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A
cessão de direitos hereditários no novo Código Civil
Ricardo Guimarães Kollet
A cessão de direitos hereditários, contrato através
do qual opera-se a transmissão de direitos provenientes de sucessão, enquanto
não dados a partilha que declarará a partição e deferimento dos bens da herança
entre os herdeiros (legítimos ou testamentários) e aos cessionários, não
encontrava dispositivo específico que a contemplasse diretamente no Código
Civil de 1916. A referência à cessão encontrava guarida no artigo no artigo
1.078, do CCB/1916, segundo o qual aplicam-se as
disposições deste título (cessão de crédito) as disposições sobre a cessão de
outros direitos para os quais não haja modo especial de transferência. Outra
menção ao instituto, existente no diploma privado anterior, podia ser
verificada no artigo 1.582 que preceituava a não presunção de aceitação da
herança se procedida a cessão gratuita aos demais
herdeiros. A cessão de direitos hereditários foi instrumento largamente
utilizado no direito brasileiro o que, a nosso ver, motivou o legislador de
2002 em contemplá-la nos dispositivos criados.
O Código Civil atual prevê, em seu artigo 1.793, que
"o direito a sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o
co-herdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública". O novo
preceito, que passa a integrar o ordenamento civil pátrio, nos informa dois
requisitos básicos para a cessão, a saber: a) somente após a abertura da
sucessão, ou seja, após a morte do autor da herança, poderemos falar em cessão
dos respectivos direitos posto que, mesmo no ordenamento antigo (art. 1.089),
quanto no atual (art. 426) a herança de pessoa viva não podia e continua não
podendo ser objeto de contrato. Com a abertura da sucessão a herança
transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários,
permanecendo, até o partilhamento final, o estado de indivisão, ou seja, na expressão do Código civil,
"como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros" (art.
1.791). b) a cessão deverá revestir-se de forma pública, ou seja, deverá ser feitas em notas do Tabelião (por escritura
pública).
Duas formas de cessão de direitos hereditários devem
ser anotadas para podermos pontuar as questões sobre os efeitos que devam
produzir: uma a título universal, quando um ou mais de um dos co-herdeiros cede
ou cedem, no todo ou em parte, seu quinhão hereditário, devendo a cessão
incidir sobre a totalidade da herança; outra a título singular, ou seja, sobre
bem certo e determinado da herança, quando a sub-rogação do cessionário relaciona-se
tão somente ao particularmente negociado.
A questão da possibilidade de cessão, por parte de
co-herdeiro, de seu quinhão hereditário, a título universal, seja no todo ou em
parte, nos parece repousar em águas mansas. Somente deve-se atentar para o direito
de preferência dos outros co-herdeiros insculpido no
artigo 1.795 do Código. Conforme as palavras de Silvio Rodrigues "O
condômino pode alienar a terceiro sua parte indivisa, ou seja, a fração ideal
de que é titular; pode mesmo alienar uma parte alíquota de seu quinhão..."
(1). Segundo César Fiuza "cessão de herança é a
alienação gratuita ou onerosa da herança a terceiro, estranho ou não ao
inventário". Segundo o mesmo autor "A cessão pode ser total ou
parcial quando envolver todo o quinhão do cedente ou parte dele" (2).
Neste caso, o cessionário receberá a herança assim como se encontra, ou seja,
em estado de indivisibilidade.
A grande questão que se arvora diz respeito à cessão,
por co-herdeiro, de bem da herança, considerado singularmente, ou seja, sobre
um bem certo e determinado da herança. O Código sanciona com a inficácia da mesma em dois casos: quando feita por
co-herdeiro sobre bem da herança considerado singularmente (parágrafo segundo)
e sem prévia autorização do juiz da sucessão, pendente a indivisibilidade
(parágrafo segundo).
Quanto a resolução da
primeira questão nos parece ser no sentido de que a cessão de direitos, a
título singular, sobre imóvel certo e determinado, antes de ajuizada a ação de
inventário ou arrolamento, não poderá ser feita pelo co-herdeiro isoladamente.
Entretanto, se feita pelo conjunto de todos os herdeiros com direito àquela
herança parece-nos que não será afetada pela ineficácia pois
esta terá de ser alegada pela parte prejudicada. Tendo todos
os herdeiros participado do ato de cessão, não haveria interessado
legítimo para insurgir-se contra o ato. Poderiam, ainda, a nosso ver, os demais
co-herdeiros participarem do ato para expressar sua concordância, mesmo que não
transfiram seus quinhões. Nesse caso a parte cedida, matematicamente, será
abatida da quota do herdeiro cedente, quando da partilha respectiva.
Nesse sentido, continua a lição de Silvio Rodrigues,
acima citada, a partir da interrupção: "...mas
não pode, jamais, alienar um bem que componha o acervo patrimonial ou
hereditário, pois este bem é insuscetível de ser alienado por um dos condôminos
sem o assentimento dos demais (o grifo é nosso). Na hipótese de todos os
co-proprietários desejarem fazer a venda de um bem, é a comunidade que procede
à alienação, e o preço recebido, até ser dividido entre os interessados, se
sub-roga no lugar da coisa vendida, pelo princípio de sub-rogação real"
(3). Eduardo de Oliveira Leite, em seus comentários ao Novo Código Civil, ao pontualizar a questão diz que o co-herdeiro fica impedido
de "dispor do bem sem o assentimento dos demais" (4).
Entretanto, cabe ao intérprete perquirir: como o
Tabelião vai verificar se todos os herdeiros estão presentes? A resposta parece
bastante singela na perspectiva notarial visto que os atos que aportam ao
serviço de notas são basicamente declarações de vontade. Sendo assim, a
declaração dos cedentes no sentido de que compõem todo o polo
ativo da relação sucessória, com a concordância do cessionário, que assumirá os
riscos por eventual ineficácia do ato, apresenta-se como satisfatória. Deverão
declarar também na escritura que não foi ajuizada a respectiva ação de
inventário ou arrolamento, quando será necessária a autorização judicial
conforme declinaremos em momento oportuno.
Corroborando os argumentos até aqui delineados, sobre
a possibilidade da cessão de direitos hereditários anteriormente à propositura
da ação de inventário ou arrolamento, podemos destacar a possibilidade do
cessionário, subsidiariamente, proceder a abertura da
mesma, conforme a dicção do inciso V, do artigo 988 do CPC (legitimidade
concorrente). O cessionário somente poderá iniciar a ação portando o respectivo
instrumento de cessão, habilitando-se na forma processual cabível.
No que diz respeito à cessão, a título singular, por
qualquer herdeiro, pendente a indivisibilidade, quando já existe ação judicial,
nos parece que deva ser aplicado o parágrafo segundo do artigo 1.793, devendo
haver prévia autorização do juiz da sucessão. Se admitirmos que a cessão poderá
ser feita mesmo anteriormente à propositura da ação, a autorização judicial a
que se refere o dispositivo em tela somente terá cabimento quando já estiver
tramitando o feito.
Entretanto, embora as
interpretações acima, temos que noticiar uma decisão inédita e isolada
num processo de arrolamento onde foi habilitado cessionário de direito sobre
imóvel certo e determinado, havido conforme escritura pública de cessão de
direitos hereditários, sobre parte da herança, a saber, um imóvel (certo e
determinado), a qual foi outorgada pelas únicas partes integrantes do polo ativo da relação jurídica (viúva-meeira e
herdeira-filha). Abstraindo-nos aqui de comentar a impropriedade da cessão dos
direitos de meação (posto que não foi elemento norteador da decisão), relatamos
tão somente o pronunciamento do judiciário, através de despacho, nos seguintes
termos: "a partilha contraria as disposições do artigo 1793 do NCCB (a
cessão de direitos foi formalizada antes da partilha) (o grifo é nosso).
Oportunizo, pois, o prazo de 10 dias para adequação da mesma, a fim de
viabilizar a homologação nos devidos termos". A manifestação nos parece
infundada posto que, após a partilha, o ato a ser feito somente poderá ser de
doação ou compra e venda, nunca de cessão. Por outro lado nem o artigo 1793 nem
seus parágrafos referem-se ao momento em que deve ser feita a cessão. A
doutrina de Venosa é adequada quando sublinha: "Só existe cessão antes da
partilha. Após, a alienação é de bens do herdeiro. O cessionário participa do
processo de inventário, pois se sub-roga na posição do cedente" (5). Ao
nosso ver a decisão deverá ser reformada.
A questão não reside, portanto, na feitura da cessão
em momento anterior ou posterior a partilha, mas sim se antes ou depois de
ajuizada a ação de inventário ou arrolamento. Se posterior, demanda a
autorização do juiz da sucessão; se anterior, deverá
ser feita por todos os co-herdeiros, ou por parte deles com a anuência dos
demais, adotando-se as cautelas já mencionadas.
A sanção cometida ao negócio jurídico que afrontar a
determinação legal (feita por co-herdeiro ou sem a autorização judicial) é de
ineficácia. No ordenamento civil anterior (Código de 1916) entendia-se, pela
fala do artigo 145, que seria nulo o ato jurídico "quando a lei lhe
negar efeito" (inciso V). Entretanto, o artigo 166 do Código Civil de
2002 não reproduz esta regra. A regra posta diz que é nulo o ato jurídico
quando "a lei proibir-lhe a prática, sem cominar sanção"
(inciso VII). No caso em tela a lei ao proibir a prática da cessão por
co-herdeiro de bem considerado singularmente ou sem prévia autorização
judicial, sanciona o descumprimento com a ineficácia. A ineficácia dos negócios
jurídicos resulta de sua nulidade ou de sua anulabilidade. A questão é saber se
o ato praticado em desacordo com o preceito é nulo ou anulável. (sublinhamos).
Se para o ato jurídico ser
nulo é necessário que não haja outra cominação e tendo a lei sancionado o
descumprimento com a ineficácia, temos que, por exclusão, o caso seria de
anulabilidade. Por outro lado, se atentarmos para a lição de Venosa que leciona
repousar "a nulidade sempre em causas de ordem pública, enquanto a
anulabilidade tem em vista mais acentuadamente o interesse privado" (6) podemos colocar a questão da ineficácia da cessão, nos casos
mencionados nos parágrafos segundo e terceiro, do artigo 1793, do Código civil
de 2002, como sendo de anulabilidade visto que os interesses postos em questão
são de natureza privada podendo, a qualquer tempo, os demais co-herdeiros ou
mesmo o juiz da sucessão convalidar o ato feito em desacordo com a lei,
adjudicando o bem considerado singularmente ao cessionário.
Mesmo que pudessemos
colocar os atos referidos no plano da nulidade esta seria relativa, a qual, na
lição de Clóvis Beviláqua, "refere-se a negócios
que se acham inquinados de vício capaz de lhes determinar a ineficácia, mas que
poderá ser eliminado, restabelecendo-se a sua normalidade". A cessão feita
em desacordo com a lei pode, efetivamente, dentro do processo de inventário,
ser contemplada pelos demais herdeiros quando da partilha, adjudicando-se, como
já foi dito, o bem, em favor do cessionário, com a homologação judicial,
restando ratificada e produzindo os efeitos queridos pelos agentes.
Entretanto, se considerarmos que inexiste defeito na
manifestação de vontade, o ato não será nulo nem anulável, posto que somente no
plano da eficácia será atacado. Teremos, então, um ato jurídico existente e
válido, mas ineficaz. Nesse passo, mesmo sendo lavrado o ato contrariamente ao
preceito legal, se os demais herdeiros quando da partilha houverem por bem
contemplar o cessionário com o imóvel havido particularmente, a cessão
produzirá plenamente seus efeitos.
Fonte-http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4501