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A colisão entre princípios constitucionais em casos de liminares "inaudita altera partes".
As formas de solução. Análise de casos

José Henrique Mouta Araújo*

 

I- INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo discutir a eficácia dos princípios constitucionais da ampla defesa, contraditório e devido processo legal em face de decisões judiciais concedidas sem a audiência da parte contrária.

Destarte, uma das grandes preocupações quando do direito constitucional e mesmo do processual é a correta interpretação de seus princípios fundamentais, principalmente quando se analisam casos concretos, considerando a presença de indagações em relação a correta interpretação do texto constitucional visando a solução de eventuais colisões.

Com efeito, por diversas vezes o intérprete enfrenta situações onde se alega que determinada decisão judicial violou este ou aquele princípio constitucional. Aliás, no campo das tutelas de urgência essas indagações são ainda mais comuns.

É nesse aspecto que se elaborou o presente trabalho, com o intuito de colaborar na solução dos casos concretos envolvendo a interpretação dos princípios constitucionais em face das tutelas de urgência.

Destarte, essas tutelas emergenciais visam a superação do problema atinente ao binômio morosidade-efetividade, sendo um dos temas mais atuais no direito processual constitucional.

Com efeito, o resultado do processo deve assegurar à parte vitoriosa a efetividade da prestação jurisdicional, ou, como já afirmou Giuseppe Chiovenda:

"il processo deve dare per quanto è possibile praticamente a chi há un diritto tutto quello e proprio quello ch´égli diritto conseguire" (1).

Assim, a busca da efetividade passa, necessariamente, pelo enfrentamento das tutelas de urgência e sua aplicação em face do réu, posto que a Constituição Federal lhe assegura o acesso à justiça, o atendimento aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Nesse particular, enfrentar-se-á a seguinte indagação: será que as medidas liminares inaudita altera pars violam esses princípios?

Destarte, a constante preocupação com a questão do acesso à justiça, com o intuito de oferecer a todos os que lamentam uma pretensão em juízo, o direito a um ordenamento jurídico eficaz e, acima de tudo, ensejador da chamada justiça social passa necessariamente pelo enfrentamento da indagação acima.

Ademais, trazendo à lume o enfoque de Helmann Hassen (2), percebe-se que o Direito, que possui uma série de valores a serem alcançados, tem como valor fim ou valor precípuo a Justiça Social.

Enfim, é com vista a uma perspectiva crítica-contributiva, que será enfrentado o problema envolvendo a utilização efetiva do processo com uma forma de acesso à ordem jurídica justa, com com especial enfoque às liminares inaudita altera pars e os princípios constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

Não se trata de obra de fôlego, mas meras observações quanto a correta interpretação dos casos concretos envolvendo medidas liminares para que se posa alcançar a chamada ordem jurídica justa.

 

II- BREVE REFERENCIAL SOBRE OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Antes de se adentrar no ponto central do trabalho, cumpre fazer breve análise sobre o tema ‘princípios fundamentais’, com especial enfoque aos princípios do contraditório e devido processo legal.

Com efeito, esses princípios estão previstos na Carta Constitucional de 1988 no art. 5º, LIV e LV. Contudo, em muitos casos concretos, há aparente contradição - mera colisão entre os dois primeiros e o último (3).

Logo, observa-se que os princípios fundamentais devem ser analisados em seu conjunto, de acordo com uma interpretação em consonância com a concepção de Estado e de realidade social (4). Nesse aspecto, vale a pena transcrever as lições de Konrad Hesse:

"A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade" (5).

Destarte, deve o texto constitucional estar em consonância com a realidade social em que foi promulgado. Apenas à guisa de exemplificação, a sociedade vem mudando profundamente com o passar do tempo e, neste século XXI, deve o texto constitucional e a interpretação de seus princípios estar em consonância com tal realidade social. Há corrente doutrinária que afirma que a Constituição poderia ser meramente procedimental, cabendo-lhe apenas estabelecer as regras de funcionamento do processo político (6).

De outra banda, claro está que deve o intérprete fazer uso da deontologia para melhor aplicar os princípios fundamentais, principalmente considerando a sua função de organizar o sistema jurídico e adequá-lo à realidade social. Ademais, os princípios também têm o papel de orientar e direcionar a aplicação das regras jurídicas, já que possuem papel hierarquicamente superior, como restará comprovado posteriormente.

Aliás, Bockenford elenca, na obra já citada, várias teorias sobre os direitos fundamentais, aduzindo que:

"Este estado de cosas hace preciso que se haga consciente de modo general y expreso el nexo necesario, existente entre la teoria y la interpretación de los derechos fundamentales, y que se plante ela cuestión acerca de que diferentes teorias de los derechos fundamentales influyen actualmente en la interpretación de los derechos fundamentales influyen actualmente en la interpretación de los derechos fundamentales, y con que consecuencias para el contenido de los concretos preceptos de derechos fundamentales lo hacen. Esta cuestión solo se puede tratar aqui, ciertamente, en la forma de una vision de conjunto, con la limitacion a problemas ejemplificativos y con la evidente simplificacion que trae consigo un procedimiento tipificador" (7).

Percebe-se, portanto, que na correta interpretação dos princípios constitucionais, deve o intérprete atentar para alguns critérios visando dirimir as colisões existentes no dia-a-dia forense (8).

Esses critérios podem variar de acordo com cada caso concreto, devendo ser verifica cada circunstância dentro da realidade social discutida. Logo, nada impede em determinada hipótese a solução seja X, já em outra Z, sem que se possa falar em qualquer contradição, consideradas as circunstâncias isoladas de cada situação.

 

III- AINDA SOBRE OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS - O PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL EM ASPECTOS GERAIS

O princípio do devido processo legal está previsto em nosso texto constitucional, no art. 5º, LIV, com a expressão de que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

Contudo, pode-se mencionar como o marco de seu surgimento a Magna Carta Libertatum, de 1215, na Inglaterra, durante o reinado de João Sem Terra (9), com a denominação de due process of law.

O devido processo legal, ligado ao direito processual constitucional, assegura a todos os cidadãos, o direito ao chamado trinômio : vida, liberdade, patrimônio, com a observância de toda a sistemática processual (10). Aliás, processo justo, sentença justa e sem qualquer espécie de nulidade, apenas poderá alçada com o devido processo legal (11).

Não se pode negar o importante papel do Poder Judiciário nesse aspecto, considerando que se trata do principal guardião da liberdade, propriedade, liberdade e cidadania, em tudo observado o devido processo legal (12).

Evidente que, nesse importante papel de dirimir litígios, deve o Judiciário observar os princípios processuais constitucionais, dentre os quais o devido processo legal, sob pena de eivar a prestação jurisdicional de nulidade insanável. Destarte, o princípio da legalidade está atrelado ao princípio do devido processo legal (13) ao conceito de justiça (14).

De outra banda, não se pode negar que o due process of law mantém íntima ligação com os demais princípios processuais, como o contraditório, ampla defesa, etc. Nesse sentido, o Professor Nelson Nery Júnior chega inclusive a afirmar que:

"Em nosso parecer, bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as conseqüências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença justa. É, por assim dizer, gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies" (15).

Portanto, percebe-se claramente a colocação como raiz de todos os princípios processuais previstos na CF/88 o due process of law. Contudo, como restará posteriormente enfrentado no presente trabalho, em alguns casos concretos poderá ocorrer colisão entre este e o princípio do contraditório, ocasião em que a interpretação deverá enfrentar as diretrizes das chamadas ‘leis de colisão’.

Como demonstrado anteriormente, o devido processo legal é de importância fundamental para o atendimento aos demais princípios processuais, dentre os quais o da legalidade, ampla defesa e contraditório, sob pena de se comprometer a integridade e mesmo a justiça da decisão. Comumente o Poder Judiciário vem decretando nulidade processual em virtude do não atendimento ao devido processo legal (16).

Percebe-se, portanto, que nos processos judiciais e administrativos deve ser atendido o devido processo legal, sob pena de fulminá-los de nulidade insanável. E mais, a interpretação de tal princípio deve ser atinente à axiologia, em um sentido protetor (17).

Destarte, o devido processo legal é princípio basilar da atuação estatal no campo processual, assegurando e mesmo salvaguardando a proteção judicial para todos aqueles que lamentam pretensões em juízo através de um processo adequado e justo (18).

 

IV - PRINCÍPIOS E REGRAS - AS FORMAS DE SOLUÇÃO DAS COLISÕES E CONFLITOS

Até o presente momento, utilizou-se genericamente a expressão ‘princípios’. Contudo, cumpre estabelecer o correto enquadramento dos princípios e das regras, já que constituem um marco na teoria normativa dos direitos fundamentais (19).

Há uma série de elementos que auxiliam na diferenciação entre princípios e regras, dentre as quais pode-se destacar:

IV.A- Grau de generalidade

Os princípios possuem grau de generalidade, enquanto as regras possuem grau baixo de generalidade (grau de abstração relativamente reduzido) (20). Destarte, os princípios gozam de certa indeterminabilidade na aplicação ao caso concreto, enquanto as regras são suscetíveis de aplicação imediata (21).

Aliás, nesse aspecto, vale a pena citar os ensinamentos de Robert Alexy:

"Los principios son normas de un grado de generalidad relativamente alto, y las reglas con un nivel relativamente bajo de generalidad. Un ejemplo de una norma con un nivel relativamente alto de generalidad es la norma que dice que cada cual goza de libertad religiosa. En cambio, una norma según la cual todo preso tiene derecho a convertir a otros presos tiene un grado relativamente bajo de generalidad. Según el criterio de generalidad, se podría pensar que la primera norma podría ser clasificada como principio y la segunda como regla" (22).

Os princípios, portanto, fundamentam toda a ordem jurídica através do universo de valores, devendo ser utilizados para preencher as lacunas existes na lei, além de originarem outros princípios correlatos (23).

Ademais, ainda segundo as lições de Robert Alexy, os princípios e as regras, que fazem o conjunto de normas jurídicas, constituem condutas, permissões e mandamentos, fazendo parte do chamado juízo do dever ser (24).

De outra banda, deve-se observar que, ocorrendo choque entre princípio e regra, aquele deve prevalecer, ao passo que se o caso envolver colisão entre princípios, a solução passará pelo exame da lei de colisão (25).

IV.B- Os princípios são mandatos de otimização - diferenças quanto a qualidade

Além do aspecto da generalidade, outra diferença importante entre princípios e regras diz respeito ao fato de que aqueles configuram ordem, e devem ser atendidos, enquanto as regras devem ser cumpridas ou não.

Com efeito, os princípios constituem ordem, não deixando margem para descumprimento. Nos casos onde ocorrer colisão entre princípios, deve-se interpretá-los para se alcançar a solução do caso concreto, mas jamais desatendê-los (26). Portanto, havendo conflito entre regras, o problema será resolvido no campo da validade, enquanto que ocorrendo colisão entre princípios, a solução envolverá cada caso concreto, considerando a necessidade de preponderância de um sobre o outro dentro de um juízo de ponderação (27).

Com isso, percebe-se que os princípios permitem o balanceamento de valores e interesses, consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes. As regras, por sua vez, não deixam margem para outra solução (28).

Ainda visando comprovar a imperatividade do princípio, vale a pena transcrever o posicionamento de Rui Portanova:

"Logo, os princípios não são meros acessórios interpretativos. São enunciados que consagram conquistas éticas da civilização e, por isso, estejam ou não previstos em lei, aplicam-se cogentemente a todos os casos concretos" (29).

Pelo exposto, percebe-se que quanto às regras, há possibilidade de melhor interpretá-las no campo da validade, já quanto aos princípios há a imperatividade na sua observância. Aliás, apenas exemplificando, no campo do direito processual civil recentemente houve a alteração no art. 588, deixando claro em seu caput que se trata de regras e não princípios - como mencionava a redação anterior - envolvendo a execução provisória de sentença, tanto que em seu parágrafo segundo contém exceções à sua aplicação (30).

Após breves considerações acerca dos critérios para identificação e diferenciação entre princípios e regras, cumpre a partir do presente momento enfrentar as diretrizes envolvendo as hipóteses de colisões entre princípios nos casos envolvendo tutelas de urgência e os meios para solucioná-las.

 

V- A COLISÃO ENTRE PRINCÍPIOS E OS MEIOS DE SOLUÇÃO - A IMPORTÂNCIA DA CORRETA INTERPRETAÇÃO

Antes de se enfrentar casos concretos envolvendo as chamadas regras de colisão, deve-se fazer uma afirmação inicial: os princípios se correlacionam e se interagem. De acordo com o caso concreto, deve o intérprete dar privilégio a um em detrimento de outro, caso ocorra eventual colisão, dentro de um juízo de ponderação. Por outro lado, não pode, jamais, desatender ou violar um princípio, sob pena de colocar em risco a integralidade do sistema jurídico (31).

Com efeito, há uma conjugação dos objetivos previstos em cada princípio, para que se escolha qual será prevalente em determinado caso concreto (32).

Em determinados casos concretos, poderá existir conflito entre regras e colisões entre princípios. No primeiro caso, a solução caminha pela cláusula de exceção - pela análise quanto a validade, enquanto no segundo a solução caminha pelas regras de colisão (33).

Mesmo não sendo o objeto principal do presente trabalho a discussão quanto aos conflitos entre regras, vale a pena lançar alguns comentários.

Com efeito, existindo conflito entre regras, a solução passa pela chamada cláusula de exceção, que poderá declarar inválida uma das regras conflitantes, passando pelos critérios cronológico ou hierárquico (34).

Percebe-se, portanto, que quando duas regras estão em confronto, uma delas é expurgada do sistema, abrindo-se a cláusula de exceção. O mesmo não ocorre com as colisões entre princípios, já que há a necessidade de correta interpretação e valoração, sem que isso signifique qualquer exclusão (35).

Destarte, em casos de colisão entre princípios, deve-se alcançar um raciocínio envolvendo a precedência condicionada - dando mais relevância de um princípio sobre outro. Contudo -- vale ratificar -- isso não significa expurgar um princípio, mas apenas dar prevalência a outro, em determinado caso concreto, aplicando-se os critérios valorativos (36).

Ronald Dworkin, em obra clássica, analisa com profundidade os casos de integridade no direito, abordando um exemplo envolvendo acidente de trânsito e o cabimento de indenização. Após enfrentar as diversas soluções que poderiam ser encontradas, apresenta o critério da subordinação como solução para o problema. Afirma que:

"Em minha opinião, a melhor maneira de fazer isso consiste em subordinar o primeiro princípio ao segundo, pelo menos nos casos de acidentes de automóveis em que o seguro de responsabilidade seja possível de obter, junto à iniciativa privada, em termos razoáveis. Faço essa escolha porque acredito que, embora cada um dos dois princípios seja atraente, o segundo é mais poderoso em tais circunstâncias (37)".

Evidente que, para se alcançar a solução para determinado caso concreto onde ocorra colisão entre princípios, deve-se buscar a lei de colisão, através de uma argumentação jurídica plena e justa. Aliás, como exemplo pode-se citar a liberdade de imprensa em contraponto com o direito de imagem.

Nesse prisma, necessário indagar: até que ponto a liberdade de imprensa e de informação devem prevalecer sobre o direito à imagem do indivíduo, nos casos envolvendo apuração de ato ilícito? A resposta a esta indagação não é simples e deve passar, necessariamente, pela valoração entre os princípios e a aplicação da lei de colisão, concluindo-se pelo princípio de maior peso.

Aliás, Robert Alexy cita um exemplo interessante sobre a liberdade de imprensa. Trata-se de um caso envolvendo um programa de televisão que iria explorar um documentário sobre o assassinato de soldados em Lebach. Contudo, uma pessoa que havia sido condenada por cumplicidade neste crime estava na iminência de deixar a prisão, e a referida reportagem iria publicar fotos suas e, por certo, prejudicar seu reengajamento social (38).

No caso em questão, há clara colisão entre princípios, chegando o Tribunal local a impedir a publicação da película. Destarte, com a divulgação da reportagem iriam ocorrer danos talvez insuperáveis ao cidadão que estava na iminência de sair da prisão, dificultando sua socialização e criando preconceitos injustificáveis.

Logo, a melhor interpretação para o caso concreto passou necessariamente pela discussão quanto a importância da matéria jornalística; a sua atualidade; o direito de informação, e o direito de reengajamento social do ex-presidiário, etc.

Enfim, para se alcançar a solução ao caso concreto, deve o intérprete fazer a melhor interpretação, sendo que isso não significa a extirpação de um princípio, mas apenas uma ponderação valorativa. Nada impede que em outra hipótese, o princípio a ter maior peso é o que, no caso anterior, foi afastado, considerando a ocorrência do chamado jogo de princípios (39).

 

VI - AS LIMINARES INAUDITA ALTERA PARS E OS PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO - A NECESSIDADE DE PONDERAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

A partir do presente momento, mister é enfrentar o pano de fundo do presente trabalho - a análise do cabimento de decisões inaudita altera pars (medidas acautelatórias ou antecipatórias (40)) e a eventual existência colisão entre alguns princípios constitucionais do processo.

Não se deve olvidar que existem vários princípios constitucionais processuais, dentre os quais o devido processo legal (41), ampla defesa, contraditório (42) e mesmo o acesso à justiça. Por essa razão, comumente se indaga se as medidas liminares constituem violação aos princípios constitucionais do processo, principalmente em relação ao réu que, antes mesmo de ser citado para apresentar defesa, é instado a adotar determinada conduta, em atendimento à determinação judicial initio litis.

Como restou claro nos capítulos anteriores, não há que se falar em violação a princípio, e sim análise visando uma correta valoração, dentro da chamada lei de colisão.

Contudo, existem casos concretos onde se pode observar clara colisão entre princípios constitucionais, como nas hipóteses envolvendo as ‘tutelas de urgência’.

Com efeito, utilizar-se-á como exemplo uma demanda cominatória, onde o autor pretende medida liminar para obstar a publicação de matéria na imprensa, com fundamento nos arts. 287 e 461, parágrafo 3º do Código de Processo Civil. O autor será chamado hipoteticamente de José e o réu Jornal X.

O jornal, por hipótese, já possui totalmente editada e pronta para divulgação matéria jornalística que irá causar prejuízos financeiros e morais à José (suposto comerciante).

O demandante, sabedor do conteúdo da matéria e visando comprovar a falta de veracidade da reportagem, propõe demanda declaratória com base nos arts. 5º, 282, 287 e 461 do CPC, requerendo tutela antecipada para que seja determinada conduta negativa ao réu, antes mesmo de sua citação, fundamentada no parágrafo 3º do último artigo citado.

As principais questões que serão enfrentadas pelo julgador são: a liminar antes da citação do réu violará os princípios da ampla defesa e contraditório; não seria adequado e correto deixar publicar a matéria e, após, solucionar o litígio mediante indenização pelos danos eventualmente causados? Qual a saída para o julgador, proteger a liberdade de imprensa - com a publicação da reportagem, ou o direito individual do autor?

In casu, é mister observar que há clara colisão entre disposições constitucionais quando se contrapõe a liberdade de imprensa com o direito individual (43).

Mais uma vez é necessário indagar: a liminar requerida pelo autor viola os princípios da ampla defesa e contraditório, devendo apenas ser concedida (se for o caso) após a resposta do réu? Particularmente, entende-se que não, inclusive considerando os principais objetivos da tutela inibitória, os quais serão ratificados posteriormente.

Contudo, não se pode deixar de aduzir que o problema em questão também enfrenta a colisão entre os princípios do devido processo legal, efetividade da prestação jurisdicional e mesmo o acesso à justiça (considerando que de nada servirá a apreciação da tutela de urgência após a publicação da matéria jornalística) de um lado e de outro os princípios do contraditório e ampla defesa, razão pela qual merece item específico.

VI.A- As liminares e os princípios constitucionais - análise de casos concretos

Como se mencionou anteriormente, o tema tutela antecipada sempre causou profunda divergência de interpretação, inclusive quanto ao momento de cabimento. O Tribunal de Justiça de Mato Grosso, na decisão a seguir transcrita, entendeu que:

"TUTELA ANTECIPATÓRIA - Pretensão de concessão da medida antes da citação do réu - Inadmissibilidade ressalvada a hipótese do art. 461, parágrafo 3º do CPC - Necessidade de preenchimento de todos os requisitos elencados no art. 273 também do CPC.

Em princípio, não existe previsão de outorga da tutela antecipada, antes da citação do réu, com exceção da hipótese prevista no art. 461, parágrafo 3º, do CPC. Não se deve confundir a tutela antecipada, que adentra no âmago da questão com as medidas cautelares, que a garantia da efetividade do processo. Em homenagem à garantia do devido processo legal, a antecipação só será viável ante o preenchimento de todos os requisitos elencados no art. 273 do CPC, em casos excepcionalíssimos, onde se faça necessária a antecipação provisória" (TJMT - 1ª Câmara - Ai n. 6.849, julgamento em 24.02.97, rel. Dês. Salvador Pompeu de Barros Filho - RT 743/97).

O voto do relator caminha no sentido de somente admitir a concessão da tutela de urgência inaudita altera parte em casos absolutamente excepcionais, como os ligados à vida e à saúde.

Ora, considerando que o problema colocado como paradigma envolve o direito à imagem e a proteção à honra, será que seria possível a concessão de tal medida de urgência?

Utilizando um primeiro raciocínio axiológico, a colisão entre princípios caminhará no sentido de indeferimento da tutela de urgência, sob o argumento da liberdade de imprensa e da possibilidade de ressarcimento posterior dos danos causados. O intérprete teria que enfrentar os seguintes aspectos, com a relação de precedência (44): a) Quais os princípios envolvidos no problema? b) Quais serão os maiores prejuízos: o da empresa que já elaborou a matéria que está pronta para divulgação, o da liberdade de imprensa, o da sociedade de ser corretamente informada ou o do autor de evitar danos à sua imagem, honra, etc; c) Existe possibilidade de ressarcimento dos danos eventualmente causados ao autor após a publicação da matéria, acaso comprovada sua irregularidade?

Assim, poderá o intérprete chegar a conclusão quanto ao cabimento ou não da tutela antecipada requerida na exordial. Utilizando tal raciocínio, poderá concluir pelo seu incabimento, dando prevalência ao princípio da ampla defesa e contraditório (45), sob o argumento de que os danos eventualmente causados poderão ser ressarcidos posteriormente.

Contudo, mais uma vez é necessário ressaltar que, sob o aspecto do correto andamento processual, esta não seria a solução mais adequada à solução da questão, como se passa a demonstrar:

Com efeito, mais uma vez interpretando o problema já apresentado entre José e o Jornal X, a concessão de medidas liminares inaudita altera pars apenas poderá ocorrer em casos excepcionais, desde que comprovados os requisitos do art. 461, parágrafo 3º. Logo, para conseguir impedir a publicação da reportagem, deverá comprovar todos os requisitos ensejadores da tutela de urgência de não fazer inibitória.

Por outro lado, importante destacar que a decisão initio litis não estará violando os princípios do contraditório / ampla defesa, mas apenas fazendo o exercício de valoração, visando encontrar a correta aplicação da lei de colisão. No problema colocado, portanto, o julgador deveria verificar se os requisitos da probabilidade e da urgência estão presentes, hipótese em que deverá conceder a tutela de urgência inibitória.

Necessário ressaltar que as tutelas antecipatórias são concedidas em regra diante de cognição sumária e são revogáveis, sendo mais uma razão que corrobora com a afirmação de que não viola o princípio do contraditório e da ampla defesa.

Essa matéria não é nova no âmbito doutrinário e mesmo jurisprudencial (46). Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco ensinam que:

"O contraditório não admite exceções: mesmo nos casos de urgência, em que o juiz, para evitar o periculum in mora, provê inaudita altera parte (CPC, arts. 929, 32, 937, 813 ss.), o demandado poderá desenvolver sucessivamente a atividade processual plena e sempre antes que o provimento se torne definitivo" (47).

Ademais, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery aduzem que:

"Liminar sem a ouvida do réu. Quando a citação d réu puder tornar ineficaz a medida, ou, também, quando a urgência indicar a necessidade de concessão imediata da tutela, o juiz poderá fazê-lo inaudita altera pars, o que não constitui ofensa, mas sim limitação imanente do contraditório, que fica diferido para momento posterior do procedimento" (48).

Com efeito, deve-se verificar, em determinado caso concreto, a presença dos requisitos da tutela de urgência. Nas hipóteses envolvendo tutela inibitória, deve o intérprete ter maior cuidado na apreciação dos requisitos, considerando o fato de que pretende o litigante evitar a ocorrência do dano, exatamente como ocorreu no exemplo discutido no presente trabalho, onde José pretende evitar a divulgação de reportagem supostamente danosa à sua imagem e honra. Logo, o direito a uma decisão justa passa, necessariamente, pela não divulgação da matéria, evitando-se um dano muito maior (49) (50) e jamais recuperável in natura.

Por fim, cumpre enfrentar a terceira solução envolvendo o problema posto, que passa pela afirmação de cabimento da tutela de urgência antes da citação do réu, sem que se possa falar em violação ao contraditório ou ampla defesa.

Antes de se apresentar toda a justificativa teórica do presente entendimento, deve-se transcrever a seguinte decisão:

"PROCESSUAL CIVIL - ADMINISTRATIVO - POSSIBILIDADE - ANTECIPAÇÃO DE TUTELA - SEM PRÉVIA AUDIÊNCIA DO RÉU - GRAU DE RECURSO - PRERROGATIVA DO PODER GERAL DO JUIZ - PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS DO ART. 273 DO CPC.

1.A lei não estabeleceu um momento preclusivo para a antecipação da tutela, podendo a mesma ser concedida a qualquer momento, mesmo em grau de recurso, bastando, para tanto, que seja necessária.

2.Antecipação parcial da tutela concedida, em razão da demonstração da prova inequívoca da verossimilhança da alegação, aliada ao receio de dano irreparável, que poderia ser causado à requerente, em ter os débitos em discussão inscritos em Dívida Ativa, bem como seu nome incluído no CADIN, passível, ainda de uma execução fiscal por parte da União Federal / Fazenda Nacional.

3.Inexiste violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa, em conceder tutela antecipada, inaudita altera pars, diante da prerrogativa do poder geral do juiz de determinar as medidas provisórias que julgar adequadas.

4.Negado provimento ao agravo interno, Mantida inalterada a r. decisão agravada"(TRF 2ª. Região. Ac - Apelação Cível - 146894. Processo 9702283639 - RJ - 3ª Turma - Relator Juiz Francisco Pizzolante - Data da decisão 02/10/2002. DJU de 28.10.2002).

A grande questão que se coloca é o relacionamento entre as tutelas de urgência e o direito ao contraditório. Como destacado anteriormente, há colisão entre princípios constitucionais, devendo o intérprete utilizar as leis de colisão e aplicar aquele que deve prevalecer em determinado caso concreto.

A partir da reforma que ocorreu em 1994, no Código de Processo Civil, o tema ‘tutela antecipada’ passou a ficar democratizado em todo o processo de conhecimento, desde que presentes os requisitos presentes do art. 273. Contudo, estando presente o requisito negativo - perigo de irreversibilidade - a conduta deverá ser no sentido de negar a tutela de urgência, sob pena de violar o contraditório, conforme previsão expressa do art. 273, parágrafo segundo da legislação adjetiva.

Por outro lado, o grande objetivo da tutela antecipada foi acelerar a marcha procedimental (51),considerando que o fator tempo é um dos maiores obstáculos à efetividade do processo.

Com efeito, a sistemática da tutela antecipada objetivou exatamente, mediante pronunciamento satisfativo, enfrentar o fator tempo de duração da litispendência, permitindo a obtenção de um resultado positivo até mesmo sem a audiência da parte contrária, o que por certo diminui as frustrações e as incertezas decorrente da demora na prestação jurisdicional (52). O raciocínio leva a uma só conclusão: a tutela antecipada tem como maior objeto o alcance da efetividade do processo e o acesso à justiça.

Aliás, cumpre nesse momento fazer breve transcrição dos Professores Mauro Cappelletti e Bryant Garth acerca do conceito de acesso à justiça:

"A expressão ‘acesso à justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico - o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos" (53).

É no aspecto do resultado justo e breve é que se permite concessão de medidas de urgência sem a audiência da parte contrária. Aliás, dentro dos chamados novos direitos, o acesso à justiça ganha cada vez maior espaço, devendo ser observado, em cada caso concreto, se estão ou não presentes os requisitos ensejadores da tutela de urgência.

Ademais, a decisão acima transcrita também serve para se observar que não existe qualquer discricionariedade na concessão da tutela antecipada. Deve o julgador verificar se estão presentes os requisitos positivos e se há ou não o perigo de irreversibilidade (óbice à concessão da medida emergencial).

Portanto, se no caso concreto houver a comprovação dos requisitos previstos na legislação adjetiva, a tutela antecipada deve ser concedida, inexistindo qualquer juízo de discricionariedade ao julgador. Nesse sentido, vale mais uma vez citar Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery:

"Concessão da liminar. Embora a expressão ‘poderá’, constante no CPC 273, caput, possa indicar faculdade e discricionariedade do juiz, na verdade constitui obrigação, sendo dever do magistrado conceder a tutela antecipatória, desde que preenchidos os pressupostos legais para tanto, não sendo lícito concedê-la ou negá-la pura e simplesmente" (54).

No mesmo sentido, entende José Carlos Baptista Puoli:

"A contrário do que sugere a utilização do verbo poderá no caput do art. 273 do Código de Processo Civil, a decisão a respeito da concessão da tutela antecipada nada tem de discricionária, pois, como visto quando se tratou de forma genérica da questão dos conceitos indeterminados, o ato de preenchimento dos conceitos de prova inequívoca, verossimilhança, etc., não corresponde a ato integralmente livre do juiz, o qual deverá, à luz das circunstâncias do caso concreto, e dos elementos extraídos da doutrina e dos precedentes jurisprudenciais dizer o direito no caso concreto (lembrando-se que o direito não admite a indicação de duas soluções para o caso concreto, entre as quais o juiz poderia livremente escolher uma" (55).

Já José Roberto dos Santos Bedaque ensina que:

"Não tem o juiz, portanto, mera faculdade de antecipar a tutela. Caso se verifiquem os pressupostos legais, é seu dever fazê-lo. Existe, é verdade, maior liberdade no exame desses requisitos, dada a imprecisão dos conceitos legais. Mas essa circunstância não torna discricionário o ato judicial" (56).

Pois bem. A partir da observação da presença dos requisitos da concessão das tutelas de urgência, sem a audiência da parte contrária, deve o julgador ponderar os princípios constitucionais em colisão: efetividade (rapidez - brevidade) do processo, devido processo legal e acesso à justiça, de um lado, e contraditório e ampla defesa, de outro.

Hodiernamente, várias decisões vêm reconhecendo que as medidas liminares não violam, mas simplesmente adiam o exercício do contraditório. Além da citada anteriormente, vale mencionar mais algumas, deixando claro que o assunto em questão é atual e condiz com a necessidade de ponderação entre princípios constitucionais:

"ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. REAJUSTE DE 11,98%. NÃO CABIMENTO. PRELIMINAR DE OFENSA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. REJEITADA.

1.A possibilidade de concessão de liminar, inaudita altera parte, não atenta contra as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Preliminar rejeitada.

2.É partir o entendimento, das Primeira e Segunda Turmas deste Tribunal, de que, em hipóteses como a em causa, além de não se fazerem presentes os requisitos estabelecidos pelo art. 273 do Código de Processo Civil, obsta a antecipação da tutela a norma inscrita no art. 1º da Medida Provisória nº 1.570/97, convertida na Lei nº 9.494/97.

3.Agravo provido"(Tribunal Regional Federal da 1ª Região - Agravo de Instrumento 01000649650 - Processo 199701000649650/MG - 2ª Turma - Relator José Carlos Moreira Alves - DJ de 01.02.1999).

Em seu voto, corretamente registrou o relator que:

"O instituto da tutela antecipada não atenta contra a garantia de acesso ao Poder Judiciário, nem contra o princípio do contraditório e da ampla defesa. Nos termos em que foi introduzida no Código de Processo Civil a tutela antecipada pode ser pleiteada no processo de conhecimento e para sua concessão, no caso do inciso I do art. 273 do CPC, inclusive inaudita altera parte, devem estar presentes três requisitos indispensáveis: prova inequívoca, verossimilhança da alegação; e o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Esse último requisito, a me ver, é que determinará ou não a possibilidade e, conseqüentemente, a legitimidade da concessão in limine da medida.

O argumento de que a antecipação de tutela sem oitiva da parte contrária é inconstitucional, por ofensa ao princípio do contraditório, soa desarrazoada, porquanto, a admitir-se sua procedência, ter-se-ia de entender coactada, no próprio ordenamento jurídico, a possibilidade de existência de medida dessa natureza".

Em outra decisão, assim entendeu o Tribunal Regional Federal da 3ª. Região:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. FGTS. SAQUE. PRELIMINAR DE LEGITIMIDADE AD CAUSA E INFRINGÊNCIA AOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. LEI 8036/90. PERDA DO OBJETO.

1.Preliminar de legitimidade `ad causam` rejeitada tendo em vista que a mesma deverá ser analisada nos autos da ação principal, não cabendo fazê-lo em recurso de agravo de instrumento.

2.Preliminar de infringência aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa rejeitada pois é discrição do magistrado conceder a liminar inaudita altera pars, não constituindo desrespeito aos princípios citados.

 

*mestre e doutorando em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Pará, procurador do Estado do Pará, advogado, professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da UNAMA, CESUPA e FACI

 

Retirado de: http://www1.jus.com.br/doutrina