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Agências reguladoras: a metamorfose do Estado
Joaquim B. Barbosa
Gomes
A regulação representa uma
espécie de corretivo indispensável a dois processos que se entrelaçam: a
deformação do regime capitalista e o modo de funcionamento do Estado engendrado
por esse mesmo regime.
Passados mais de trezentos anos
desde o aparecimento da obra de John Locke (1) e um pouco menos desde a
primeira difusão do célebre traité de Montesquieu (2), o Estado forjado a
partir dessas obras de filosofia política, e pioneiramente positivado nos EUA
(1787) e na França (1791), vem passando por freqüentes e profundas alterações,
todas elas desencadeadas pela formidável evolução da técnica, pela radical
transformação do modo de produção econômica e pela conseqüente modificação das
estruturas sociais. Assim, de um Estado absenteísta e mero garantidor da ordem
e do cumprimento dos contratos, expressão máxima do direito de propriedade, o
mundo assistiu à emergência de um Estado intervencionista, provedor de
prestações tendentes a minimizar e a corrigir as imperfeições e iniquidades do
sistema capitalista. No plano organizacional, como não poderia deixar de ser,
as modificações não foram de menor relevância.
Com efeito, se o Estado
oitocentista pôde perfeitamente se encaixar no esquema organizatório e
funcional preconizado pelos citados pensadores, dúvidas passaram a existir
quanto à adaptabilidade do figurino institucional por eles concebido, sobretudo
em face da colossal expansão das atividades produtivas proporcionada pelas
revoluções industrial e tecnológica e do correspondente agigantamento das
atividades de regulação e correção que o Estado, em conseqüência, teve que
assumir.
É, pois, nesse contexto de
irreprimível necessidade de intensificação da presença corretiva do Estado no
jogo capitalista que nasce a idéia de regulação como indeclinável função
governamental, pelo menos naquele que é visto como o seu berço histórico, isto
é, os Estados Unidos da América.
De fato, nação-símbolo e terra de
eleição do chamado laissez-faire econômico, os Estados Unidos se notabilizaram
até o final do Século XIX e início do Século XX pelo culto obstinado ao dogma
da não-intervenção do Estado nas relações econômicas privadas. Tal período,
conhecido no direito público do país como o da Era Lochner, foi paulatinamente
substituído a partir do início do século 20 por uma cada vez mais intensa
presença regulatória do Estado, chancelada por sucessivas decisões da Corte
Suprema. Foram tão profundas as mudanças no papel reservado ao Estado americano
em matéria econômica que alguns autores chegam ao ponto de qualificar essa
brusca alteração de rota como uma verdadeira mudança de regime ou até mesmo
como uma "revolução sem derramamento de sangue" (a bloodless
revolution) (3).
O que é certo é que esse fenômeno
de mutação constitucional, desencadeado pelas mudanças estruturais por que
passou a sociedade, teve como consequência, no plano das instituições
políticas, o surgimento do imperativo de mudança nas formas de exercício das
funções estatais clássicas. O fenômeno da regulação, tal como concebido nos
dias atuais, nada mais representa, pois, do que uma espécie de corretivo
indispensável a dois processos que se entrelaçam. De um lado, trata-se de um
corretivo às mazelas e às deformações do regime capitalista. De outro, um
corretivo ao modo de funcionamento do aparelho do Estado engendrado por esse
mesmo capitalismo.
Em célebre obra, na qual examina
o crescimento da industrialização e da democracia, bem como o impacto e os
problemas que esses fenômenos trouxeram à arte de governar, James M. Landis
estabelece com certa perplexidade o confronto entre as idéias que se tinha
acerca do papel do Estado no campo econômico no início do século XIX e no
período pós-Lochner. Landis assinala que, se os avanços no campo dos transportes,
das comunicações e da produção em massa constituíram elementos de transformação
da ordem social, os problemas mais profundos relacionavam-se com as questões
econômicas e sociais brotadas na era das invenções mecânicas. Para resolvê-los,
algumas soluções foram extraídas do humanitarismo. Mas o essencial mesmo veio
da constatação, pelas classes dirigentes, da absoluta necessidade de se
promover o bem-estar dos governados. Para isso, era preciso fazer concessões, a
tal ponto que se chegou finalmente à conclusão de que o Estado do laissez-faire
chegara à exaustão.
Assim, constatando as
deficiências das funções judicial e legislativa no período do laissez-faire, o
autor conclui dizendo que a nova função reguladora do Estado representa uma
tentativa de se consertar tais deficiências institucionais, assinalando com toda
clareza: "The administrative process is, in essence, our generation´s
answer to the inadequacy of the judicial and the legislative processes. It represents our effort to find an
answer to those inadequacies by some other method than merely increasing executive
power. If the doctrine of the separation of power implies division, it also
implies balance, and balance calls for equality. The creation of administrative
power may be the means for the preservation of that balance, so that
paradoxically enough, though it may seem in theoretic violation of the doctrine
of the separation of power, it may in matter of fact be the means for the
preservation of the content of that doctrine".(4)
Portanto, para o direito
norte-americano, matriz desse novo formato de Estado, foram esses os fatores
determinantes da brusca guinada institucional que, certamente, estarreceria
tanto Locke quanto Montesquieu. Mais estarrecidos ainda com o novo fenômeno
devem ficar aqueles que, por acomodação intelectual e acadêmica, ou até mesmo
apego às idéias estabelecidas e desdém por tudo o que se passa fora das
fronteiras nacionais, se vêem subitamente confrontados com os graves problemas
de natureza constitucional engendrados pelas agências propriamente reguladoras
e pela já variada progenitura por elas espalhadas pelos quatro cantos do
planeta.
Com efeito, não tem sido sem
percalços a trajetória percorrida pelas agências reguladoras nesses seus mais
de cem anos de existência. Sobre elas têm sido suscitados questionamentos
jurídico-constitucionais dos mais variados matizes, envolvendo desde a falta de
legitimidade democrática e de compromisso para com o princípio de separação de
poderes, que lhes seria inerente, passando pela crítica ao seu modo de atuação
e ao suposto despotismo que elas encarnariam, na medida em que, comandadas por
técnicos e experts supostamente apolíticos e eqüidistantes das lutas pelo poder
que se travam entre as diversas facções em que se divide o corpo social, essas
entidades em realidade estariam se subtraindo ao procedimento democrático de
controle instrumentalizado através do processo político (political
accountability).
O Brasil, em razão da
artificialidade e ligeireza com que são tratados muitos dos assuntos de capital
importância para a regular evolução e condução dos seus negócios públicos,
começa só agora a debater questões dessa natureza, em razão da recente
introdução, entre nós, por via legislativa, das primeiras agências vocacionadas
ao exercício da regulação e fiscalização de atividades vitais da nossa economia,
tais como energia elétrica, telecomunicações e petróleo.
Recepcionado o novo instituto
pelo nosso direito, multiplicam-se as indagações a respeito dos problemas
constitucionais que ele suscita: os fatores e condições empíricas que
impulsionaram o surgimento das agências reguladoras nos EUA seriam os mesmos
que estariam conduzindo à guinada que representa para o Brasil a adoção da nova
forma de regulação e do novo tipo de estruturação estatal que ela engendra?
Seriam idênticas as premissas impulsionadoras das mudanças ocorridas nos EUA ao
longo do Século XX e que aqui mal acabam de se instalar? Aparentemente, não.
Para os EUA, a regulação por intermédio de agências independentes constituiu,
como já dito, uma brutal (embora não abrupta) ruptura com uma concepção de
Estado mínimo, identificado como policing model, isto é, um Estado alheio à
questão do bem-estar econômico da população, e sobretudo proibido de empreender
intromissão mais arrojada em áreas tais como fixação de preços, disseminação de
informações úteis aos usuários, imposição, consolidação e monitoramento de
práticas concorrenciais justas, em suma, regulação de mercados. Noutras
palavras, trata-se do abandono da conhecida visão do Estado que, segundo Adam
Smith, seria regulado pura e simplesmente pela mão invisível do mercado. No
Brasil, diversamente, a nova regulação nasce em um contexto inteiramente
diferente. Aqui tenta-se abandonar uma concepção de Estado altamente
clientelista, o qual, por certo, sempre foi ativo no campo da economia, mas não
para regulá-la eficazmente, mas sim para servir aos interesses dos diversos
estamentos superiores de que sempre foi presa. Doravante esse Estado pretende
transferir a atores privados o essencial das atividades que antes detinha a
título de monopólio ou quase-monopólio, assumindo o papel de normatizador e de
fiscalizador.
Trata-se, como se vê, de um
implante, de uma greffe aplicada a tecidos de textura diferente. Em suma, mais
uma tentativa de se ministrar o mesmo remédio a sintomas e pacientes com diagnósticos
totalmente diversos.
Neste despretensioso ensaio,
tentaremos abordar, num primeiro momento, a gênese e o regime jurídico das
agências reguladoras. Num segundo momento, discutiremos algumas das questões
constitucionais suscitadas por essas entidades, especialmente nos países que
adotaram esse modelo de organização regulatória estatal há mais tempo do que
nós. Por fim, concluiremos com algumas considerações acerca de uma possível
progenitura das agências, isto é, falaremos a respeito de algumas instituições
de direito comparado que nas últimas décadas, calcadas na idéia-matriz das
agências reguladoras, brotaram mundo afora.
1. Gênese, evolução, conceito e
regime jurídico das agências reguladoras
Previamente ao exame da gênese e
evolução das agências reguladoras, parece-nos conveniente tentar trazer algumas
clarificações conceituais acerca do novo instituto e da sua natureza jurídica.
1.1 Precisões conceituais
Não se deve confundir agência
executiva (executive agency ou administrative agency no direito
norte-americano) com agência reguladora independente (independent regulatory
commisssion). No direito brasileiro, agência executiva nada mais é do que uma
autarquia ou fundação pública dotada de regime especial graças ao qual ela
passa a ter maior autonomia de gestão do que a normalmente atribuída às
autarquias e fundações públicas comuns. Trata-se em realidade de uma
qualificação jurídica que pode ser dada a uma autarquia ou fundação,
ampliando-lhe a autonomia gerencial, orçamentária e financeira, devendo a
entidade firmar contrato de gestão com a administração central, no qual se
compromete a realizar as metas de desempenho que lhe são atribuídas.(5) No
dizer do professor Caio Tácito, representam "um processo interno de
desconcentração administrativa. Assumem, em nível de autonomia, a gestão de
serviços públicos específicos que conservam a natureza estatal".(6)
A transposição literal da
expressão executive agency ao nosso vernáculo pode conduzir a mal-entendidos.
No direito dos EUA, agência executiva tem as mesmas características jurídicas
das nossas autarquias. São entidades administrativas dotadas de personalidade
jurídica própria, criadas por lei com a atribuição de gerenciar e conduzir, de
forma especializada e destacada da Administração Central, um programa ou uma
missão governamental específica. Apesar de gozarem formalmente de autonomia
funcional no setor específico de atividades que lhe é atribuído, são entes
vinculados à Administração Central, estão sujeitas à supervisão e à orientação
do Presidente e do Ministro de Estado (Secretary) responsável pelo setor em que
se enquadra a respectiva atividade estatal. Mais do que isso, sua direção, em
cuja cúpula em geral (mas nem sempre) tem assento um único agente estatal, pode
ser exonerada a qualquer momento pelo Presidente, embora para a nomeação seja
invariavelmente imprescindível a aprovação do Senado.
Já a agência reguladora
(Independent Regulatory Commission, na terminologia mais usual do direito dos
EUA) é uma entidade administrativa autônoma e altamente descentralizada, com
estrutura colegiada, sendo os seus membros nomeados para cumprir um mandato
fixo do qual eles só podem ser exonerados em caso de deslize administrativo ou
falta grave (for cause shown). A duração dos mandatos varia de agência para
agência e não raro é fixada em função do número de membros do colegiado, de
sorte que os membros de uma agência composta de cinco diretores (commissioners)
terão mandatos de cinco anos escalonados de tal maneira que haja uma vacância a
cada ano. A nomeação, inclusive a do presidente do colegiado (chairman), cabe
ao Chefe do Executivo com prévia aprovação do Senado.(7)
Portanto, o fator decisivo de
distinção entre uma administrative agency e uma independent regulatory
commission reside no seu relacionamento com o Chefe do Executivo. Se o
Presidente dos EUA tem total controle sobre as agências executivas, tendo
competência legal para ditar-lhes a política a ser seguida e até mesmo exonerar
a qualquer momento os seus dirigentes, o mesmo já não ocorre em relação às
agências tipicamente reguladoras, que são independentes no estabelecimento da
regulamentação do setor de atividade governamental que lhes é atribuído por
lei, gozando os seus diretores, para tanto, de estabilidade funcional garantida
pelo fato de a nomeação ser efetivada para um mandato fixo. Em outros aspectos,
tais como a organização interna, o modo e o procedimento de atuação, não há
grandes diferenças entre esses dois tipos de organização. Frise-se, por
oportuno, que a forma de organização colegiada não é de forma alguma um traço
distintivo exclusivo das agências tipicamente reguladoras, pois na
Administração Federal americana contam-se inúmeras administrative agencies
(isto é, autarquias, nos termos do nosso direito administrativo) que se revestem
dessa forma organizacional. Já para o direito brasileiro, agência reguladora é
uma autarquia especial, criada por lei, também com estrutura colegiada, com a
incumbência de normatizar, disciplinar e fiscalizar a prestação, por agentes
econômicos públicos e privados, de certos bens e serviços de acentuado
interesse público, inseridos no campo da atividade econômica que o Poder
Legislativo entendeu por bem destacar e entregar à regulamentação autônoma e
especializada de uma entidade administrativa relativamente independente da
Administração Central.
Nossas agências configuram,
portanto, uma importação de um conceito, de um formato e de um modo específico
de estruturação do Estado. Faltam-lhes, contudo, e isso poderá lhes ser fatal
no curso do seu amadurecimento institucional, um maior rigor na delimitação de
seus poderes e na compatibilização destes com os princípios constitucionais; um
controle efetivo pelo Senado do processo de designação dos seus dirigentes; um
controle mais eficaz de suas atuações pelo Judiciário e pelos órgãos
especializados do Congresso; e, por fim, uma maior preocupação com o
estabelecimento, em seu benefício, de um mínimo lastro democrático, de sorte a
evitar que elas se convertam em instrumento de dominação de uma determinada
tendência político-ideológica. Sobre este último ponto, aliás, a vigilância há
de ser redobrada, haja vista as fragilidades intrínsecas da nossa vida
institucional.
1.1.1.Natureza Jurídica
No plano jurídico formal, as
agências brasileiras nada mais são, pois, do que as velhas e conhecidas
autarquias, pessoas jurídicas de direito público, agora com nova roupagem e
dotadas de um grau maior de independência em relação ao poder central, daí a
qualificação de especial que lhes é conferida pela lei (8). Segundo a
professora Maria Sylvia Di Pietro, as agências estão sendo criadas como
autarquias de regime especial porque "sendo autarquias, sujeitam-se às
normas constitucionais que disciplinam esse tipo de entidade; o regime especial
vem definido nas respectivas leis instituidoras, dizendo respeito, em regra, à
maior autonomia em relação à Administração Direta; à estabilidade de seus
dirigentes, garantida pelo exercício de mandato fixo, que eles somente podem
perder nas hipóteses expressamente previstas, afastada a possibilidade de
exoneração ad nutum; ao caráter final de suas decisões, que não são passíveis
de apreciação por outros órgãos ou entidades da Administração Pública."
(9) Quase na mesma linha da ilustre professora da USP, Marcos Augusto Perez
(10) sustenta que as agências "foram concebidas como organismos independentes
e autônomos em relação à estrutura tripartite de poderes estatais. Para elas se
delegavam funções de cunho legislativo (função reguladora), judicial (função
contenciosa) e administrativo (função de fiscalização). A idéia que presidiu a
criação dessas entidades era dotar o Estado de órgãos que possuíssem agilidade,
especialidade e conhecimento técnico suficientes para o direcionamento de
determinados setores da atividade econômica, segmentos estes que potencialmente
representariam uma fonte de constantes problemas sociais. (...) As agências
reguladoras são, em essência, organismos típicos do Estado de bem-estar,
voltados a monitorar a intervenção da Administração no domínio econômico,
atividade que realizam através do poder regulamentar que lhes é atribuído, mas
também através de função contenciosa e de fiscalização."
Já para Arnoldo Wald e Luiza
Rangel Moraes, as agências reguladoras são "organismos constituídos pelo
Poder Público, para normatizar, aplicar as normas legais, regulamentares e contratuais
da atividade sob sua tutela, outorgar e rescindir os contratos de concessão,
bem como fiscalizar os serviços concedidos, além de funcionar, em muitos casos,
como instância decisória dos conflitos entre as empresas concessionárias e os
usuários."(11)
Destoante e levemente cético em
relação à suposta inovação que representariam as agências até hoje instituídas
entre nós, o professor Celso Antonio Bandeira de Melo critica os atributos
dessas novas entidades, afirmando que "independência administrativa",
"ausência de subordinação hierárquica" e "autonomia
administrativa" são elementos intrínsecos à natureza de toda e qualquer
autarquia, nada acrescentando ao que lhes é inerente. Assim, nisto não há
peculiaridade nenhuma; o que pode ocorrer é um grau mais ou menos intenso
destes caracteres." (12)
Em suma, trata-se de pessoas
jurídicas de direito público, espécie do gênero autarquia, às quais são
conferidas as funções de regulamentação, fiscalização e decisão em caráter
descentralizado no âmbito de determinado setor da atividade econômica e social
de grande interesse público. Por serem autarquias, devem ser criadas por lei,
como determina o art. 37, XIX da Constituição Federal. Em razão do princípio da
simetria, sua extinção também só pode se dar através de lei específica e por
motivos de interesse público.
1.2 Gênese das agências
reguladoras
Introduzidas no direito
norte-americano nas últimas décadas do século XIX, as agências reguladoras só
vieram a se consolidar na paisagem administrativa dos EUA a partir do New Deal,
a colossal mudança de postura governamental ocorrida nos EUA sob Franklin
Roosevelt, levada a efeito para retirar o país da Depressão dos anos 30. Tal
ruptura marca, como se sabe, o surgimento ali do que se convencionou denominar
the regulatory state - isto é,o Estado altamente intervencionista em matéria
econômica, intervenção essa que se instrumentaliza precisamente através das
agências.
Conrado Hübner Mendes, em
primoroso artigo, sintetiza à perfeição a trajetória das novas entidades:
"A história das agências reguladoras nos Estados Unidos passou por quatro
fases principais. O nascimento desse modelo de regulação deu-se em 1887, quando
se verificou a premente necessidade de se conferir uma resposta reguladora às
disputas que estavam a ocorrer entre as empresas de transporte ferroviário e os
empresários rurais. Caio Tácito mostra tal situação: como as companhias de
estradas de ferro procurassem obter o lucro máximo nas tarifas que livremente
estipulavam – sob o critério do mais alto preço que a clientela pudesse
suportar, as traffic would bear- , os fazendeiros do Oeste, organizados no
movimento conhecido como National Grange, atuaram como grupo de pressão sobre
as Assembléias estaduais, obtendo que fossem reguladas, legislativamente, as
tarifas ferroviárias e o preço de armazenagem de cereais. Nesse ano, criou-se
então a ICC e um pouco mais tarde, a FTC, destinadas a controlar condutas
anticompetitivas de empresas e corporações monopolistas. Numa segunda fase,
localizada entre os anos 1930 e 1945, a economia norte-americana, abalada por
uma forte crise, foi socorrida por uma irrupção de inúmeras agências
administrativas que, como parte da política o New Deal, liderada pelo
Presidente Roosevelt, intervieram fortemente na economia. Tal intervenção,
suprimindo os princípios básicos do liberalismo e conferindo ampla autonomia a
tais agências administrativas, foi motivo de um início de debate
constitucional-jurisprudencial substancioso. O terceiro momento, entre 1945 e
1965, foi marcado pela edição de uma lei geral de procedimento administrativo
(APA – Administrative Procedural Act), que trouxe uma uniformidade no processo
de tomada de decisões pelas agências, conferindo-lhes maior legitimidade. Entre
os anos de 1965 e 1985 defrontou-se o sistema regulatório americano com um
problema que desvirtuou as finalidades da regulação desvinculada do poder
político: a captura das agências reguladoras pelos agentes econômicos
regulados. Explique-se: os agentes privados, com seu colossal poder econômico e
grande poder de influência, diante de entes reguladores que dispunham de
completa autonomia perante o poder político, não encontraram dificuldades para
implantar um mecanismo de pressão que acabasse por quase que determinar o
conteúdo da regulação que iriam sofrer. Os maiores prejudicados, por
conseqüência, foram os consumidores. Finalmente, em 1985, num processo que
continua até os dias de hoje, o modelo começou a se redefinir para que se
consolide um modelo regulador independente, mas com os controles externos
adequados para garantir essa independência."(13)
Como se vê, essas entidades
nasceram da indeclinável necessidade de mudança de curso do sistema capitalista
e da conseqüente alteração da postura do Estado em relação às relações
econômico-sociais engendradas por este sistema. Consolidadas e legitimadas pela
crise econômica dos anos 30 e pelos seus desdobramentos institucionais,
paulatinamente elas se aperfeiçoaram e se multiplicaram, integrando-se
definitivamente na estrutura administrativa do Estado norte-americano.
Numa etapa ulterior, que
fixaríamos arbitrariamente lá por volta dos anos 70, elas começam a ser
recepcionadas no ordenamento jurídico de alguns países de tradição jurídica
romano-germânica, como é o caso da França, onde a sua primeira aparição se dá
em 1978.
No Brasil, que também pertence a
essa última família jurídica, embora com cada vez mais numerosos elementos do
sistema da common law, elas aportam na segunda metade dos anos 90, no bojo do
processo de desengajamento do Estado da prestação direta de vários serviços
públicos.
Com efeito, no seu Título VII, a
Constituição de 1988 (CF/88) dispõe sobre a ordem econômica e financeira (14),
disciplinando especialmente o papel do Estado como agente normativo e regulador
e como executor subsidiário de atividades econômicas. Dispõe ainda sobre a
possibilidade de transferência à iniciativa privada da prestação de alguns
serviços que durante muito tempo estiveram sob controle estatal. No plano
infraconstitucional, a Lei 8987/95, regulamentando o mencionado artigo 175 da
CF/88, trouxe novas regras sobre o regime de concessões e permissões de
serviços públicos. Com fundamento na nova ordem constitucional e legal, foram
editadas as Leis 9.427/96, 9.472/97 e 9.478/97 que criaram respectivamente a Agência
Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a Agência Nacional de Telecomunicações
(Anatel) e Agência Nacional do Petróleo (ANP), às quais foi transferida a
atribuição regulatória dos setores de energia elétrica, das telecomunicações e
do petróleo (15). Posteriormente, a Lei 9.782/99 criou a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa), prenunciando, assim, a exemplo do que ocorreu
nos EUA e em outros países, um movimento de expansão dessas entidades, que
passam a ter poder de intervenção nos mais diversos setores em que se faz
necessária a presença reguladora e disciplinadora do Estado, e não apenas nas
áreas de atividade econômica outrora monopolizadas pelo poder público.
As agências podem ser criadas
tanto em âmbito federal quanto na esfera estadual, com o objetivo de regular a
prestação por operadores privados de serviços públicos delegados à iniciativa
privada. A reprodução dessa tendência regulatória tem seguido dois modelos: de
um lado, o "modelo setorial especializado", em que são criadas
diversas agências, uma para cada setor (como no caso das agências federais
supramencionadas); e o "modelo multissetorial", em que se cria apenas
uma agência incumbida da regulação de todos os serviços públicos prestados por
particulares, como é o caso do Estado do Rio de Janeiro, onde foi criada a
Asep-RJ (Agência Reguladora de Serviços Públicos), responsável pela
fiscalização e regulação de todos os serviços públicos objeto de concessão ou
permissão pelo Estado (16).
1.3 Estrutura organizacional,
atribuições e modo de funcionamento das agências
Em linhas gerais, pode-se dizer
que, no aspecto organizacional, o legislador brasileiro foi bastante tímido ao
estabelecer o figurino institucional e o modus operandi das nossas agências
reguladoras. Com efeito, constata-se que pouco se ousou nesse campo quando se
confrontam os novos entes com os seus similares do direito comparado.
De fato, as leis que criaram as
primeiras agências reguladoras grosso modo estabeleceram que elas serão
dirigidas por um diretor-geral e por outros tantos diretores, os quais atuarão
sob regime de colegiado. Previram também a existência de um ouvidor, a cargo de
quem fica a incumbência de zelar pela qualidade do serviço prestado pelas
empresas privadas bem como de solucionar eventuais problemas e reclamações dos
consumidores e usuários do serviço. O diretor-geral é nomeado pelo Presidente
da República, após aprovação da escolha pelo Senado Federal, com apoio no
permissivo constitucional do art. 52, III, "f", da Constituição de
1988 e das leis de criação das agências.(17)
Examinemos ainda que
superficialmente esse modelo de estruturação das nossas agências à luz do
direito comparado, sublinhando os riscos institucionais que ele encerra.
De saída, note-se que em razão do
caráter de manifesta preponderância do Poder Executivo e de uma certa tendência
do Legislativo nacional a renunciar a algumas das suas mais salientes e
importantes atribuições (a de controle do Executivo), as nossas agências já
nascem com a marca de um inequívo déficit democrático. Nomeados os seus
dirigentes máximos pelo Chefe do Poder Executivo mas sem a contrapartida de um
controle e triagem efetivos dessas nomeações por parte do Poder que representa
a soberania popular, as agências consagrarão, provalvemente, um processo ainda
mais intenso de fortalecimento do Executivo em detrimento do Legislativo. E o
que é mais grave: em um país sem uma verdadeira tradição de alternância
política, em que os homens vocacionados a aceder ao Poder têm invariavelmente o
mesmo perfil sócio-econômico e ideológico, é razoável temer que elas findem por
chancelar a hegemonia de um grupo político, de uma corrente específica de
pensamento e de um modo de conceber a sociedade. Noutras palavras, provavelmente
as agências constituirão um instrumento suplementar de fragilização da nossa já
frágil democracia.
Tome-se como exemplo concreto de
comparação a trajetória já longa das agências norte-americanas e das suas
similares do direito francês. Objeto de críticas acerbas (18) e das mais
variadas naturezas, a principal delas sendo a de que constituem uma usurpação
do poder que o povo delega aos órgãos representativos, as agências
norte-americanas foram paulatinamente se adaptando às exigências democráticas,
tentando assim se livrar da pecha de que seriam uma espécie de ditatura de uma
elite técnica, apolítica e irresponsável do ponto de vista político. Para
aplacar tais críticas as leis que instituíram algumas das mais recentes
agências americanas impõem um entendimento bipartidário como condição para
nomeação dos quadros dirigentes da entidade.
Já o direito francês foi ainda
mais longe. Adotando, por analogia, a fórmula escolhida pela Constituição da
Quinta República para a nomeação dos membros da Jurisdição Constitucional, a
legislação francesa sobre a matéria invariavelmente atribui, em proporções
absolutamente idênticas, a competência para nomear os dirigentes das Autorités
Administratives Indépendantes (denominação que tomam na França as agências
reguladoras) às três mais importantes autoridades políticas eleitas do Estado:
Presidente da República, Presidentes da Assembléia Nacional e do Senado.
Note-se, em primeiro lugar, a presença inequívoca de um elemento de checks and
balances: o Primeiro-Ministro, que é a autoridade responsável pela condução do
dia-a-dia da Administração e que é o seu chefe de fato e de direito, não tem em
princípio poder para nomear os diretores das agências reguladoras
independentes, cabendo tal atribuição ao Chefe de Estado, árbitro de toda a
vida institucional, e aos presidentes das Casas Legislativas, representantes da
soberania nacional. Por outro lado, tendo em vista as peculiaridades do sistema
político francês, no qual as duas Câmaras do Legislativo têm perfil ideológico
e comportamento político absolutamente distintos (19), bem como o fato de que o
fenômeno de coexistência institucional denominado Coabitação (20) não raro faz
com que a condução dos assuntos governamentais seja compartilhada por duas
personalidades pertencentes a partidos políticos adversários, o sistema ali
adotado parece ser mais consentâneo com as exigências democráticas. As agências
francesas, assim, são mais representativas das múltiplas sensibilidades
político-ideológicas em que se divide a nação. Ganha com isso a democracia.
Confrontando-se a forma de
nomeação escolhida pelo legislador brasileiro com esses exemplos do direito
comparado, chega-se à conclusão de que o Brasil manteve-se fiel à sua tradição
de pouco caso para com os princípios democráticos. Com efeito, as leis de
regência de nossas agências prevêem em alguns casos (21) a criação de um
Conselho Consultivo, órgão de participação institucionalizada da sociedade na
agência. Tal conselho é composto por representantes indicados pelo Senado
Federal, pela Câmara dos Deputados, pelo Poder Executivo, pelas entidades de
classe das prestadoras de serviços de telecomunicações, por entidades
representativas dos usuários e por entidades representativas da sociedade, nos
termos do regulamento. No entanto, trata-se de órgão meramente consultivo, eis
que suas recomendações não têm caráter vinculante para a direção da entidade,
que, esta, sim, é detentora de poder efetivo e permanece na prática sob a
influência solitária do Executivo. Entre nós, portanto, inexiste a contrapartida,
o indispensável contrepoids politique simbolizado na França pelo processo
tripartite de nomeação e, nos EUA, pelos esforços de bipartisanship já
mencionados, aos quais se acrescem os controles mais rigorosos exercidos sobre
as agências pelo Congresso.
1.3.1.As Atribuições e os Métodos
de atuação das agências
Como tem-se afirmado, as agências
norte-americanas são detentoras de funções «quase legislativas», quase
executivas e quase judiciais. Noutras palavras, a uma única agência podem ser
outorgadas as mais diversas e importantes atividades estatais, tais como a
edição de normas com força de lei e amplo e decisivo impacto sobre toda a
sociedade; a condução de investigações de certas condutas irregulares e a
conseqüente fixação de penalidades aos particulares responsáveis por essas
condutas; e o julgamento de certos litígios inerentes à atividade objeto de
regulação, dependendo da regulamentação específica de cada agência (22). Na
prática, as agências imitam as atividades dos três Poderes tradicionais.
Com relação à chamada função
quase executiva pouco há que se dizer, eis que ela em quase nada se diferencia
das atividades administrativas e executivas dos demais órgãos e entidades da
administração tradicional. As agências são, primordialmente, estruturas
administrativas inseridas no âmbito do Poder Executivo e com atribuições
típicas desse Poder, que são a de executar as leis votadas pelo Legislativo e
de conduzir e comandar as atividades governamentais, exercendo em especial o
chamado poder de polícia do Estado.
É na função propriamente
reguladora (rulemaking) ou quase legislativa que reside o cerne das atribuições
das agências independentes americanas. O interessante é que no exercício dessa
função normativa elas agem ora como um típico poder regulamentar, ora adotam
procedimentos mais comumente usados na prática do Poder Judiciário. Em
princípio, o rulemaking das agências consiste em editar prescritive
formulations ou legislative rules, isto é, normas regulamentares das atividades
incluídas no respectivo campo de especialidade, passando tais normas a ter
força de lei (subordinate legislation, na terminologia britânica), tanto para
os agentes econômicos envolvidos quanto para os usuários dos respectivos
serviços. Tais normas revestem-se de características que as aproximam das leis.
De um lado, o seu descumprimento sujeita o infrator às mesmas consequências
jurídicas previstas para a não observância das leis votadas pelo Congresso,
como, por exemplo, o pagamento de pesadas multas. Por outro lado, tais normas
são bem menos vulneráveis a ataques na via jurisdicional, eis que a tradição do
direito público jurisprudencial norte-americano é de outorgar ampla deferência
(23) à expertise dos órgãos e entidades especializados (24).
As rules editadas podem ser de
natureza substantiva (substantive rules), interpretativa (interpretive rules) e
procedimental (procedural rules). As substantive rules têm considerável força
jurídica por simbolizarem a própria delegação da competência normativa do
Legislativo e por serem as principais beneficiárias da mencionada deferência do
Judiciário, que deliberadamente nelas raramente se imiscui (25). Já o mesmo não
se pode dizer das interpretive rules, que são objeto de reexame judicial mais
freqüente, ainda que a intervenção do Judiciário se faça com bastante
parcimônia, pois, de acordo com a doutrina americana, "courts are not
supposed to supplant administrative discretion by substituting their judgment
for that of an agency on a matter of policy" ("não se presume que as
Cortes devam suplantar a discricionariedade da Administração, substituindo a
apreciação da agência pela sua, em matéria de política administrativa").
Já as procedural rules dizem respeito à estrutura organizacional de cada
agência, o seu modo de funcionamento, a sua prática cotidiana. Em suma, o seu
regimento interno.
Outra peculiaridade do processo
decisório-regulamentar das agências, que aproxima o seu modo de atuação ao
modus operandi do Legislativo, é a chamada notice-and-comment rulemaking, ou
seja, o procedimento legal por elas observado desde a proposição até a final
adoção de um determinada regulamentação. Aqui o elemento-chave são a
transparência e a interação com a sociedade. O procedimento transcorre da
seguinte maneira: antes de adotar uma norma destinada a regulamentar algum
aspecto da atividade incluída no seu âmbito de atuação, a agência promove
estudos, consulta experts e prepara um dossier acerca da necessidade daquela
regulamentação. Em seguida, publica toda a documentação e os planos concernentes
à regulamentação almejada no órgão oficial de divulgação governamental (Federal
Register), conclamando a população, os experts e as pessoas interessadas na
matéria a emitirem suas considerações sobre o tema dentro de um determinado
período de tempo. Ultrapassado o prazo estipulado e examinadas as observações
vindas do público, a agência edita a regulamentação.
As leis instituidoras de algumas
das agências reguladoras brasileiras copiaram, ou pelo menos tentaram copiar, o
notice-and-comment rulemaking das suas congêneres norte-americanas. Por
exemplo, o art. 42 da Lei da Anatel (9.472/97) estipula que "as minutas de
atos normativos serão submetidas à consulta pública, formalizada por publicação
no Diário Oficial da União, devendo as críticas e sugestões merecer exame e
permanecer à disposição do público na biblioteca". Já o artigo 44 da mesma
lei, com o objetivo de fomentar a participação da sociedade no processo
decisório da Anatel, estabelece que "qualquer pessoa terá o direito de
peticionar ou de recorrer contra ato da agência no prazo máximo de trinta dias,
devendo a decisão da agência ser conhecida em até noventa dias".
Quanto à chamada função
"quase judicial", ela repousa, primeiramente, no fato de que muitas
agências reguladoras americanas adotam um procedimento decisório de tipo
judicialiforme. Tal procedimento se ilustra por dois aspectos distintos. Em primeiro
lugar, pelo fato de que, ao invés de se decidirem as questões administrativas
pelo método clássico do exame burocrático através de diversos e sucessivos
órgãos e agentes hierarquizados de forma mais ou menos lógica, elas são
submetidas a um procedimento muito parecido com o que antecede as decisões
judiciais (trial-like procedure), envolvendo audiências públicas (hearings),
colheitas de depoimentos, intervenção de advogados representantes das partes
envolvidas e final decisão por parte de um órgão colegiado.
Em segundo lugar, a quase
judicialidade de algumas das atribuições das agências americanas é fruto, ao
nosso ver, do intricado e especialíssimo regime jurídico que o direito dos EUA
reserva às relações entre as agências e os órgãos do Poder Judiciário. A fim de
não nos alongarmos demasiadamente em detalhes desse regime jurídico, vamos nos
limitar à formulação de três afirmações simples e elucidativas: 1) o Poder
Judiciário americano pode, sim, rever as decisões das agências reguladoras; 2)
para que isso aconteça, porém, é preciso previsão legal expressa (em
consonância com o jargão: "there is law to apply"); 3) em um número
considerável de situações o exame judicial das decisões das agências não
ocorre, porque: a) a lei instituidora da agência excluiu expressamente o
reexame judicial da questão específica em disputa (statutory preclusion of
judicial review); b) a questão objeto de disputa é tida como da alçada
discricionária da agência (committed to agency discretion); c) seja por
deferência à especialização técnica das agências (26), seja por entender que,
ao julgar os litígios específicos da área posta sob sua regulamentação, elas
agem na qualidade de agents of the courts (agentes das Cortes de Justiça), os
órgãos do Judiciário confirmam na maior parte das vezes as decisões e escolhas
técnicas dessas entidades especializadas. Noutras palavras, o reexame judicial
das decisões das agências americanas se dá nos quadros do que poderíamos
qualificar como um controle jurisdicional minimalista. Ou seja, a função quase
judicial exercida pelas agências americanas decorre, de certa forma, da
preponderância que elas detêm na solução jurisdicional dos litígios que afloram
na sua área específica de atuação, indicando, no limite, que é tênue a
fronteira que separa a tão falada usurpação da função jurisdicional por esses
entes e a realidade de um superficial controle que o Judiciário,
deliberadamente, exerce sobre elas (27).
Por último, a função quase
judicial também se ilustra pela surpreendente emergência, em um país de common
law como os EUA, de um personagem típico do direito administrativo de tipo
francês: o juiz administrativo, mais comumente denominado ALJ (Administrative
Law Judge). O juiz administrativo norte-americano simboliza uma radical mudança
de tendência do direito de tipo anglo-saxão (28). Sua criação no seio das
agências constitui uma resposta às duras críticas que ao longo do tempo se
fizeram à anomalia institucional consistente em um mesmo ente (ainda por cima
vinculado ao mais perigoso dentre os Poderes, como provavelmente diriam
Hamilton e Bickel (29)) acumular as três funções governamentais básicas.
Preocupações com o caráter justo e razoável das decisões proferidas pelas
agências também estiveram na origem da criação dessa inovação institucional. Os
juízes administrativos ou juízes de direito administrativo são agentes estatais
qualificados aos quais a lei atribui função jurisdicional no âmbito das
agências. Denominados trial examiners ou hearing examiners nos primeiros tempos
de vigência da Lei de Procedimento Administrativo (Administrative Procedure Act
– APA) de 1946, eles tiveram o seu estatuto funcional aperfeiçoado ao longo do
tempo, gozando nos dias atuais de grande independência funcional em razão do
fato de se beneficiarem de estabilidade no emprego, de uma sólida garantia
estatutária que lhes é assegurada pelas leis do serviço público e do fato de
gozarem de um status diferenciado e isolado em relação às agências e os seus
servidores ordinários (30).
Ademais, além dessas garantias,
na medida em que foi aumentando o número de agências na paisagem administrativa
americana foram crescendo na mesma proporção as preocupações com a natureza dos
procedimentos e dos métodos decisórios por elas adotados. Muitas perplexidades
advinham do fato de que, em princípio, as agências não se submeteriam às regras
da common law e sim ao direito legislado (statutory law). Logo, a elas não se
aplicariam, em linha de princípio, inúmeras regras de due process que
constituem a marca do direito público do país. Para remediar essa situação, a
Lei de Procedimento Administrativo de 1946 e normas posteriores estenderam às
agências algumas das mais importantes garantias procedimentais do sistema
jurídico, tais como a exigência de hearings (audiência pública), separação das
autoridades incumbidas da investigação e do julgamento, imposição de regras
estritas sobre coleta de prova, presença de advogado, independência funcional
da autoridade titular da função jurisdicional no âmbito administrativo (juiz
administrativo), à qual foram estendidos os poderes clássicos de um trial
judge, isto é, de um membro do Poder Judiciário. O Judiciário, por seu turno,
estendeu ao procedimento das agências inúmeros preceitos do direito da common
law. Dessa evolução resultou uma verdadeira judiciarização do modo de atuar das
agências, em consonância com o entendimento doutrinário segundo o qual elas
seriam detentoras de funções quase judiciais (31). Se esse fenômeno de
judiciarização das agências passou por um processo de inequívoca consolidação,
indagações múltiplas ainda subsistem quanto à independência dessas entidades.
1.4.A independência das agências
A idéia fundamental que norteou o
surgimento das agências reguladoras foi a de se criar um ente administrativo
técnico, altamente especializado e sobretudo imperméavel às injunções e
oscilações típicas do processo político, as quais, como se sabe, influenciam
sobremaneira as decisões dos órgãos situados na cadeia hierárquica da
Administração. Para tanto, concebeu-se um tipo de entidade que, embora mantendo
algum tipo de vínculo com a Administração Central, tem em relação a ela um
acentuado grau de autonomia. Resta saber, precisamente, em que consiste essa
autonomia. O professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto (32) aponta, com a
acuidade de sempre, quatro aspectos fundamentais dessa autonomia, sem os quais
"qualquer ente regulador que se institua não passará de uma repartição a
mais na estrutura hierárquica do Poder Executivo, pois estará impossibilitado
de executar a política legislativa do setor, como se pretende que deva
fazê-lo". São eles: (a) a independência política dos gestores, que
"decorre da nomeação de agentes administrativos para o exercício de
mandatos a termo, o que lhes garante estabilidade nos cargos necessários para que
executem, sem ingerência política do Executivo, a política estabelecida pelo
Legislativo para o setor"; (b) a independência técnica decisional, que
assegura a atuação apolítica da agência, "em que deve predominar o emprego
da discricionariedade técnica e da negociação, sobre a discricionariedade
político-administrativa"; (c) a independência normativa, "um
instituto renovador, que já se impõe como instrumento necessário para que a
regulação dos serviços públicos se desloque dos debates político-partidários
gerais para concentrarem-se na agência"; e (d) a independência gerencial,
financeira e orçamentária, que "completa o quadro que se precisa para
garantir as condições internas de atuação da entidade com autonomia na gestão
de seus próprios meios".
De fato, todos esses fatores
elencados por Diogo de Figueiredo são de grande importância para a fixação da
autonomia das agências, especialmente o que diz respeito à estabilidade do
colegiado dirigente da entidade, que é a instância incumbida de tomar as
decisões capitais no âmbito de cada setor objeto de regulamentação.
Irrelevante, a nosso sentir, para a caracterização da independência, é a
criação de uma política de pessoal diferenciada, ou seja, um regime de
privilégios em relação aos demais agentes do Estado. Se a idéia da criação de
agências reguladoras era a de abrir um capítulo novo na história do Estado
brasileiro, uma visão lúcida da nossa evolução administrativa recomenda
simplesmente que não se adote esse fator como critério determinante de
independência, sob pena de, em razão das práticas clientelistas que certamente
se estabelecerão, as agências perderem inteiramente a credibilidade.
Advirta-se, contudo, que não
basta conferir estabilidade aos dirigentes de uma agência para que ela
automaticamente passe a ser independente. Mesmo nos EUA, onde o Congresso
exerce com zelo implacável a atribuição hoje crucial de todo órgão legislativo
(a fiscalização e o controle), e em que o sistema de checks and balances
funciona com razoável eficiência, não são raras as críticas de que as agências,
ao invés de atuarem em busca do cumprimento do interesse público, procuram
preferencialmente atingir seus próprios interesses e os de lobbies eficazmente
incrustados e com atuação concertada, tanto nos comitês do Congresso incumbido de
supervisioná-las, quanto no âmbito das atividades privadas que lhes incumbe
regulamentar e fiscalizar (33). Noutras palavras, é sério o risco de, ao se
retirar as agências do âmbito de influência da Política, submetê-las ao jugo de
forças econômicas poderosas.
2. A problemática constitucional
suscitada pelas agências reguladoras
São múltiplos os debates
constitucionais suscitados pela disseminação de agências reguladoras
independentes e pelas mudanças radicais na forma de organização do Estado que
elas provocam. Esses debates abordam desde os riscos institucionais que elas
representam em face da sua carência de legitimação democrática, passam pela
questão da separação de poderes e desembocam na discussão acerca da
intangibilidade do Poder incumbido da prestação jurisdicional.
2.1 A metamorfose do Estado e da
democracia
Os escritos de John Locke e
Montesquieu constituem, como se sabe, as bases teóricas mais sólidas da arte de
governar que vem sendo posta em prática no Ocidente desde o Século XVIII. De suas
obras foram extraídas as idéias que embasaram, no final do Século XVIII, as
primeiras Constituições escritas, notadamente a americana de 1787 e a francesa
de 1791. Ponto crucial nessas obras e conteúdo obrigatório de quase todas as
Constituições promulgadas desde então, o princípio da separação dos poderes,
que tem como corolário a proibição de delegação indiscriminada e de
concentração em apenas um dos três departamentos da essência do poder estatal,
constitui elemento incontornável da teoria constitucional moderna.
Locke, na famosa passagem em que discorre a
respeito da proibição de subdelegação, pelos Representantes, dos poderes que
lhe são atribuídos pelo Povo Soberano, já sustentava: "Fourthly, the
legislative cannot transfer the power of making laws to any other hands; for it
being but a delegated power from the people, they who have it cannot pass it
over to others. The people alone can appoint the form of the commonwealth,
which is by constituting the legislative and appointing in whose hands that
shall be. And when the people have said, we will submit to rules and be
governed by laws made by such men, and in such forms, nobody else can say other
men shall make laws for them; nor can the people be bound by any laws but such
as are enacted by those whom they have chosen and authorized to make laws for
them. The power of the legislative, being derived from the people by a positive
voluntary grant and institution, can be no other than what the positive grant
conveyed, which being to make laws, and not to make legislators, the
legislative can have no power to transfer their authority of making laws and
place it in other hands".(34)
Por seu turno, Charles de
Secondat, Baron de La Brède et de Montesquieu, ao abordar a crucial questão da
separação e do equilíbrio entre os poderes do Estado, assim se manifestou, em
passagem memorável: "Em cada Estado existem três espécies de poderes: o
poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das
gentes e o poder executivo das coisas que dependem do direito civil. Quando, na
mesma pessoa ou no mês corpo magistral, o poder de legislar se mistura ao poder
de executar, inexiste liberdade, pois é de se temer que o mesmo monarca ou o
mesmo Senado elabore leis tirânicas para fazê-las executar tiranicamente. Não há
liberdade quando o poder de julgar não é separado dos poderes de legislar e de
executar. Se ele (o poder de julgar, ndt) se unisse ao poder de legislar, o
poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz
seria legislador. Se ele se unisse ao poder executivo, o juiz poderia ter a
força de um opressor... Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo
de mandatários, de nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer
as leis, o de executar as decisões públicas e o de julgar os crimes e os
litígios entre os particulares" (35).
E prossegue Montesquieu, com a
célebre frase que atravessaria os séculos, sintetizando à perfeição a teoria da
contenção dos poderes: "C´est une expérience éternelle que tout homme qui
a du pouvoir est porté à en abuser; il va jusqu´à ce qu´il trouve des
limites...La vertu a besoin de limites. Pour qu´on ne puisse abuser du pouvoir, il faut que, par la
disposition des choses, le pouvoir arrête le pouvoir".(36)
O objetivo almejado tanto por
Locke quanto por Montesquieu ao conceberem a engenhosa teoria da separação de
poderes era um só: evitar o arbítrio, cuja ocorrência é inevitável quando a
essência do poder se concentra nas mesmas mãos, ou seja, em apenas um dos
Poderes do Estado. Daí a idéia de se dividir as funções estatais, atribuindo-as
a três departamentos distintos, e de se instituir mecanismos através dos quais
cada um deles possa interagir e controlar os excessos do outro (checks and
balances).
As idéias de Locke e Montesquieu,
como se sabe, atravessaram o Atlântico no século XVIII, vindo a constituir o
substrato teórico-filosófico crucial no processo de institucionalização da
primeira nação a adotar uma Constituição escrita (EUA), na qual se preconizava
justamente como uma das chaves do sistema constitucional o princípio da
separação dos poderes. Com efeito, nos chamados Federalist Papers, hoje
clássico da teoria política e do direito constitucional, James Madison, um dos
mais importantes membros da Convenção de Filadélfia, expôs de forma minuciosa e
didática os riscos e perigos institucionais que a concentração de poderes pode
engendrar e as precauções que devem ser tomadas para evitá-los. Daí a sua conclusão lapidar:
"Ambition must be made to counteract ambition".(37)
Alicerçada nesses ensinamentos de
filosofia política, durante cerca de um século e meio a teoria constitucional
ocidental convergiu em torno da já clássica distinção conceitual, segundo a
qual os sistemas de governo se caracterizariam, de um lado, pela rigidez da separação
de poderes típica do sistema presidencial de governo e, de outro, pela
flexibilidade e pela colaboração que seriam a marca do funcionamento desses
poderes no sistema parlamentarista.
Os EUA seriam, pois, o protótipo
do sistema presidencial, com as três funções estatais rigidamente distribuídas
entre departamentos estanques e independentes. Todas essas idéias foram
assimiladas e consolidadas pela prática institucional levada a efeito nesses
mais de 200 anos, tanto nos EUA, berço do regime presidencial, quanto nas
centenas de países que, à sua semelhança, adotaram o mesmo sistema de governo,
como é o caso do Brasil. Nos EUA, elas são recorrentes na doutrina e sobretudo
na jurisprudência da Corte Suprema. Robert Jackson, então membro da Corte Suprema, assim sintetizou a
fórmula da separação e contenção dos poderes: "While the Constitution
diffuses power the better to secure liberty, it also contemplates that practice
will integrate the disperserd powers into a workable government. It enjoins
upon its branches separatedness but interdependence, autonomy but
reciprocity".(38)
Ora, como conciliar tão claros e
inequívocos princípios proibitivos de acumulação de poderes em um dos
departamentos do governo com a existência, no âmbito do poder Executivo, de organismos
como as agências reguladoras? Como conciliar idéias tão díspares como a que
condena usurpação das funções de um poder pelo outro, e ao mesmo tempo
chancelar a introdução no aparelho de Estado de entidades vocacionadas a
exercer simultaneamente as três funções estatais?
O direito dos EUA ainda não
forneceu respostas satisfatórias a essas indagações. Como bem assinalou o
advogado e professor paulista Conrado Hübner Mendes, a jurisprudência da Corte
Suprema ainda é hesitante sobre a matéria. Se inúmeras agências independentes
foram até hoje criadas pelo Congresso, algumas delas dotadas de poderes
decididamente inusitados, credite-se isso ao pragmatismo dos americanos e à
conhecida plasticidade de suas instituições políticas, que em momentos
decisivos e dramáticos da história do país puderam sofrer as modificações e
adaptações necessárias sem maiores traumas institucionais.
A consolidação das agências
reguladoras na organização estatal americana se deu num desses momentos de
crise, que são, como todos sabem, férteis em inovações institucionais. Certo,
já foi dito à saciedade que a primeira agência data do final do Século XIX e
teve a sua criação determinada pela urgente necessidade de intervenção
governamental num setor específico da economia. Também é certo que a segunda
agência surgiu na segunda década do Século XX como parte das medidas antitruste
que se fizeram necessárias para coibir os abusos então comuns na prática
empresarial. Contudo, foi no período do New Deal, isto é, um período de
profunda crise econômica desencadeada pela Grande Depressão dos anos 30, à qual
se somou a crise institucional que opôs a Presidência à Suprema Corte (39), que
as agências tiveram sua consagração jurídica definitiva. Consagração essa que
foi facilitada, entre outros fatores, pela renúncia da Suprema Corte ao dogma
da separação absoluta e da indelegabilidade dos poderes, sobretudo do poder de
legislar.
As agências reguladoras
constituem, pois, a superação ou mitigação do dogma da não delegação da funções
específicas de cada um dos poderes estatais. O já vasto contencioso sobre o
tema mostra as idas e vindas da Corte Suprema sobre o assunto, demonstrando
algumas vezes uma certa hesitação, mas também muito pragmatismo e realismo,
atitudes típicas e desejáveis em órgão jurisdicional desse porte, que deve ser
composto em geral por estadistas, por pessoas de sólida formação jurídica mas
dotadas de uma longue vue acerca das questões nacionais de maior gravidade, e
jamais por práticos do direito, como parece ser a preferência dos meios
jurídicos brasileiros.
Assim, embora a Constituição
americana disponha em seu artigo I, § 1, que "todos os poderes
legislativos" são investidos no Congresso, incumbido de votar as leis
necessárias à condução dos negócios da nação, em inúmeras oportunidades a Corte
Suprema declarou a constitucionalidade de leis do Congresso delegando a função
legislativa primeiramente ao Chefe do Executivo e, num segundo momento, às
agências reguladoras, algumas delas revestidas de características
manifestamente heterodoxas, como veremos mais adiante. Casos houve, raríssimos
é verdade, em que a função legislativa foi delegada meio-a-meio ao Presidente e
a entidades puramente privadas (40), criando, assim, ocasião para o surgimento
de atos normativos cogentes bastante inusitados, de difícil «garimpagem» em
direito comparado, caracterizados do outro lado do Atlântico, isto é, no
direito administrativo francês, como décision administrative de droit privé.
A chave da questão reside nas
condições impostas casuisticamente pela Corte para aprovação dessas delegações.
Em primeiro lugar, ela examina com bastante rigor se o Legislativo delimitou
com a necessária precisão os objetivos de cada agência. Em seguida, ela
verifica se a lei instituidora da agência fixa critérios (standards) claros
para o exercício da função regulamentadora, perquirindo se não há margem para
abusos ou excessos (ultra vires) e estabelecendo a ponderação entre os
objetivos almejados com a criação do novo ente e a extensão dos poderes que lhe
serão conferidos. Por fim, examina se o ato legislativo abre espaço ao
exercício das garantias constitucionais clássicas, tais como a da cláusula due
process of law.
Em realidade, no exercício dessa
superior modalidade de jurisdição constitucional, muito mais do que as
considerações de ordem puramente jurídica, o que pesa de fato são as
necessidades de ordem prática. Elas são, como se sabe, de natureza múltipla. Em
primeiro lugar, elas resultam dos incontornáveis imperativos de mudança
determinados pelas situações de grave crise econômica. Em segundo lugar, elas
são uma consequência direta da enorme transformação por que vem passando o
Estado, que para dar solução rápida e eficaz aos problemas cada vez mais
frequentes e complexos da vida moderna, não pode prescindir de instrumentos
ágeis e eficazes de ação, não encontráveis na prática legislativa clássica. Por
fim, ainda na linha das explicações de ordem prática, a Corte Suprema dos EUA
parece ter-se rendido à evidência (tese cara aos defensores das agências) de
que para o bom funcionamento do Estado atual, intervencionista e não mais
abstencionista, bem como para a higidez da economia diversificada e em
constante mudança que lhe é subjacente, não se pode prescindir de supervisão
técnica especializada, especialização extremada e regulação uniforme e
sistematizada. Daí a concordância do tribunal para com o abandono, pelo
Legislativo, das magnas atribuições que o povo lhe confere no regime
democrático. A pragmática resignação da Corte a essas exigências da vida
moderna aparece evidente em alguns julgados, como se pode aferir em trechos de
casos como Bucley x Valeo e United States x Nixon (41):
"The men who met in Philadelphia in the
summer of 1787 were practical statesmen, experienced in politics, who viewed
the principle of separation of powers as a vital check against tyranny. But
they likewise saw that a hermetic sealing off of the three branches of
Government from one another would preclude the establishment of a Nation
capable of governing itself effectively".(42)
"En définissant la structrure de notre
gouvernement et en divisant le pouvoir souverain par une répartition entre
trois branches égales, les fondateurs de la Constitution on cherché à définir
un système d´ensemble, mais il n´était pas dans leur intention que les pouvoirs
séparés opèrent dans une independance absolue". (43)
Voltemos agora nossa reflexão
para as agências brasileiras. Constituiriam elas delegação inconstitucional da
função legislativa como começam a sustentar alguns? Sem querer adentrar o debate
vazio e sem sentido, segundo o qual estaríamos diante de um novo direito
administrativo que se substituiria ao velho direito administrativo de tipo
francês (44), preferimos nos alinhar com Carlos Ari Sundfeld, quando ele
sustenta que "nos novos tempos, o Poder Legislativo faz o que sempre fez:
edita leis, freqüentemente com alto grau de abstração e generalidade. Só que,
segundo os novos padrões da sociedade, agora essas normas não bastam, sendo
preciso normas mais diretas para tratar das especificidades, realizar o
planejamento dos setores, viabilizar a intervenção do Estado em garantia do
cumprimento ou a realização daqueles valores: proteção do meio ambiente e do
consumidor, busca do desenvolvimento nacional, expansão das telecomunicações
nacionais, controle sobre o poder econômico – enfim, todos esses que hoje
consideramos fundamentais e cuja persecução exigimos do Estado. É isso o que
justificou a atribuição de poder normativo para as agências, o qual não exclui
o poder de legislar que conhecemos, mas significa, sim, o aprofundamento da
atuação normativa do Estado(...) A constitucionalidade da lei atributiva
depende de o legislador haver estabelecido standards suficientes, pois do
contrário haveria delegação pura e simples de função legislativa. Saber qual é
o conteúdo mínimo que, nessas circunstâncias a lei deve ter é uma das mais
clássicas e tormentosas questões constitucionais, como se vê da jurisprudência
comparada, em países tão diferentes quanto os Estados Unidos, a Alemanha e a
França". (45)
O mesmo pode ser dito em relação
a uma suposta usurpação da função jurisdicional. É certo que no Brasil isso
seria constitucionalmente inviável em razão do inflexível princípio da proteção
judiciária insculpido no art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal. Esta é a
nossa tradição e esta foi a opção do constituinte de 1987/1988. Mas é ilusório
supor que o Judiciário, tal como concebido há mais de duzentos anos, e com o
arcaísmo que marca particularmente a sua praxis entre nós, esteja à altura do
desafio de dar solução rápida e eficaz aos conflitos de natureza cada vez mais
intricada gerados pela modernidade.
2.2 – O problema da legitimidade
das agências
Como já afirmamos neste ensaio, o
aparecimento das agências reguladoras no panorama da administração contemporânea
representa uma radical modificação de tudo o que até aqui se concebeu como
forma de organização das funções estatais. A dimensão da mudança é tamanha que
muitos autores chegam até mesmo a sustentar que esses novos organismos
constituem, em realidade, um quarto poder (46). Exagero ou não, o fato é que
muitas delas são detentoras de poderes imensos, podendo interferir de forma
decisiva em setores vitais para a coletividade, da sua ação (ou inação) ficando
inteiramente dependentes não apenas as atividades de natureza empresarial, mas
muitas vezes também a sobrevida do indivíduo-cidadão. A questão, inevitável,
que se coloca é: em que repousaria a legitimidade dessas entidades? Quais
fatores reais de poder estariam por trás das agências, impulsionando-lhes as
decisões? Em que medida fica assegurado, no seu processo decisório, o interesse
maior do povo, titular da soberania? Que mecanismos de controle seriam aptos a
impedir-lhes de descambar para o arbítrio e para o desvio de poder?
Essas questões não foram até hoje
respondidas de forma convincente, nem mesmo no berço histórico desse novo
instituto, os EUA, onde problemas dessa natureza são objeto de escrutínio
cerrado no âmbito da jurisdição constitucional. Lá, não obstante a validação
constitucional de um número significativo de entidades regulatórias
independentes, isto não se fez de forma consensual. Ao contrário, críticas
acerbas foram e continuam a ser feitas à Corte Suprema por haver sacrificado,
em nome de uma suposta eficiência governamental, o objetivo final almejado com
a teoria de separação de poderes, que é a proteção do cidadão contra o arbítrio
(47).
É certo que nos EUA as agências
gozam de uma certa legitimidade do fato de que a instituição de cada uma delas
se faz à luz de procedimentos até certo ponto democráticos, dos quais
participam de maneira efetiva os titulares dos dois poderes representativos da
soberania popular. Também é inegável o fato de que o Congresso americano, ao
instituí-las, não lhes confere carta branca, ao contrário, os limites dos
poderes regulatórios são estritamente fixados na lei de criação de cada
agência. Por último, conta em favor de uma maior legitimidade das agências
americanas o fato de que a elas foram paulatinamente sendo estendidas as
garantias constitucionais do devido processo legal, da equal protection of the
laws e das imposições e limitações da primeira emenda (48).
No Brasil, o questionamento da
legitimidade das agências se coloca de forma ainda mais aguda. Conrado Hübner
Mendes, examinando a questão sob a ótica do destinatário final de toda e
qualquer regulamentação, isto é, o cidadão-usuário, registrou com inteira
propriedade: "Identificamos no interior do processo decisório das agências
ao menos três tipos de interesses em jogo: o interesse do próprio Estado, o
interesse das empresas concessionárias e o interesse dos usuários. Desvelar
qual destes é atendido numa decisão concreta da agência é de fundamental
importância para não nos curvarmos à enunciação de um interesse público
genérico. Terá legitimidade democrática, portanto, a agência que der canais de
representação a cada um destes interesses".Mais adiante: "...Não há o
regime democrático.Há aqueles que se aproximam em maior ou menor grau da
hipótese ideal de democracia. As agências reguladoras se aproximam ou se
distanciam deste modelo ideal? Até onde a retórica não tem manipulado nossa já
limitada consciência? Existe algum mecanismo de participação popular (no
sentido de efetivamente ter peso na decisão, e não de dar meras opiniões
provindas dos portadores de boa vontade cívica)? Notamos que a esfera da
relação com maior carência de representatividade é, definitivamente, a parcela
dos usuários. A participação destes, ressalte-se, é extremamente dificultosa,
eis que são leigos nos assuntos eminentemente técnicos postos na pauta
decisória da agência. Para que emitam sua opinião, ao contrário dos
concessionários, que possuem toda a capacitação técnica e o poder de barganha
econômico para discutir, são necessárias traduções que demonstrem a essência dos
problemas postos na mesa".(49)
Como se vê, é bastante sério o
problema da legitimidade democrática das agências, que se agrava sobremaneira,
ao nosso sentir, em razão das mazelas da nossa vida institutional, do
artificialismo de muitas das nossas instituições, da apatia do povo face às
opções políticas fundamentais que lhe afetam e da precariedade dos diversos
mecanismos de controle previstos no nosso ordenamento jurídico.
3. A crescente e variada
"progenitura" das agências reguladoras
Símbolo da radical mudança na
concepção do papel do Estado operada nos Estados Unidos na virada do Século XIX
para o Século XX e intensificada no pós-New Deal, as agências reguladoras
independentes foram concebidas para viabilizar precipuamente a ingerência do
Estado nas atividades produtivas privadas de grande interesse público. Ao tempo
em que foram criadas as primeiras dessas entidades ninguém ousaria imaginar a
espetacular evolução e o profundo enraizamento que elas viriam a ter na vida
político-administrativa do país onde elas nasceram, tampouco a natureza
variadíssima das experiências e inovações institucionais que delas iriam
surgir, tanto no direito interno dos EUA quanto no ordenamento jurídico de
outros países.
No ordenamento jurídico interno
dos EUA, é certo que a grande maioria das agências até hoje criadas servem
majoritariamente ao propósito original de intervenção e correção das mazelas do
jogo econômico capitalista. Todavia, ao longo do tempo foram surgindo inúmeras
instituições inspiradas nesse modelo original (especialmente no aspecto
atinente à independência de que elas gozam em relação aos outros Poderes) mas
voltadas ao exercício de atribuições sem nenhuma ou com pouca pertinência com a
regulação de atividades econômicas. Este é o caso, por exemplo, da Equal
Employment Opportunity Commission (EEOC), agência criada nos EUA nos anos 60
com a incumbência de implementar as normas de promoção da igualdade no mercado
de trabalho em favor das minorias raciais e sexuais, objeto da Lei de Direitos
Civis de 1964 (50).
De uma certa maneira, também se
pode dizer que foi inspirado no figurino institucional das agências
independentes que o Congresso americano decidiu criar, em 1968, a figura hoje
controvertida do procurador independente (independent counsel), um agente
estatal ad hoc investido de amplos poderes investigatórios e persecutórios,
instituído casuisticamente para a persecução de crimes cometidos por altas
autoridades do Executivo, que de outra maneira não seriam processadas
criminalmente em razão das contradições derivadas do fato de que a função
persecutória entra no rol das atribuições do próprio Poder Executivo (51).
Entretanto, o mais intrigante
dentre os inúmeros filhotes resultantes da experiência das agências de natureza
econômica é a U. S. Sentencing Commission, que traduziríamos aproximativamente
como Comissão Federal de Sentenciamento Penal. Pela sua importância, por
constituir uma tentativa radical de erradicar uma moléstia institucional grave
(as chocantes discrepâncias verificadas no julgamento, no tratamento dos casos
e na fixação de penas no sistema criminal (52)) e pelo inusitado da sua
concepção, interferindo não apenas nas funções executiva e regulamentar do
Estado mas também – quem diria? – na função jurisdicional, permitimo-nos
alongar um pouco mais sobre essa modalidade especial de independent regulatory
commission.
A Comissão Federal de
Sentenciamento Penal é uma agência independente criada no seio do Poder
Judiciário americano, com a incumbência de editar normas e parâmetros estritos
de fixação de penas criminais (Sentencing Guidelines), normas essas de
observância obrigatória por parte dos dos membros do Judiciário federal.
Cabe-lhe revisar periodicamente as guidelines, estabelecer consultas com as
autoridades envolvidas na questão penal, emitir relatórios e recomendações ao
Congresso, bem como fixar as políticas genéricas indispensáveis ao cumprimento
dos objetivos da lei. A comissão é composta por sete membros detentores de um
mandato de seis anos, sendo três deles necessariamente juízes federais,
nomeados pelo Presidente da República após aprovação do Senado, a partir de uma
lista de seis nomes estabelecida pela Conferência Judicial dos Estados Unidos.
Note-se a ausência de corporativismo na estruturação da entidade, que embora
dotada de competências aptas a interferir diretamente no exercício da função
jurisdicional, não é composta majoritariamente por membros do Judiciário.
Também digno de nota é o fato de que a lei que instituiu a referida comissão
impõe um entendimento bipartidário para as nomeações, como já se tornou praxe
na matéria.
Como se vê, a exemplo do que
ocorre com as agências reguladoras tradicionais, a Comissão de Sentenciamento
Federal traduz um rompimento importante em relação às concepções teóricas
comumente aceitas até hoje em matéria de estruturação, divisão e independência
dos poderes estatais. Trata-se, com efeito, de uma profunda modificação de
alguns dos princípios norteadores da organização estatal posta em prática no
Ocidente nos últimos três séculos. Mais inusitado ainda, cuida-se de inovação
que interfere em uma das instituições estatais que tradicionalmente tem-se
notabilizado como a mais refratária a mudanças, a menos permeável a alterações
de natureza estrutural – o Poder Judiciário. De fato, as atribuições conferidas
à Comissão configuram, em primeiro lugar, uma clara limitação ao exercício da
livre convicção do magistrado. Em segundo lugar, cuida-se inequivocamente de
uma típica hipótese de delegação parcial de competência legislativa, e, o que é
pior, uma delegação abolutamente anômala, já que não se trata propriamente de
delegação ao Poder Executivo, como é usual, mas a uma comissão híbrida, isto é,
nomeada pelo Chefe de Estado com aprovação de uma das Câmaras Legislativas, mas
sem vinculação administrativa, seja ao Legislativo, seja ao Executivo. Em suma,
trata-se de um organismo literalmente independente inserido no âmbito de
atuação do Poder Judiciário, com total autonomia em relação à hierarquia deste
Poder, só podendo ocorrer a exoneração de seus componentes em hipóteses
excepcionalíssimas e por good cause shown. Por último, essa comissão
representaria uma manifesta violação da regra de separação dos poderes, eis que
ela consagra a introdução de um corpo estranho no aparato judicial, com poderes
para limitar sensivelmente a autonomia intelectual dos juízes, tida como uma
garantia indispensável da liberdade dos cidadãos.
Impugnada por
inconstitucionalidade perante a Corte Suprema, a lei que instituiu a Comissão
foi declarada conforme à Constituição, em uma decisão em que se registrou
apenas um voto divergente (53). Demonstrando uma considerável dose de realismo
e de pragmatismo, a Corte rejeitou as teses formalistas e originalistas segundo
as quais estar-se-ia diante de uma hipótese de violação do princípio de
separação dos poderes, rechaçando tais alegações com o seguinte argumento:
"The Framers did not require – and indeed rejected- the notion that the
three Branches must be entirely separate and [distinct]. In adopting [a] flexible understanding of
separation of powers [see Justice Jackson´s opinion in Youngstown], we simply
have recognized Madison´s teaching that the greatest security against tyranny
[lies] not in a hermetic division between the Branches, but in a carefully
crafted system of checked and balanced power within each Branch. [The] Framers
built into the tripartite Federal Government [a] self-executing safeguard
against the encroachment or aggrandizement of one branch at the expense of the
other.» «In cases specifically involving the Judicial Branch, we have expressed
our vigilance against two dangers: first, that the Judicial Branch neither be
assigned nor allowed tasks that are more appropriately accomplished by [other]
branches, Morrison, and second, that no provision of law impermissibly
threatens the institutional integrity of the Judicial Branch". (54)
À alegação de que a comissão
representaria uma violação da independência e da integridade do Poder
Judiciário (especialmente por obrigar os seus membros a compartilhar a
autoridade jurisdicional com pessoas estranhas a esse Poder; por conferir-lhes
atribuições estranhas à função judicante), a Alta Corte de Washington replicou
dizendo que naqueles argumentos havia mais fumaça do que fogo se examinados à
luz do propósito maior da lei, que era o de sanar a excessiva disparidade no
sentenciamento criminal. Reconhecendo, sim, que a Comissão de Sentenciamento
constitui um organismo bizarro na tradicional estruturação das funções
estatais, a Corte recusou-se, contudo, a invalidar o ato legislativo que
materializara a sua criação, afirmando que não ocorre violação do princípio de
separação dos poderes em razão da simples emergência de uma anomalia ou de uma
inovação. E concluiu
sobranceiramente: "None of our cases indicate that rulemaking per se is a
function that may not be performed by an entity within the [Judicial Branch]. In
light of this precedent and practice, we can discern no separation-of-powers
impediment to the placement of the Sentencing Commission within the Judicial
Branch. [That] Congress should vest such rulemaking in the Judicial Branch
[simply] acknowledges the role that Judiciary always has played, and continues
to play, in sentencing. [In] sum, since substantive judgement in the field of
sentencing has been and remains appropriate to the Judicial Branch, and the
methodology of rulemaking has been and remains appropriate to that Branch,
Congress´ considered decision to combine these functions in an independent
Sentencing Commission and to locate that Commission within the Judicial Branch
does not violate the principle of separation of powers".(55)
Para o comparatista familiarizado
com o direito público brasileiro, resta a constatação surpreendente de que no
caso acima comentado a Suprema Corte dos EUA convalidou uma lei federal de
profundas implicações no funcionamento e no arranjo tradicional das funções
estatais. Em Mistretta, com efeito, decidiu a Corte que não apenas a função
executiva do Estado pode ser objeto de delegação, mas também a função
legislativa, podendo essa delegação recair até mesmo em um organismo de
natureza híbrida. Portanto, é constitucionalmente viável a delegação da função legislativa,
desde que sejam fixadas regras e limites claros dentros dos quais o ente
delegatário deverá atuar. Decidiu também que a doutrina de separação dos
poderes não impede o Legislativo de buscar assistência nos outros dois poderes.
Porém, mais interessante e ainda mais surpreendente, tendo causado estupefação
até mesmo em alguns juristas americanos, é o fato de que, pela primeira vez na
história, a Corte Suprema, de maneira inequívoca, impôs ao Judiciário uma clara
limitação ao exercício de suas atividades constitucionais, em prol de um
organismo administrativo. Noutras palavras, uma típica camisa-de-força
hermenêutica.
3.1.A proliferação das agências
no direito europeu
À guisa de conclusão desta nossa
reflexão de direito público comparado, parece-nos oportuno lançar um rápido
olhar sobre o fenômeno jurídico-regulatório no continente europeu.
O dogmatismo exacerbado, o apego
a um tradicionalismo sem sentido e uma certa tendência insularizante têm levado
uma parcela da doutrina brasileira a repudiar a inovação institucional
materializada nas agências reguladoras. Aparentemente, tal repúdio ocorre pura
e simplesmente em razão da origem do instituto, isto é, o direito dos EUA. É
bem verdade que a falta de tradição de estudos de direito comparado, particularmente
sentida entre nós, contribui fortemente para essas tomadas de posição
equivocadas. Em realidade, o que o direito comparado nos ensina é que o
figurino institucional das agências está longe de constituir uma especificidade
do direito norte-americano. Certo, teve ali o seu berço. Mas trata-se muito
mais de uma evolução natural do Estado, da inelutável exigência de sua
intervenção de maneira especializada e eficaz em setores-chave da vida
econômica, em suma, uma decorrência natural do novo Estado de tipo
intervencionista que se substituiu ao Estado abstencionista oitocentista (56).
Daí que a Europa também seguiu a
tendência norte-americana de se criar agências reguladoras independentes com
poderes de normatizar e fiscalizar certas áreas da atividade econômica
revestidas de grande interesse público. Bem antes, portanto, de serem
recepcionadas pelo direito brasileiro essas entidades aportaram no direito
europeu com toda a carga de indagações jurídicas que marcaram a sua evolução no
direito norte-americano.
No direito francês (57), por
exemplo, foram introduzidas algumas agências mais ou menos decalcadas do modelo
norte-americano. Por ocasião da instituição de cada uma delas, as mesmas
questões constitucionais debatidas nos EUA vieram à tona. São representativas
dessa tendência, dentre outras, a Commission des Opérations de Bourse
(equivalente da nossa CVM e da SEC americana), uma entidade colegiada
independente, composta de dirigentes nomeados com mandato fixo, com atribuições
para regulamentar e fiscalizar o mercado de títulos mobiliários e todas as
atividades e operações inerentes ao mercado de capitais. Dispõe não apenas de
poderes quasi législatifs mas de vastos poderes fiscalizatórios tais como o de
busca e apreensão; o Conseil de la Concurrence (similar ao nosso CADE e à FTC
americana); e o Conseil Supérieur de l´Audiovisuel, uma autoridade
administrativa independente, criada para ser um instrumento de garantia de um
dos mais importantes direitos fundamentais, a liberdade de comunicação audiovisual,
derivada da liberdade de comunicação, prevista no artigo 11 da velha e
conhecida Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, editada no
auge da tormenta revolucionária de 1789 e até hoje em pleno vigor, servindo de
paradigma ao balizamento constitucional de quase toda a vida institucional
francesa, como parte que é do chamado Bloc de Constitutionnalité. (58)
O Conselho Superior do
Audiovisual é, assim, a autoridade administrativa independente francesa dotada
de poderes para outorgar concessões, normatizar, fiscalizar e eventualmente
punir as empresas públicas (59) e privadas que operam no setor da comunicação
audiovisual. Trata-se de uma entidade de formato colegiado, cujos membros são
detentores de mandatos fixos, nomeados em números iguais pelo Presidente da
República, pelo Presidente do Senado e pelo Presidente da Assembléia Nacional,
gozando de relativa independência de gestão em relação ao Poder Executivo mas
nem tanto em relação ao Legislativo, uma vez que já se decidiu, em sede de jurisdição
constitucional, que o legislador pode a qualquer momento aprovar uma lei
alterando o seu regime jurídico e, por via de consequência, encerrando os
mandatos dos respectivos conselheiros. Registre-se que esse tipo de ocorrência
não é incomum, sendo uma decorrência natural das alternâncias e aleas do
sistema parlamentar de governo e da bipolarização extremada que caracteriza a
vida política francesa (60).
No que pertine à natureza e à
extensão das atribuições que normalmente são conferidas aos organismos
reguladores independentes, o CSA e as demais autoridades administrativas
francesas ficaram aquém das similares americanas, graças ao rígido
enquadramento constitucional que lhes foi imposto pelo Conselho Constitucional.
Com efeito, a Alta Jurisdição constitucional francesa decidiu, puramente e
simplesmente, que as autoridades administrativas independentes não dispõem de
poder jurisdicional, submetendo-se todos os seus atos seja à Justiça
Administrativa (caso do CSA), seja à Justiça Comum (caso de algumas das
atribuições da COB, bem como de toda e qualquer medida dessas entidades
suscetível de interferir na liberdade individual). No que tange à função
regulamentar, o Conselho Constitucional não reconheceu a essas entidades a
titularidade de um pouvoir règlementaire autonome. Ao contrário, consolidou o
entendimento de que o poder regulamentar geral pertence ao Chefe de Governo,
isto é, ao Primeiro Ministro, cabendo às agências tão somente um poder
regulamentar limitado na sua extensão e no seu conteúdo. Noutras palavras, como
disse o professor Louis Favoreu com bastante precisão, trata-se de um pouvoir
subordonné et second em relação ao pouvoir réglementaire national, titularizado
pelo chefe do gabinete.
Já no que diz respeito à alegação
de que as agências francesas constituiriam uma violação ao princípio de
separação dos poderes, especialmente por disporem do formidável poder de
aplicar pesadas multas às empresas privadas, o que seria uma atribuição
exclusiva do Poder Judiciário, o Conselho Constitucional não acolheu o
argumento, afirmando em um dos mais importantes consideranda do julgado:
"Considerando que o princípio de separação dos poderes, como nenhum outro
princípio ou regra de valor constitucional, não impede que uma autoridade
administrativa independente, agindo com prerrogativas de supremacia (puissance
publique), possa exercer um poder punitivo, desde que, de um lado, a sanção a
ser aplicada exclua toda privação da liberdade e, de outro lado, que o
exercício do poder sancionatório seja legalmente acompanhado de medidas
destinadas a salvaguardar os direitos e liberdades constitucionalmente
garantidos" ("Considérant que le principe de la séparation des
pouvoirs, non plus qu´aucun principe ou règle de valeur constitutionnelle ne
fait obstacle à ce qu´une autorité administrative, agissant dans le cadre de
prérogatives de puissance publique, puisse exercer un pouvoir de sanction dés
lors, d´une part, que la sanction susceptible d´être infligé est exclusive de
toute privation de liberté et, d´autre part, que l´exercice du pouvoir de
sanction est assorti par la loi de mesures destinées à sauvegarder les droits
et libertés constitutionnellement garantis").
Notas
(1) John Locke, "Second Treatise of Civil
Government", Section 141 (1690).
(2) Montesquieu, "l´Esprit
des Lois", Paris, 1748.
(3) V. Cass Sustein, "Constitutionalism
After the New Deal", 101 Harvard Law Review, 421; Gary Lawson, "The
Rise and Rise of the Administrative State", 107 Harvard Law Review, 1231;
Cass Sustein, "Lochner Legacy", 87 Columbia Law Review, 873; v. na
mesma linha, Bruce Ackerman, "We the People: Foundations", ed. Harvard
University Press, 6a edição, 1999, especialmente o capítulo "One
Constitution, Three Regimes", p.58.
(4) Em nossa livre tradução:
"O processo administrativo (de regulação e intervenção no campo econômico,
ndt) constitui, em essência, a resposta da nossa geração às deficiências dos
processos judicial e legislativo. Ele simboliza nossos esforços no sentido de
resolver tais deficiências por métodos que não sejam o mero incremento do poder
do executivo. Se é certo que a doutrina da separação de poderes implica
divisão, é também certo que ela implica igualmente equilíbrio, e equilíbrio
requer igualdade. A criação do poder administrativo pode ser o meio de
preservar esse equilíbrio, de maneira tão paradoxal que, embora isso possa
parecer em violação teórica à doutrina de separação de poderes, na prática isso
pode ser o meio de se preservar o conteúdo dessa doutrina". V. James M. Landis, "The
Administrative Process", 1938.
(5) Cf. CF., art. 37, § 8º e Lei
9.649/98, art. 51.
(6) Caio Tácito, "A Reforma
do Estado e a Modernidade Administrativa", in RDA 215: 1-7(1999).
(7) É praxe no sistema político
americano o presidente nomear para esses cargos apenas pessoas pertencentes ou
conectadas à sua própria família política. Contudo, um certo espírito de
political fairness ao qual se acresce o desejo de aplacar as críticas contra
uma possível partidarização excessiva dessas entidades, que desempenham um papel
de primeira ordem no desenho institucional do Estado moderno, tem feito com que
as leis instituidoras de algumas das mais importantes agências reguladoras dos
EUA prevejam a observância obrigatória, no processo de nomeação dos respectivos
dirigentes, daquilo que os americanos classificam como «bipartisanship», isto
é, a nomeação para o quadro dirigente das agências de pessoas pertencentes aos
dois lados do espectro político, evitando assim que elas se constituam em
instrumento de perpetuação da hegemonia de um grupo e de suas idéias num
determinado setor da vida econômica e social.
(8) Sobre a natureza de autarquia
especial da Anatel, veja o que estabelece o art. 8º, § 2º da Lei 9.472/97:
"A natureza de autarquia especial conferida à Agência é caracterizada por
independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato
fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira".
(9) Di Pietro, Maria Sylvia,
"Direito Administrativo", São Paulo, Ed. Atlas, 2000.
(10) Perez, Marcos Augusto,
"As agências reguladoras no Direito Brasileiro: origem, natureza e
função". Revista trimestral de Direito Público, nº 23
(11) V. Wald, Arnoldo e Moraes,
Luiza Rangel. "Agências Reguladoras", Revista de Informação
Legislativa, ano 36, nº 141, jan./mar. 1999, p. 143-171.
(12) V. Melo, Celso Antonio
Bandeira, "Curso de Direito Administrativo", São Paulo, ed.
Malheiros, 2000.
(13) Conrado Hübner Mendes,
"Reforma do Estado e agências reguladoras: estabelecendo os parâmetros de
discussão", in "Direito Administrativo Econômico", Carlos Ari
Sundfeld (Coordenador), São Paulo, Malheiros, 2000, p. 99.
(14) Artigos 170 a 181.
(15) É importante lembrar que em
sede constitucional só há previsão para a criação de duas agências: a Anatel
(art. 21, XI, in fine); e a ANP (art. 177, § 2º, alínea "c")
(16) Segundo Marcos J. V. Souto,
a ASEP "caracteriza-se por ser, como várias agências estaduais,
multissetorial, encarregada da regulação de diversas áreas, tais como energia
(gás), transporte (metrô, barcas, trens e rodovias) e saneamento, além de
receber delegação federal para exercer parcialmente a fiscalização na área de
energia."
(17) V. artigo 8º e 23 da Lei
9472/97 (Anatel); art. 5º § 2º da Lei 9.427/96(Aneel).
(18) V. Cass Sustein, "Constitutionalism
After the New Deal", op. cit, p. 421.
(19) De forma sumária, poderíamos
dizer que são as seguintes as características principais das duas Casas do
Parlamento francês: o Senado, eleito por sufrágio indireto, é mais conservador
e tradicionalista, e se identifica mais facilmente com a chamada France
profonde, ou seja, com aquele segmento da nação adepto dos os valores da vida
rural, de província. Crítico feroz do papel institucional reservado ao Senado,
Maurice Duverger certa vez qualificou essa instituição, em frase ferina e
mordaz, de Chambre Rurale. Decididamente, trata-se de um típico elemento de
contrepoids do sistema político. Já a Assembléia Nacional, eleita pelo sufrágio
direto, é o órgão legislativo onde têm assento todas as correntes ideológicas
da Nação. Perante ela se exercem, em essência, os mais importantes mecanismos
do sistema parlamentar de governo, tais como o voto de confiança, a moção de
censura e a dissolução.
(20) Designação dada à situação
institucional viabilizada pela Constituição francesa de 1958 que, ao conceber
um poder Executivo bicefálico, tornou possível a coexistência ou «coabitação»
na chefia do Poder Executivo de dois adversários políticos, vale dizer, dois
dirigentes que representam duas vertentes ideológicas distintas. A bicefalia do
Executivo resulta da existência, de um lado, de um Presidente da República,
isto é, de um Chefe de Estado eleito pelo sufrágio universal direto e dispondo
de vastos poderes constitucionais; de outro, da presença de um
Primeiro-Ministro investido da confiança dos Representantes do Povo, ou seja,
da Assembléia Nacional. De 1958 a 2001, a vida institucional francesa passou por
três Coabitações: entre 1986 e 1988: François Miterrand, Presidente e Jacques
Chirac, Primeiro-Ministro); 1993-1995: François Miterrand, Presidente e Édouard
Balladur, Primeiro Ministro; desde 1997: Jacques Chirac, Presidente e Lionel
Jospin, Primeiro-Ministro).
(21) V. art. 33 da Lei 9.472/97.
(22) Tome-se como exemplo
concreto a Federal Trade Commission, uma das mais antigas e poderosas agências
reguladoras do Direito norte-americano. A FTC tem, em primeiro lugar,
atribuição para editar normas de validade nacional definindo quais os tipos de
conduta constituem prática empresarial violadora do princípio da livre
concorrência (função legislativa). Em segundo lugar, ela dispõe de poderes para
instaurar procedimento investigativo destinado a verificar se as empresas estão
cumprindo fielmente as normas por ela baixadas (função executiva). Por fim,
cabe-lhe julgar as acusações de violação das regras de concorrência que emergem
da sua própria investigação (função judicial). Ou seja, em inúmeras situações a
FTC faz as vezes de legislador, de polícia judiciária, de Ministério Público,
de jurado e de juiz!
(23) Um estudo realizado em 1990
mostrou que nos anos de 1986 e 1987 a Corte Suprema dos EUA validou 70% das
decisões das agências. V.
Steve Cann, "Administrative Law", 2a edição, Sage Publications,
London, 1998, p. 96.
(24) V. Antonin Scalia, "Judicial
Deference to Administrative Interpretations of Law", Duke Law Journal,
1989, p. 511.
(25) V. Scalia, op. cit., p. 511.
(26) Confira-se, por pertinente,
o que decidiu a Corte Suprema em um leading case na matéria: "Os juízes
não são especialistas na matéria (sob regulamentação) e não são parte de nenhum
dos poderes políticos do Estado. As Cortes devem, em certos casos, exercer a
conciliação entre interesses políticos antinômicos, mas não à luz da
preferência pessoal de cada juiz (por uma determinada política administrativa:
n.d.t)... Se é certo que as agências não são diretamente responsáveis perante o
povo, o Chefe do Executivo (e o Congresso) o é, e é absolutamente apropriado
que os poderes políticos do Estado façam tais escolhas" ("Judges are
not experts in the field (being regulated), and are not part of either
political branch of government. Courts
must, in some cases, reconcile competing political interests, but not on the
basis of the judges´ personal policy preferences...While agencies are not
directly accountable to the people, the Chief Executive (and Congress) is, and
it is entirely appropriate for (the political branches of government) to make
such policy choices"). V. "Chevron USA, Inc. v. Natural Resources
Defense Council, Inc.", 467 US 837 (1984);confira-se, igualmente, com a
mesma linha de raciocínio: "Não cabe às Cortes substituir as decisões
científicas e técnicas das agências pelas suas avaliações" ("The
courts have no business substituting their judgments for the scientic and
technical decisions of the agencies" (v. "Baltimore Gas & Elec.
Co. v. Natural Resources Defense Council", 462 US 87 – 1983)
(27) V. sobre o assunto, William F. Fox, Jr,
"Understanding Administrative Law", 2nd edition, ed. Matthew Bender,
New York, 1992; para análise de algumas contribuições importantes sobre o tema,
embora menos atuais, confiram-se: Louis Jaffe, "Judicial Control of
Administrative Action", 1965; Keneth Culp Davis, "Administrative
Arbitrariness Is Not Always Reviewable", 51 Minnesotta Law Review, 643
(1967).
(28) O surgimento da figura do
juiz administrativo em um país da Common Law como os EUA, além de constitutir
uma dessas inesperadas reviravoltas proporcionadas pela História, ilustra à
perfeição o processo de «metamorfose» por que passa o Estado moderno, e que
este estudo modestamente tenta demonstrar. Como se sabe, Justiça Administrativa
sempre foi considerada anátema para o sistema jurídico da Common Law. O fato de
países dessa família jurídica recepcionarem até mesmo um arremedo desse
instituto constitui, sem dúvida alguma, mudança de tendência extraordinária.
Sobre o assunto, veja-se a famosa catilinária lançada contra o sistema de
justiça administrativa francês por um dos mais célebres juristas ingleses,
Albert Venn Dicey, no seu clássico "Introduction to the Study of the Law
of the Constitution", 8th edition, Macmillan, 1915; v. também, A. W.
Bradley e K. D. Ewing, "Constitutional and Administrative Law",
eleventh edition, ed. Longman
Publishing, New York, 1993, p. 604.
(29) Alexander M. Bickel, "The Least
Dangerous Branch – The Supreme Court at the Bar of Politics", Yale
University Press, 1962.
(30) O esforço pelo incremento da
independência dos Administrative Law Judges americanos se deu ainda em dois
outros planos. Em primeiro lugar, pela melhora significativa da respectiva
remuneração: quanto maior o salário, maior a independência. Repete-se aqui a
mesma evolução ocorrida com os membros do Poder Judiciário na sua luta por uma
remuneração digna e, por via de conseqüência, por mais independência em relação
aos dois outros Poderes. Em segundo lugar, eles foram retirados dos quadros
funcionais e da linha hierárquica das agências, passando a integrar um quadro à
parte, vinculado a uma outra instituição da Administração americana, a U. S.
Civil Service Commission. Para se ter um bom aperçu da situação funcional dos
Administrative Law Judges e da sua luta por maior independência funcional,
confira-se o caso "Ramspeck v. Trial Examiners Conference", 345 US
128 (1953)
(31) V. John F. Duffy, "Administrative Common
Law in Judicial Review", Texas Law Review, 1998, p. 113. Para
maiores informações sobre common law em vernáculo, consulte-se o excelente
"Common Law – Introdução ao Direito dos EUA", de autoria de Guido
Fernando Silva Soares, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1999.
(32) Diogo de Figueiredo Moreira
Neto, "A Independência das Agências reguladoras", in Boletim de
Direito administrativo, Junho/2000. P. 416-418
(33) V. J. Wilson, "The Politics of
Regulation" (1980); Richard B. Stewart, "Madison´s Nightmare",
University of Chicago Law Review, 335/57 (1990).
(34) Em tradução livre: "Em
quarto lugar, o legislativo não pode transferir o poder de elaborar as leis
para outras mãos; pois em se tratando de um poder delegado do povo, aqueles que
o recebem não podem entregá-lo a outrem. Somente o povo pode determinar a forma
de organização da comunidade (Estado), mediante a instituição de um legislativo
e a indicação daqueles em cujas mãos essa atribuição repousará. E uma vez que o
povo disse, nós nos submeteremos às leis e seremos governados pelas leis
elaboradas por esses homens, (na forma por eles determinada), então ninguém
mais pode dizer que outros homens farão leis por eles; tampouco pode o povo
vincular-se a outras leis que não sejam aquelas votadas por aqueles que ele
escolheu e autorizou a fazer leis em seu nome. O poder do legislativo, sendo
derivado do povo através de uma outorga voluntária e positiva, não pode ser
outro senão o contido na outorga concedida, que é o de fazer leis e não
legisladores, daí segue que o legislativo não pode dispor do poder de
transferir a sua autoridade de fazer as leis, colocando-a em outras mãos".
V. John Locke, "Second
Treatise of Civil Government", Section 141 (1690).
(35) No original: "Il y a dans chaque État
trois sortes de pouvoirs: la puissance législative, la puissance exécutrice des
choses qui dépendent du droit des gens, et la puissance exécutrice de celles
qui dépendent du droit civil...Lorsque dans la même personne ou dans le même
corps de magistrature, la puissance législative est réunie à la puissance
exécutrice, il n´y a point de liberté, parce qu´on peut craindre que le même
monarque ou le même Sénat ne fasse des lois tyranniques pour les faire exécuter
tyranniquement. Il n´y a point de liberté si la puissance de juger n´est pas
séparée de la puissance législative et de l´exécutrice. Si elle était jointe à la
puissance législative, le pouvoir sur la vie et la liberté des citoyens serait
arbitraire; car le juge serait législateur. Si elle était jointe à la puissance
exécutrice, le juge pourrait avoir la force d´un oppresseur... Tout serai perdu
si le même homme, ou le même corps des principaux, ou des nobles, ou du peuple,
exerçaient ces trois pouvoirs: celui de faire les lois, celui d´exécuter les
résolutions publiques, et celui de juger les crimes ou les différends des
particuliers". V. Montesquieu, op. cit.
(36) Em tradução livre:
"Constitui uma experiência eterna a de que todo homem que detém o poder é
levado a usá-lo abusivamente. Ele o faz até encontrar limites. A virtude
precisa de limites. Para que não se possa abusar do poder, é necessário que,
pela disposição das coisas, o poder limite o poder". V. Montesquieu,
"L´Esprit des lois", 1748, capítulo VI.
(37) V.Hamilton, Madison, Jay,
"The Federalist Papers", nº 51, edição e introdução de Clinton
Rossiter, ed. Penguin Books, NY, 1961.
(38) Nossa tradução livre:
"Ao mesmo tempo em que a Constituição dilui o poder para melhor assegurar
a liberdade, ela também não negligencia (o fato de) que a prática fará dos
poderes dispersos uma máquina governamental funcional. Aos poderes ela impõe
separação com interdependência, autonomia com reciprocidade". V. voto de R. Jackson no caso
"Youngstown Sheet & Tube Co. v. Sawyer", 343 US 579 (1952).
(39) Crise causada pelo
conservadorismo ideológico da Corte Suprema, que em plenos anos 30 ainda
insistia em manter-se apegada a um ultrapassado laissez-faire oitocentista,
fundado no caráter absoluto do direito de propriedade. Ameaçada pelo Presidente
Roosevelt de ver sua composição aumentada (Packing of the Court), a Corte
finalmente cedeu, conferindo seu beneplácito às medidas de caráter social do
New Deal. A essa guinada espetacular da Corte tornou-se comum a referência
irônica: "switch in time that saved nine!"
(40) V. "A.L.A. Schechter Poultry Corp. v.
United States", 295 U.S. 495(1935).
(41) Respectivamente, 424 US 1,
121 (1976) e 418 US 683 (1974)
(42) "Os homens que se
reuniram em Filadélfia no verão de 1787 eram estadistas práticos, experientes
em política, que viam o princípio da separação dos poderes como uma proteção
vital contra a tirania. Mas da mesma forma eles percebiam que o enclausuramento
dos três ramos do Poder impediria o estabelecimento de uma Nação capaz de se
governar eficazmente".
(43) Tradução livre: "Ao
definir a estrutura do nosso governo e ao dividir o poder soberano através da
repartição em três ramos iguais, os fundadores da Constituição procuraram
definir um sistema de conjunto, mas não tinham em mente que os três poderes
separados operassem em absoluta independência".
(44) Em realidade, a análise
comparada nos permite constatar que, em certos aspectos, o surgimento das agências
reguladoras na common law simboliza muito mais uma aproximação do que um
distanciamento do direito administrativo de tipo francês. Exemplos dessa
aproximação: a criação de um arremedo de Justiça Administrativa; exigência de
esgotamento da instância administrativa antes de se recorrer à Justiça Comum
(ripeness and exhaustion); previsão de recurso das decisões das agências
diretamente a um órgão jurisdicional de segundo grau e não a um juiz de
primeira instância. Isto para não mencionar o fato de que em matéria de
separação de poderes e funções governamentais, é nas instituições francesas que
encontramos um exemplo inequívoco (e contestável) de revolução jurídica: a
radical separação entre o que é do domínio da lei e o que é do domínio do
regulamento, com preponderância para este último, já que o Parlamento só pode
legislar sobre as matérias expressamente elencadas na Constituição, todo o
resto caindo na competência legislativa do Executivo. V. Constituição francesa,
art. 34.
(45) V. Carlos Ari Sundfeld, op.
cit, p. 29.
(46) Esse ponto de vista foi
sustentado por um membro da Corte Suprema dos EUA, Justice Robert Jackson,
ainda nos anos 50, em caso envolvendo aquela que é talvez a mais poderosa
agência reguladora americana, a Federal Trade Commission (FTC). Disse Jackson: "Administrative
bodies such as the FTC have become a veritable fourth branch of Government
which has deranged our three-branch legal theories...Administrative agencies
have been called quasi-legislative, quasi-executive or quasi-judicial, as the
occasion required in order to validate their functions within the
separation-of-powers scheme of the Constitution. The mere retreat to the
qualifying quasi is implicit with confession that all recognized
classifications have broken down, and quasi is a smooth cover which we draw
over our confusion as we might use a conterpane to cover a disordered
bed". V. "FTC v. Ruberoid Co", 343 US 470 – 1952 – voto
divergente.
(47) Confira-se, nesse sentido, a observação
incisiva de um dos grandes nomes da Corte Suprema americana no século 20,
William Douglas, proferida no julgamento do caso "Youngstown Sheet and
Tube Co. v. Sawyer", 343 US 579(1952): "The doctrine of the
separation of powers was adopted by the Convention of 1787, not to promote
efficiency but to preclude the exercise of arbitrary power. The purpose was not
to avoid friction, but, by means of the inevitable friction incident to the
distribution of the governmental powers among three departments, to save the
people from autocracy". (Em tradução livre: "A doutrina da
separação de poderes foi adotada pela Convenção de 1787, não para promover a
eficiência (governamental, ndt), mas para impedir o exercício de poder
arbitrário. O propósito não era o de evitar o conflito, mas sim, através do
inevitável confronto inerente à repartição de atribuições governamentais entre
os três poderes, o de proteger o povo contra a autocracia"). Na mesma linha, v. também Rebecca
Brown, "Separated Powers and Ordered Liberty, University of Pensilvania
Law Review", 1513 (1991).
(48) V. Peter L. Strauss, "The Place of
Agencies in Government: Separation of Powers and the Fourth Branch", 84
Columbia Law Review, 573 (1984)
(49) Sobre diversos aspectos do
tema deste artigo, v. "Direito Administrativo Econômico", Carlos Ari
Sundfeld (org), ed. Malheiros, São Paulo, 2000. Imprescindível, essa obra traz
valorosas contribuições de uma dezena de autores da mais alta qualificação.
Especificamente sobre o tópico tratado acima, v. Conrado Hübner Mendes,
"Reforma do Estado e Agências Reguladoras: Estabelecendo os Parâmetros de
Discussão", p. 131.
(50) Sobre a EEOC e sobre outros
assuntos concernentes ao problema da igualdade entre negros e brancos, entre
homem e mulher nos EUA, v. nosso "Ação Afirmativa & Princípio
Constitucional da Igualdade", editora Renovar, Rio de Janeiro, 2001.
(51) Heteredoxo ao extremo à luz
das regras típicas de organização estatal do sistema presidencial de governo, o
Independent Counsel é nomeado segundo um procedimento administrativo híbrido.
Surgidos os primeiros indícios de envolvimento de uma autoridade de nível
elevado em atividades criminosas, cabe ao Ministro da Justiça (Attorney General
of the United States) acionar uma Câmara especial da Corte de Apelação Federal
sediada em Washington. Sobre essa Câmara Especial (Special Division) recai a
incumbência de nomear o Procurador Independente para investigar aquele caso
específico, com todos os recursos humanos e materiais necessários ao desempenho
da sua função. Sua destituição é da alçada do Ministro da Justiça, mas só pode
ocorrer em casos excepcionalíssimos, em que fique inequivocamente demonstrada a
justa causa para a exoneração. Como se vê, a exemplo do ocorre com as agências
reguladoras independentes, o independent counsel tambem representa a atribuição
de uma função constitucional tradicionalmente pertencente a um dos Poderes da
clássica tripartição de Locke e Montesquieu (no caso, a função executiva) a um
órgão, entidade ou agente inteiramente independente dos demais Poderes. É mais
um exemplo da metamorfose por que passa o Estado contemporâneo. O mais polêmico
exemplo de nomeação de um procurador independente ocorrido na história recente
dos EUA deu-se com a nomeação do jurista Kenneth Starr para investigar o
escândalo Whitewater. Jurista exímio e politicamente motivado, Starr conduziu
as investigações de uma tal maneira que tornou-se inevitável a abertura do
procedimento congressual que desembocou no impeachment do Presidente William
Jefferson Clinton em 1999. A título de mera especulação intelectual, de
sugestão de novas pistas de investigação científica, bem como com intuito de
fazer uma singela aproximação com a realidade institucional brasileira, ousamos
sustentar que, grosso modo, não seria nenhum exagero dizer que o estatuto
constitucional do Ministério Público brasileiro constitui uma exacerbação ou um
aperfeiçoamento do protótipo do independent counsel, em razão da notável
independência funcional de que a instituição passou a gozar entre nós a partir
de 1988. Com a ressalva, é claro, de que se trata de uma instituição permanente
e não "ad hoc.
Sobre o Independent Counsel, v. Terry Eastland,
"Ethics, Politics and the Independent Counsel - Executive Power, Executive
Vice: 1789-1989", National Legal Center for the Public Interest, 1989.
(52) Uma das justificativas oficiais para a
promulgação da lei era a necessidade de pôr termo à "great variation among
sentences imposed by different judges upon similarly situated offenders".
(53) O voto divergente foi
proferido pelo mais tradicionalista e mais conservador dentre os atuais juízes
da Corte americana, Antonin Scalia. Em seu voto, como de hábito, ele não apenas
se manifestou vigorosamente contra a inovação, como também ousou chamar a nova
instituição de junior-varsity Congress, que, em linguagem coloquial altamente
influenciada por gírias esportivas, corresponderia a algo como Congressinho, em
tom marcadamente irônico.
(54) Em tradução livre: "Os
Constituintes não impuseram - na verdade rejeitaram - a noção de que os três
Poderes devam ser inteiramente separados e distintos. Ao adotarmos uma visão
flexível da separação de poderes (veja o voto do Ministro Jackson em
Youngstown), nós simplesmente reconhecemos o ensinamento de Madison de que a
maior garantia contra a tirania repousa não em uma separação hermética dos
Poderes, mas num bem elaborado sistema de pesos e contrapesos no interior de
cada Poder. Os Constituintes inseriram no governo federal tripartite uma
salvaguarda automática contra a usurpação ou a extrapolação de um poder em
detrimento do outro. Em casos envolvendo especificamente o Poder Judiciário,
nós alertamos contra dois perigos: primeiro, que ao Poder Judiciário não sejam
conferidas nem permitidas tarefas que são mais adequadamente realizadas por
outros poderes (v. Morrison); segundo, que nenhum dispositivo de lei
inadmissivelmente ameace a integridade institucional do Poder Judiciário".
V. "Mistretta v. United
States", 488 US 361 – 989.
(55) Em vernáculo: "Nenhum
dos nossos casos indica que a função regulamentar por si mesma seja uma atribuição
insuscetível de ser desempenhada por um órgão integrante do Poder Judiciário. À
luz desse precedente e dessa prática, nós não podemos vislumbrar nenhum
empecilho (decorrente da teoria da separação de poderes) à instalação da
Comissão de Sentenciamento Federal no âmbito do Poder Judiciário. O fato de o
Congresso investir o Poder Judiciário de uma tal competência regulamentar
simplesmente atesta o papel que o Judiciário sempre desempenhou e continua a
desempenhar no sentenciamento. Em resumo, já que que a apreciação substantiva
do sentenciamento tem sido e continua a ser uma tarefa do Poder Judiciário, e a
metodologia regulamentar tem sido e continua a ser apropriada a esse Poder, a
refletida decisão do Congresso de combinar essas duas funções em uma Comissão
independente de sentenciamento e de instalar essa Comissão no âmbito do Poder
Judiciário não viola o princípio de separação dos poderes". V. "Mistretta v. United
States", 488 US 361 – 1989.
(56) V. Carlos Ari Sundfeld,
"Serviço Público e Regulação Estatal. Introdução às Agências
Reguladoras", in "Direito Administrativo Econômico", Carlos Ari
Sundfeld (coordenador), Malheiros, 2000, p. 17.
(57) V. Charles Debbasch,
"Droit de l´audiovisuel", Précis Dalloz, 1988; Didier Truchet,
"Droit de l´audiovisuel: confrontation avec le droit communautaire et
hésitations nationales", in Revue Française de Droit Administratif-RFDA,
março-abril, 1992, p.251; Hélène Pauliat, "Le contrôle du juge
administratif sur les décisions des autorités administratives indépendantes
compétentes en matière audiovisuelle", RFDA, março-abril, 1992, p. 256;
Bruno Genevois, "Le Conseil constitutionnel, la séparation des pouvoirs et
la séparation des autorités administratives et judiciaires", in RFDA,
julho-agosto, 1989; Jean-Louis Autin, "La Consécration d´une instance
régulatrice", in "Droit Administratif de l´entreprise", nº 26,
1989; R. Ferrari, "Les avatars de la C.O.B.", in "La Vie Judiciaire",
24-30 de abril de 1989; Pierre Jalade, "Vers un renforcement des pouvoirs
de la C.O.B.", in "Petites Affiches", 16-6-89.
(58) No direito constitucional
francês, por força de decisão proferida pelo Conseil Constitutionnel em 1971, o
exame da constitucionalidade das leis se faz não apenas em face do texto
constitucional propriamente dito, mas tendo também como parâmetro um Bloc de
constitutionnalité que inclui o Preâmbulo da própria Constituição de 1958; o
Preâmbulo da Constituição de 1946 (que abriga o essencial dos direitos sociais
da nossa época); e, por fim, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789. V. Pierre
Pactet, "Institutions Politiques et Droit Constitutionnel", 15a
edição, ed. Armand Colin, Paris, 1996.
(59) No caso das empresas
estatais do setor de comunicação audiovisual, ou seja, as que permaneceram no
setor público após a grande vaga de privatização de 1986 (como é o caso das
operadoras de TV France 2 e France 3, que, aliás, têm parte de sua programação
difundida na rede de TV a cabo brasileira), cabe ao CSA até mesmo uma
atribuição de que não dispõem as suas congêneres americanas: o poder de
nomeação do presidente e dos principais diretores de cada empresa, isto é, uma
atribuição tipicamente executiva normalmente mantida na alçada do chefe de governo.
(60) V. sobre este assunto
específico, bem como sobre a problemática constitucional das "autorités
administratives indépendantes" francesas, Louis Favoreu & Loic Philip,
"Les Grandes Décisions du Conseil Constitutionnel", ed. Dalloz,
Paris, 10a edição, 1999, p. 745.
*Pelas utilíssimas críticas e
sugestões feitas às versões preliminares deste trabalho sou imensamente grato a
Fernanda Duarte, Jane Reis, Alex Miranda e André Barbeitas. A Flavia Eckhardt
sou grato pela pesquisa da doutrina nacional relativa ao tema, bem como pelo
desenvolvimento de alguns tópicos relativos ao direito positivo brasileiro
sobre o assunto.
retirado de: http://www.anpr.org.br/bibliote/artigos/joaquim%20barbosa.htm