes da Constituição."(35)
E, adiante, aduz o eminente professor alemão:
"Interpretação constitucional tem sido, até agora,
conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os
intérpretes jurídicos "vinculados às corporações" ("Zünftamässige
Interpreten") e aqueles participantes formais do processo constitucional.
A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade
aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo
social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da
sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade
("weil Verfassungsinterpretation diese offene Gesellschaft immer von neuem
mitkonstituiert und von ihr konstituiert wird"). Os critérios de interpretação
constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a
sociedade."(36)
O método concretista da Constituição aberta de Peter
Häberle, como se pode perceber, é a própria ideologia democrática e demanda, na
sociedade em que for aplicado, alguns requisitos fundamentais: sólido consenso
democrático, instituições fortes, cultura política desenvolvida, pressupostos
não encontrados em sistemas sociais e políticos subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento.(37)
4.4. PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Sendo a hermenêutica constitucional uma hermenêutica de
princípios, é inegável que o ponto de partida do intérprete há de ser os
princípios constitucionais, que "são o conjunto de normas que espelham a
ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma
sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte
como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que
institui."(38)
Luís Roberto Barroso assinala ainda que "a
dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, em geral,
e as normas constitucionais, em particular, podem ser esquadradas em duas
categorias diversas: as normas-princípio e as normas-disposição."(39)
As normas-princípio (ou
simplesmente princípios) distinguem-se das normas-disposição (também referidas
como regras) pelo seu maior grau de abstração e por sua posição mais destacada
dentro do ordenamento. São formuladas de maneira vaga e indeterminada,
constituindo espaços livres para a complementação e desenvolvimento do sistema,
por não se limitarem a aplicar-se a situações determinadas, podendo
concretizar-se num sem número de hipóteses.
As normas-disposição, por sua vez, comparativamente às
normas-princípio, apresentam um grau de abstração reduzido e têm eficácia
restrita às situações específicas às quais se destinam.
Segundo Luís Roberto Barroso:
"Não há, é certo, entre umas e outras, hierarquia
em sentido normativo, por isso que, pelo princípio da unidade da Constituição,
todas as normas constitucionais encontram-se no mesmo plano. Isso não impede,
todavia, que normas de mesma hierarquia tenham funções distintas dentro do
ordenamento. De fato, aos princípios cabe, além de uma ação imediata, quando
diretamente aplicáveis a determinada situação jurídica, uma outra, de natureza
mediata, que é a de funcionar como critério de interpretação e integração do
Texto Constitucional. "(40)
Veja-se, a seguir, o catálogo dos princípios de
interpretação constitucional encontrados na doutrina. Como se poderá notar, a
maioria desses princípios foi formulada a partir dos novos métodos de interpretação
constitucional existentes.
4.4.1.PRINCÍPIO DA UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO
Na conformidade desse princípio, as normas
constitucionais devem ser consideradas não como normas isoladas e dispersas,
mas sim integradas num sistema interno unitário de princípios e regras.
Como acentua J. J. Gomes Canotilho:
"O princípio da unidade da Constituição obriga o
intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar
harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a
concretizar.(41)
O princípio da unidade da Constituição, segundo o
ilustre constitucionalista português, conduz à rejeição de duas teses ainda
presentes na doutrina do direito constitucional: a tese das antinomias
normativas e a tese das normas constitucionais inconstitucionais.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal
alemão tem conferido singular importância ao princípio da unidade da
Constituição. Em decisão magistral, lavrou aquela Carta que:
"O princípio mais importante da interpretação é o
da unidade da Constituição enquanto unidade de um conjunto com sentido
teleológico-lógico, já que a essência da Constituição consiste em ser uma ordem
unitária da vida política e social da comunidade estatal".(42)
4.4.2.PRINCÍPIO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA OU DA
HARMONIZAÇÃO
Formulado por Konrad Hesse, esse princípio impõe ao
intérprete que "os bens constitucionalmente protegidos, em caso de
conflito ou concorrência, devem ser tratados de maneira que a afirmação de um
não implique o sacrifício do outro, o que só se alcança na aplicação ou na
prática do texto."(43)
O princípio da concordância prática ou da harmonização
parte da noção de que não há diferença hierárquica ou de valor entre os bens
constitucionais. Destarte, o resultado do ato interpretativo não pode ser o
sacrifício total de uns em detrimento dos outros. Deve-se, na interpretação,
procurar uma harmonização ou concordância prática entre os bens
constitucionalmente tutelados.
4.4.3.PRINCÍPIO DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO
Também formulado por Konrad Hesse, esse princípio
estabelece que, na interpretação constitucional, deve-se dar primazia às
soluções ou pontos de vista que, levando em conta os limites e pressupostos do
texto constitucional, possibilitem a atualização de suas normas,
garantindo-lhes eficácia e permanência.
4.4.4. PRINCÍPIO DA MÁXIMA EFETIVIDADE
Segundo esse princípio, na interpretação das normas
constitucionais, deve-se atribuir-lhes o sentido que lhes empreste maior
eficácia.
Destarte, "as normas constitucionais devem ser
tomadas como normas atuais e não como preceitos de uma Constituição futura,
destituída de eficácia imediata."(44)
O princípio da máxima efetividade significa o abandono
da hermenêutica tradicional, ao reconhecer a normatividade dos princípios e
valores constitucionais, principalmente em sede de direitos fundamentais.
4.4.5. PRINCÍPIO DO EFEITO INTEGRADOR
De acordo com esse princípio, na resolução dos
problemas jurídico-constitucionais, deve-se dar prioridade às interpretações ou
pontos de vista que favoreçam a integração política e social e possibilitem o
reforço da unidade política, porquanto essas são as finalidades precípuas da
Constituição.
Assim, partindo de conflitos entre normas
constitucionais, a interpretação deve levar a soluções pluralisticamente
integradoras.
4.4.6. PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME À
CONSTITUIÇÃO
Segundo esse princípio, "nenhuma lei deve ser
declarada inconstitucional quando não puder ser declarada em harmonia com a
Constituição"(45), sendo esta interpretação a única adequada e realmente
válida.
A aplicação do princípio da interpretação conforme à
Constituição só é possível quando, em face de normas infraconstitucionais
polissêmicas ou plurissignificativas, existem diferentes alternativas de
interpretação, umas em desconformidade e outras de acordo com a Constituição,
sendo que estas devem ser preferidas àquelas. Entretanto, na hipótese de se
chegar a uma interpretação manifestamente contrária à Constituição, impõe-se
que a norma seja declarada inconstitucional.
O princípio da interpretação conforme à Constituição
constitui uma moderna técnica de controle da constitucionalidade das leis, como
se verá adiante.
4.4.7. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Esse princípio, conquanto tenha tido aplicação clássica
no Direito Administrativo, foi descoberto nas últimas décadas pelos
constitucionalistas, quando as declarações de direitos passaram a ser atos de
legislação vinculados. Trata-se de norma essencial para a proteção dos direitos
fundamentais, porque estabelece critérios para a delimitação desses direitos.
O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três
aspectos fundamentais: a) adequação; b) necessidade (ou exigibilidade); c)
proporcionalidade em sentido estrito.
A adequação significa que o intérprete deve identificar
o meio adequado para a consecução dos objetivos pretendidos. A necessidade (ou
exigibilidade) significa que o meio escolhido não deve exceder os limites
indispensáveis à conservação dos fins desejados. A proporcionalidade em sentido
estrito significa que o meio escolhido, no caso específico, deve se mostrar
como o mais vantajoso para a promoção do conjunto de valores em jogo.
Na Alemanha, berço doutrinário do princípio da
proporcionalidade, o Tribunal Constitucional Federal, em decisão prolatada em
1971, assim o sintetizou:
"O meio empregado pelo legislador deve ser
adequado e exigível, para que seja atingido o fim almejado. O meio é adequado,
quando com o seu auxílio se pode promover o resultado desejado; ele é exigível
quando o legislador não poderia ter escolhido outro igualmente eficaz, mas que
seria um meio não-prejudicial ou portador de uma limitação menos perceptível a
direito fundamental."(46)
O princípio da proporcionalidade constitui uma
verdadeira garantia constitucional, protegendo os cidadãos contra o uso
desatado do poder estatal e auxiliando o juiz na tarefa de interpretar as normas
constitucionais.
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5.MODERNAS TÉCNICAS DE
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
A moderna interpretação constitucional, como vimos,
significa uma reação ao rígido formalismo jurídico em nome da idéia de justiça
material e de segurança jurídica. Neste sentido, o que se assiste no segundo
pós-guerra, "é uma inclinação da jurisprudência procurando maximizar as
formas de interpretação que permitam um alargamento ou restrição do sentido da
norma de maneira a torná-la constitucional. Procura-se buscar até mesmo
naquelas normas que à primeira vista só parecem comportar interpretação
inconstitucional — através da ingerência da Corte Suprema alargando ou
restringindo o seu sentido — uma interpretação que se coadune com a Carta
Magna."(47)
Dentre as modernas técnicas de interpretação
constitucional existentes, destacam-se: a) declaração de inconstitucionalidade
sem a pronúncia da nulidade; b) declaração de inconstitucionalidade com apelo
ao legislador; c) interpretação conforme à Constituição.
5.1. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE SEM A
PRONÚNCIA DE NULIDADE
A declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia
de nulidade encontra suas raízes na jurisprudência do Tribunal Constitucional
Federal alemão. Nessa técnica de interpretação, "o Tribunal rejeita a
argüição de inconstitucionalidade, anunciando, todavia, uma possível conversão
dessa situação ainda constitucional ("noch verfassungsgemass") num
estado de inconstitucionalidade."(48)
Essa técnica de interpretação constitucional pode ser
admitida desde que a norma em exame não seja integralmente inconstitucional,
isto é, inconstitucional em todas as hipóteses interpretativas que admitir.
A declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia
de nulidade contém um juízo de desvalor em relação à norma questionada,
obrigando o legislador a empreender a medida requerida para a supressão do estado
de inconstitucionalidade, bastando para tanto apenas alguma alteração fática.
5.2. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE COM APELO AO
LEGISLADOR
A declaração de inconstitucionalidade com apelo ao
legislador também tem origem na jurisprudência do Tribunal Constitucional
Federal alemão. Nessa técnica de interpretação, "busca-se não declarar a
inconstitucionalidade da norma sem antes fazer um apelo vinculado a
"diretivas" para obter do legislador uma atividade subseqüente que
torne a regra inconstitucional harmônica com a Carta Maior. Incumbe-se ao
legislador a difícil tarefa de regular determinada matéria, de acordo com o que
preceitua a própria Constituição."(49)
Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3497