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Atentado público

 

PEC de reforma tributária do governo é inconstitucional

 

Marcio Sotelo Felippe

 

Emendas constitucionais não são escritas em papel que aceite tudo. A proposta de reforma tributária aprovada pela Câmara e em tramitação no Senado convalida não só a guerra fiscal entre os Estados, mas uma orgia fiscal ao legitimar benefícios tributários concedidos à margem da Constituição.

Na Câmara, fixou-se data futura (30 de setembro) ao início de tramitação da emenda como limite para os novos benefícios, o que provocou uma corrida dos Estados para a concessão de benesses fiscais. A proposta originária do Executivo ainda era pior: o limite seria o da promulgação da emenda. O relatório do Senador Romero Jucá mantém por 11 anos as facilidades tributárias concedidas pelos Estados até 30 de abril deste ano e remete a um exame caso a caso pelo Senado os concedidos entre 30 de abril e 30 de setembro. Em outros termos, Executivo e Legislativo estão proclamando: "violem neste momento a Constituição que daremos um jeito de acertar tudo".
O impacto desta renúncia fiscal pode alcançar cifras em bilhões de reais.

A proposta é inconstitucional e não deveria estar tramitando. O poder constituinte originário impôs limites à possibilidade de alterar a Constituição. Uma das cláusulas pétreas impede seja objeto de deliberação qualquer proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado.

Não se trata de coibir uma emenda canhestra que pretendesse declarar peremptoriamente extinta a Federação brasileira. A expressão usada pelo constituinte originário é inteligente e ampla: tendente. Qualquer emenda que resulte em inclinação para o enfraquecimento do modo federativo, em rompimento do equilíbrio entre seus entes, está desde logo condenada. Somente um novo poder constituinte originário — uma outra Assembléia Nacional Constituinte soberana — poderia alterar tal situação.

Um dos aspectos cruciais do equilíbrio em uma Federação é o tributário. Porque os Estados detém certa competência para legislar sobre os tributos que arrecadam, cuidou-se de preservar a Federação determinando limites para que um não busque vantagens em prejuízo de outros, como renúncias fiscais atraindo investimentos para si. Isto faz da Federação letra morta e converte o que deveria ser uma convivência harmônica e justa entre os entes federados em uma singular versão republicana do estado de natureza hobbesiano.

Por essa razão o texto constitucional vigente impede que benefícios fiscais sejam concedidos sem a deliberação dos entes federados e a legislação complementar exige que para tal deliberação sejam convocados todos os Estados, e ainda que haja unanimidade entre os presentes. Quando esta norma é rompida — lamentavelmente ocorre com freqüência — o Supremo Tribunal Federal julga desde sempre, de modo pacífico, inconstitucional o benefício.

A derrogação deste sistema nos parâmetros que constam da proposta de reforma tributária rompe o equilíbrio entre os entes federados. Permite que um Estado busque seu desenvolvimento à custa do desenvolvimento do outro. Não é possível supor que esta esperteza fiscal harmonize-se de algum modo com a idéia federativa, que associa autonomia e proporção entre as partes do todo. O desenvolvimento de uma região não pode se dar às expensas da outra. Tem que se dar em uma conta que não some zero para a Federação.

Por isto a proposta de emenda é inconstitucional na parte em que convalida os benefícios fiscais concedidos irregularmente porque atinge cláusula pétrea. Além do espírito federativo, atinge também o espírito republicano. A mensagem fica clara: em certas circunstâncias compensa agir em desacordo com a Constituição. A esperteza política supõe que basta emendar a Constituição para que ninguém perceba que o Estado de Direito foi violado.

Causa perplexidade que renúncia fiscal de tal monta; que o incentivo declarado, ostensivo, à violação da Constituição vigente; que a busca insensata por resultados político-eleitorais desprovida de qualquer visão de Estado; que o favorecimento descarado de interesses econômicos sacrificando recursos necessários para investimentos em saúde, saneamento, infra-estrutura, etc., conte com este tranqüilo beneplácito, com a omissão generalizada, com uma espécie de consentimento que se concede quando ninguém se indigna.

Tudo isto é sintoma da degeneração da classe política e do torpor que toma conta da sociedade brasileira. A rigor, a aprovação de um monstrengo jurídico desse gênero deve ser causa de impeachment; mas se estamos entorpecidos diante de um governo que se elege condenando estridentemente o governo anterior para repeti-lo com mais fervor, o país se torna um pesadelo político e qualquer coisa, no mundo dos maus sonhos, é possível.

Revista Consultor Jurídico, 23 de outubro de 2003.


Fonte:http://www.conjur.com.br