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A "questão política " nas medidas provisórias: um
estudo de caso
Fábio Konder Comparato
jurista
Na patologia das medidas
provisórias, o que importa não é apenas o estudo das diferentes doenças que o
instituto tem apresentado, desde a sua infeliz introdução no sistema
constitucional de 1988. O que interessa antes de mais nada, ao cultor do
direito não desligado do valor supremo da justiça, é pesquisar a etiologia
profunda dessas moléstias. Nessa perspectiva, parece útil discutir o problema à
luz de uma teoria constitucional que, elaborada inicialmente nos Estados Unidos
e depois transportada parcialmente para a Europa, está, ainda que de forma
subliminar e informe, sempre presente em boa parte dos acórdãos de nossos
tribunais superiores federais: a teoria da "questão política".
Para tanto, um dos métodos de
análise mais convenientes é, certamente, o exame em profundidade de uma
ocorrência patológica individual. A escolha recaiu sobre a medida provisória nº
2.088-35, de 27 de dezembro de 2000.
I O Ato e o Fato
A medida provisória nº 2.088-35,
editada em 27 de dezembro de 2000 e publicada no dia seguinte, apresenta-se,
quanto à sua numeração, como a 35ª reedição de igual diploma normativo.
Logicamente, portanto, deveria haver 34 (trinta e quatro) edições anteriores da
mesma medida provisória de nº 2.088. Este número, porém, somente foi atingido
com o ato normativo editado pelo Presidente da República em 27 de dezembro de
2000. Nenhuma outra medida provisória anterior ostenta o nº 2.088.
Pelo exame do Diário Oficial da
União, verifica-se que a medida provisória que teria servido de base para a
redação da de nº 2.088-35 foi a de nº 1.964-34, assinada em 21 de dezembro de
2000 (portanto, apenas 6 dias antes), e publicada em 22 de dezembro. Esta, sim,
foi a reedição verdadeira da mesma medida provisória, que vinha tendo uma
numeração se-qüencial: 1.964-33, 1.964-32 e 1.964-31. O art. 4º da medida
provisória nº 1.964-34, de resto, dispõe: "Ficam convalidados os atos
praticados com base na Medida Provisória nº 1.964-33, de 23 de novembro de
2000."
Ora, o objeto da medida
provisória nº 1.964-34 já era heteróclito: tratava-se, conjuntamente, de
alterar a Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976, que "dispõe sobre
medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de
substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica",
bem como a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que "dispõe sobre o
regime dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das funções
públicas federais". A medida provisória nº 2.088-35 veio acrescer mais
dois elementos a esse conjunto disparatado de matérias: a alteração da Lei nº
8.429, de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre a improbidade administrativa,
além da alteração da Lei nº 9.525, de 3 de dezembro de 1997, que "dispõe
sobre as férias dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das
fundações públicas federais".
Como é fácil de perceber, até
pelas inteligências mais retardadas, a medida provisória nº 2.088-35 não é mera
repetição de outra, mas uma nova medida provisória, solertemente apresentada
como sendo a trigésima quinta reedição do mesmo diploma normativo. O próprio
Presidente da República, autor do ato, fornece argumentos taxativos nesse
sentido. O Decreto nº 2.954, por ele assinado em 29 de janeiro de 1999, ao
estabelecer "regras para a redação de atos normativos de competência dos
órgãos do Poder Executivo", dispõe, em seu art. 17:
"Art. 17 - As medidas
provisórias terão numeração seqüencial, em continuidade às séries iniciadas em
1988.
§ 1º - Na reedição de medidas
provisórias, serão mantidos os números originários a elas atribuídos,
acrescidos do número correspondente à reedição, separado por hífen.
[...]
§ 3º - Será atribuído número novo
ao primeiro texto de medida provisória em edição".
É lamentável se queira induzir em
erro o público em geral e o Poder Judiciário em particular, mediante o
grosseiro expediente de meter de cambulhada alterações da lei de improbidade
administrativa em medida provisória que, apenas seis dias antes, regulava
questões de repressão e prevenção ao tráfico ilícito de entorpecentes, ou assuntos
de funcionalismo público.
Mas, afinal, por que teria o
Chefe de Estado agido de modo tão aberrante da boa prática legislativa, por ele
mesmo recomendada?
A razão desponta com clareza,
quando se atenta para a data em que foi assinado o ato normativo: 27 de
dezembro de 2000. Nessa data, o Con-gresso Nacional achava-se em recesso. Ora,
segundo o mandamento inequívoco da Constituição Federal, "em caso de
relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas
provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso
Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se
reunir no prazo de cinco dias."
Poderia o Chefe de Estado, sem se
desmoralizar por completo perante a opinião pública e os parlamentares,
convocar extraordinariamente o Congresso Nacional para apreciar uma medida
provisória carecedora do requisito de urgência?
É verdade que os espíritos malévolos
seriam capazes de sustentar que a urgência na alteração de uma lei promulgada
há 8 (oito) longos anos residiria no fato de o Ministério Público Federal estar
se aproximando perigosamente da chefia do Executivo, em alguns inquéritos civis
públicos em andamento. Sucede que mesmo essa malevolência veio a perder seu
sentido, quando o Presidente da República, ao "reeditar" a malsinada
medida provisória pela 36ª vez, em 26 de janeiro de 2001, eliminou totalmente
os dispositivos que coarctavam e reprimiam a ação do Ministério Público, nas
ações de improbidade administrativa. Restaram disposições anódinas sobre o
procedimento a ser observado em tais ações.
Com isto, tornou-se patente que a
excepcionalidade daquele ato normativo não se justificava, nem pela urgência
nem tampouco pela relevância da matéria.
De onde a pergunta inafastável:
Pode o Supremo Tribunal Federal continuar a tolerar tais abusos?
Na verdade, só existe em direito
uma única possibilidade teórica de se justificar esse procedimento inconstitucional
do Chefe do Poder Executivo: sustentar que os requisitos de relevância e
urgência, na edição de medidas provisórias, constituem questões insuscetíveis
de apreciação pelo Poder Judiciário.
Ora, essa justificativa, fundada
na doutrina norte-americana das "questões políticas" e na teoria
francesa dos "atos de governo" é inaceitá-vel, como se passa a
demonstrar.
II "Questões Políticas"
e "Atos de Governo": Sentido e Alcance dessas Doutrinas
A - A political question
doctrine, na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos.
As origens dessa controvertida
teoria encontram-se no célebre aresto Marbury v. Madison de 1803, que serviu de
fundamento para a instituição do juízo de constitucionalidade das leis,
primeiro nos Estados Unidos e, em seguida, nos demais países onde se instituiu
o Estado de Direito. Naquele julgado, a questão foi aí apresentada com limpidez
e correção, e as linhas de solução, então encontradas, servem ainda de modelo
para o julgamento de litígios semelhantes, nos tempos atuais. A jurisprudência
ulterior da Su-prema Corte americana, porém, ao abandonar o reto caminho
traçado por essa decisão inaugural, acabou por se perder num emaranhado de
contradi-ções e sutilezas, transformando a matéria numa "doutrina
amorfa", despida de todo conteúdo.
Em Marbury v. Madison, o Juiz
Marshall assentou, logo no início de seu voto, que "a competência, ou área
de atuação, do Tribunal (the province of the court) consiste, unicamente, em
decidir a respeito de direitos dos indivíduos, e não de examinar de que maneira
o Executivo, ou os agentes do Executivo, desempenham funções discricionárias
(perform duties in which they have a discretion). Questões de natureza
política, ou que são, pela Constituição e as leis, atribuídas ao Executivo, não
podem nunca ser trazidas ao julgamento deste Tribunal (Questions in their
nature political, or which are, by the constitution and laws, submitted to the
executive, can never be made in this court)."
Mais adiante, porém, lembrou o
Juiz Marshall um princípio óbvio: "Não se pode presumir que alguma
disposição da Constituição seja despida de efeito; tal interpretação é
inadmissível, a menos que ela resulte dos próprios termos (em que foi vazada
essa disposição)."
A questão de se saber se uma lei
viola ou não a Constituição é de extrema gravidade e fundamental importância
para o país. Ela pode e deve ser julgada à luz de princípios bem estabelecidos,
há longo tempo. O primeiro e supremo princípio é de que o povo, numa
democracia, é o único detentor do poder de determinar a forma como será
organizada a sociedade política, em vista da felicidade geral. "A vontade
original e suprema organiza o Estado e estabelece, para cada um de seus órgãos,
a competência respectiva. Ela pode limitar-se a isto, ou então fixar certos
limites, que não podem ser ultrapassados pelos órgãos do Estado."
Ora, prosseguiu ele, "a
organização política dos Estados Unidos é desta última espécie. Os poderes
legislativos são definidos e limitados; e foi justamente para evitar que tais
limites fossem mal compreendidos ou ignorados que se redigiu a Constituição. Por
que razão limitar poderes e estabelecer essa limitação por escrito, se tais
limites podem, a qualquer momento, ser desconsiderados por aqueles que devem a
eles se ater? A distinção entre um Estado com ou sem poderes limitados é
abolida, se esses limites não restringem a ação das pessoas, em relação às
quais foram impostos, e se os atos autorizados são juridicamente equiparáveis
aos atos proibidos. A asserção de que a Constituição refreia todo ato
legislativo que a contraria é por demais evidente para ser contestada; caso
contrário, o Poder Legislativo terá competência para mudar a Constituição
mediante lei ordinária."
"Entre esses dois elementos
da alternativa, não há meio termo. Ou a Constituição é um direito superior,
imutável pelos meios ordinários, ou ela se situa no mesmo nível dos atos
legislativos, e, tal como estes, pode ser mudada quando isto aprouver aos
legisladores."
"Se o primeiro elemento da
alternativa é verdadeiro, uma lei contrária à Constituição não tem validade; se
verdadeiro o último elemento, então as Constituições escritas não passam de
tentativas absurdas, por parte do povo, para limitar um poder em si mesmo
ilimitável."
Os princípios assim postos,
formula o Juiz Marshall a indagação ca-pital: "Se um ato legislativo
contrário à Constituição é nulo, impõe-se ele aos tribunais, obrigando-os a
reconhecer os seus efeitos? Ou, em outras pa-lavras, embora não seja
juridicamente válido, constitui ele uma norma tão efetiva quanto um ato válido
(though it be not law, does it constitute a rule as operative as if it was a
law)? Tal seria destruir na prática o que foi esta-belecido em teoria; e não
precisaríamos perder tempo com um absurdo tão grosseiro."
A conclusão é peremptória:
"O Poder Judiciário dos Estados Unidos estende-se a todos os casos
suscitados à luz da Constituição (The judicial power of the United States is
extended to all cases arising under the Constitution)".
Em resumo, de Marbury v. Madison
podem ser extraídas duas con-clusões:
1) Num regime de separação de
poderes, a Constituição atribui a cada um dos ramos do Estado uma competência
exclusiva bem definida. Os atos de competência do Poder Executivo, a que se
atribui a caracterização de "políticos", pertencem a essa classe, não
cabendo obviamente ao Judici-ário exercê-los;
2) Não obstante, por força do
próprio princípio de competência ex-clusiva de cada ramo do Estado, não se pode
subtrair do Judiciário o poder-dever de julgar se o exercício dos atos de
competência exclusiva, ou "polí-tica", do Legislativo e do Executivo
obedecem às prescrições limitativas da Constituição.
No curso dos duzentos anos que se
seguiram a essa decisão histórica, as chamadas "questões políticas"
foram decididas pela Suprema Corte a respeito de várias matérias, tais como
relações exteriores e declaração de guerra (caso do Vietnã), processo de emenda
à Constituição, garantia do regime republicano, impeachment, a fixação do
número de deputados em função da população representada e o chamado
"privilégio presidencial" (caso Nixon). Em quase todas as decisões, a
Suprema Corte julgou-se competente para examinar os atos impugnados, tanto do
Executivo, quanto do Legislativo, à luz da Constituição.
Em Baker v. Carr, julgado em
1962, a Corte fixou o seu entendimen-to, definitivamente, sobre dois pontos
óbvios, que os julgados posteriores a Marbury v. Madison haviam obscurecido: 1)
o que dá ensejo à exceção de "questão política" é a relação existente
entre o Judiciário Federal e os demais Poderes da União, e não a relação entre
o Judiciário Federal e os Estados; 2) a "questão política" diz
respeito à garantia constitucional de separação de poderes.
B - A teoria dos "atos de
governo", na jurisprudência do Conselho de Estado francês
Uma diferença marcante entre a
political question doctrine norte-americana e a teoria francesa dos "atos
de governo" deve ser desde logo ressaltada: enquanto a primeira diz
respeito ao juízo de constitucionalidade dos atos praticados pelo Executivo ou
o Legislativo, a teoria francesa situa-se, exclusivamente, no plano da legalidade.
A razão é óbvia: na França, o juízo de constitucionalidade das leis é
recentíssimo, pois remonta à Consti-tuição de 1958 e à criação do Conselho
Constitucional, como órgão judi-cante separado do Poder Judiciário.
Numa primeira fase, que vai do
acórdão Laffite, de 1822, ao acórdão Príncipe Napoleão, de 1875, o Conselho de
Estado decidiu que não cabia recurso nem ao Poder Judiciário nem à jurisdição
administrativa, quando os atos impugnados dissessem respeito à "alta
política", ou seja, quando a Administração declarasse que havia agido com
um "objetivo político".
A partir de 1875 e até a entrada
em vigor da Constituição de 1958, a justificativa do "objetivo
político" foi abandonada, e a jurisprudência do órgão de contencioso
administrativo passou a sustentar que certos atos, embora "aparentemente
administrativos", não ensejariam, "pela sua natureza", nenhum
debate pela via contenciosa; ou que um ato, "em razão de sua
natureza", foge a todo controle jurisdicional. Estabeleceu-se então,
empiricamente e sem nenhuma sistematicidade, uma lista de "actes de
gouvernement", cuja prática não daria ensejo a um juízo de validade nem à
responsabilidade administrativa.
Numa terceira fase, cujo início
remonta grosso modo ao período i-mediatamente posterior a 1945, o Conselho de
Estado passou a admitir a judiciabilidade de alguns atos que, tradicionalmente,
eram considerados imunes ao controle judicial ou administrativo, notadamente a
proclamação do estado de sítio por uma autoridade administrativa e os decretos
de extradição.
Hoje, entende-se que os atos
insuscetíveis de controle, quer pelo Judiciário, quer pelo Conselho de Estado,
são de duas ordens: 1) os atos que dizem respeito às relações entre órgãos
estatais, fora da Administração Pública, como o Governo e o Parlamento; 2) os
atos concernentes às relações entre os Poderes Públicos franceses e as
autoridades estrangeiras, como os tratados internacionais. No entanto, mesmo em
relação a essas duas exceções, a posição de recusa de julgamento não é
absoluta, a tal ponto que al-guns autores falam ironicamente do
"introuvable acte de gouvernement".
C - A recusa da doutrina
norte-americana das "questões políticas", na Alemanha e na Itália
Na República Federal Alemã, o
Tribunal Federal Constitucional, ao usar de sua competência para fixar a
própria competência (Kompetenz-Kompetenz) à luz dos dispositivos da Lei
Fundamental de 1949, proclamou, em acórdão de 31 de julho de 1973, o princípio
da auto-limitação de seus próprios poderes jurisdicionais. O Tribunal
apressou-se, porém, em esclarecer que esse judicial self-restraint não
significava "uma redução ou enfraquecimento de suas competências, mas
antes a recusa de fazer política (der Verzicht, Politik zu treiben); isto é, a
recusa de interferir no campo constitucionalmente estruturado e delimitado da
livre atuação política"; ou, em outras palavras, o reconhecimento da
"reserva, aos demais órgãos cons-titucionais, de um espaço garantido de
livre atuação política."
O Professor Klaus Stern, ao
comentar essa decisão, fez questão de frisar que "a recepção desse
americanismo não deixa de suscitar problemas, se ele significa mais do que uma
simples referência aos limites funcionais ou de competência da jurisdição
constitucional." A doutrina germânica é, na verdade, unânime em reconhecer
que a political question doctrine norte-americana não encontra, no sistema
constitucional do país, o menor amparo.
Já na Itália, a questão da
judiciabilidade de atos do Executivo foi posta perante o Tribunal
Constitucional, precisamente a respeito da edição de decretos-leis, à luz do
disposto no art. 77 da Constituição de 1947, artigo esse que representou, como
se sabe, a fonte direta da norma inscrita no art. 62 de nossa Constituição,
relativa às medidas provisórias.
O Tribunal italiano fixou sua
jurisprudência sobre dois pontos da maior importância, nessa matéria:
1) Reconheceu, expressamente, a
sua competência para verificar o "respeito dos requisitos de validade
constitucional, relativos à pré-existência dos pressupostos de necessidade e
urgência", precisando que o controle judicial de legitimidade difere
daquele exercido pelo Parlamento, no momento da conversão do decreto-lei em
lei. Especificamente, no acórdão de nº 29, de 1995, julgou como violador da
Constituição um decreto-lei que carecia do pressuposto de urgência;
2) Por acórdão de nº 360, de
1996, o Tribunal Constitucional italiano decidiu que a reiteração dos
decretos-leis não convertidos em lei deve ser tida, em si e por si, como
contrária à letra e ao espírito do art. 77 da Constituição.
Escusa ressaltar a notável
importância desses julgados italianos, para orientação da doutrina e da
jurisprudência entre nós, no tocante ao juízo de constitucionalidade de medidas
provisórias.
D - A boa doutrina brasileira
sobre a judiciabilidade de "questões políticas"
Escrevendo no início do século XX
sobre a transposição, desejada por alguns, da doutrina das "questões
políticas", do direito norte-americano para o nosso, Rui Barbosa lembrou,
desde logo, a opinião de Willoughby, de que "não há nada, realmente, mais
artificial do que a distinção entre questões políticas e questões
jurídicas." E observou: "Político fora da presença da Justiça, um
litígio pode assumir o caráter de judiciário, assumindo a forma regular de uma
ação".
A razão disso é simples:
"O efeito da interferência
da Justiça, muitas vezes, não consiste senão em transformar, pelo aspecto com
que se apresenta o caso, uma questão política em questão judicial.
Mas a atribuição de declarar
inconstitucionais os atos da legislatura envolve, inevitavelmente, a Justiça
Federal em questões políticas. É, indubitavelmente, um poder, até certa altura,
político, exercido sob as formas judiciais. Quando a pendência toca a direitos
individuais, a Justiça não se pode abster de julgar, ainda que a hipótese entenda
com os interesses políticos de mais elevada monta."
Mesmo em relação ao exercício de
funções discricionárias, prosse-guiu ele, pode caber a interferência judicial
se delas houver abuso claro e grosseiro. "Dar-se-á essa hipótese",
escreveu, "quando, por exemplo, a pre-texto, em nome ou sob a cor de
exercer atribuições tais, o Governo ou o Congresso as ultrapassarem,
perpetrando atos que, evidentemente, nelas não caibam."
Fazendo em seguida alusão, sem a
citar, à teoria administrativista francesa dos "atos de governo",
afirmou Rui Barbosa que, mesmo em se tratando de poderes "totalmente
discricionários, o de que não conhecem os tribunais é do modo como tais
poderes, uma vez existentes, são exercidos, nas raias do que lhes traçou a eles
a lei. Mas da alçada incontestável dos tribunais será entenderem na matéria,
para examinar duas questões, se forem levantadas: a da existência desses
poderes e a da sua extensão, compa-rada com o ato controverso. Se a autoridade
invoca uma atribuição inexis-tente, ou exorbita de uma atribuição existente,
embora discricionária dentro dos seus limites, não pode a Justiça recusar o
socorro legal ao direito do indivíduo ou do Estado, que para ela apelar."
Sobrevindo, porém, a Constituição
de 1934, o seu art. 68 determinou ser "vedado ao Poder Judiciário conhecer
de questões exclusivamente políticas."
Que se devia entender pela
expressão?
Pontes de Miranda encarregou-se
de responder, e fez questão de reiterar suas observações críticas, ao comentar
as Constituições de 1946 e de 1967/1969.
Tome-se, propôs ele, um ato que
sempre se considerou de natureza política: a declaração de guerra. Aqui, o que
é imune à apreciação judicial é "a oportunidade, o acerto ou a
conveniência do ato. É exclusivamente política a questão de se saber se
convinha, ou se não convinha, declarar-se a guerra. Ao Congresso Nacional
compete, exclusivamente, autorizar o Presidente da República a
declará-la."
Mas obviamente, aduziu, não pode
o Judiciário recusar-se a exami-nar se os requisitos formais desse ato,
impostos pela Constituição, foram ou não observados.
Lembra, a seguir, vários outros
casos em que, também tradicional-mente, declara-se excluída a interferência
judicial: a manutenção de rela-ções diplomáticas, a verificação de poderes dos
representantes diplomáticos estrangeiros, os tratados e convenções internacionais,
a fixação de limites entre Estados membros da federação, o comando e a
administração das forças militares, a distribuição orçamentária da despesa, a
intervenção federal nos Estados ou destes nos Municípios, o provimento dos
cargos políticos e a demissão de funcionários públicos, a convocação
extraordinária do Congresso Nacional, a licença da Casa respectiva para se
processar um parlamentar. Em todas essas hipóteses, frisou, o cumprimento dos
pressupostos ou requisitos, previstos na Constituição, é sempre matéria
submetida à soberana apreciação de juízes e tribunais.
O exemplo da convocação
extraordinária do Congresso Nacional, lembrado por Pontes de Miranda, amolda-se
perfeitamente à questão ora examinada. Sem dúvida, a Constituição de 1988, tal
como as anteriores, aliás, atribui ao Presidente da República esse poder (art.
57, § 6º, II). Mas ela estabelece com precisão os casos em que o Congresso pode
ser convo-cado extraordinariamente pelo Chefe do Poder Executivo: "em caso
de ur-gência ou interesse público relevante." Fora dessas hipóteses, a
convocação extraordinária do Congresso Nacional é inconstitucional, e os
parlamenta-res podem, legitimamente, recusar-se a se reunir.
É exatamente por isso, que o art.
62 da Constituição determina que o Congresso, quando em recesso, seja convocado
extraordinariamente para apreciar medida provisória que, nesse período, haja
editado o Presidente da República. Os requisitos para o exercício desse poder
normativo extraordi-nário são precisamente os mesmos enunciados no art. 57, §
6º, II: urgência e relevância da matéria.
Como não perceber, diante de
disposições tão claras, a ilegitimidade de uma eventual recusa do Judiciário em
verificar se tais requisitos consti-tucionais foram efetivamente observados
pelo Presidente da República?
Pontes de Miranda é incisivo:
"Nunca se considera questão
exclusivamente política qualquer questão que consista em saber-se se existe ou
não, ou - se existe - qual a extensão ou qual a amplitude de atribuição das
entidades políticas (União, Estados-membros, Distrito Federal, Municí-pios), de
algum dos poderes públicos (Poder Legislativo federal, Poder Judiciário
estadual, Prefeitos, Câmaras Municipais), ou de algum dos seus órgãos, e se
foi, ou não, violado, ou se pode ou se não pode ser violado (habeas-corpus,
mandado de segurança) di-reito de alguém."
E arremata: "Sempre que se
discute se é constitucional, ou não, o ato do Poder Executivo, ou do Poder
Judiciário, ou do Poder Legislativo, a questão judicial está formulada, o elemento
político foi excedido, e caiu-se no terreno da questão jurídica."
Em suma, no direito brasileiro,
como em todos os sistemas jurídicos contemporâneos que obedecem ao padrão do
Estado de Direito, o que está em jogo na discussão sobre as "questões políticas"
não é o poder-dever de julgar, incumbente ao Judiciário. O que está em jogo é
algo bem mais profundo: "é a relação entre o juízo normativo e o juízo
político, a relação entre o direito e a política."
Quando se diz que ao Judiciário é
vedado "fazer política", o que se afirma não é, obviamente, que esse
poder estatal não faça parte da organização política do país, nem tampouco que
o Judiciário seja um órgão subordinado, na estrutura do Estado. O que se quer
afirmar é que a atividade política do Judiciário tem natureza essencialmente
diversa daquela desenvolvida pelo Legislativo (ou o próprio povo soberano) e
pelo Executivo. Ao primeiro incumbe a tomada das decisões fundamentais para a
comunidade como um todo (Grundentscheidungen, policy determination), enquanto
ao segundo, as decisões executórias das decisões fundamentais (Aus- oder
Durchführung der Grundentscheidungen, policy execution). Ao Judiciário, por sua
vez, cabe, com exclusividade, exercer o controle de todos esses atos ou
decisões, com base na Constituição e nas leis (policy control).
Montesquieu, a quem se credita a
primeira elaboração da teoria da separação de poderes no direito moderno,
explicou com clareza a essência desse mecanismo institucional. Foi a distinção
entre a "faculdade de estatuir" e a "faculdade de impedir".
A primeira incumbe, de modo original, ao legislador e, de modo executório, ao
governo. A segunda pertence aos órgãos incumbidos de autorizar, sancionar ou
aprovar os atos ou decisões daqueles outros órgãos. O Judiciário, como é óbvio,
não possui a faculté de statuer, mas sim a faculté d'empêcher. Mas isto que ele
chamou de "faculdade" é, claramente, um poder-dever, do qual o
Judiciário não está consti-tucionalmente autorizado a abrir mão, sem o que a
estrutura do Estado perderia o equilíbrio e a harmonia.
III A Inconstitucionalidade de
Medida Provisória Carente dos Requisitos de Urgência e Relevância da Matéria
Já se disse e repetiu, um sem
número de vezes, que a maior dificul-dade na técnica argumentativa é provar o
óbvio. Bem examinadas as coisas, não vai nisso ironia alguma. Em política, como
em tudo mais, a reiteração de um abuso acaba por fazê-lo entrar na normalidade
da vida.
É o que se dá com o poder,
atribuído pela Constituição ao Presidente da República, de editar medidas
provisórias. Trata-se, a todas as luzes, de uma competência excepcional e não
ordinária. Mas a prática brasileira acabou por transformar o abuso manifesto em
costume pacífico e consagrado, sob as vistas complacentes do órgão judicial
incumbido de zelar pela guarda e conservação do sistema constitucional.
A Constituição de 1988, tal como
as que a precederam, consagrou a separação de poderes como princípio
fundamental da ordem política (art. 2º). A doutrina publicista moderna, a
partir das análises elaboradas pelos juristas alemães na vigência da
Constituição de Weimar, mostrou que esse mecanismo de independência e harmonia
entre os grandes ramos do Estado é uma garantia institucional das liberdades civis
e políticas. O que significa, em termos de rigidez do sistema, que o instituto
da separação de poderes não pode ser enfraquecido nem a fortiori eliminado,
pela via de emen-das à Constituição (art. 60, § 4º, IV).
Como admitir, então, que essa
garantia institucional das liberdades individuais possa ser suprimida, pela
reiteração não sancionada do abuso? Se o costume contra legem não tem validade,
tê-lo-ia por acaso o costume contrário à ordem constitucional?
No Estado de Direito, a
competência legiferante primária - escusa lembrar o óbvio - pertence ao Poder
Legislativo. Ao Executivo compete originariamente, nessa matéria, apenas um
poder impediente, a faculté d'empêcher de Montesquieu, consubstanciada no veto
(arts. 48 e 66). A Constituição de 1988, aliás, reforça o princípio, ao
determinar que o Congresso Nacional suste "os atos normativos do Poder
Executivo que exorbi-tem do poder regulamentar, ou dos limites da delegação
legislativa" (art. 49 - V). Não havendo o texto se referido às medidas
provisórias, teria porventura o constituinte equiparado esses diplomas
normativos a leis próprias e autênticas?
É evidente que não. Tanto as
medidas provisórias, quanto as leis de-legadas, vêm reguladas na Constituição
em modo excepcional, relativamente às leis complementares e ordinárias.
Excepcional, não apenas quanto ao processo legislativo, mas sobretudo no que
diz respeito ao princípio de separação de poderes, que domina toda essa
matéria.
As medidas provisórias são
nitidamente excepcionais, em relação ao processo legislativo normal, porque
representam uma inversão de procedimento. Enquanto o Presidente da República,
no tocante às leis, só pode atu-ar no início (pela iniciativa) e no final (pelo
veto) do processo, sendo-lhe vedado fazer entrar em vigor um texto normativo
não aprovado pelo Congresso Nacional, as medidas provisórias são autênticos
decretos com força de lei, como diz com maior rigor técnico a Constituição
italiana, os quais entram em vigor antes de serem definitivamente apreciados
pelo órgão le-gislativo. Por isso mesmo, tais decretos têm vigência provisória:
lei autêntica e efetiva somente existe, depois que o Congresso Nacional vota o
texto editado pelo chefe do Poder Executivo, aprovando-o no todo ou em parte.
Excepcionais são também as
medidas provisórias, quando analisadas à luz do princípio fundamental da
separação de poderes. No regime presidencial - já se disse excelentemente - o
chefe do Executivo deve ser elei-to pelo povo, mas ele não pode nunca ser
considerado representante do povo, pela boa razão de que a representação
popular nada mais é do que um mecanismo de defesa do povo, perante o Poder
Executivo. Este tem, com efeito, a prerrogativa que os romanos denominavam
imperium. Ele concentra em suas mãos todos os poderes coativos em relação ao
povo: a polícia judiciária e a administrativa, o poder de tributar, o poder de
expropriar et alii. A função essencial dos parlamentares, enquanto
representantes do povo, consiste, justamente, em limitar os poderes de coação
do Governo e fiscalizar o seu exercício.
Ora, a lei constitui o primeiro e
principal limite ao campo de atuação imperativa do Poder Executivo, no quadro
constitucional. Se o Governo pudesse definir, ele próprio, os limites do seu
poder de imperium, a garantia institucional das liberdades civis e políticas
estaria perdida. Ele tenderia inelutavelmente, como aliás se tem visto à
saciedade entre nós, a usar da função legislativa para reforçar ainda mais as
suas prerrogativas, interferindo até mesmo nas garantias judiciais de direitos.
De Poder Executivo, ele se torna aos poucos o poder único e incontrastável, o
"ditador constitucional", ou seja, um paradoxo institucionalizado.
Quem o diz não é o autor destas
linhas, mas o principal inspirador do nosso sistema de governo presidencial, Rui
Barbosa:
"Ninguém aqui se
importa", denunciou ele, "com as ditaduras presidenciais. [...]
Ninguém se acautela, se defende, se bate contra as ditaduras do Poder
Executivo. Embora o Poder Executivo, no regime presidencial, já seja, de sua
natureza, uma semiditadura, coibida e limitada muito menos pelo corpo
legislativo, seu cúmplice habitual, do que pelos diques e freios
constitucionais da Justiça [...]. Deste feitio, o presidencialismo brasileiro
não é se-não a ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a
ir-responsabilidade consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder
Executivo."
Pois é exatamente por esse
caráter duplamente excepcional das me-didas provisórias, que a Constituição
atribui ao Presidente da República - e somente a ele, nunca a um auxiliar seu,
como o Advogado-Geral da União - o poder de editá-las (art. 62). A responsabilidade
pela usurpação do po-der legislativo, pelo sistemático e doloso abuso e desvio
de funções, na edição de medidas provisórias, recai pessoalmente na chefia do
Poder Exe-cutivo, qualquer que tenha sido o redator efetivo de tais atos. E
essa responsabilidade é, em tese, de natureza criminal, segundo dispõe a
própria Constituição em seu art. 85, inciso II:
"São crimes de
responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a
Constituição Federal e, especialmente, contra:
[...]
II - o livre exercício do Poder
Legislativo [...]."
Contra a evidência do atentado
permanente à Constituição, é ridículo argumentar com a ausência de culpa do
chefe do Poder Executivo, em razão da negligência do Congresso Nacional em
exercer o seu inalienável poder de controle sobre o turbilhão de medidas
provisórias por aquele editadas. Como o Tribunal Constitucional italiano teve
ocasião de salientar nos julgados acima citados, é ao Judiciário que incumbe,
em última instância e perante todos os demais Poderes, a guarda da
Constituição. Se o Par-lamento deixa de exercer o poder-dever de preservar a
sua competência legislativa, nem por isso ficam os juízes e tribunais
dispensados de cumprir, com zelo e presteza, as suas funções. A usurpação do
poder legislativo não fere apenas o Congresso Nacional: ela viola, também e
sobretudo, a soberania do povo e os direitos fundamentais, para cuja defesa
existe uma Constituição.
A técnica das Constituições
escritas - e portanto rígidas -, nunca é demais relembrar, foi inventada para a
proteção do povo, não para melhorar a "governabilidade", como se diz
hoje. O art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada
solenemente pela Assembléia Nacional francesa na abertura da Revolução de 1789,
é incisivo: "Toda sociedade, na qual a garantia dos direitos não é
assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem
Constituição".
Ressalte-se que as exigências
constitucionais de urgência e relevância da matéria, para o exercício do poder
excepcional de editar medidas provisórias, são logicamente interligados. O
chefe do Poder Executivo só pode intervir na área própria de atribuições do
Congresso Nacional, quando se tratar de problema imprevisto, de reconhecida
importância, cuja solução pode ficar comprometida, caso se venha a utilizar o
processo legislativo normal. Se a questão a regular não é de excepcional
relevância, não há logicamente nenhuma urgência em se baixar um decreto com
força de lei.
Ora, no caso da medida provisória
impropriamente definida como sendo de nº 2.088-35, era manifesto que não havia
nenhum problema legislativo urgente a resolver, naquele final de ano. Se
tivesse havido, o Presidente da República não precisaria usar do expediente não
recomendável de apresentar nova medida provisória como se fora simples reedição
de medida provisória anterior: ele teria enfrentado a dificuldade sem
disfarces, pela convocação extraordinária do Congresso Nacional para apreciar a
medida nova, como impõe a Constituição.
Mas não foi somente este o vício
manifesto do ato perpetrado pelo Presidente da República. Em 27 de dezembro de
2000, a matéria considerada relevante, e que suscitou desde logo acesa polêmica
em todo o País, foi a responsabilização dos membros do Ministério Público como
improbi administratores, pelo fato de exercerem a iniciativa acusatória em
casos de improbidade de agentes públicos. Ou seja, a equiparação dos acusadores
aos acusados, numa espécie de lei punitiva às avessas.
Pois bem, diante do clamor
público suscitado pela ousadia do ato normativo, o chefe do Executivo, logo no
mês seguinte, recuou, e suprimiu toda e qualquer menção aos responsáveis pela
abertura de inquéritos ou ações judiciais, nas demandas intentadas com
fundamento na Lei nº 8.429, de 1992. O que restou, depois disso? Algumas poucas
e mofinas disposições procedimentais, sobre a forma de instrução da ação, a
defesa prévia do réu, o cabimento de agravo da decisão que recebe a petição
inicial, a extinção antecipada do processo, a aplicação do disposto no art. 221
do Código de Processo Penal aos depoimentos e inquirições...
É esta a extraordinária
relevância da matéria, a justificar o recurso à via legislativa de exceção?
Será esta a melhor maneira de o Chefe de Estado cumprir o seu juramento solene
de "manter, defender e cumprir a Cons-tituição" (art. 78)?
A pior corrupção de um país não
advém da desonestidade pecuniária dos governantes, mas do desbaratamento, por
eles provocado, dos mecanismos constitucionais de garantia da soberania popular
e dos direitos humanos.
retirado de: http://www.anpr.org.br/bibliote/artigos/aquest%E3opoliticacomparato.html