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A Medida Provisória 1984-18

 

 

Mônica Nicida Garcia

Procuradora regional da República na 3ª região, em São Paulo

 

 

 

1.- O Diário Oficial da União de 7.4.2000 publicou a Medida Provisória nº 1984-16, de 6.4.2000, que acresce e altera dispositivos das Leis nºs 8.437/92, 9.028/95, 9.494/97, 7.347/85, 8.429/92, 9.704/98 e DL 5.452/43. Não se tratou como se pode imaginar, num primeiro momento, de mais uma simples reedição de normas que o Legislativo, por complacência, por inoperância, por conivência, ou, quiçá, por simples comodismo, deixa de converter em lei. Trata-se, isto sim, da introdução de seríssimas alterações no âmbito do processo das ações coletivas, através do insidioso expediente de reedição de medida provisória, e que merece reflexão. Em 4.05.2000, foi editada a 17ª edição e em 1º.06.2000, a 18ª edição, sempre trazendo novas e importantes alterações, através da inclusão sub-reptícia de artigos.

 

Aliás, a reedição de Medidas Provisórias contendo, a cada mês, novas alterações, já é prática corriqueira do Presidente da República, geradora de uma insegurança jurídica sem precedentes em nosso ordenamento.

 

Não é possível continuar se admitindo que o Governo use as Medidas Provisórias como instrumento de manipulação e exercício arbitrário do poder, não só estabelecendo as normas de conteúdo material que quer, mas também, ditando as regras de direito processual, de molde a impedir que aquelas primeiras venham a ser impugnadas e canceladas.

 

Proponho o início da reflexão.

 

2.- A versão originária da MP 1984-16 foi veiculada sob nº 1798, em 13.01.99, e acrescentava dispositivos à Lei nº 9.028/95, que dispõe sobre o exercício das atribuições institucionais da AGU e dá outras providências, através de 4 (quatro) artigos.

 

A primeira reedição daquela medida (MP 1798-1, de 11.02.99) já trouxe 8 (oito) artigos, o primeiro dos quais introduziu a nova redação aos artigos 188 e 485 do Código de Processo Civil, aumentando o prazo para a Fazenda Pública propor ação rescisória 1 e acrescentando os artigos 2º-A e 2º-B à Lei 9.494/97, que veicularam restrições à eficácia da sentença prolatada em ação de caráter coletivo.

 

Em 02.06.99, foi reeditada a MP 1798-5, com a supressão daquelas modificações no Código de Processo Civil, em razão da posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal (cf. nota 1 retro).

 

A mesma MP foi reeditada sob nºs 1906-6 a 10 e, finalmente, 1984-12. Na 13ª reedição, datada de 11.01.2000, foram introduzidas alterações na Lei nº 8.437/92, através da inserção de dois parágrafos no artigo 4º, dispondo sobre os recursos cabíveis da decisão liminar concedida em ações movidas contra o Poder Público.

 

A reedição seguinte - 1984-15 - acrescentou o parágrafo 4º ao artigo 1º da mesma Lei 8.437/92, que determinou que nos casos em que cabível medida liminar, deve ser imediatamente intimado o repectivo representante judicial da entidade. Na mesma oportunidade, modificou-se a redação da Lei 9.028/95, criando-se, no Gabinete do Advogado-Geral da União, a Coordenadoria dos Órgãos Vinculados, ampliando grandemente os poderes normativos do Advogado-Geral da União.

 

Finalmente, sobreveio a MP 1984-16. Os quatro artigos da MP originária (MP 1798/99) foram ampliados para onze. A MP originária trazia alterações a uma lei. A MP 1984-16 altera sete diplomas legais, entre os quais a Lei 8.437/92, a Lei 9.494/97, a Lei 7.347/85 e a Lei 8.429/92...

 

Esta 16ª versão da MP 1984 repete e traz, assim, gravíssimas alterações no processo civil, principalmente o de índole coletiva. E quando se imaginava que não havia mais novidades a serem introduzidas, vieram as 17ª e a 18ª edições, com o que a MP acabou com 15 artigos.

 

3.- É do artigo 1º da referida medida:

 

Art. 1o A Lei no 8.437, de 30 de junho de 1992, passa a vigorar com as seguintes alterações:

 

"Art. 1o ......................................................................

 

§ 4o Nos casos em que cabível medida liminar, sem prejuízo da comunicação ao dirigente do órgão ou entidade, o respectivo representante judicial dela será imediatamente intimado.

 

§ 5o Não será cabível medida liminar que defira compensação de créditos tributários ou previdenciários." (NR)

 

"Art. 4o ......................................................................

 

§ 3o Do despacho que conceder ou negar a suspensão, caberá agravo, no prazo de cinco dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte a sua interposição.

 

§ 4o Negado provimento ao agravo de que trata o parágrafo anterior, caberá novo pedido de suspensão ao Presidente do Tribunal competente para julgar eventual recurso especial ou extraordinário.

 

§ 5o É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o parágrafo anterior, quando negado provimento a agravo de instrumento interposto contra a liminar a que se refere este artigo.

 

§ 6º A interposição do agravo de instrumento contra liminar concedida nas ações movidas contra o Poder Público e seus agentes não prejudica nem condiciona o julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo.

 

§ 7o O presidente do tribunal poderá conferir ao pedido efeito suspensivo liminar, se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e a urgência na concessão da medida.

 

§ 8o Ao verificar que a liminar esgotou, no todo ou em qualquer parte, o objeto da ação ou foi deferida em flagrante ofensa à lei ou a jurisprudência de tribunal superior, o presidente do tribunal poderá suspendê-la com eficácia retroativa à data em que foi concedida, tornando sem efeito qualquer ato executivo dela decorrente.

 

§ 9o As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, podendo o presidente do tribunal estender os efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original."

 

"Art. 4o-A. Nas ações rescisórias propostas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como pelas autarquias e fundações instituídas pelo Poder Público, caracterizada a plausibilidade jurídica da pretensão, poderá o tribunal, a qualquer tempo, conceder medida cautelar para suspender os efeitos da sentença rescindenda." (NR)

 

Trata-se, como se vê, de normas de caráter eminentemente processual. Desde logo fica clara a impropriedade de sua veiculação via medida provisória, já que, nessa matéria, dificilmente se poderia vislumbrar a necessária urgência (a não ser a urgência do Poder Executivo de criar mecanismos que dificultem a atuação de quem quer que seja contra os abusos que comete) a que se refere o artigo 62 da Constituição Federal. Sobre o assunto, aliás, manifestou-se o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADIMC-1753-DF (cf. nota 1, retro):

 

"Ação Rescisória: MProv. 1577-6/97. art. 4º e parág. único: a) a ampliação do prazo de decadência de dois para cinco anos, quando proposta a ação rescisória pela União, os Estados, o DF ou os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações públicas (art. 4º) e b) a criação, em favor das mesmas entidades públicas, de uma nova hipótese de rescindibilidade das sentenças - indenizações expropriatórias ou similares flagrantemente superior ao preço de mercado (art. 4º, parág. único): argüição plausível de afronta aos arts. 62 e 5º, I e LIV, da Constituição: conveniência da suspensão cautelar: medida liminar deferida.

 

1. Medida provisória: excepcionalidade da censura jurisdicional da ausência dos pressupostos de relevância e urgência à sua edição: raia, no entanto, pela irrisão a afirmação de urgência para as alterações questionadas à disciplina legal da ação rescisória, quando, segundo a doutrina e a jurisprudência, sua aplicação à rescisão de sentenças já transitadas em julgado, quanto a uma delas - a criação de novo caso de rescindibilidade - é pacificamente inadmissível e quanto à outra - ampliação do prazo de decadência - é pelo menos duvidosa".

 

Já por esta razão, a inconstitucionalidade da Medida Provisória em comento é manifesta.

 

4.- Mais do que a impropriedade da via escolhida, entretanto, o que desde logo revela a inconstitucionalidade da Medida Provisória, o que salta aos olhos é a flagrante ofensa aos princípios da igualdade das partes, do devido processo legal e do amplo acesso à Justiça (artigo 5º, I, XXXV e LIV da Constituição Federal) em que a mesma incorre.

 

Realmente, impede ela, como visto, o deferimento de liminar que defira compensação de créditos tributários ou previdenciários. Trata-se de disposição que contraria toda a teoria que embasa as medidas cautelares e liminares.

 

É que a concessão de liminares, como é cediço, está subordinada à presença de dois pressupostos: o fumus boni iuris e o periculum in mora. A existência desses pressupostos - e apenas deles - gera um direito subjetivo à medida liminar, que, portanto, não pode deixar de ser concedida.

 

Como colocado por Luiz Rodrigues Wambier2,

 

"É que é deferido ao juiz, e somente a ele, o poder-dever de conceder ou não as medidas judiciais pleiteadas, à vista da análise que tenha efetuado, sobre o pedido, seus fundamentos e a prova realizada pela parte. No caso das liminares no processo cautelar, por exemplo, ao juiz incumbe verificar se estão presentes os pressupostos determinantes de seu deferimento. Entendendo que há fumus boni iuris e periculum in mora, o juiz deve conceder a medida cautelar liminarmente. ................................................................................

 

Quando o legislador avança sobre esse postulado, dizendo que ao juiz não é dado conceder liminares, em tais e tais casos, há flagrante desrespeito à liberdade que ao magistrado é conferida pelo sistema processual. A ele é que compete dizer se é ou não hipótese capaz de determinar a concessão de liminar" (g.n.).

 

Sobre o assunto já se pronunciou o C. STF, ao apreciar a constitucionalidade do artigo 2º, da Medida Provisória nº 375, de 23.11.93 (que acabou por ser reproduzido no artigo 2º, da Lei 8.437/92, sem que tenha, lamentável e surpreendentemente, havido qualquer impugnação), no seguinte sentido:

 

"EMENTA: CONSTITUCIONAL. MEDIDAS CAUTELARES E LIMINARES. SUSPENSÃO. Medida Provisória nº 375, de 23.11.93.

 

I - Suspensão dos efeitos da eficácia da Medida Provisória nº 375, de 23.11.93, que, a pretexto de regular a concessão de medidas cautelares inominadas (CPC, art. 798) e de liminares em mandado de segurança (Lei 1.533, art. 7º, II) e em ações civis públicas (Lei 7.347/85, art. 12), acaba por vedar a concessão de tais medidas, além de obstruir o serviço da Justiça, criando obstáculos à obtenção da prestação jurisdicional e atentando contra a separação dos poderes, porque sujeita o Judiciário ao Poder Executivo.

 

II - Cautelar deferida, integralmente, pelo Relator.

 

III - Cautelar deferida, em parte, pelo Plenário"3.

 

Em seu voto, o Eminente Relator, Ministro Carlos Velloso deixou assentado:

 

"A tese que sustento é a de que, ocorrentes os pressupostos da medida liminar, surge para o requerente da medida direito subjetivo, direito subjetivo à liminar. Não a concedendo o juiz, viola direito, a ensejar causa petendi de nova ação judicial, assim de um outro mandado de segurança. Esse entendimento eu o sustento de há muito, conforme se pode ver do MS nº 119.422-SP, de que fui relator, no antigo Tribunal Federal de Recursos, julgado em 07.06.88 (Rev. de Dir. Trib. nº 47/259). Em artigo de doutrina que escrevi, perfilhei o entendimento ("Mandado de Segurança e Institutos Afins na Constituição de 1988", em "Mandado de Segurança e de Injunção", Saraiva, 1991, págs. 75/106, 82)".

 

E, após citar voto que proferira na ADIN nº 295-DF, ponderou:

 

"Admito que tenham ocorrido excessos na concessão de medidas liminares. A forma, entretanto, de conter esses excessos não é simplesmente proibir a concessão da liminar, ou de estabelecer tantos empecilhos a sua concessão que acabam por vedá-la. A MP 375, objeto da causa, quando não proíbe a concessão de liminar, cria tantos empecilhos à sua concessão, que acaba vedando, por via oblíqua, a liminar. Isto representa retrocesso e atenta contra a Constituição, conforme tentamos demonstrar e como bem registra o Prof. Miguel Reale em artigo publicado em "O Estado de São Paulo", de 25.11;93, transcrito na inicial".

 

Na mesma linha, o voto do Eminente Ministro Celso de Mello, que, com a lucidez e profundidade habituais, deixou assentado:

 

"O ato impugnado, dentro dessa perspectiva, sobre interferir ostensivamente na esfera institucional do Judiciário, inibindo-lhe, ainda que temporariamente, a possibilidade de reparar danos atuais ou iminentes ao patrimônio jurídico das pessoas, interdita-lhe, como efeito conseqüencial, o exercício pleno da jurisdição cautelar. Nenhum juiz ou Tribunal - este Supremo Tribunal Federal, inclusive - poderá, inobstante a plausibilidade jurídica da pretensão do autor e da configuração do periculum in mora, impedir, ainda que em sede de mandado de segurança, a consumação de lesão irreparável ao direito do postulante".

 

A propósito de tal decisão, preciso é o comentário de CARLOS ARI SUNDFELD, no sentido de que "Embora a ação de inconstitucionalidade não tenha prosseguido, pois nem o Congresso converteu em lei a Medida Provisória nem o Presidente da República se aventurou a reeditá-la, a decisão do STF (que, para tornar mais contundente o efeito exemplar, foi tomada liminarmente) constituiu uma clara indicação da existência, nessa matéria, de severas restrições para o legislador ordinário"4.

 

Por essas mesmas razões, a inconstitucionalidade do dispositivo da MP 1984/16 que impede a concessão de liminares em determinadas hipóteses, é evidente.

 

5.- Seguem-se disposições que dizem respeito ao pedido de suspensão a que alude o artigo 4º, da Lei 8.437/92.

 

Mencionado artigo reza que compete ao presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.

 

Em face do novo regime do agravo de instrumento, que admite seja o mesmo recebido no efeito suspensivo, não há mais qualquer razão de ser para o arcaico instituto da suspensão, que tem suas origens na lei do mandado de segurança.

 

Diante, entretanto, da realidade de que o pedido da suspensão existe, há que se colocá-lo em seu devido lugar, e dentro de seus estreitos limites. O que a MP 1984-16 institui, entretanto, foi uma verdadeira divinização do instituto, dando-lhe uma amplitude e uma eficácia que jamais se ousou atribuir a qualquer outro.

 

De fato, de acordo com a sistemática introduzida pelo art. 1º, da MP 1984, se negada a liminar em ação coletiva movida contra o Poder Público, cabe agravo de instrumento, pela parte autora; se, por outro lado, concedida a liminar, cabem não só o agravo de instrumento (com pedido de efeito suspensivo) como pedido de suspensão de liminar, sendo certo que o julgamento de um não condiciona o do outro.

 

Apresentado o pedido de suspensão, se for ela concedida, em favor do ente público, ao autor, que teve sua liminar cassada, só é dado interpor agravo, cuja eficácia, como se sabe, é praticamente nula. Mas se ela for negada, à Fazenda Pública é dado não só interpor o agravo, como também, mesmo antes de sua interposição, formular novo pedido de suspensão ao presidente do STJ ou STF!

 

As discriminações são flagrantes e afrontam claramente o princípio básico da igualdade. Cai como uma luva o pronunciamento do STF, na ADIMC-1753-DF, já citada, do seguinte teor:

 

"2. A igualdade das partes é imanente ao procedural due process of law; quando uma das partes é o Estado, a jurisprudência tem transigido com alguns favores legais que, além da vetustez, tem sido reputados não arbitrários por visarem a compensar dificuldades da defesa em juízo das entidades públicas; se, ao contrário, caracterizam privilégios inconstitucionais: parece ser esse o caso das inovações discutidas, de favorecimento unilateral aparentemente não explicável por diferenças reais entre as partes e que, somadas a outras vantagens processuais da Fazenda Pública, agravam a conseqüência perversa de retardar sem limites a satisfação do direito do particular já reconhecido em juízo".

 

Estas inovações, que acabaram de ser introduzidas, pela 13ª edição da MP (01/2000), nem bem começaram a surtir efeito, já sofreram modificações quanto ao procedimento, desta vez veiculadas pela 18ª edição da MP, de 1º/06/2000, evidenciando-se, como apontado por CÁSSIO SCARPINELLA BUENO, "um dos mais graves problemas que se tem verificado diante das mais recentes reformas do Código de Processo Civil: a velocidade das reformas em detrimento da verificação de seu próprio funcionamento e da eficácia do sistema. aliás, em detrimento até mesmo da compreensão das próprias alterações"5.

 

Essa 18ª edição inclui, ainda, um parágrafo 5º, no artigo 4º, da Lei 8.437/92, que permite seja o novo pedido de suspensão (ao STJ ou ao STF) formulado também quando negado provimento a agravo de instrumento interposto contra a liminar.

 

Mas não é só. Há ainda duas disposições que são verdadeiras heresias processuais: a suspensão pode ser determinada com efeito retroativo à data em que a liminar foi concedida, tornando sem efeito qualquer ato executivo dela decorrente; e os efeitos de um único ato de suspensão poderão ser estendidos a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original!

 

A primeira disposição - que permite o efeito retroativo da suspensão tornando sem efeito a liminar - traduz-se em manifesta ameaça à segurança jurídica e num desprestígio tal às decisões de primeiro grau de jurisdição que resvala a supressão do mesmo.

 

A norma é de uma truculência tamanha que não se dá, nem mesmo, ao trabalho de disciplinar os efeitos da cassação da liminar, que, evidentemente, existem.

 

De qualquer maneira, e na esteira do pensamento de ARRUDA ALVIM e CARLOS ARI SUNDFELD, corroborado por CASSIO SCARPINELLA BUENO2, a suspensão da liminar em mandado de segurança, só encontra justificativa no princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado. E, "na exata proporção em que o interesse privado, particular, devesse sucumbir diante da preponderância do interesse público, coletivo, deveria, como contraprestação, receber justa e cabal indenização. Justifica-se a reparabilidade do sacrifício do direito do particular em prol do interesse público porque é assente na idéia de Estado de Direito o princípio da responsabilidade da atuação estatal. Mesmo por atos lícitos, responderá o Estado (objetivamente) por força da isonomia entre os particulares"7.

 

Se é certo, portanto, que deve o Estado reparar os danos causados pela suspensão da liminar - que se dá, repita-se, em prol do interesse público, em detrimento do interesse privado (que, no caso, é coletivo) - com muito mais certeza deverá reparar os danos causados por tornar sem efeito qualquer ato executivo decorrente da liminar cassada.

 

A outra disposição em comento é a que determina que os efeitos de um único ato de suspensão poderão ser estendidos a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original.

 

Ora, pacífico é o entendimento de que não cabe pedido de segurança ou de liminar com caráter normativo. E esta tese o Poder Público sustenta com veemência, para se furtar, muitas vezes, ao cumprimento de suas obrigações. Mas suspensão de liminar com caráter normativo, esta não se representaria qualquer problema!!

 

Trata-se de norma que pretende estabelecer um absurdo efeito vinculante, que suprime a possibilidade de qualquer alternativa ao juiz de primeiro grau, suprimindo, na prática, portanto, um grau de jurisdição - senão a própria jurisdição - e, em última análise, vedando o acesso à Justiça.

 

Não há, realmente, como se admitir possa prevalcer tal disposição, que ofende os mais comezinhos princípios de direito...

 

6.- A MP 1984-16 acrescenta, ainda, entre outros, o artigo 1º-C, à Lei nº 9.494, de 10.09.97, com a seguinte redação:

 

"Art. 1o-C. Prescreverá em cinco anos o direito de obter indenização dos danos causados por agentes de pessoas jurídicas de direito público e de pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos."

 

O dispositivo não esclarece quem seria a vítima do dano causado pelo agente público, e que teria o direito à indenização: o particular ou o próprio Estado.

 

Considerando-se como sendo o particular, a disposição é absurda: se, ordinariamente, o prazo de prescrição da ação de indenização é de vinte anos (artigo 177, do Código Civil), por que fixar um prazo quatro vezes menor para o agente público, que tem obrigação de servir ao "público" e a ele lhe deve satisfação?

 

Considerando-se, por outro lado, o Estado como a vítima do dano, o prazo prescricional de cinco anos é manifestamente inconstitucional, já que o parágrafo 5º, do artigo 37 da Constituição Federal, ao dispor que a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por agente público que causem prejuízo ao erário, ressalva as respectivas ações de ressarcimento, estabelecendo, assim, a imprescritibilidade de tais ações.

 

Também neste ponto, portanto, caracteriza-se a inconstitucionalidade.

 

7.- A MP 1984-16 veicula, ainda, outra alteração na Lei 9.494/97, incluindo o artigo 2º-A, com a seguinte redação:

 

"Art. 2o-A. A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator.

 

Parágrafo único. Nas ações coletivas propostas contra entidades da Administração direta, autárquica e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a edição inicial deverá obrigatoriamente estar instruída com a ata da assembléia da ntidade associativa que a autorizou, acompanhada da relação nominal dos seus ssociados e indicação dos respectivos endereços."

 

Sobre a eficácia das decisões em ações cautelares, teceram preciosos comentários NELSON NÉRY JÚNIOR e ROSA MARIA ANDRADE NÉRY, plenamente aplicáveis relativamente aos dispositivos em comento:

 

"8. Extensão da liminar. Em se tratando de ação coletiva, cuja sentença fará coisa julgada erga omnes ou ultra partes, conforme o caso (LAPC 16; CDC 103), a liminar também deve produzir seus efeitos de forma estendida, alcançando todos aqueles que tiverem de ser atingidos pela autoridade da coisa julgada. Por exemplo, juiz estadual pode conceder liminar para ter eficácia no Estado, em outros Estados e no país. A questão não é de jurisdição nem mesmo de competência , mas de eficácia erga omnes e ultra partes da decisão judicial, isto é, de limites subjetivos da coisa julgada. Os sujeitos envolvidos nas questões objeto da ACP é que serão atingidos em sua esfera jurídica. Em matéria de ACP, não se pode raciocinar com a incidência dos institutos ortodoxos do processo civil, criados para a solução de conflitos individuais, intersubjetivos. Os fenômenos coletivos estão a exigir soluções compatíveis com as necessidades advindas dos conflitos difusos ou coletivos".8

 

A rápida e eficiente solução dos conflitos difusos ou coletivos - de indiscutível interesse social e benefício geral - não parece consultar, entretanto, aos interesses do Poder Executivo, que abusa, então, do poder de editar medidas provisórias para cercear, através de normas processuais manifestamente inconstitucionais, o direito dos cidadãos de irem buscar, no Poder Judiciário, socorro contra as investidas e, muitas vezes, contra as omissões do Executivo. Fazer prevalecer as regras ditatorialmente baixadas, buscando fins nem sempre coincidentes com o bem comum, é o único objetivo do Governo, editando, para tanto, medidas autoritárias e casuístas, como as já reproduzidas, e como a do parágrafo único do artigo 2º-B, acrescentado à Lei 9.494/97, que reza:

 

"Art. 2o-B. A sentença que tenha por objeto a liberação de recurso, inclusão em folha de pagamento, reclassificação, equiparação, concessão de aumento ou extensão de vantagens a servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive de suas autarquias e fundações, somente poderá ser executada após seu trânsito em julgado.

 

Parágrafo único. A sentença proferida em ação cautelar só poderá ter caráter satisfativo quando transitada em julgado a sentença proferida na ação principal."

 

8.- A MP 1984-16 traz, ainda, a par de normas inconstitucionais, disposições totalmente inócuas, porque já veiculadas pela legislação existente, criando apenas tumulto e confusão.

 

É o caso do acréscimo do parágrafo único ao artigo 2º da Lei nº 7.437/85, segundo o qual "A propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto".

 

Ora, ações que têm a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto são conexas, nos expressos termos do artigo 103 do Código de Processo Civil. E a prevenção do juiz que despachar a primeira ação conexa está garantida pelo artigo 106 do mesmo Código...

 

A reprodução de normas do Código de Processo Civil sob a roupagem de "norma especial" só parece ter uma explicação: a de se pretender subtrair uma determinada situação (a da conexão de ações) da disciplina geral do CPC, que tem restrições e exigências que talvez não interesse à Fazenda Pública cumprir... A discriminação é odiosa e não pode prevalecer.

 

9.- Em sua 18ª edição, a MP 1984 introduziu um parágrafo único ao artigo 1º, da Lei da Ação Civil Pública, do seguinte teor:

 

"Parágrafo único. Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados".

 

Pretendeu-se instituir, como se vê, verdadeira censura à ação civil pública, proibindo-se sua utilização para o tratamento de determinadas matérias. Trata-se de proibição discriminatória e odiosa, pela qual se pretende restringir a utilização da ação civil pública para a defesa de direitos individuais homogêneos, utilização essa cuja possibilidade e viabilidade está consagrada pela jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, como tive oportunidade de demonstrar, em parecer publicado no Boletim dos Procuradores da República nº 22 (fevereiro-2000).

 

É essa a resposta do Poder Executivo ao sucesso das ações civis públicas que, em defesa dos interesses sociais, buscam afastar os limites para dedução de despesas com saúde e educação, na declaração do imposto de renda, a correção monetária das contas do FGTS, entre outras.

 

10.- Muitas outras inconstitucionalidades e imoralidades permeiam a MP 1984-16. Não se pretende, aqui, evidentemente, esgotá-las.

 

Procurou-se, apenas, pinçar as inconstitucionalidades mais flagrantes, havendo, por certo, muitos outros aspectos a serem levantados e aprofundados.

 

O que não podemos deixar acontecer é que o Poder Executivo se sinta absolutamente à vontade para continuar editando MPs e mais MPs, contendo inconstitucionalidades cada vez mais flagrantes e dispositivos cada vez mais ousados, sem que se esboce reação.

 

Aliás, mais do que manifestarmos reação, é importante, é imprescindível, é vital até, que continuemos, cada vez mais, em ação!

 

 

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1 - Aliás, fica, nesse caso, bem retratada a forma como o Governo tem se conduzido quando pretende fazer valer sua vontade. Em 27.11.97, foi editada a MP 1577-6, estabelecendo, em seu art. 4º, o prazo decadencial de cinco anos, para a propositura de ação rescisória, por parte da União, Estados, DF e Municípios. Essa MP foi reeditada sob nºs 1632-7 a 11, esta última de 9.4.98. No dia 16.04.98, o Plenário do STF deferiu pedido de medida cautelar para suspender os efeitos desse artigo (ADIMC-1753/DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 12.06.98).

Incontinenti, no dia 05.05.98, o Presidente da República edita a MP 1658-12, que convalida os atos praticados com base na MP 1632-11, incluindo, no artigo 4º, a nova redação aos artigos 188 e 485 do CPC, o primeiro dos quais passou a ter a seguinte redação: "Art. 188. O Ministério Público, a União, os Estados, o Distrito Federal, os municípios, bem como suas autarquias e fundações, gozarão do prazo: I - em dobro para recorrer e ajuizar ação rescisória; e II - em quádruplo para contestar". Essa alteração fez com que aquela ADIn 1753/DF fosse julgada prejudicada (Plenário, 17.09.98). A MP 1658-12 é reeditada sob nºs 1658-13, 1703-14 a 19, 1774-20 (15.12.98) e, especificamente o artigo em foco é reeditado na MP 1798-1 a 3 (a última de 08.04.99), que veio, posteriormente, a ser reeditada sob o nº 1984. Em 22.04.99, o Pleno do STF suspendeu a eficácia do artigo 188 do CPC, na redação destas MPs (ADI 1910-1, rel. Min. Sepúlveda Pertence, pendente de publicação), razão pela qual a MP 1798-5, de 2.6.99 já foi editada sem aquele dispositivo.volta

2 - "Liminares: Alguns Aspectos Polêmicos", in "Repertório de Jurisprudência e Doutrina sobre Liminares", coord. Teresa Arruda Alvim Wambier, RT, 1995, p. 157158, g.n.volta

3 - ADIMC-975/DF, Rel. Min. Carlos Velloso, Pleno, j. 09.12.93, DJ 20.06.97 volta

4 - "O Controle da administração pública brasileira e as medidas cautelares", in GENESIS - Revista de Direito Administrativo Aplicado, Curitiba, (9), junho de 1995 volta

5 - O Poder Público em Juízo - As (constantes) alterações impostas pela Medida Provisória n. 1984 no processo civil, São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 89volta

6 - Liminar em Mandado de Segurança, São Paulo: RT, 2º ed., p. 218/228 op.cit., p. 219 volta

7 - Código de Processo Civil Comentado, SP: RT, 3ª ed., p. 1150

 

 

 

 

 

 

retirado de: http://www.anpr.org.br/bibliote/artigos/mp1984.html