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A (DES)REGULAMENTAÇÃO DOS
DIREITOS SOCIAIS A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
José
Ricardo Caetano Costa
SUMÁRIO
1. À Guisa de Introdução
2. Delimitando Conceitos
3. Mundialização, Neoconservadorismo e (Des)regulamentação dos Direitos Sociais
4. O Processo Constituinte e a Constituição de 1988: os direitos e as conquistas sociais
5. As Reformas da Constituição Federal: movendo a roda da História para trás
6. Resistência e Luta: alternativas e perspectivas
7.
Referências
Bibliográficas
1. À Guisa de Introdução
Pretendo, nesta incursão, analisar o desmonte dos
Direitos Sociais tendo a Constituição Federal de 1988 como referencial. Isto
porque foi justamente a partir da CF\88 que se inaugurou uma nova fase de nosso
constitucionalismo e, por que não dizer, de nossa política social.
Já no Título I,
sobre os Princípios Fundamentais, encontramos eleitos como princípios básicos a
elevação da dignidade da pessoa humana, dos valores do trabalho, e o pluralismo
político (art. 1º), sendo objetivos fundamentais desta República a “construção
de uma sociedade livre, justa, solidária” (art. 3º, I); erradicação da pobreza e
da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e, também, das
desigualdades regionais (art. 3º, III).
Para,
justamente, compreender o processo de elaboração desta Constituição extremamente
principiológica e garantista, entendo ser indispensável situar o contexto ou os
contextos em que foi elaborado o Texto Constitucional (analisado no item 4),
sendo precedido, porém, por uma incursão um tanto quanto minuciosa sobre as
idéias neoliberais ou neoconservadoras, bem como sobre o processo denominado de
globalização, ou mundialização do capital, como preferi denominar. Penso, neste
talvegue, que o Direito, enquanto um conjunto de normas e princípios que regem
um povo em um momento histórico determinado, está inserido neste processo,
fazendo parte, querendo-se ou não, deste contexto.
Mas por que
estes direitos sociais2 foram
dissipando-se, alguns mais lentamente, outros com uma velocidade maior? Por que,
logo após o começo da vigência da CF/88, foi empregado um discurso mais ou menos
uniforme, preconizando sua impossibilidade eficacial ou, o que é pior, a
inexistência fática de inúmeros de seus princípios? Ouvimos, inclusive, o
discurso da ingovernabilidade, por parte dos partícipes do poder, alegando que o
texto constitucional não podia ser aplicado, sob pena de tornar inexeqüíveis os
projetos políticos, notadamente os do Executivo3.
Estas questões,
portanto, merecem ser respondidas, até mesmo para que a Constituição seja
(des)velada, para utilizarmos a feliz expressão de Lenio Luiz Streck4. E não
podemos, enquanto sujeitos e agentes neste processo, delegar para outrem nossa
histórica tarefa de abrir as clareiras - voltando mais uma vez ao Lenio – para
que possamos enxergar melhor e trilhar o nosso próprio
caminho.
No penúltimo
tópico, tento traçar algumas das alternativas possíveis visando à efetivação dos
direitos sociais ainda não-concretizados, bem como da possibilidade de recuperar
os direitos assegurados pela CF/88, aventando à possibilidade concreta da busca
de novos direitos, ainda não materializados constitucionalmente, o que dependerá
não somente da correlação de forças mas do desejo e da luta para conquistá-los.
2 - Delimitando
Conceitos
Penso ser
necessário, primeiramente, estabelecer algumas limitações acerca de algumas
terminologias fundamentais que irei empregar no decorrer do presente artigo, a
começar pelo alcance da expressão “direitos sociais”. Pretendo, com esta
designação, abarcar os direitos trabalhistas, notadamente a legislação
protecionista do trabalhador, bem como os direitos constantes da seguridade
social5.
Quando me
referir à seguridade social, estarei analisando a duas uma: ou as questões
relativas ao seguro social, leia-se previdência, propriamente dita, ou as
questões pertinentes à assistência social. Desse modo, não analisarei a questão
da saúde, muito embora nesta seara encontremos inúmeras desregulamentações, a
exemplo da paulatina, porém eficiente, privatização da saúde por meio das seguradoras
privadas.
Por outro lado,
merece ser explicitado-a terminologia empregada no título deste trabalho,
expresso pelo termo regulamentação, tendo em vista o prefixo utilizado. Isto
porque, em minha concepção, o processo de desmantelamento dos Direitos Sociais
não foi despropositado, estando carregado da ideologia neoconservadora
vigente6.
Pode-se,
destarte, afirmar que o neoliberalismo não é tão “neo” como se auto-apresenta,
eis que vem, desde o Simpósio
Lippmann, embatendo-se com o liberalismo clássico e com os
sociais-democratas7. A partir de
1973, passa da condição de vox clamans in deserto para assumir a
condição de pensamento único, na maior parte dos países8.
O discurso e a
prática neoconservadora é no sentido de declarar o Estado como mínimo, de modo
que este não participe de outras funções além daquelas previamente entendidas
como indispensáveis, a exemplo da segurança dos cidadãos e da administração da
justiça. Neste diapasão, as políticas públicas não devem ter no Estado o seu
propulsor, eis que não lhe compete tal atribuição.
Esclareça-se,
por oportuno, o porquê de minha preferência para utilizar a expressão cunhada no
título deste trabalho, uma vez que acredito ser todo este processo de
desregulamentação altamente complexo e regulamentado, ou seja, o novo
regulamento é desregulamentar as políticas sociais, o que, aliás, somente pode
ser feito por um Estado forte, ao contrário do que se tem afirmado9.
No que diz
respeito à polêmica trazida pelo processo da globalização da economia e dos
mercados financeiros, dividindo o mundo em Blocos10, são diversos
os entendimentos acerca destes três conceitos, quais sejam, globalização,
mundialização e universalização. Segundo a delimitação feita por DELMAS-MARTY,
Meireille11, o processo de
globalização está conectado à economia, enquanto a mundialização e a
universalização referem-se aos direitos do homem. Assevera
que
“... ces deux
formules décrivent assez bien les différences qui séparent les deux phénomènes
que je nommerai globalisation pour l’économie et universalisation pour les
droits de l’homme, gardant ainsi au terme mondialisation une neutralité qu’il
n’aurait jamais dû perdre, si l’on ne s’était résigné trop vite au primat de
l’économie, et plus les droits de l’homme”.12
Em uma outra
perspectiva, CHESNAIS, François entende que “a palavra ‘mundial’ permite
introduzir, com muito mais força do que o termo ‘global’, a idéia de que, se a
economia se mundializou, seria importante construir depressa instituições
políticas mundiais capaz de dominar o seu movimento”.13
Segundo
CHESNAIS, não foi o mundo a se globalizar, mas sim o capitalismo que se
universalizou, o que somente foi possível mediante a queda do chamado
“socialismo real” e a bancarrota da URSS enquanto potência mundial, terminando
com a resistência socialista no outro pólo, além da queda do muro de Berlim, com
a reunificação da duas Alemanhas. Em outras palavras, o capital, agora volátil e
extremamente veloz, graças ao desenvolvimento da telemática e dos recursos da
informática, não possui mais pátria, ganhando territórios dantes
inimagináveis.
É neste
sentido, tomado emprestado de CHESNAIS, que me referirei, no decorrer deste
texto, à expressão “mundialização do capital”, tendo em mira os reflexos deste
processo no Direito, notadamente no relativo ao desmantelemento, ora enfocado,
das políticas e dos Direitos Sociais.
3.
Mundialização, Neoconservadorismo e (Des)regulamentação dos Direitos
Sociais
Num primeiro
passo, entendo ser importante situar o começo deste processo, caso seja possível
delimitar um marco inicial deste movimento. Em meu entendimento, a mundialização
do capitalismo deu-se simultaneamente com outro movimento, qual seja, o advento
do neoconservadorismo. Digo isto porque
“após a Grande
Depressão de 129, o capitalismo cedeu
espaço às políticas keynesianas,tão detestadas pelos neoliberais. Isto porque os
movimento de esquerda (socialismo/comunismo) e de
direita (fascismo/nazismo) eram muito fortes, além do que não havia um contexto adequado à
pregação neoliberal, nem
mesmo entre os neoliberais”14.
Logo, pode-se
afirmar irem estas idéias neoconservadoras, que pretendem retornar às raízes do
laissez-faire, de encontro
ao que se determinou chamar de globalização ou, como prefiro nominar,
mundialização do capital. Isto porque, como já acenei, far-se-á necessário,
daqui para a frente, que o Estado passe a assumir novas funções, inclusive a de
destruir a si próprio, se isso for necessário. A par disso, as funções
elementares até então exercidas pelo Estado, como a de gestor da educação, da
energia, das telecomunições etc, cederam lugar à iniciativa privada que irá
assumir estas lacunas deixadas pelo Estado.
Como bem
percebe CASANOVA, Pablo Gonzáles:
“A
‘liberalização da economia’, o desregulamento do setor financeiro, a
privatização e desnacionalização de riquezas naturais, de empresas bancárias,
industriais, agropecuárias e de antigos serviços públicos como estradas de
ferro, eletricidade, telefonia, correios, água potável, escolas,
hospitais...todas essas medidas de privatização, desnacionalização, integração e
globalização coincidiram com uma nova política de cortes do gasto público para
equilibrar o orçamento e para dedicar ao pagamento do serviço da dívida o que
antes se destinava à saúde, educação e desenvolvimento, com o que se reduziu a
renda direta de boa parte da população, especialmente dos assalariados. A
redução dos salários aumentou com uma política de dessindicalização dos
trabalhadores, de descentralização dos grandes sindicatos e de eliminação de
jure ou de
facto dos direitos
que haviam conquistado em lutas centenárias; a política de contenção salarial
foi combinada com a de inflação e
hiperinflação incontíveis, que se
acentuam com as desvalorizações e com um crescente desemprego devido às
falências e suspensões em massa”.15
Pablo CASANOVA,
ex-reitor da Universidade Autônoma do México (UAM), ao descrever a realidade
mexicana, reproduz, quase que literalmente, o que vem ocorrendo nos demais
países da América Central e Latina, com a sistemática privatização de nossas
riquezas naturais, das telecomunicações, da saúde, de nossas estradas (mediante
o sistema de pedágios) etc.
Na verdade,
esta nova realidade vivida pelos países em desenvolvimento ou pobres, é ditada
pelos Estados Unidos, ficando excluídos da nova ordem aqueles que não rezarem a
cartilha do Fundo Monetário Internacional (F.M.I).
Assim
sendo,
“En
todas estas medidas lo que se advierte es la desnaturalización del Estado Benefactor en sus políticas
sociales y nacionalistas. La protección al inversionista, tanto extranjero como nacional, se privilegia sobre las
necesidades sociales. El anterior programa es un verdadero
manifiesto que preludia el desmantelamiento del Estado Benefactor.
Si se siguen, como efectivamente se siguieron, al pie de la letra las
instrucciones del FMI, a partir de
ese momento el Estado requería
otras formas formas de
legitimación”.16
O Estado
Liberal que, mediante as políticas keynesianas, cedeu lugar ao Estado
Providência, como nos fala SANTOS17, vindo a
amenizar os conflitos trazidos pelo capitalismo, sendo “um Estado activamente
envolvido na gestão dos conflitos e concertações entre classes e grupos sociais
e apostando na minimização possível das desigualdades sociais no âmbito do modo
de produção capitalista dominante nas relações econômicas”18, este Estado
Social, diga-se de passagem, bem administrou o Acesso à Justiça, uma vez que investia
economicamente no Poder Judiciário, de modo que este pudesse resguardar os direitos daqueles que
procurassem a Justiça19.
Os efeitos
diretos desta nova postura político-ideológica são extremamente perniciosos
entre nós, uma vez que agravam os problemas sociais dos países
latino-americanos, tendo em vista a necessidade das políticas sociais como uma
forma de amenizar as desigualdades sociais existentes.
Percebe-se que
“A queda
vertiginosa dos salários e o crescente aumento do sub e do desemprego na América
Latina da última década leva ao reconhecimento unânime de que houve nesses anos
um retrocesso social dramático; o problema revela-se no empobrecimento
generalizado da população trabalhadora e na incorporação de novos grupos sociais
à condição de pobreza ou extrema pobreza. Observa-se simultaneamente um redução
dos serviços sociais públicos e dos subsídios ao consumo popular, contribuindo
para deteriorar as condições
de vida da maioria absoluta da população, incluindo amplos setores das
camadas médias”20
Se, por um
lado, a mundialização do capital somente foi possível graças à queda do
socialismo real, aliada à utilização dos mecanismos da informática, foram as
idéias neoconservadoras que deram um aporte teórico/prático a esta nova forma de
organização do Estado Contemporâneo.21
Fazendo um
breve incursão no neoconservadorismo22, especialmente
na figura de seus três maiores precursores: Ludwig VON MISES, Milton FRIEDMAN e
Friedrich August VON HAYEK23, veremos o
quanto eles abominam a idéia de o Estado intervir nas políticas sociais, eis que
o mercado, em uma economia totalmente livre, regularia todas as questões
pendentes.24
Alfred MARSHALL, fundador da Escola de
Economia de Cambridge e outro importante liberal, faz uma crítica contundente à
concepção de Aristóteles sobre a escravidão, na qual
argumenta:
“La esclavitud fue
considerada por Aristóteles como uma imposición de la Naturaleza, y
probablemente pensasen igual los mismos esclavos de la antigüedad. La dignidad
del hombre fue proclamada por la religión cristiana; ha sido mantenida con
vehemencia creciente durante los últimos cien años; pero sólo con la mayor
difusión de la educación en los últimos tiempos empezamos a comprender, en fin,
el verdadero sentido de dicha frase, investigando a fondo sobre si es necesaria,
en realidad, la existencia de las llamadas clases bajas; es decir, si es
necesario que haya grandes masas de gentes condenadas desde el nacimiento hasta
la muerte a un duro trabajo, para proporcionar, con su esfuerzo, a otras los
requisitos de una vida culta y refinada, mientras que ellas se ven
imposibilitadas por su pobreza y
rudo trabajo para disfrutar de una parte de esa misma vida”.25
A concepção de mundo trazida pelos
neoconservadores, por sua vez, é
bem distinta daquela defendida pelos liberais. Segundo seu entendimento, o
colapso do Estado do Bem-Estar Social deveu-se ao excesso de intervenção do
Estado, bancando políticas públicas com dispêndio significativo do erário
público. Profetizam que o capitalismo não está em crise, sendo esta a falta de
capitalismo e não seu excesso.
O principal articulador desse movimento, hoje não só
hegemônico como autoritariamente imposto, enquanto pensamento único, foi Ludwig
VON MISES (1881-1973),26 que se opusera ferrenhamente ao Estado de
Bem-Estar Social, como denominou, culpando-o da Crise de 29, devido ao fato de
este Estado intervir na economia e atender as demandas sociais. Segundo VON
MISES, os Sindicatos são os responsáveis pelo desemprego e pela alta dos
salários, devendo haver liberdade para os empresários e capitalistas
contratarem, sendo que o mercado, mais uma vez, regulará a economia de forma
quase que natural.
Ao contrário de MARSHALL, este autor acredita que as
desigualdades não só são naturais como devem ser incentivadas, sendo a pobreza
uma opção e não uma condição social. Ou seja, “quem puder e quiser trabalhar não
será um miserável”.27 Mas como ficaria o problema dos inválidos e dos
não-adaptados, para utilizarmos uma expressão em voga? VON MISES tem a
resposta:
“O problema dos incapacitados é um problema específico
da civilização humana e da sociedade. Animais mais aleijados morrem logo de
fome ou nas garras dos adversários de sua
espécie. O homem selvagem não se apiedava dos
inválidos; muitas tribos praticavam o extermínio, aos quais
os nazistas recorreram no nosso
tempo. A própria existência de um número relativamente maior de inválidos é, por
mais paradoxal que pareça, um traço
característico da civilização e do bem-estar material”28
Por mais fascista que seja, esta análise de VON MISES
merece uma crítica reflexão. Ela engrendra algumas das idéias hoje apregoadas
pelos defensores do livre mercado e do Estado Mínimo, particularmente no que
respeita à questão da livre concorrência e adaptabilidade, ou seja, somente os
mais aptos sobrevivem29, cabendo aos demais, inelutavelmente, o mesmo destino:
o fracasso, a derrota, o desânimo de não ter vencido.30
Para VON MISES, o Estado não deve, em hipótese alguma,
patrocinar nenhuma política social,
eis que a caridade torna os pobres dependentes e sem nunhuma vontade de
trabalharem. Segundo o economista austríaco
“quanto mais o capitalismo progride e a riqueza aumenta, mais suficientes se tornam os
recursos empregados na caridade. Por um lado, as pessoas estão mais dispostas a fazer
doações, à medida que seu próprio bem-estar aumenta. Por outro
lado, o número de necessitados diminui concomitantemente”.31
Parece que a tese de VON MISES não foi verificada na
trajetória histórica do capitalismo, tendo em vista que este não conseguiu
resolver suas contradições internas, a exemplo da miserabilidade, da pobreza e
da exploração de parcela significativa de seus cidadãos.
Milton FRIEDMAN32, por seu turno, apregoou o chamado “capitalismo
competitivo”, onde teríamos a “organização da maior parte da atividade econômica
por meio da empresa privada operando num mercado livre”.33 Condenou, com veemência, o sistema público de
seguros sociais, caracterizando estes como assistencialistas e responsávéis pelo
aumento do déficit público.
Segundo FRIEDEMAN, “cada pessoa deveria ser solicitada a
pagar sua própria anuidade; deveria ser permitido aos indivíduos comprar uma
anuidade de firmas privadas”34. Isto porque o imprevidente, segundo o monetarista da
Escola de Chicago, não é somente um problema social para si, mas também para a
sociedade que paga, em última análise, essas quotas do seguro. Logo, “obrigá-lo
a comprar uma anuidade fica justificado não pelo seu próprio bem, mas pelo bem
de todos nós”.35
A mensagem de FRIEDMAN é por demais percebida entre nós,
sendo este o argumento utilizado pelo governo brasileiro quando da Reforma da
Previdência, chegando, inclusive, a forçar Emenda Constitucional neste
sentido36, privatizando, de forma indireta, nosso sistema
previdenciário oficial.37
A concepção esposada por FRIEDMAN é por demais
individualista, não existindo nenhum elo de solidariedade entre os cidadãos.
Pode-se constatar esta assertiva quando este economista analisa a questão
previdenciária nos EUA38, cujas passagens colhemos a
seguir:
“A desativação progressiva da Previdência Social eliminaria seu atual efeito de
desencorajar a criação de empregos e, assim, significaria maior renda nacional corrente. Elevaria a
poupança pessoal e
conduziria a taxa mais alta
de formação de capital e a um crescimento mais rápido da renda. Estimularia o
desenvolvimento e a expansão de planos de pensões privados e reforçaria a segurança de numerosos
trabalhadores”.39
“O que nove
em dez trabalhadores estão fazendo é pagar contribuições para financiar
pagamentos a pessoas que não trabalham. O trabalhador individual não está ‘obtendo’ proteção para
si mesmo e sua família no sentido em que uma pessoa contribui para um sistema de
seguro privado”.40
Percebe-se, pela leitura das citações acima
colacionadas, que FRIEDMAN instiga o descontentamento dos cidadãos/segurados com
o sistema público, ressaltando seus pontos negativos, instigando o conjunto da
sociedade a uma concepção extremamente ideológica: a de que o público não
funciona, ao contrário do sistema privado, eficaz e seguro.41
Nota-se, ainda, que este economista faz uma confusão
intencional entre seguro e seguridade social. Isto porque, como é sabido e
notório, a seguridade abrange o seguro propriamente dito, ou seja, os
benefícios, fruto das contribuições dos segurados, a saúde e a assistência
social. Esta última, que prescinde do elemento “contribuição”, não pode ser
abarcada dentro da primeira, muito
embora as três formam o que se denomina de seguridade social. Por isso, quando
FRIEDMAN aduz que alguns trabalhadores contribuem, enquanto outros não trabalham
e gozam dos mesmos benefícios, induz o leitor menos apercebido a um grasso erro,
quiçá, a meu ver, intencional e ideológico.42
Para completar a tríade dos pensadores neoconservadores
que nos fornecem um arcabouço teórico das principais idéias defendidas por este
movimento, enfocarei, sucintamente, o pensamento de Friedrich Augusto Von HAYEK.
Este economista, também recebedor do Prêmio Nobel de Economia, escreveu um
“panfleto político de ocasião”, como ele próprio o denominou, cujo nome é
altamente sugestivo: “O Caminho da Servidão”.
Neste panfleto, HAYEK preconiza o retorno ao liberalismo
clássico, uma vez que o socialismo, o coletivismo e o Welfare State são
considerados como experiências utópicas. Por isso o título do seu panfleto
político, eis que a humanidade, com estas experiências de sociedade, estava
trilhando o caminho da servidão, devendo, a partir de então, buscar outros
caminhos, representados pelo livre mercado (auto-regulador), Estado
não-intervencionista etc.
Estas idéias, que não são novas como se apresentam,
quiçá somente não tinham tido um momento de glória como têm na atualidade,
servem para nós podermos descortinar o horizonte em que se situa o Estado
Contemporâneo, extremamente fragmentado em suas funções43; para podermos analisar o constitucionalismo, cujo
nascedouro encontramos juntamente com o Estado (este, já não é mais aquele e
busca a sua forma, cuja imagem no espelho ainda não podemos precisar) e,
corolariamente, o Direito enquanto fenômeno sócio-cultural e expressão deste
momento determinado, notadamente no pertinente aos Direitos Sociais por mim
enfocados, objeto deste estudo.
É dentro deste contexto, de império autoritário do
neoconservadorismo vigente, que pretendo enfocar o processo constituinte, o que
culminou na elaboração de nossa Constituição Federal, promulgada em 05 de
outubro de l988, avaliando não somente o processo em si mas o seu resultado, sob
o ponto de vista das conquistas e dos direitos sociais dos trabalhadores.
Após esta análise, feita no tópico seguinte, analisarei
o conteúdo do que passou a denominar-se “Reforma da Constituição”, fazendo um
contra ponto do Texto Constitucional com as Emendas à Constituição (EC), no
intuito de verificar-se até que ponto a Constituição Federal continua vigente em
seu sentido originário44. Aliás, torna-se difícil verificar, sob o ponto de
vista hermenêutico, qual sentido originário é este, tendo em vista o processo de
retalhamento do Texto Constitucional, como veremos no tópico
“5”.
4. O Processo Constituinte e a Constituição de 1988: os
direitos e as conquistas sociais
Com a instalação da Assembléia Nacional Constituinte
(l986), tivemos o embate de duas posições político-ideológico-jurídico bem
distintas, representada pelos “comunitários”, de um lado, e pelos
“conservadores”, de outro.45 A Constituição, nascida deste processo
conflituoso, é fruto de várias décadas de lutas travadas no ínsito da sociedade
brasileira. Como aponta CITTADINO:46
“A emergência, nos anos 70, dos movimentos de defesa dos
direitos humanos, especialmente dos direitos relativos à vida e à integridade
física daqueles que lutavam contra o regime autoritário que se abateu sobre o
País; a luta, na primeira metade dos anos 80, pela reconquista dos direitos de
participação política; a efetiva participação, na segunda metade dos anos 80, de
diversos setores organizados da sociedade civil no processo constituinte do qual
decorreu a Constituição de l988; as freqüentes denúncias, a partir dos anos 90,
das violações dos direitos fundamentais das camadas populares (...) tudo isso
faz com que a linguagem dos direitos seja definitivamente incorporada ao debate
político e ao ordenamento jurídico brasileiros”.
A vitória do grupo considerado “progressista”, onde se
agrupavam os juristas denominado por CITTADINO de “comunitários”47, propiciou o nascimento de uma Constituição garantista,
dirigente, programática.48
Aliás, o caráter jurídico das normas programáticas
parece ser a grande questão do constitucionalismo contemporâneo, até mesmo para
que se possa responder a curial colocação de que estas normas são inexeqüíveis.
Penso que BONAVIDES responde com clareza a esta questão, quando aduz que
“Reconstituir o conceito de Constituição, inculcar a
compreensão da Constituição como lei ou conjunto de leis, de sorte que tudo no texto
constitucional tenha valor
normativo, é a difícil tarefa
que se depara à
boa doutrina constitucional de nosso tempo. Sem embargo do debate doutrinário que
ainda se possa ferir, a corrente
de idéias mais idôneas no Direito Constitucional
contemporâneo parece ser
indubitavelmente aquela que,
em matéria de Constituição rígida, perfilha ou
reconhece a eficácia vinculante
das normas programáticas.
(...)
Atribuindo-se eficácia vinculante à norma programática, pouco importa que a
Constituição esteja ou não repleta de proposições
desse teor, ou
seja, de regras relativas a
futuros comportamentos estatais. O cumprimento dos cânones
constitucionais pela ordem
jurídica terá dado um largo passo à frente. Já não será fácil com respeito à Constituição
tergiversar-lhe a aplicabilidade e
eficácia das normas como os juristas
abraçados à tese antinormativa, os quais, alegando programaticidade de
conteúdo, costumam evadir-se ao
cumprimento ou observância de regras e princípios constitucionais”.49
Não restam dúvidas que o texto constitucional foi
permeado de normas programáticas, dependendo, no mais das vezes, das ações
concretas do Executivo e do Legislativo para serem concretizadas materialmente.
O problema é que, ao invés de enfrentar e desvelar a
Constituição, na busca de seu sentido, como leciona Lenio STRECK50, o caminho
seguido tem sido o de enveredar pela reforma do
texto constitucional, sob a alegação de que este é inaplicável, podendo dar
margem à ingovernabilidade. Este tem sido, diga-se de passagem, o argumento mais
corriqueiro do Governo e de seus séqüitos.51
Parece que cada governo, uma vez empossado no poder,
deverá moldar a Constituição a seu bel prazer. Não se cogita, pelo menos em
nosso caso específico, da mantença dos princípios constitucionais com a
adequação dos governos à Constituição vigente. Perde-se de vista, nesta
concepção, o caráter pétreo das normas constitucionais, tornando-se vulnerável
aos sabores do poder então dominante, e o que é bem pior, retira-lhe a força
imperante que possui. Vale citar, neste talvegue, os ensinamentos de
Konrad HESSE52:
“A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela logra
despertar ‘a força que reside na
natureza das coisas’, tornando-a ativa. Ela própria converte-se em força ativa
que influi e determina a realidade
política e social. Essa força impõe-se
de forma tanto mais efetiva quanto mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da
Constituição, quanto mais forte
mostrar-se essa convicção entre os
principais responsáveis pela vida constitucional. Portanto, a intensidade da força normativa da Constituição apre
senta-se, em primeiro plano, como uma questão de vontade
de Constituição (Wille zur Verfassung)”
Entendo que um dos méritos deste trabalho de HESSE,
denominado “A Força Normativa da Constituição”, fruto de sua aula inaugural na
Universidade de Freiburg – RFA, no ano de 1959, foi o de destacar a importância
da Constituição enquanto força imperativa, ao contrário do apregoado por
LASSALLE que entendia ser a Constituição nada mais que um “pedaço de
papel”.
Retornando ao processo constituinte, resta inconteste a
sua legitimidade, apesar de ter sido vencida a proposta da eleição de
parlamentares para esse fim, extinguindo-se o mandato tão logo cumprido o
processo, resultando que os mesmos congressistas a erigir o texto constitucional
de l988 continuaram seus mandatos. Esta legitimidade, ao meu ver, ganhou reforço
quando da participação maciça de toda a sociedade civil, seja através dos
sindicatos e das associações de classe, seja por iniciativas populares, algumas
um tanto quanto isoladas, seja por meio dos partidos políticos, notadamente os
do campo de esquerda etc.
Foi justamente esta luta travada entre os
“progressistas” e os “conservadores”, para tomar emprestada a construção de
CITTADINO,53 com
a vitória do primeiro grupo, que propiciou a inscrição, no texto constitucional,
de princípios norteadores do Estado Democrático de Direito, tais como a
soberania, a cidadania, a elevação da dignidade da pessoa, o pluralismo político
e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (Cf. art. lº da CF/88). E
mais: esta “Res/pública” tem como objetivos precípuos a erradicação das
desigualdades sociais, a redução das diferenças sociais, o término da
marginalização, com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em
que o bem de todos seja promovido, sem quaisquer formas de discriminação (cf.
art. 2º e seus incisos).
Mas não somente no relativo aos princípios fundamentais
houve um significativo avanço, uma vez que no Capítulo II, sobre os Direitos
Sociais - objeto de minha incursão - encontramos uma série de medidas que
igualam os trabalhadores rurais aos urbanos, seguindo, certamente, os princípios
norteadores de nossa República Federativa. O próprio artigo 6º, da CF/88, elege
como direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia (direito este
acrescido pela Emenda Constitucional nº 26, de 14.2.2000), o lazer, a segurança,
a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência
social aos desamparados.
Manteve, outrossim, uma discriminação com os
trabalhadores domésticos54, muito embora estes tenham tido vários direitos
inusitados na Lei nº 5.859, de 11.12.1972, que regulou tal profissão, como:
salário mínimo mensal, repouso semanal, irredutibilidade de salários, décimo
terceiro salário anual, férias com o acréscimo de 1/3, dentre
outros.
No que diz respeito aos trabalhadores rurais,
historicamente marginalizados55, o texto constitucional de 1988 levou à sério o
propósito de diminuir as diferenças regionais e sociais, estatuindo, no artigo
7º: “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social:” A
redação deste artigo é singela, porém objetiva, não restando dúvidas quanto ao
direito dos trabalhadores rurais nos trinta e quatro direitos que se seguem, no
último, o legislador constituinte iguala os direitos dos trabalhadores com
vínculo empregatício aos dos obreiros avulsos.
Desta forma, os trabalhadores rurais, cuja profissão foi
regulamentada pela Lei nº 5.889, de 8.6.1973, passaram a ter a garantia do
recebimento do salário mínimo mensal; do direito de ser indenizado em caso de
despedida imotivada, inclusive com direito de receber a parcela dos 40% sobre o
FGTS; do seguro-desemprego; dos depósitos fundiários, a cargo do empregador;
férias com l/3 e as gratificações natalinas anuais; do salário-família etc. O
principal direito, a meu ver, consistiu na limitação\fixação da jornada de
trabalho destes trabalhadores em 44 horas semanais, à exemplo do que vinha
ocorrendo com os trabalhadores urbanos56.
Em relação aos direitos sociais relativos à seguridade
social, encontramos na Constituição Federal de 1988, em seu texto primitivo, um
avanço considerável rumo à construção de um Estado Democrático de Direito,
aspirando às concepções defendidas no Walfare State, pelo menos no plano
teórico.57
Nos Direitos Sociais concernentes à Previdência Social,
por sua vez, vislumbra-se uma posição contrária à corrente majoritária, trazida
pela “onda” neoconservadora, que primava pela sua privatização,58 mantendo-se o sistema público, de acesso
universal, como obrigatório. Veja-se, por oportuno, a redação do artigo 201 da
CF\88, e alguns de seus principais incisos e parágrafos59.
“Art. 201 – A previdência social será organizada sob a
forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados os critérios que preservem o
equilíbrio financeiro e atuarial, e
atenderá, nos termos da lei,
a:
(...)
V – pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao
cônjuge ou companheiro e dependentes, obedecido o disposto no § 5º e no art.
202.
(...)
§ 2º. É assegurado o reajustamento dos benefícios para
preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios
definidos em lei.
§3º. Todos os salários de contribuição considerados no
cálculo do benefício serão corrigidos monetariamente.
(...)
§ 5º. Nenhum benefício que substitua o salário de
contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior
ao salário mínimo.
(...)
§ 8º. É vedado subvenção ou auxílio do Poder Público às
entidades de previdência privada com fins lucrativos”.
A possibilidade de o homem também receber a pensão por
morte quando do óbito da segurada, veio confirmar a igualdade entre homens e
mulheres expostos amplamente no artigo 5º, da Carta Magna. Até então, apenas a
mulher recebia a pensão por morte, não gerando o referido benefício caso
falecesse. A Previdência Social, através do Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS), somente cumpriu o mandamento constitucional a partir da promulgação da Lei nº 8.213,
de 24.7.91, alegando ser carecedor de regulamentação os incisos do artigo
20160 .
Quiçá o maior avanço, em termos de Direitos Sociais dos
trabalhadores, especialmente no caso dos rurais, tenha sido a fixação do piso
salarial, ficando vedado constitucionalmente o recebimento de salários em
valores menores que o salário mínimo legal, fixado nacionalmente. Digo isto
porque, em se tratando dos aposentados (as) rurais, o valor recebido em seus
benefícios era de 50% (cinqüenta por cento) do salário mínimo, em caso de
aposentadoria e 30% (trinta por cento) quando da pensão por morte61. Aliás, a Previdência Social, através de seu órgão
gestor, o INSS, mais uma vez insurgiu-se contra esta garantia constitucional,
vindo a ser vencida nas ações aforadas, com a decisão final do STF, apontando a
auto-aplicabilidade dos §§ 5º e 6º, do art. 201, da CF/8862.
A Carta Magna de 1988 contemplou outra garantia
importante, ouvindo os clamores dos segurados. Trata-se do princípio da correção
das últimas trinta e seis contribuições, incidentes para a montagem da Renda
Mensal Inicial (RMI) dos benefícios previdenciários. Vejamos a redação do art.
202, da CF\88, tendo em vista a desconstitucionalização deste princípio, como se
verá no tópico seguinte: “É assegurada aposentadoria, nos termos da lei,
calculando-se o benefício sobre a média dos trinta e seis últimos salários de
contribuição, corrigidos monetariamente mês a mês, e comprovada a regularidade
dos reajustes dos salários de contribuição de modo a preservar seus valores
reais e obedecidas as seguintes condições: (...)”.
O princípio consagrado no art. 202 visou a corrigir uma
distorção histórica na concessão e manutenção dos benefícios previdenciários,
tendo em vista que o sistema adotado até então era de somar, corrigir as vinte e
quatro contribuições, dentro das trinta e seis, e somente somar as últimas doze.
Justamente as últimas doze que eram as mais corroídas pelo processo
inflacionário.63
Muito embora não tenha o propósito de examinar as
questões relativas à assistência, como já explicitei no tópico segundo, cabe
citar a preocupação do legislador constituinte com a assistência social, ficando
consignado, no inciso V, do artigo 203, “a garantia de um salário mínimo de
benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não
possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua
família, conforme dispuser a lei”.
A assistência social já vinha sendo feita desde
11.12.74, quando da promulgação da Lei nº 6.174. Pelo artigo 74, da Consolidação
das Leis da Previdência Social, (instituída dois anos depois, através do Decreto
nº 77.077, de 24.1.76), restou firmado este direito a uma gama significativa de
cidadãos que não tinham contribuição pecuniária, não fazendo jus, portanto, ao
pagamento dos benefícios regulares de prestação continuada, bem como não tinham
condição de garantir sua subsistência.64
Ora, a Renda Mensal Vitalícia (RMV) veio a ser
substituída pelo benefício assistencial de um salário mínimo, conforme ordenado
pelo inc. V, do art. 203, da CF/88, instituído pela Lei nº 8.742, de 7.12.93.
Por incrível que possa parecer, o legislador ordinário retrocedeu quando da
elaboração da lei de caráter essencialmente social. Digo isto porque esta lei, a
meu ver, foi totalmente contrária aos princípios norteadores da Carta Magna de
1988, especialmente os princípios elencados no artigo 3º. Seu capcioso e
pernicioso § 3º, do artigo 20, introduz um critério simplesmente nefasto, eis
que dificultador/limitador ao acesso dos candidatos à percipiente do referido
auxílio: “considera-se incapaz de prover a manutenção de pessoa portadora de
deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4
(um quarto) do salário mínimo”.
Não se pode admitir que o auxílio assistencial
substituto da RMV, por ordem e imposição constitucional, venha a ser, em muito,
menos abrangente do que o auxílio antecessor, aumentando ainda mais a
concentração de renda no país e contribuindo para a continuidade de uma parcela
significativa de cidadãos que vivem abaixo da linha da pobreza65.
O exemplo acima demonstra com propriedade o quadro
vigente: ou a grande maioria dos dispositivos constitucionais não foram
regulamentados66 ou, como ocorreu no caso da substituição da Renda
Mensal Vitalícia pelo Amparo Assistencial, o que deveria ser o
cumprimento\regulamento do inc. V, do art. 203, com o alargamento dos
percipientes do subsídio oficial, resultou em uma lei praticamente
inexeqüível.
É neste contexto, eivado de um discurso ideológico de
que a Constituição deve adequar-se aos “novos tempos”, ficando nas entrelinhas
quais “tempos” são estes, que
sobreveio as sucessivas reformas ao texto constitucional. Estas reformas, ao meu
ver, salvo raras exceções, movem a roda da história para trás, como diria Marx.
Tentarei, no próximo tópico, analisar estas reformas.
5. As Reformas da Constituição: movendo a roda da
história para trás
Penso ser importante, num primeiro momento, enfocar a
questão da “reforma” e da “revisão”, não somente sob o ponto de vista da
semântica dos termos, mas do sentido político que cada um ostenta. No primeiro
aspecto, o semântico, veremos que reformar significa “dar nova forma”,
“refazer”, “mudar”, “alterar”, enquanto revisar significa “rever”, “procurar
erros”.67 Não indicam, como visto, a mesma realidade:
enquanto com a reforma pretende-se uma mudança no núcleo do objeto, quiçá
tornando-o algo distinto do que era, a revisão mantém a forma dada, alterando
alguns caracteres que não chegam a desfigurar o ente, conservando ele as
características e os atributos de antes.
Ora, o que fora - e é - pretendido com o texto
constitucional é uma vasta reforma em seu âmago, dando à Carta Magna de l988
outra forma, outro sentido. Não é a esmo que os três núcleos da reforma ( e não
revisão) da Constituição, consagrados através das trinta e uma Emendas
Constitucionais deflagradas, referem-se à ordem econômica, abrindo nosso
“mercado” para a internacionalização do capital; à ordem administrativa,
reduzindo o “tamanho” e o poder do Estado e à ordem previdenciária, objetivando
a privatização de nosso sistema de seguro social.68
Percebe-se que esta confusão teórica, mas com
implicações práticas, como demonstrei acima, não foi disseminada no texto
constitucional, tendo em vista que, neste, encontramos a expressão “revisão”
constitucional (art. 3º, dos ADCT).
A Carta Magna de 1988 instituiu dois momentos para a
revisão/reforma do texto constitucional69: o primeiro ciclo foi inaugurado pelo artigo 3º, dos
Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, da CF/88; o segundo é fruto
do processo via Emenda à Constituição, conforme permitido em seu artigo
60.
No que diz respeito ao primeiro ciclo, cuja
transitoriedade revisional perdurou de outubro de 1993 até 31 de maio de
199470, resultou na promulgação de quatro Emendas
Constitucionais de Revisão, começando, imediatamente, o processo de revisão do
texto constitucional fundado no artigo 60, da CF/88.71
Observando o ciclo pós-revisão, constata-se que o objetivo das reformas da Constituição
visam, essencialmente, à adequação de nossa legislação à política econômica
neoconservadora, como exposto no tópico 3. Não é a esmo que as Emendas
Constitucionais, editadas neste ciclo, mexem justamente no Título VII, da Carta
Magna, que versa sobre a ordem econômica e financeira.72
É neste diapasão que a Emenda Constitucional nº 5, de
15.8.95, permitiu a exploração do serviço de gás canalizado às empresas
estrangeiras, quebrando o monopólio até então existente. No mesmo sentido, a
Emenda Constitucional nº 6 fulminou com a distinção entre os conceitos de
empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional, reduzindo “a
distinção entre capital nacional e capital estrangeiro, obstando o tratamento
diferenciado, o que representou uma nítida vitória das forças ‘liberalizantes’ e
‘internacionalistas’.73
O processo de “liberalização” da economia não ficou
somente com a concessão dos
serviços de gás canalizado, eis que a Emenda Constitucional nº 7, de 15.8.95,
deu nova redação ao artigo 178 da CF/88, admitindo a “contribuição”
internacional no transporte de mercadorias de cabotagem e na navegação interior.
Mas não ficou por aí, abrindo o nosso sistema de telecomunicações para a
exploração da iniciativa privada, o que foi feito através da Emenda
Constitucional nº 8, bem como a privatização indireta da PETROBRÁS, tendo em
vista a possibilidade, a partir da Emenda Constitucional nº 9, da participação
da iniciativa privada desde a pesquisa até o transporte de nosso
petróleo.74
Estes conjuntos de Emendas Constitucionais, como
aludidas, de maneira rápida, no presente tópico estão em consonância com os
reclamos de grande parte da intelectualidade brasileira que, a partir da
promulgação da Carta Magna, em 5.10.88, passou a exigir, de imediato, a reforma
de seu texto, pelas razões já levantadas neste trabalho.
Aliás, criou-se um contexto ou fabricou-se um contexto a
partir dos meios de comunicação social (MCS), onde todos os defeitos e
malefícios do Estado assumiram uma grande proporção; os funcionários públicos
passaram a ser o grande vilão, responsáveis pela inflação e por tudo o que não
der certo neste país, sob o ponto de vista das políticas salvacionistas trazidas
pelos sucessivos plenos econômicos; a máquina administrativa aparece como
incompetente, sem conserto, não restando nada mais a não ser transferir a
prestação do serviço público para a eficiente iniciativa privada.75
Transcrevo, por pertinentes, dois
posicionamentos\intervenções de um senador e um abalizado intelectual, cujo
conteúdo ideológico de seus discursos nos permite vislumbrar o pano de fundo
acima aludido.
“O liberalismo é a tônica. Esperemos que a liberalização do mercado, a
privatização e a
desregulamentação em marcha acelerada em tantos países, se reflitam em nossa busca das perdidas
taxas de crescimento dos decênios
anteriores a 1980”76
“A revisão constitucional oferta a possibilidade de o
Brasil readequar o seu projeto nacional até o fim do século à instrumentalização jurídica necessária para que se realize. Na dimensão
atual, a Federação é maior do que o PIB e a sociedade não tem forças para sustentar o tamanho do
Estado”77
Retornando ao processo de reforma, encontraremos as duas
maiores alterações de nossa Carta Política de 1988, advindas com a promulgação
das Emendas Constitucionais nº 19 e 20, vindo a primeira introduzir a polemizada
reforma administrativa, enquanto a segunda alterou significativamente nosso
sistema previdenciário público.
A Emenda Constitucional nº 19, de 4.6.98,
operacionalizou vários dos propósitos apregoados pelos neófitos do
neoconservadorismo: quebrou a estabilidade dos servidores públicos, abriu o
caminho para a substituição do regime público dos servidores pelo regime
privado, proibiu a vinculação ou a equiparação de salários entre os servidores,
somente para citar as medidas mais importantes.
Com a Emenda Constitucional nº 20, de 16.12.98, os
direitos sociais, na exata acepção em que utilizei sua extensão
conceitual78, tiveram um desmantelamento significativo, tendo-se
como parâmetros os direitos emanados do texto
constitucional.
No meu entendimento, houve uma mudança profunda de
referencial no referente ao critério norteador dos benefícios de prestação
continuada em geral, representado pela mudança paradigmática com a substituição
do critério do tempo de serviço pela contribuição pecuniária79.
Esta alteração, muito embora tenha passado despercebida
na análise dos operadores e juristas que lidam com a questão previdenciária, é
de extrema significância na vida prática dos segurados. Isto porque a prova do
vínculo empregatício, que albergava o direito aos benefícios previdenciários,
cede lugar à prova da efetiva contribuição pecuniária.
Ora, em um País onde a informalidade toma uma amplitude
cada vez maior; onde grande parcela dos cidadãos possuem suas carteiras de
trabalho sem serem assinadas,
enfim, onde a exclusão do mercado formal é cada vez maior80,
encarregar o trabalhador de provar que trabalhou, mediante a correlata
contribuição, é aumentar ainda mais o número dos excluídos do seguro social e,
conseqüentemente, aumentar a marginalização daqueles trabalhadores que,
certamente, em não tendo mais como trabalharem, engrossaram as fileiras dos
assassinos, contraventores etc.
Aliás, como incorporar esta gama imensa de trabalhadores
que compõem o mercado informal, a meu ver, é o grande desafio atual da
Previdência Social.81 Parece, ao que tudo indica, a política feita
primar pelo caminho mais fácil, qual seja o da exclusão dos
segurados.82
Por outro lado, a nova redação dada ao artigo 202, pela
EC nº 20\98, retirou da Constituição Federal a garantia da correção dos últimos
trinta e seis salários de contribuição, ficando à mercê de lei complementar a
regulação da matéria. Nada garante, portanto, que a Previdência Social não irá
manipular os dados e os índices, de modo a frustrar a expectativa dos segurados
quando da montagem da Renda Mensal Inicial dos Benefícios.83
O critério que passa a vigorar, a partir da promulgação
da EC nº 20, leva a considerar os seguintes fatores, visando à montagem da renda
inicial dos benefícios, a saber: a) idade dos segurados quando do pedido do
benefício; b) expectativa de sobrevida (taxa retirada do IBGE) e c) tempo de
contribuição quando do pedido.
Este cálculo, conhecido como do fator previdenciário,
possui o mérito, sob o ponto de vista atuarial, de equilibrar os benefícios,
tendo em vista que os segurados passarão a solicitar seus benefícios com idade
mais avançada, permanecendo por um maior período no sistema, contribuindo,
portanto, e utilizando, conseqüentemente, o referido em um menor
tempo.
A análise, a meu ver, não pode ser somente quanto ao
prisma econômico, sob pena de se perderem outros elementos fundamentais, a
exemplo da taxa de sobrevida das pessoas mais pobres, tendo em vista as agruras
que passaram, causando uma redução brusca em suas expectativas de
vida84.
De outro lado, a Emenda Constitucional nº 24, de
9.12.99, terminou com a representação classista na Justiça do Trabalho, que
passou a ser formada somente pelo Juiz togado, criando a figura da Vara do
Trabalho (art. 116). O que parece ter uma explicação razoável sob o prisma
econômico, tendo em vista a economia feita pelos cofres públicos sem o pagamento
destes juízes, apresenta-se como temerário em tempos de neoconservadorismo e
globalização. Digo isto porque, após a extinção dos classistas, pode muito bem
vir a extinção da própria Justiça Especializada, sob a alegação dos discursos,
comumente ouvidos, de que o processo é muito dispendioso, como se houvesse uma
relação entre Justiça e lucro. Aliás, já tramita no Congresso Nacional projeto
de lei visando à quebra do poder normativo da Justiça do Trabalho, além de
torná-la um setor especializado dentro da Justiça Federal.85
Passo, por fim, à análise das alternativas que entendo
serem pertinentes para assumir diante do quadro conjuntural
vigente.
6. Resistência e Luta: alternativas e
perspectivas
Tentei demonstrar, com este trabalho, que a manutenção
ou resgate dos Direitos Sociais, notadamente os direitos trabalhistas e
previdenciários, somente será possível mediante um combate sistemático e
organizado às idéias neoconservadoras – leia-se neoliberais – autoritariamente
impostas; à concepção de Estado Mínimo, atrelada ao discurso e prática
neoconservadora e, por fim, à mundialização do capitalismo com todas as suas
seqüelas.
Não devemos supor que esta macroconjuntura não se
relaciona diretamente com o Direito, especialmente com os Direitos Sociais:
devemos ter em mente, sempre, o tipo de sociedade que queremos, o que,
corolariamente, nos fornece um tipo determinado de Direito correlato à sociedade
na qual este se insere.
É neste sentido que penso ser de grande valia a
contribuição de AZEVEDO, Plauto Faraco de., quando afirma: “ao reagir ao
neoliberalismo, não se pode ter por objetivo a vitória imediata”, devendo-se
“denunciar a falácia do discurso redutor da complexidade do mundo, eliminador da
diversidade cultural, destrutivo da herança do liberalismo(...), negador das
conquistas civilizatórias...”.86
Quiçá devêssemos seguir à risca as três lições ensinadas
por ANDERSON, Perry87, a seguir:
“Primeira lição:
não ter nenhum medo de estar absolutamente contra a corrente política
do nosso tempo. Hayek, Freidman e seus sócios tiveram o mérito – mérito,
entendido aos olhos de qualquer burguês inteligente de hoje – de colocar uma
crítica radical ao status quo, quando fazê-lo era muito impopular, e de ter
paciência em uma postura de oposição marginal durante longo período, quando a
sabedoria convencional os tratava como excêntricos ou loucos, até o momento em
que as condições históricas mudaram e sua oportunidade política
chegou.
Segunda lição: não transigir em idéias, não aceitar
nenhuma diluição de princípios. As teorias neoliberais foram extremas e
marcadas por falta de moderação, um iconoclastismo chocante para os bem
pensantes de seu tempo. Mas não perderam eficácia por isso; ao contrário, foi
propriamente o radicalismo, a dureza intelectual do temário neoliberal que lhe
assegurou uma vida tão vigorosa e uma influência finalmente tão
esmagadora...
Terceira lição: não aceitar nenhuma instituição
estabelecida como imutável. Quando o neoliberalismo era um fenômeno
politicamente desprezado e marginal, durante o grande auge do capitalismo dos
anos 50 e 60, parecia ao consenso burguês daquele tempo inconcebível criar
desemprego de cerca de 40 milhões de pessoas nos países ricos, sem provocar
transtornos sociais; parecia impensável redistribuir renda abertamente, em alta
voz, dos pobres aos ricos, em nome do valor da igualdade; parecia inimaginável
privatizar não somente o petróleo, mas também a água, a receita, hospitais,
escolas, até prisões... A paisagem institucional é muito mais maleável do que se
crê”.
Se Antonio Negri e Michael Hardt estão com a razão,
estamos diante da materialização do “Império”, não cabendo mais nem ressucitar o
Estado de Bem-Estar Social, muito menos apostar na força do Estado pré-advento
do processo de globalização e mundialização do capital88. Podemos, segundo estes respeitáveis autores, fazer uma
contraposição ao estabelecido mediante a construção de uma globalização
democrática, contrapondo uma espécie de cidadania universal à cidadania imperial
reinante.
Nesta hipótese, os Direitos Sociais a que me referi não
serão somente os direitos dos trabalhadores de um determinado país, também os de
todos os trabalhadores de todo e qualquer país, o que poderá ser facilitado pela
utilização e avanço das comunicações, como é o caso da internet, por
exemplo.89
Mas somente podemos ingressar neste estágio global se
mantivermos a nossa própria identidade, o nosso poder enquanto Estado Soberano e
o direito de decisão, eis que somente haverá globalização democrática se forem
respeitadas as diferenças de cada uma das partes, sob pena de tornarmos esta
globalização não muito diferente da que hoje vivemos, ou seja, ditadorial.
Por isso, enquanto estratégia, é fundamental lutarmos
para concretizar a nossa Constituição Federal de 1988, sustando o processo de
esfacelamento de seu texto, como vem ocorrendo com as Emendas Constitucionais e
as parafernálias das Medidas Provisórias, com caráter definitivo, editadas pelo
Planalto.
Na esteira do pensamento pródigo de BONAVIDES, Paulo,
“neoliberais e globalizadores sabem perfeitamente que o Direito Constitucional à
luz dos valores emancipatórios da soberania popular e de sua democracia
participativa é o maior óbice dos povos à introdução das cartas régias da
globalização”.90
BONAVIDES aduz que os inimigos da democracia, em nosso
País, estão armando um golpe institucional, uma vez que buscam descumprir os
princípios pétreos e os direitos constantes da Carta Magna de 1988: “com sua
doutrina de poder, o neoliberalismo organizou e sistematizou em cada País a
traição aos interesses nacionais”91. Por isso é que
“A Constituição, como fundamento da
legitimida de, volta a
ser a do contrato social, sendo, nas
circunstâncias contemporâneas de
metamorfose e evolucão do Estado de Direito e de seu elo com a
sociedade e a concretude dos
fenômenos políticos e sociais, a pátria da cidadania, o prius da unidade na
multiplicidade, o pacto tutelar de todas as divisões sociais, de todos os
pluralismos, de todos os conflitos e dissimilitudes de interesses, de todas as
situações consensuais e dissensuais, que ora se desfazem, ora se recompõem no
fluxo ininterrupto e dinâmico das forças sociais; é, do mesmo passo, a lei que
rege a mecânica das contradições e dos influxos positivos e negativos dos
ordenamentos satélites e das formações grupais e associativas no interior da
Sociedade.”92
Aliado à defesa de nossa Constituição, penso ser
fundamental defender, dados a conjuntura atual, o Estado e suas
funções93. E defender o estado é defender um tipo de Estado
específico, onde os cidadãos sejam os sujeitos e não apenas os signatários de
suas políticas; onde a democracia permeie todos os poros do Estado; onde as
políticas públicas tenham por objetivo maior a diminuição das diferenças
socioeconômicas existentes entre os cidadãos, enfim, onde possamos exercer a
cidadania em sua plenitude.
Como bem percebeu BONAVIDES,
Paulo:
“O
capitalismo global ameaça revogar teorias, implodir conceitos e anular valores.
Quando acomete a soberania, a Constituição, o Estado, o
sistema de partidos, os sindicatos, o que ele busca é a dissolução e o
desmantelamento de estruturas nascidas das batalhas políticas e sociais de
muitos séculos, batalhas que estão na memória do povo e não podem facilmente, de
um momento para outro, ter o seu significado extinto por obra de interesses e
egoísmos escravizadores, estranhos ao país, à sociedade e à razão humana e
constituídos no regaço de um capitalismo selvagem e especulador.”94
Devem-se envidar todas as forças para que este golpe
institucional de que nos fala Paulo BONAVIDES não chegue a consumar-se. Neste
sentido, parece-me valiosa a contribuição de Konrad HESSE95, para quem “quanto mais o conteúdo de uma Constituição
lograr corresponder à natureza singular do presente, tanto mais seguro há de ser
o desenvolvimento de sua força normativa”.
HESSE lembra que, além dos fatores sociais, políticos, econômicos, a
Constituição deve incorporar “o estado espiritual (geistige Situation) de seu
tempo”.96
Neste passo, creio ser fundamental a contribuição dada
por Peter HÄBERLE, no sentido de aumentar os intérpretes da
Constituição97, de modo que “o processo de interpretação
constitucional deve ser ampliado para além do processo constitucional
concreto”.98 Por outro lado, entendo ser imprescindível a
organização dos trabalhadores, desempregados, dos sindicatos, associações de
classe, ONG’s, de modo a influir no processo de manutenção/aprofundamento dos
Direitos Sociais.99 Junto a isso, penso que o discurso da igualdade
formal deve ser deslocado para a igualdade material, sem a qual de nada adianta
te-lo estampado no texto da Constituição e quedar-se no papel o que deveria ser
força viva, de transformação social.100
Não podemos, por outro lado, ter uma concepção
legalista, como se o Direito fosse dissociado da realidade concreta em que é
inserido, contentando-nos com o que está disposto na Constituição. Isto porque
somos todos nós sujeitos históricos, dotados de potencial para alterar o rumo de
nossa História, vivendo os papéis enquanto atores e signatários desta história.
Nada garante que a inscrição de determinados direitos no
corpo da Constituição garanta a sua eficácia, podendo, destarte, restar apenas
como mais um dispositivo não cumprido. Outrossim, acredito ser importante que a
Constituição contemple aqueles direitos fundamentais e sociais, imprescindíveis
à organização de uma sociedade mais justa e igualitária.101
Por óbvio que devemos ser intransigentes na defesa de
nossas idéias, na esteira das três lições legadas por Perry ANDERSON, como
vimos, por mais que o pensamento único dita o que deve ser pensado e
proferido.
Foi RAWLS quem nos legou a idéia de sociedade bem
ordenada, aquela em que os cidadãos aceitam os mesmos princípios de justiça,
vindo as instituições desta mesma sociedade a agir em consonância com estes
princípios e, por fim, seus cidadãos atuam com “um senso normalmente efetivo de
justiça”.102
Acredito não ser idealismo ingênuo a luta por este tipo
de sociedade, desenhada por RAWLS, eis que estamos bem longe dela: nossas
instituições encontram-se corrompidas; nossos cidadãos não possuem uma concepção
de cooperação ética, guiando suas existências embasados num egoísmo sem
precedentes; o senso de justiça ou do que é justiça está distante de ser uma
questão pontual, sendo não mais do que um jargão, que proferindo a igualdade
formal como objetivo maior. E para
agravar esse contexto sombrio, as teias do capital mundializado, fundadas na
trama das idéias e práticas neoconservadoras, agravam ainda mais a pobreza e
miséria, cuja alavanca material determina os demais aspectos antropológicos,
aumentando o processo de exclusão social e retirando dos cidadãos a
possibilidade de serem os sujeitos da História, ou melhor, de suas
histórias.
A resistência e a luta passam, a meu ver, pela assunção
dessa nova postura político-jurídico-ideológica, de forma indissociada, de modo
que possamos não somente garantir os direitos inseridos no texto constitucional,
freando a tentativa de golpe institucional em curso, efetivando e concretizando
os Direitos Sociais já postos, como, também, criando novos direitos.
7. Referências Bibliográficas
* Professor
Ajunto da Universidade Católica de Pelotas, Professor de Metodologia da Pesquisa
na Especialização em Processo Civil
na UFPel, Mestre em Desenvolvimento Social/UCPel, Doutorando em Direito
na UNISINOS, Bolsista da
CAPES.
1
Frise-se que a nossa Constituição, tal como a Portuguesa de 1976 e a
Espanhola de 1978, visou, assim como nestes dois países, a sepultar de vez por
todas os regimes autoritário-militar que as precederam. Por isso a simetria
existente entre o texto constitucional de 1988 e o das Constituições Portuguesa
e Espanhola, como bem assinala CITTADINO, Gisele, em sua obra Pluralismo,
Direito e Justiça Distributiva, Lumen Júris, 2000. Cf., também, VERONESE,
Osmar. Constituição: reformar para que(m)?, Livraria do Advogado Editora,
1999.
2 No
segundo tópico tento delimitar o que compreendo por “Direitos Sociais”, na
tentativa de demonstrar quais os direitos que encontram-se albergados nesta
expressão.
3
Veja-se, neste sentido, a resistência da aplicação imediata dos direitos
contidos nos incisos do art. 201, da CF\88, especialmente o cumprimento, por
parte dos Executivos, do pagamento integral das pensões por morte, bem como o
pagamento do salário mínimo nos benefícios de prestação continuada, pagos pela
Previdência Social. O próprio Instituto Securitário passou a cumprir o disposto
no art. 201 quando o Supremo Tribunal Federal entendeu ser self
executing estas normas, o
que somente ocorreu no começo de 1991, ou seja, passados mais de dois anos de
vigência do Texto Constitucional.
4
Imprescindível a leitura da obra deste autor, muito bem recebida no
ambiente acadêmico e jurídico,
denominada Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, Livraria do Advogado
Editora, 2000, já reeditada. Para este autor, é necessário que possamos deixar
falar a própria Constituição, de modo que possamos, a partir desta abertura,
conhecê-la. Lenio Streck denuncia o positivismo jurídico e a postura tacanha da
velha hermenêutica, aduz que “ ... há uma crise de paradigmas que obstaculiza a
realização (o acontecer) da Constituição (e, portanto, dos objetivos da justiça
social, da igualdade, da função social da propriedade, etc.): trata-se das
crises dos paradigmas objetivista aristotélico-tomista e o da subjetividade
(filosofia da consciência), bases da concepção
liberal-individualista-normativista do Direito...” (p. 272). Em outras palavras,
“olhamos o novo com os olhos do velho, com a agravante de que o novo (ainda) não
foi tornado visível” (idem, ibidem).
5
A Constituição Federal de 1988 elegeu como tripé da seguridade social a
saúde, a assistência e a previdência social (art. 194), sendo a primeira é obrigação
do Estado, enquanto a última passou a ter um caráter de seguro social, não sendo
a esmo que o antigo INPS (Instituto Nacional de Previdência Social) cedeu lugar
ao INSS (Instituto Nacional do Seguro – e não seguridade, como comumente ouve-se
– Social), por força do Decreto nº 99.350, de 27.06.90. Como percebe LEITE,
Celso Barroso, “os plenos de previdência social deverão ser levados a efeito
‘mediante contribuição’, naturalmente dos seus destinatários, sem prejuízo de
outras; e isso indica que ela se destina à População Economicamente Ativa. E a
assistência social deve ser prestada às pessoas necessitadas, como seria de
esperar, e ‘independentemente de contribuição’, conforme não poderia deixar de
ser” (In: Dicionário Enciclopédico de Previdência Social, LTr., 1996, p.
154. Aliás, a assistência social, a que se refere o ilustre pesquisador, foi
instituída pela Lei nº 8.742/93, conhecida por LOAS (Lei Orgânica da Assistência
Social).
6
A palavra neoconservadora ou neocolonialismo será empregada como sinônimo
de neoliberalismo, na precisa definição de CASANOVA, Pablo González (In:
Globalização Excludente, GENTILI, Pablo (org.), Vozes, 1999, p. 46-62. Penso
serem mais apropriadas estas duas designações porque esse movimento, cuja gênese
encontramos em 1938, no “Simpósio Lippmann” e nas reuniões de Saint-Pèllerin,
deixa de ser uma voz perdida no deserto para assumir posturas radicalmente
retrógradas. (Cf. FERRARO, Alceu. O Movimento Neoliberal: Gênese, Natureza e
Trajetória, In: Sociedade em Debate, V. 3, Dez.\97, EDUCAT, p. 33 et
seq.).
7
Observa FERRARO, Alceu R., que “é sintomático que o neoliberalismo ter
surgido justamente no momento em que o liberalismo clássico, especialmente em
sua versão laissez-fairista, já era dado por morto e sepultado. Com
efeito, o panfleto O fim do laissez-faire de Lorde Keynes, de 1926, a
apenas três anos da Grande crise, repercutia como atestado de óbito do
liberalismo” (Op. cit., p.36).
8
ANDERSON, Perry faz um balanço interessante desse movimento, que teve
como em Von Mises, Milton Friedman e F. Hayek como seus mais importantes
articuladores, constatando que, após a grande crise do pós-guerra, de 1973, “as
idéias neoliberais passaram a ganhar terreno. As raízes da crise, afirmavam
Hayek e seus companheiros, estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos
sindicatos e, de maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído
as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os
salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez
mais os gastos sociais” (In: GENTILI, Pablo; SADER, Emir.
Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado Democrático. Paz e
Terra, 1988, p. 10). Neste mesmo estudo, ANDERSON aponta os governos que, a
partir de 1973, começaram a imprimir e aplicar as idéias neoconservadoras, a
saber: a experiência chilena, na década de 70, por meio da ferrenha ditadura do
General Pinochet, na Inglaterra, com a eleição de M. Thatcher; R. Reagan, nos
Estados Unidos, em 1980; Na Alemanha, dois anos após, com H. Khol. E assim por
diante, com a Dinamarca, em 1983, etc. Esta nova orientação, diga-se de
passagem, fulminou com o Estado do Bem-Estar Social, colocando por terra as
políticas keynesianas.
9 Muito
embora não pretenda enfocar a questão do Estado, penso que este discurso do
Estado Mínimo não passa de mais uma das ideologias trazidas pelo
neoconservadorismo vigente. Isto porque o Estado, nesta fase neocapitalista
representada pela economia globalizada e pelos capitais voláteis, o papel do
Estado é justamente este, qual seja, relegar a si mesmo, de forma que a
iniciativa privada agencie aquelas funções antes pertencentes ao Estado,
aumentando os lucros e rendimentos dos capitalistas. Vide, por exemplo, a
recente privatização de nossas estradas e rodovias, bem como do setor bancário,
de energia e de telecomunicações.
10 Á
exemplo da União Européia, do NAFTA e do Mercosul.
11
In: Trois Défis Pour Um Droit Mondial, Éditions Du Seuil, Paris,
1998.
12 Idem,
p. 14\15.
13
In: A Mundialização do Capital, Xamã, 1996, p.
24.
14
COSTA, José Ricardo Caetano.
A Previdência Social no Ideário Neoliberal: os caminhos que conduzem à privatização
do modelo brasileiro, Escola de Serviço Social da UCPel, 2000, p. 31
(Dissertação de Mestrado).
15 CASANOVA, Pablo Gonzáles.
Globalidade, Neoliberalismo e Democracia.
In: GENTILI, Pablo (org.), Globalização Excludente: desigualdade,
exclusão e democracia na nova ordem mundial., Vozes, p. 54\55. Cf., também,
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, Justiça Social e Neoliberalismo,, RT,
2000. Nesta obra, o professor
AZEVEDO alerta para a inoperância dos Estados Nacionais, a partir da política
neoliberal, tendo em vista os laços prisionais destes Estados para com o Banco
Mundial e o FMI.
16 SOSA,
Ignácio. Globalización y Desintegración Social em México, In: CARRION, Raul e
VIZENTINI, Paulo, Globalização, Neoliberalismo, Privatizações: quem decide este
jogo?, CEDESP-RS\EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RGS, 1998, p.
177.
17
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: o social e o político
na pós-modernidade, Cortez, 1999, p. 165.
18 Idem,
Ibidem.
19 A
leitura de Boaventura de Sousa SANTOS me leva a crer que a tão propalada, e
fática, crise do Judiciário encontra-se inserida dentro da crise das políticas
públicas como um todo. Isto porque, com a derrota do Estado do Bem-Estar e o
coroamento do Estado Não-Interventor, baseado no ideário neoconservador, o
Estado não mais dispende recursos para o Judiciário, faltando, inclusive, as
mínimas condições de trabalho aos servidores. Veja-se, v.g., a nossa realidade
brasileira específica, onde os servidores da justiça encontram-se com seus
vencimentos congelados a mais de seis anos, agravado pela falta, constante, de
material de expediente, tais como folhas e tintas para as impressoras. A Justiça
passa a ser quase que uma questão privada, tendo em vista a morosidade dos
processos e a ineficácia do
Judiciário na apreciação dos casos que se lhe apresentam. Em outras palavras, a
crise da Justiça é estrutural,
podendo ser resolvida somente com um redimensionamento das funções do Estado
Contemporâneo.
20 Cf.
LAURELL, Asa Cristina. Avançando em Direção do Passado: a política social do
neoliberalismo, In: LAURELL, Asa Cristina (org.), Estado e Políticas
Sociais no Neoliberalismo, Cortez, 1997, p. 151. Vale conferir o
relato jornalístico de FORRESTER, Viviane, intitulado O horror Econômico,
EDUNESP, 1997, onde a autora expõe o drama do desemprego, explorando suas
mais diversas facetas. Segundo sua concepção, “um desempregado, hoje, não é mais
um objeto de uma marginalização provisória, ocasional, que atinge apenas alguns
setores; agora, ela está às voltas com uma implosão geral, com um fenômeno
comparável a tempestades, ciclones e tornados, que não visam ninguém em
particular, mas aos quais ninguém pode resistir. Ele é objeto de uma lógica
planetária que supõe a pressão daquilo que se chama trabalho, vale dizer, em
empregos” (idem, p. 11). Cf.,
também, CASTEL, Robert. As Metamorfoses da Questão Social: uma crônica do
salário, Vozes, 1998.
21
Estado este que toma uma nova forma, inclusive jurídica, muito distante
da conhecida noção de Estado trabalhada classicamente pela Teoria Política.
Este, ao contrário do anterior, se desterritorializa, perde sua identidade e seu
poder enquanto um ente soberano, ficando refém de órgãos ou entidades
supranacionais como o Grupo dos 7, o Banco
Mundial e o FMI.
22 Como
já explicitei no tópico 2 do
presente trabalho, entendo ser mais apropriado esta nomenclatura do que a
tradicionalmente utilizada, que chama este movimento de neoliberal, porque, na
verdade, não se trata de um pós-liberalismo, seja porque, em sua raiz, como
vimos, encontramos seu embate com os liberais da época, seja porque ele traz em
seu bojo um retorno ao passado, preconizando, quase que profeticamente, um
retorno ao liberalismo do
laissez-faire. Não tem, em última análise, nada de novo, não
fazendo jus ao prefixo que lhe foi atribuído.
23
Convém lembrar que VON MISES foi o principal expoente da “Escola
Austríaca de Economia”, enquanto FRIEDMAN e HAYEK foram agraciados com o Prêmio Nobel de
Economia.
24 O
mercado passa a ser o novo deus, para quem deve ser direcionadas as preces. E
não pode-se confundi-lo com a mão-invisível de Smith, eis que este economista
aceitava a intervenção do Estado para corrigir abusos ou para a manutenção das
“instituições públicas e dos serviços públicos necessários para a defesa da
sociedade e para a administração da justiça” (Inquérito Sobre a Natureza e as
Causas da Riqueza das Nações, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 333).
25
MARSHALL, Alfred. Princípios de Economia: um Tratado de Introdução,
Aguilar, 1957, p. 5. Em outra passagem, bem ao contrário do preconizado
pelos neoconservadores atuais, MARSHALL entende ser necessário o dispêndio de
recursos públicos às pessoas em idade avançada, auxiliando seus filhos de modo
que eles não tenham o mesmo destino que seus pais tiveram. Vale citar o referido
trecho que, a meu ver, delimita bem o liberalismo do movimento neoconservador
atual: “Podría ayudarse a las personas de edad avanzada teniendo em cuenta sus
inclinaciones personales. Pero el caso de los que
tienen niños a sua cargo exigiría un gasto mayor de fondos públicos y una
subordinación más estricta de la liberdad personal a la necessidad pública. El
paso más urgente para acabar con el residuo es insitir en que los niños
vayan a la escuela, com regularidad, vestidos decentemente y que vayan limpios y
bien alimentados. (...) El gasto sería grande, pero no existe necesidad más
urgente. Haría desaparecer esse cáncer que corroe todo el cuerpo de la nación, y
cuando el trabajo estuviese hecho, los recursos absordidos por el mismo
quedarían libres para destinarlos a alguna outra necesidad social, que sería
quizá más agradable que esta, pero indudablemente menos urgente” (idem, p.
586).
26 Este
autor, que costumeiramente passa desapercebido, é, a meu ver, um dos principais
expoentes do neoconservadorismo, merecendo ser melhor estudado. Suas principais
obras foram: Ação Humana: um tratado de economia; A Mentalidade
Anticapitalista, Uma Crítica ao Intervencionismo e As Seis Lições. Von Mises
influenciou, sobremaneira, o pensamento de Friedman e Hayek.
27
In: Ação Humana, Instituto Liberal, 1995, p.
841.
Retirado de: http://www.ucpel.tche.br/direito/revista/direitos_sociais.doc