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A coisa julgada inconstitucional e seu controle por meio
de ADPF
Fausto
F. de França Júnior*
1. Introdução ao
tema.
Aborda-se através do presente o
problema da coisa julgada inconstitucional, não apenas sob o enfoque processual
civil normalmente emprestado ao tema, defendendo-se, porém, a possibilidade do
uso da argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) prevista no
§1.º do art. 102 da Constituição Federal e disciplinada pela Lei Federal n.º
9.882, de 3 de dezembro de 1999, como meio para desconstituição da decisão
judicial trânsita em julgado violadora de preceito fundamental da Carta
Política.
Afasta-se, desde logo, o tema
referente à argüição INCIDENTAL do descumprimento de preceito fundamental, isto
é, a técnica de defesa que a doutrina vem reconhecendo como possível por meio
da qual o réu argüiu no bojo de um processo a violação a preceito fundamental,
podendo chegar à análise do Supremo Tribunal Federal por via de um recurso
extraordinário, técnica idêntica ao controle difuso de constitucionalidade, só
que tendo como parâmetro um preceito fundamental.
Defendemos aqui sim, o uso da AÇÃO
de descumprimento de preceito fundamental, a ser ajuizada diretamente perante o
Supremo Tribunal Federal, com o desiderato de desconstituição de coisa julgada
viciada pela nódoa da inconstitucionalidade, a qual, entretanto, não é aquela
violadora de qualquer norma da Carta Suprema, mas sim de preceito fundamental
da mesma.
Para a exposição didática do tema,
há necessidade de abordar-se o atual entendimento doutrinário acerca da coisa
julgada e a relativização do dogma que sempre foi a sua proteção,
verificando-se que a argüição de descumprimento de preceito fundamental pode
servir como meio eficaz e juridicamente válido para controlar vício de
constitucionalidade presente em coisa julgada, tratando-se, nesta hipótese, de
meio muito mais eficaz do que aqueles atualmente apontados pela doutrina para
tal fim (ação rescisória, ação declaratória e embargos à execução).
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2. A decisão
judicial inconstitucional – a superação do caráter dogmático da coisa julgada.
Pautada no princípio da segurança
das relações jurídicas, a doutrina historicamente conferia à coisa julgada
caráter dogmático, praticamente absoluto e sem exceções.
Chegava-se a dizer que a coisa
julgada era capaz de "transformar o quadrado em redondo e o preto em
branco" (1) ou, no clássico brocardo latino, res judicata facit de albo
ningrum (a coisa julgada faz preto do branco).
Entretanto, nota-se na doutrina
atual clara repulsa à idéia de uma coisa julgada absolutamente imutável e
intangível.
São notáveis os estudos acerca da
flexibilização da coisa julgada realizadas por jurista do porte do
constitucionalista português Paulo Manoel Cunha da Costa Otero (na obra
"Ensaio sobre Caso Julgado Inconstitucional, Lisboa: Lex, 1993) e de
vários brasileiros que têm dado contribuição decisiva ao tema, entre eles, José
Augusto Delgado ("Efeitos da Coisa Julgada e os Princípios
Constitucionais" (2)), Paulo Roberto Oliveira Lima ("Teoria da Coisa
Julgada", Revista dos Tribunais, 199, pág. 112), Cândido Rangel Dinamarco
("Relativizar a Coisa Julgada Material" – v. nota de rodapé n.º 1,
abaixo) e Humberto Theodoro Júnior (in Revista da AGU, do Centro de Estudos
Victor Nunes Leal. Brasília: 2001), entre outros, como já dito.
Partindo-se, todavia, do óbvio de
que nem mesmo na física prevalece o absoluto, a doutrina e a jurisprudência
estão passando a reconhecer que o dogma da coisa julgada deve ceder diante de
erro material ou diante do absurdo, em casos especiais.
Foi com perplexidade que os meios
jurídicos a partir do início da década de 90 passaram a verificar os absurdos
que a aplicação dogmática do processo civil ocasionava, por exemplo, em
situações como ações de investigação de paternidade, face à evolução dos
estudos científicos acerca da identificação do ácido desoxirribonucléico – o
DNA.
É fato que vários foram os casos
de ações investigatórias de paternidade cujos pedidos foram julgados
improcedentes por falta de provas, isto é, por falta de condições da parte
autora de fazer prova de suas alegações, sobretudo naquelas ações fundadas em
relações sexuais fortuitas, nas quais era tarefa extremamente difícil fazer a
parte autora prova do encontro sexual, dada a evidente clandestinidade do mesmo
em certas situações.
Em casos tais, a sentença não
gerava pacificação social, porque a falta de provas só fazia eternizar a dúvida
e a angústia dos filhos e da família quanto à conduta da genitora do autor, sem
falar no sofrimento moral impingindo à própria genitora, haja vista a
perpetuação de tal dúvida.
Na prática, até tornar-se
acessível o exame de DNA, era a instrução da ação de investigação de
paternidade uma tarefa hercúlea para a parte autora nas ações fundadas em relações
sexuais fortuitas, o que não ocorria evidentemente quando fundada a ação em um
concubinato duradouro e público.
A jurisprudência antes do DNA,
tinha forte corrente a admitir a prova da relação sexual baseada em indícios e
presunções, entretanto, parte da doutrina tinha restrições à prova indiciária,
valendo citar Fernando Simas (3) quando lecionava que "em ações de
investigação de paternidade, a prova terá que ser robusta, pois a paternidade
apenas possível, não pode ser sinônimo de paternidade concreta, judicialmente
comprovada por critérios objetivos. Só o conjunto uniforme de elementos
seguros, pode levar à declaração de filiação contestada, pois se é desumano não
ter o filho, direito à paternidade, injusto também é a declaração de uma
filiação inexistente. O reconhecimento forçado só se compreende quando há
certeza de paternidade."
Pior que isso, era a corrente
doutrinária e jurisprudencial conservadora e muitas vezes até preconceituosa na
qual se exigia "honestidade da mulher", como entendeu o STF no RE n.º
104.893-0/RS, de cujo voto do Preclaro Ministro Relator Djaci Falcão,
verifica-se citação do entendimento doutrinário de Arnoldo Medeiros da Fonseca
que em sua clássica obra "Investigação de Paternidade" (4) asseverava
que "no caso de basear-se a ação investigatória nas relações sexuais,
desse fato por si só, não decorre nenhuma presunção de paternidade. As relações
sexuais são apenas um pressuposto necessário da procriação; tornam a
paternidade apenas possível. Para que esta delas se possa inferir, é essencial
um outro elemento: a honestidade da mãe, que é demasiado presumir, e que falha
quando da mulher é prostituta ao tempo da gravidez. Esta circunstância
portanto, basta para excluir a ação, a não ser em casos excepcionalíssimos,
quando o próprio pai manifestar inequivocamente, que considera seu, o fruto dos
amores mercenários".
Com a evolução científica e
notadamente com a facilitação em termos financeiros do acesso ao exame de DNA,
ressurgiu o interesse dos filhos de terem reconhecida a paternidade,
especialmente naqueles feitos nos quais concluiu-se pela improcedência do
pedido de reconhecimento de filiação à mingua de elementos probatórios.
Do ponto de vista do processo
civil tradicional, contudo, havia um óbice: a coisa julgada.
A doutrina, por vários artigos e
obras de relevo, pautadas no princípio da verdade real e dos fins sociais da
norma, entre outros fundamentos, não enxergava óbice a uma nova ação
investigatória, arrimada na pretensão de submissão das partes ao exame de DNA.
O Superior Tribunal de Justiça em
"leading case" decidiu, enfim, neste sentido, admitindo uma segunda
ação, rompendo-se, assim, a visão dogmática da coisa julgada. Vale conferir a
respeito o julgamento do RESP 226.436/PR da 4a. Turma, com relatoria afeta ao
Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, decisão publicada no DJ de 04.02.2002, pág.
370, especialmente o voto do relator no qual de forma brilhante há um completo
enfrentamento do tema da relativização da coisa julgada em ações de
investigação de paternidade, com citação de vasta fonte doutrinária (5).
Mas, a necessidade de
relativização da coisa julgada não está apenas ligada ao caso da investigação
de paternidade e ao progresso científico referente ao DNA.
Casos há em que a supremacia da
Constituição é ferida por decisões judiciais trânsitas em julgado.
Configuram-se nessas situações,
mais do que uma coisa julgada contrária à verdade real ou ao ideal de Justiça:
há a coisa julgada inconstitucional.
O fato é que a partir da visão
hierárquica do ordenamento jurídico e da supremacia da Constituição, nenhum ato
pode ser contrário à Carta Excelsa. Uma Lei não pode e, até mesmo uma Emenda
Constitucional pode ser declarada inconstitucional, sendo pacífico a
possibilidade do controle de constitucionalidade de tal espécie normativa (6).
Como é cediço, a doutrina
brasileira e mundial são vastas em matéria de controle de constitucionalidade
de leis e atos normativo em geral, sendo, entretanto, parcas no tema de
controle de constitucionalidade de atos judiciais. Todavia, a supremacia
constitucional exige conformidade tantos de atos normativos, como evidentemente
também de atos concretos. Neste sentido, claríssimo é o magistério do sempre
preciso Humberto Theodoro Júnior (7), em artigo em co-autoria com Juliana
Cordeiro de Faria:
"Porém, ao longo de mais de
duzentos anos, o que se observa é que, em tema de inconstitucionalidade, as
atenções e preocupações jurídicas sempre se detiveram no exame da
desconformidade constitucional dos atos legislativos. Verifica-se, assim, que a
grande parte dos estudos produzidos desde então centra-se na análise da
constitucionalidade/ inconstitucionalidade dos atos legislativos, não havendo
uma maior preocupação com os atos do Poder Judiciário, em especial suas
decisões que, sem a menor dúvida, são passíveis de serem desconformes à
Constituição.
Paulo Otero, constitucionalista
português que desponta no cenário jurídico, bem detectou as razões do
esquecimento, consoante se depreende da seguinte passagem de sua notável obra:
‘As questões de validade constitucional dos atos do poder
judicial foram objeto de um esquecimento quase total, apenas justificado pela
persistência do mito liberal que configura o juiz como ‘a boca que pronuncia as
palavras da lei’ e o poder judicial como ‘invisível e nulo’ (Montesquieu)’ (8)
Com efeito, institucionalizou-se o
mito da impermeabilidade das decisões judiciais, isto é, de sua imutabilidade a
ataques, ainda que agasalhassem inconstitucionalidade, especialmente após
operada a coisa julgada e ultrapassado, nos variados ordenamentos, o prazo para
a sua impugnação. A coisa julgada, neste cenário, transformou-se na expressão
máxima a consagrar os valores de certeza e segurança perseguidos no ideal do
Estado de Direito. Consagra-se, assim, o princípio da intangibilidade da coisa
julgada, visto, durante vários anos, como dotado de caráter absoluto."
Acrescentaríamos que a ausência de
estudos acerca da inconstitucionalidade dos atos judiciais deve-se, também à
idéia equivocada de que a "formação jurídica" do magistrado lhe
deixaria imune à prática da inconstitucionalidade, que, nesta visão, seria fato
comum no Legislativo e no Executivo, composta por políticos a grande maioria
das vezes sem qualquer preparo acadêmico na área jurídica.
Ledo engano, como se vê.
Realmente, como registra a
doutrina, não existe e não pode existir hierarquia entre atos administrativos,
legislativos e jurisdicionais.
No ponto, vale citar o excelente
magistério de Carlos Valder do Nascimento (9) quando leciona que "pensar
que a decisão jurisdicional, coberta pelo manto da irreversibilidade, faz-se
ato jurisdicional intocável é relegar a regra geral, segundo a qual todos os
atos estatais são passíveis de desconstituição. Não há hierarquia entre os atos
emanados dos Poderes da República, pois, todos eles são decorrentes do
exercício das funções desenvolvidas pelos agentes políticos em nome do Estado.
Tanto os atos jurisdicionais quanto os legislativos e administrativos têm o
mesmo peso, em face do princípio constitucional de que os Poderes da República
(Judiciário, Legislativo e Executivo) são ‘independentes e harmônicos entre
si’. De sorte que a submissão dos atos praticados pelo Legislativo e Executivo
ao crivo da Constituição não afasta o exame daqueles de responsabilidade do
Judiciário, que atentem contra as normas dela emanadas."
Ou seja, caminha-se para concluir
que se nenhum outro ato normativo, político ou administrativo fica isento do
dever de cumprir o comando normativo da Constituição, não pode da mesma forma
uma sentença deixar de fazê-lo.
Assim, do mesmo modo que para
contestar-se a constitucionalidade de uma Lei ou outro ato normativo qualquer
não se subordina a correspondente ação direta de inconstitucionalidade a prazo
decadencial ou prescricional, o mesmo ocorre com a coisa julgada
inconstitucional, já que o vício da inconstitucionalidade não se convalida pelo
decurso de prazo (10).
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3. Meios de
controle da coisa julgada inconstitucional.
Constatado o reconhecimento cada
vez mais pacífico da doutrina no sentido de que a coisa julgada não possui
caráter absoluto e que se admite o controle de sua constitucionalidade, cabe
analisar os meios apontados pela doutrina através do qual se impugna em Juízo
essa desconformidade.
Evidentemente que quando uma
sentença ou decisão judicial recorrível possui um vício jurídico qualquer,
entre eles o da inconstitucionalidade, deve valer-se a parte dos recursos
cabíveis e vastamente previstos no ordenamento jurídico para a reforma da
decisão.
O problema que estamos a enfrentar
é da decisão trânsita em julgada, da qual não se cogita mais qualquer espécie
de recurso, no sentido técnico do termo.
A doutrina processual civil tem
apontado a possibilidade de ação rescisória, se ainda presente o prazo de dois
anos para ajuizamento da mesma, ou, caso ultrapassado tal prazo, ação
declaratória desconstitutiva de coisa julgada inconstitucional, ou seja, uma
ação comum de rito ordinário a ser ajuizada em 1.º grau de jurisdição, através
da qual se pede ao Poder Judiciário a desconstituição da coisa julgada
violadora da Constituição Federal, admitindo-se a mesma pretensão em sede de
embargos à execução da sentença inquinada da inconstitucionalidade.
Parte-se do mesmo princípio
orientador da clássica "querela nulitatis", cujo meio de impugnação
seria uma ação autônoma para delatar-se a nulidade absoluta de um outro
processo em razão de vício insanável de citação ou mesmo através de embargos à
execução, quando estivesse sendo executada a sentença portadora do mencionado
vício.
Apesar de reconhecer que o
problema da inconstitucionalidade de uma sentença atinge o plano da validade e
não o da existência, de sorte que a sentença seria NULA (e não inexistente),
Humberto Theodoro Júnior no já citado artigo em co-autoria com Juliana Cordeiro
de Faria (11) tem defendido um outro caminho, que seria a ação rescisória,
ainda que superado o prazo de dois anos, defendendo-se que "a decisão
judicial transitada em julgado desconforme a Constituição padece de vício da
inconstitucionalidade que, nos mais diversos ordenamento jurídicos, lhe impõe a
nulidade. Ou seja, a coisa julgada inconstitucional é nula e, como tal, não se
sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais. Ora, no sistema das nulidades,
os atos judiciais nulos independem de rescisória para a eliminação do vício
respectivo. Destarte pode ‘a qualquer tempo ser declarada a nula, em ação com
esse objetivo, ou em embargos à execução’ (STJ, Resp n.º 7.556/RO, 3a. T., Rel.
Min. Eduardo Ribeiro, RSTJ 25/439)."
Enfim, a doutrina tem apontado –
em rol disjuntivo – os seguintes meios de controle de constitucionalidade da
coisa julgada:
a) ação rescisória, se ainda
presente o prazo de dois anos a que alude o art. 495 do CPC;
b) ação rescisória, ainda que
superado o referido prazo (Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de
Faria);
c) ação autônoma declaratória
desconstitutiva de coisa julgada inconstitucional; ou
d) embargos à execução da sentença que contém o citado vício da
inconstitucionalidade.
Quanto à hipótese da letra
"a", calha citar o entendimento pacífico da jurisprudência no sentido
de que quando o art. 485, inciso V do CPC assevera que cabe a rescisão quando a
sentença rescindenda "violar literal disposição de lei", está-se
usando o termo "lei" em sentido que abarca a Constituição Federal
(12), sendo absolutamente correta esta tese à luz do elemento teleológico, eis
que se o objetivo da norma é impedir a consolidação de sentença contrária à
Lei, não teria o CPC interesse em preservar uma sentença contrária à Lex Major.
E, quanto à hipótese, da letra
"d", ganhou a mesma força no Direito Positivo a partir da edição da
Medida Provisória n.º 2.180-35/2001, em vigor em face da cláusula de
convalidação prevista no art. 2.º da Emenda Constitucional n.º 32/2001, cujo
ato normativo prevê a seguinte regra no âmbito do CPC:
"Art. 741. Na execução
fundada em título judicial, os embargos só poderão versar sobre:
(...)
II – inexigibilidade do título;
(...)
Parágrafo único. Para efeito do
disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título
judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo
Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por
incompatíveis com a Constituição Federal."
Portanto, não há dúvida de que a
parte executada em uma ação que tenha por objeto a aplicação do comando de uma
Lei já declarada inconstitucional ou "em aplicação ou interpretação tidas
por incompatíveis com a Constituição Federal" pode perfeitamente se valer
dos embargos à execução parar desconstituir a sentença ("título
judicial") que inconstitucionalmente encampou a tese contrária ao
entendimento do Pretório Excelso.
Todavia, como se passa a
demonstrar a seguir, os meios de impugnação da coisa julgada inconstitucional
não se restringem às quatro fórmulas citadas acima, cabendo também o uso da
argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) para tal fim, quando
viola a sentença preceito fundamental da Carta Política.
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4. A argüição de
descumprimento de preceito fundamental: origens e disciplina no Direito Pátrio.
Naquela que consideramos a obra
mais completa sobre argüição de descumprimento de preceito fundamental na
doutrina brasileira, André Ramos Tavares ("Tratado da Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental" (13)), disserta com profundidade
sobre o tema, deixando patente que a ADPF é uma novidade da Constituição
Federal de 1988 no ordenamento jurídico brasileiro e que, no Direito
Estrangeiro, tem, entre outros, como fontes:
1.o writ of certiorari do Direito
norte-americano;
2.a Verfassungsbeschwerde do
Direito alemão;
3.a Popularklage no Direito da
Baviera;
4.o recurso de amparo, o recurso
de inconstitucionalidade e o incidente (ou questão) de inconstitucionalidade
autônomo e no amparo, todos, do Direito espanhol;
5.a "auto-remissão" do sistema constitucional
italiano; e
6.a ação popular de
inconstitucionalidade do Direito venezuelano;
Uadi Lammêgo Bulos (14) verifica
na Verfassungsbeschwerde alemã a fonte principal da ADPF, citando que na
Alemanha tal instituto "funciona como meio de queixa jurisdicional perante
o BundesverfassungsgerichtI, almejando a tutela de direitos fundamentais e de
certas situações subjetivas lesadas por um ato de autoridade pública."
Até o advento da Lei n.º 9.882/99
o Supremo Tribunal Federal, entendendo cuidar-se de norma de eficácia limitada
a regra insculpida no §1.º do art. 102 da CF, não admitia a argüição. Assim
decidiu a Corte Excelsa no AgRegPet n.º 1140-7/TO, Rel. Min. Sidney Sanches,
decisão: 2-5-1996, DJ 1, de 31—5-1996. p. 18803 e da mesma forma na Pet n.º
1.369/8, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 1, de 8-10-1997, p. 50468.
Em 3 de dezembro de 1999, porém,
foi editada a Lei n.º 9.882, dispondo sobre o processo e julgamento da ADPF (a
chamada "Lei da Argüição").
Citada Lei, possui vários de seus
aspectos questionados no âmbito do STF através da ação direta de
inconstitucionalidade n.º 2231/DF proposta pelo Conselho Federal da OAB, cujo
julgamento encontra-se atualmente suspenso dado pedido de vista desde a sessão
de 05/12/2001 (15).
Verifica-se que na citada ADIN n.º
2231 a OAB impugna a íntegra do referido diploma legal, e em especial o
parágrafo único do art. 1.º, o §3.º do art. 5.º, o art. 10, caput e seu §3.º e
o art. 11, havendo, inclusive, o então Relator, Min. Néri da Silveira, votado
pela declaração de inconstitucionalidade do inciso I do parágrafo único do art.
1.º, em julgamento, repita-se, que está suspenso.
A par da citada ADIN, existem na
presente data (16) apenas 56 (cinqüenta e seis) argüições em tramitação no STF,
não havendo até hoje nenhuma delas sido conhecida e julgada quanto ao mérito,
havendo 31 (trinta e uma) em tramitação e 25 (vinte e cinco) que não foram
conhecidas e estão arquivadas (17).
Mas, das 31 (trinta e uma) em
tramitação, há pelo menos 03 (três) com liminares concedidas (ADPF’s 10, 33 e
54) e várias delas estão, por decisões monocráticas dos respectivos relatores,
com julgamento suspenso aguardando o desenlace da ADIN n.º 2231.
4.1. Conceito de "ato do
Poder Público" e enquadramento da sentença no mesmo.
Como é cediço, a Constituição
Federal não esclareceu qual seria o objeto da ADPF, dizendo apenas:
"Art. 102 (...)
§1.º A argüição de descumprimento
de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo
Supremo Tribunal Federal, na forma da lei."
Por outro lado, também a Lei n.º
9.882/99 não deu o exato conceito do objeto da ADPF, prevendo-se o seu
cabimento apenas contra "ato do Poder Público", deixando certamente à
doutrina e à jurisprudência a tarefa de conceituar o objeto da ADPF.
O que se enquadraria, porém, como
"ato do poder público"?
Seriam apenas atos normativos?
O problema envolve um prévio
esclarecimento acerca da ADIN 2231 e da principal controvérsia posta nos
referidos autos.
Pela análise das 44 (quarenta e
quatro) laudas da petição inicial da ADIN n.º 2231 proposta pelo Conselho
Federal da OAB, percebe-se que o pomo da discórdia está na seguinte norma (com
destaques nossos):
"Art. 1o A argüição prevista
no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo
Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito
fundamental, resultante de ato do Poder Público.
Parágrafo único. Caberá também
argüição de descumprimento de preceito fundamental:
I - quando for relevante o
fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal,
estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição;
II – (VETADO)."
Defende-se na ação que o
legislador ordinário teria permitido a argüição INDEPENDENTEMENTE de lesão a
preceito fundamental, mas tão-somente na ocorrência de relevante
"fundamento" de "controvérsia constitucional sobre lei ou ato
normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à
Constituição".
Ou seja, pela interpretação da
inicial da ADIN, o legislador ordinário teria ampliado a autorização
constitucional para abarcar outras hipóteses que não aquela de descumprimento
de preceito fundamental.
Cita-se na inicial, inclusive,
Alexandre de Moraes (18) que entende que
"Essa hipótese de argüição de
descumprimento de preceito fundamental, prevista no parágrafo único do artigo
1º, da Lei n.º 9.882/99, distanciou-se o texto constitucional, uma vez que, o
legislador ordinário, por equiparação legal, também considerou como
descumprimento de preceito fundamental qualquer controvérsia constitucional
relevante sobre lei ou ato normativo federal, estadual, ou municipal, incluído
os anteriores à Constituição.
O texto constitucional é muito
claro quando autoriza à lei o estabelecimento, exclusivamente da forma pela
qual o descumprimento de um preceito fundamental poderá ser argüido perante o
Supremo Tribunal Federal. Não há autorização constitucional para a ampliação
das competências do STF.
Controvérsias entre leis ou atos
normativos e normas constitucionais, relevantes que sejam, não são hipóteses
idênticas ao descumprimento pelo Poder Público de um preceito fundamental, e
devem ser resolvidas em sede de controle de constitucionalidade, tanto difuso
quanto concentrado.
O legislador ordinário utilizou-se
de manobra para ampliar, irregularmente, as competências constitucionais do
Supremo Tribunal Federal, que conforme doutrina e jurisprudência pacíficas,
somente podem ser fixadas pelo texto magno. Manobra essa eivada de flagrante
inconstitucionalidade, pois deveria ser precedida de emenda à Constituição."
Tal entendimento é o que está
prevalecendo no julgamento da ADIN, pelo menos provisoriamente, pois como foi
noticiado pelo STF através de seu informativo n.º 253, iniciando o julgamento
da referida ADIN (com destaques nossos):
"O Min. Néri da Silveira, relator, em face da
generalidade da formulação do parágrafo único do art. 1º, considerou que esse
dispositivo autorizaria, além da argüição autônoma de caráter abstrato, a argüição
incidental em processos em curso, a qual não poderia ser criada pelo legislador
ordinário, mas, tão-só, por via de emenda constitucional, e, portanto, proferiu
voto no sentido de dar ao texto interpretação conforme à CF a fim de excluir de
sua aplicação controvérsias constitucionais concretamente já postas em juízo
("Parágrafo único - Caberá também argüição de descumprimento de preceito
fundamental: I - quando for relevante o fundamento da controvérsia
constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal,
incluídos os anteriores à Constituição;"). Conseqüentemente, o Min. Néri
também votou pelo deferimento da liminar para suspender a eficácia do § 3º do
art. 5º, por estar relacionado com a argüição incidental em processos em
concreto ("A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e
tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões
judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria
objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se
decorrentes da coisa julgada."). ADInMC 2.231-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 5.12.2001.(ADI-2231)"
Ou seja, a visão do então Ministro
Relator é no sentido de impedir a utilização da ADPF como ação autônoma e de
competência do STF para dirimir conflitos concretos já postos em juízo, só
cabendo, assim, para resolução de controvérsias abstratas, semelhantemente a
uma ação direta de inconstitucionalidade.
Data venia ao entendimento do
ilustre e culto Ministro Relator e de juristas do porte de Alexandre de Moraes,
tal interpretação não pode subsistir porque senão se equipararia a ADPF à ação
direta de inconstitucionalidade, tendo a primeira âmbito bem mais restrito, já
que seria possível apenas tendo como norma parâmetro um preceito fundamental,
cuja conceituação, veremos adiante.
Destarte, a conseqüência do
entendimento da relatoria é o total esvaziamento da ADPF que não passaria de uma
ADIN especial para cotejo entre atos normativos do Poder Público e aquelas
normas constitucionais que têm conteúdo principiológico.
O fato é que a Constituição não
restringiu tanto o alcance da ADPF e não se pretende transformá-la em uma segunda
espécie de ADIN, ou praticamente inutilizá-la.
O problema, a nosso sentir, é
facilmente resolvido por uma interpretação sistemática e pela análise em
conjunto da regra do caput do art. 1.º e seu parágrafo único da Lei da
Argüição.
Como se sabe, é princípio clássico de hermenêutica de que
os parágrafos não possuem autonomia normativa, abrindo geralmente exceção a uma
regra geral exposta no caput ou tendo caráter explicativo da mesma regra geral.
Entendemos que o parágrafo único
do art. 1.º da Lei da Argüição não possui caráter autônomo, tendo apenas escopo
explicativo, deixando claro que caberá a ADPF "quando for relevante o
fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal,
estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição", mas
evidentemente sem afastamento do caput do dispositivo.
Por outras palavras, sempre será
obrigatório para o cabimento da ADPF a ocorrência de um ato do Poder Público
que viole preceito fundamental, ocorrendo isto, também caberá a ADPF quando
"for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou
ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à
Constituição".
Ou seja, numa interpretação sistemática
e conforme a Constituição, conclui-se que não há mancha de
inconstitucionalidade na norma, cabendo apenas uma interpretação que não
confira autonomia normativa ao parágrafo único, subordinando-o inteiramente ao
caput do dispositivo, o que normalmente se dá na interpretação de um parágrafo.
Importante, assim, é o
acompanhamento do julgamento da ação direta em tela, dado que a prevalência da
tese da relatoria transformará a ADPF em um verdadeiro nada jurídico,
perdendo-se, assim, um excelente instrumento de controle de
constitucionalidade.
A par dessas breves considerações
acerca do ADIN n.º 2231, cumpre-nos voltar ao objeto específico deste trabalho
e verificar se UMA SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO seria ou não ato do Poder
Público.
No ponto, cabe o primeiro registro
de que o "ato do Poder Público" a que alude a Lei da Argüição não é
apenas ato normativo.
O primeiro passo, pois, é
demonstrar que a ADPF não possui como objeto apenas "ato normativo" e,
depois, demonstrar-se também que atos dos três poderes podem ser objeto da
argüição.
Realmente, doutrinadores como Uadi
Lammêgo Bulos (19) explicitamente esclarecem que a ADPF "permite, também,
o controle de constitucionalidade de atos não normativos, bem como de atos
anteriores à promulgação do Documento Supremo."
O que defendemos é que exigir que
a ADPF seja usada apenas em face de atos normativos esvazia totalmente o seu
conteúdo, equiparando-a a uma ADIN, e tornando o seu uso medida inócua, o que
evidentemente não é o objetivo do constituinte.
Encerrando a controvérsia, André
Ramos Tavares (20), depois de esclarecer que o Supremo Tribunal Federal não
admite o cabimento de ADIN para impugnação de atos estatais de efeitos
concretos, citando-se os julgamentos das ADIN’s 842 e 769 e em seguida os
ensinamentos de Ferreira Mendes, aborda de forma esclarecedora o tema referente
ao objeto da ADPF:
"Realmente, os argumentos do
mestre são plenamente aplicáveis ao caso da ação direta de
inconstitucionalidade, mas já não se prestam para vestir a teoria da argüição
de descumprimento de preceito. Sua assimilação, neste campo, seria deletéria do
próprio objetivo constitucional ao instituir a medida especial."
(...)
"Observe-se que a Carta
Constitucional, na hipótese da argüição de descumprimento, desconsidera a
normatividade do ato ou comportamento sindicável (ao contrário do que ocorre
com as ações diretas). Ou seja, esta é irrelevante para fins de admissão do
instituto constitucional da argüição."
(...)
Por fim, nada impede – aliás, a
realidade aponta justamente para o oposto – que certos atos materiais do Poder
Público lesem inúmeras pessoas, ou que envolvam diversos direitos.
Independentemente de cogitar-se do interesse individual de cada um, ou mesmo do
direito do Poder Público envolvido, é possível analisar em tese a hipótese
material ocorrida e verificar se ela é ou não compatível com a Constituição. O
benefício individual que daí decorra, contudo, é não apenas inafastável como
também desejável." (destacamos).
Entendemos, destarte,
perfeitamente possível a argüição em face de atos concretos e não apenas atos
normativos.
Cumpre analisar se atos oriundos
do Poder Judiciário estariam neste rol.
No ponto, impossível é deixar de
reconhecer, também com forte no magistério de André Ramos Tavares (obra citada,
pág. 209) que
"Como ponto de partida,
pode-se afirmar que Poder Público, no caso da argüição será o Estado
brasileiro. Utiliza-se, neste sentido, uma delimitação em relação aos demais
poderes públicos (estrangeiros ou supranacionais).
Dentro daquela expressão ampla de ‘Estado’, compreende-se,
como não poderia deixar de ser, tanto a União, quanto os Estados, os Municípios
e o Distrito Federal. Engloba ela, também todos aqueles entes que exercem o
poder de império, próprio do Poder Público.
Assim, os Poderes Executivos,
Legislativo ou Judiciário, de quaisquer dos níveis federativos, restam
absorvidos pela expressão.".(destacamos).
Nem se afirme que só caberia a
argüição em face de atos do Poder Judiciário enquanto administrador público.
Não. Na realidade, ontologicamente já se disse com acerto que a atividade
Administrativa em muito pouco se difere da Judicial. Ambas têm por fim a
aplicação da lei e a prevenção ou resolução de conflitos intersubjetivos.
Seja por meio de um ato de natureza judicial ou mesmo
através de ato de cunho administrativo, tem o Poder Judiciário o dever de
respeitar os preceitos fundamentais da Constituição, não estando imune a tal
obrigação.
É evidente que cabe a ressalva já
feita. Se a sentença é recorrível, o meio próprio de impugnação à mesma serão
os recursos previstos no ordenamento jurídico, por isso mesmo a Lei da Argüição
expressamente consignou que a ADPF é regida pelo princípio da subsidiariedade.
Agora, quanto à coisa julgada
inconstitucional, verifica-se perfeitamente a possibilidade de cabimento de
ADPF para seu controle, até porque não existem recursos contra a mesma, nem é
passível de mandado de segurança, consoante clássico entendimento (súmula n.º
268 do STF, datada de 16/12/1963).
4.2. Princípio da subsidiariedade.
Está expresso o princípio da
subsidiariedade da ADPF na Lei da respectiva regulamentação quando a mesma
estabelece:
"Art. 4.º (...)
§ 1o Não será admitida argüição de
descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz
de sanar a lesividade."
A norma tem o objetivo justamente
de impedir a miscigenação entre o processo objetivo representado pela ADPF e
uma lide (ou lides) em discussão na via difusa, evitando-se o uso da ADPF como
apenas um recurso a mais, dentro do sistema.
Temos que a ADPF é incompatível
com impugnação a decisões judiciais provisórias, como as que concedem medidas
de natureza antecipatória ou cautelar, pois não se trata de recurso nem
substitui os recursos previstos no CPC.
Perceba-se que a hipótese é
diferente no caso da coisa julgada inconstitucional, contra a qual, a
princípio, não existe meio eficaz.
É certo que vimos acima que poderá
caber ação rescisória, entretanto, sabe-se que corrente significativa da
doutrina não enxerga a possibilidade de uso da rescisória após dois anos do
trânsito em julgado da decisão inconstitucional.
Restaria, assim, a ação
declaratória de natureza ordinária desconstitutiva de sentença.
Aqui parece evidente que mesmo que
caiba a ação declaratória desconstitutiva, a qual, logicamente sempre será
cabível à luz do princípio constitucional da inafastabilidade do controle
jurisdicional (CF, art. 5.º, XXXV), tal fato não impede o uso da ADPF, porque
senão daria-se ao princípio da subsidiariedade um conteúdo que conduziria à
conclusão de que a ADPF nunca seria cabível!
É que sempre poderá qualquer cidadão brasileiro dirigir-se ao
Judiciário exercendo o seu direito autônomo e abstrato de ação, inclusive
através de ação ordinária com pedido de tutela antecipada.
Mas isso, logicamente, isso não
pode impedir a via da ADPF para corrigir a violação a preceito fundamental
perpetrado por uma sentença inconstitucional trânsita em julgado.
Não chegamos aqui data venia, tal
como o Preclaro Ministro Gilmar Ferreira Mendes (21), a ver na ADPF um meio de
controle hábil a barrar a chamada "guerra de liminares" e concentrar
no STF a defesa da Constituição em certas demandas de massas que geralmente têm
a Fazenda Pública como ré, quando presente interesse público relevante.
Temos, ao contrário, que a ADPF
via de regra deve depender do esgotamento das instâncias ordinárias, exatamente
como ocorre com a coisa julgada já formada. O contrário, transformaria na
prática a ADPF num recurso a mais, o que seria extremamente indesejado e
contrário aos atuais reclames da sociedade, justamente pela diminuição racional
dos meios recursais.
4.3. O conceito de "preceito
fundamental".
A esta altura, cabe uma indagação:
o que seria preceito fundamental?
A resposta não é simples e para o
esgotamento da controvérsia exigiria um trabalho autônomo para tal fim, de
sorte que preferimos a definição sintética e casuística de Uadi Lammêgo Bulos
(22):
"Podem ser considerados
preceitos fundamentais, as diretrizes insculpidas no pórtico do art. 1.º da
Constituição de 1988, quais sejam, a soberania, a cidadania, a dignidade da
pessoa humana, os valores sociais do trabalho, da livre iniciativa, do
pluralismo político. Outro exemplos podem ser listados: o princípio republicano
(art. 1.º, caput), princípio da separação dos Poderes (art. 2.º), princípio
presidencialista (art. 76), princípio da legalidade (art. 5.º, II), princípio
da liberdade (art. 5.º, IV, VI, IX, XIII, XIV, XVII, etc), princípio da
inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5.º, XXXV), princípio da
autonomia das entidades federadas (arts. 1.º e 18), princípio do juiz e do
promotor natural (art. 5.º, XXXVII e LIII), princípio do devido processo legal
(art. 5.º, LIV), princípio do contraditório (art. 5.º, LV), princípio da
publicidade dos atos processuais (art. 5.º, LX, e 93, IX), princípio da
legalidade administrativa (art. 37, caput), princípio da impessoalidade (art.
37, caput), princípio da moralidade (art. 37, caput), princípio da publicidade
(art. 37, caput), princípio da ocupação de cargos através de concurso público
(art. 37, II), princípio da prestação de contas (arts. 70, parágrafo único, 34,
VII, d, e 35, III), princípio da independência funcional da magistratura (arts.
95 e 96), princípio da capacidade contributiva (art. 145, III), princípio da
defesa do consumidor (art. 170, IV), princípio da autonomia universitária (art.
207), etc)."
Pode-se afirmar que "preceito
fundamental" são as vigas mestras do Texto Constitucional, são os comandos
com conteúdo principiológico que emanam conseqüências várias para o ordenamento
jurídico.
Em conclusão, pode-se defender que
"preceitos fundamentais" são, assim, aquelas disposições que não se
encerram em si mesmo (meras regras), mas que originam conseqüências na atuação
do Estado, seja enquanto Administrador Público, enquanto Juiz, ou enquanto
agente repressor da violência.
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5. Conclusões.
Restaria apenas afastar um
argumento que certamente se apresentará contra a tese aqui defendida do
cabimento da ADPF como meio de controle de coisa julgada inconstitucional
violadora de preceito fundamental, qual seja, o de que tal uso configuraria
violação ao princípio da segurança jurídica decorrente da coisa julgada e do
papel de pacificação social que a mesma em tese exerce.
Na verdade, a problemática não
seria contra a tese do presente trabalho, mas sim contra a própria tese da
coisa julgada inconstitucional, porque a alegação pura e simples de segurança
jurídica acima de qualquer outro valor acabaria por inviabilizar a tese da
invalidade da coisa julgada formada com vício de constitucionalidade.
O fato é que a coisa julgada
formada em contrariedade à Carta Política não cumpre sua função. Não gera
pacificação social porque a pecha da inconstitucionalidade lhe atinge em ponto
fundamental, gerando muitas vezes sim revolta e desprestígio ao Poder
Judiciário.
Na prática, só tomando com exemplo
a Administração Pública, o que se tem visto é que aquele detentor de um título
inconstitucional é visto como um privilegiado, como alguém que espertamente
conseguiu algo que outros não conseguiram, ou seja, alguém que fez valer a
"lei de Gerson" e atingiu o seu fim e que fruto ou não da imaginação
popular possui "um padrinho forte" por trás, como se diz usualmente.
Por vezes, dentro de uma mesma
repartição pública, lado a lado executando o mesmo trabalho, têm-se servidores
públicos com salários totalmente diferentes, em face de um ter conseguido um
benefício por meio de sentença transitada em julgado.
Um exemplo é a questão do "teto remuneratório",
na qual são incontáveis as injustiças e absurdos causados por sentenças,
especialmente aquelas que asseguram "incorporações" ou que na prática
acabam ocasionam um vedado "efeito repicão".
Data venia, o valor segurança jurídica e a conseqüente força de
encerrar o litígio, não pode servir de pretexto para a eternizarem-se
injustiças e ferir-se o princípio da isonomia, entre outros.
Mais uma vez, valemo-nos do
magistério dos mestres que primeiro enfrentaram a problemática da coisa julgada
inconstitucional e refutaram a invocação da segurança jurídica, entre eles,
destacam-se os argumentos de José Augusto Delgado (23), quando leciona que
"a injustiça, a imoralidade, o ataque à Constituição, a transformação da
realidade das coisas quando presentes na sentença viciam a vontade
jurisdicional de modo absoluto, pelo que, em época alguma, ela transita em
julgado. Os valores absolutos da legalidade, moralidade e justiça estão acima
do valor segurança jurídica. Aqueles são pilares, entre outros, que sustentam o
regime democrático, de natureza constitucional, enquanto este é valor
infraconstitucional oriundo de regramento processual."
Calha o registro, todavia, mais
uma vez, de que não se quer aqui defender o uso indiscriminado de ADPF’s contra
sentenças transitadas me julgado, como se fora a argüição uma última tentativa
de modificação do acórdão, um recurso a mais. Não.
É preciso ficar claro que a coisa
julgada com o vício da inconstitucionalidade não é a regra, muito pelo
contrário, são situações pontuais.
Esse caráter extraordinário da
desconstituição de coisa julgada marcada pela inconstitucionalidade é citado
por doutrinadores como Cândido Rangel Dinamarco (24), com o qual encerramos o
nosso trabalho:
"Propõe-se apenas um trato
extraordinário destinado a situações extraordinárias com o objetivo de afastar
absurdos, injustiças flagrantes, fraudes e infrações à Constituição – com a
consciência de que providências destinadas a esse objetivo devem ser tão
excepcionais quanto é a ocorrência desses graves inconvenientes. Não me move o
intuito de propor uma insensata inversão, para que a garantia da coisa julgada
passasse a operar em casos raros e a sua infringência se tornasse regra
geral."
Enfim, a nossa juízo, mostra-se
plenamente compatível como objeto e com os fins do §1.º do art. 102 da CF o
utilização da argüição de preceito fundamental como meio para desconstituição
de coisa julgada violadora de preceito fundamental.
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Bibliografia.
1. Otero, Paulo Manoel Cunha da
Costa. "Ensaio sobre Caso Julgado Inconstitucional, Lisboa: Lex, 1993;
2. Delgado, José Augusto.
"Efeitos da Coisa Julgada e os Princípios Constitucionais");
3. Oliveira Lima, Paulo Roberto.
"Teoria da Coisa Julgada", Revista dos Tribunais, 199, pág. 112;
4. Dinamarco, Cândido Rangel.
"Relativizar a Coisa Julgada Material" – Revista da AGU, do Centro de
Estudos Victor Nunes Leal, Brasília: 2001;
5. Theodoro Júnior, Humberto.
Revista da AGU, do Centro de Estudos Victor Nunes Leal. Brasília: 2001;
6. Nascimento, Carlos Valder do
(organizador). "Coisa Julgada Inconstitucional", coordenada por
Carlos Valder do Nascimento, com a colaboração de Humberto Theodoro Júnior,
José Augusto Delgado, Juliana Cordeiro de Faria e Leonardo Faria Beraldo, ed.
América Jurídica – 3a. edição;
7. Simas, Fernando. A prova na
investigação de paternidade, ed. Juruá, 6ª. edição;
8. Tavares, André Ramos.
"Tratado da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental", ed.
Saraiva, 2001;
9. Bulos, Uadi Lammêgo.
Constituição Federal Anotada, ed. Saraiva, 4a. edição;
10. Moraes, Alexandre de. Direito
Constitucional, 7a. edição, ed. Atlas;
11. Mendes, Gilmar Ferreira.
Argüição de descumprimento de preceito fundamental: demonstração de
inexistência de outro meio eficaz. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 43, jul.
2000. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=236>.
Acesso em: 18 set. 2004.
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Notas
1 Frases relembradas por CÂNDIDO
RANGEL DINAMARCO, in "Relativizar a Coisa Julgada Material" – Revista
da AGU, do Centro de Estudos Victor Nunes Leal, Brasília: 2001.
2 Constante da obra "Coisa
Julgada Inconstitucional", coordenada por Carlos Valder do Nascimento, com
a colaboração de Humberto Theodoro Júnior, José Augusto Delgado, Juliana
Cordeiro de Faria e Leonardo Faria Beraldo, ed. América Jurídica – 3a. edição.
3 FERNANDO SIMAS, in A prova na investigação de paternidade,
ed. Juruá, 6ª. edição, págs. 69/70
4 Pág. 221, 3a. edição.
5 Disponível em
<www.stj.gov.br>. Acesso em 18 de setembro de 2004.
6 ADIn n.º 829-3/DF – Rel. Min. Moreira Alves; ADIn n.º 939-7/DF, entre outras
7"A Coisa Julgada
Inconstitucional e os Instrumentos Processuais para seu Controle".
Integrante da obra "Coisa Julgada Inconstitucional", coordenada por
Carlos Valder do Nascimento, com a colaboração de Humberto Theodoro Júnior,
José Augusto Delgado, Juliana Cordeiro de Faria e Leonardo Faria Beraldo, ed.
América Jurídica – 3a. edição.
8 OTERO, Paulo. Ensaio sobre o
caso julgado inconstitucional. Lisboa: Lex, 1993, p. 9.
9 No artigo "Coisa Julgada
Inconstitucional" integrante da obra com o mesmo título, coordenada pelo
citado autor, com a colaboração de Humberto Theodoro Júnior, José Augusto
Delgado, Juliana Cordeiro de Faria e Leonardo Faria Beraldo, ed. América
Jurídica – 3a. edição.
10 Neste sentido, STF – ADIN n.º
1.247-9/PA – medida liminar – Rel. Min. Celso de Mello, Diario da Justiça, 8 de
setembro d 1995, pág. 28354, citando a súmula 360.
11 Idem, pág. 108.
12 Neste sentido, é o ensinamento,
entre outros, de LUIZ GUILHEME MARINONI e SÉRGIO CRUZ ARENHART: "é
irrelevante saber a categoria da regra jurídica em discussão (se constitucional
ou infraconstitucional)", in Manual do Processo de Conhecimento, 3a.
edição, ed. RT, pág. 701.
13 Editora Saraiva, 2001.
14 Constituição Federal Anotada,
ed. Saraiva, 4a. edição, pág. 931.
15 Dados colhidos no site do STF,
em <www.stf.gov.br>. Acesso em 18 de setembro de 2004.
16 Idem.
17 Curioso é o fato de que mais de
10% do número total das ADPF’s em tramitação no STF (exatamente 08 – ADPF’s 21,
22, 23, 25, 27, 28, 30 e 31) são de autoria de uma pessoa física, de nome
Marcos Rogério Batista, cujas ações foram sistematicamente extintas, dada a
evidente ilegitimidade ativa, já que os legitimados para a ADPF são os mesmos
para a ADIN – art. 2.º, I da Lei n.º 9.882, de 3 de dezembro de 1999.
18 In Direito Constitucional, 7a.
edição, ed. Atlas, pág. 614. (Destacamos)
19 Constituição Federal Anotada,
ed. Saraiva, 4a. edição, pág. 932.
20 In Tratado da Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, ed. Saraiva, 2001, págs. 205 a 208.
21 MENDES, Gilmar Ferreira.
Argüição de descumprimento de preceito fundamental: demonstração de
inexistência de outro meio eficaz. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 43, jul.
2000. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=236>.
Acesso em: 18 set. 2004.
22 Obra citada, pág. 938.
23 "Efeitos da Coisa Julgada
e os Princípios Constitucionais". In Revista Virtual do Centro de Estudos
Victor Nunes Leal da AGU. <www.agu.gov.br>.
24 "Relativizar a Coisa
Julgada Material", fonte já citada.
* procurador do
Estado de Alagoas
Disponível em: <
http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6590>. Acesso em: 18 Abr.2005.