® BuscaLegis.ccj.ufsc.br

 

A ARBITRABILIDADE DAS CONTROVÉRSIAS ORIUNDAS DE CONTRATOS DE COMPRA E VENDA DE ENERGIA ELÉTRICA COM CONCESSIONÁRIOS SOB CONTROLE ESTATAL


José Emilio Nunes Pinto
Sócio responsável pelas áreas de Arbitragem e Energia Elétrica de
Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados
jenp@tozzini.com.br


I - INTRODUÇÃO

1. Em Artigo anterior , aquele também em defesa da arbitragem, manifestamos a nossa opinião de que o instituto merece, antes de mais nada, uma melhor compreensão de seus fundamentos e de seu marco legal. Se bem compreendida a arbitragem, em seu todo, certamente venceremos esta etapa de desconfiança e de descrédito de que a mesma goza junto aos denominados operadores do Direito, ao Poder Judiciário e aos órgãos de controle externo do Poder Legislativo, mais precisamente, o Tribunal de Contas da União.

2. Muito embora a arbitragem esteja presente em nossa legislação desde as Ordenações do Reino, certo é que, na prática, muito pouco dela nos servimos. Seja por razões atávicas, seja por razões culturais, aliadas essas ao fato da arbitragem haver assumido, no Brasil, durante algum tempo, uma feição antiquada, se comparada com as demais legislações, a verdade é que a prática arbitral brasileira somente se revigorou com a edição da moderna Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. Assim mesmo, desde então, a trajetória da arbitragem tem sido afetada por acidentes e incidentes que se sucedem no tempo.

3. Quando se imaginava que o marco legal e convencional da arbitragem propiciariam o desenvolvimento do instituto no Brasil, levantando-se de vez os obstáculos existentes, surgem, nos casos mais recentes , alegações de nulidade ou impossibilidade jurídica de utilização da arbitragem por empresas sob o controle acionário estatal, ainda que esta seja o modo de solução de controvérsias previsto nos respectivos instrumentos contratuais. Dentre outros argumentos, as decisões acolhem a tese de que, no setor elétrico, com o advento da Lei nº 10.433, de 24 de abril de 2002, a arbitragem somente se afiguraria viável desde que autorizada expressamente por lei, sendo que esta existiria apenas para as operações cursadas no Mercado Atacadista de Energia Elétrica - MAE. Em suma, invoca-se a aplicação do princípio da legalidade estrita em matéria de Administração Pública, generalizando-se indiscriminadamente esta aplicação, sem, ao menos, prestar-se devida atenção às causas determinantes da edição do texto legal invocado como suporte e sua integração no marco legislativo aplicável ao setor elétrico. Dessa forma, abandona-se o processo da interpretação sistemática de leis, adequado que é em hipóteses dessa natureza.

4. Nesse sentido, parece-nos de relevante importância que se examine o texto da Lei nº 10.433 sob a ótica do processo de interpretação sistemática, supondo-se, como diz Carlos Maximiliano, que as normas dela constantes revelem “um realce inesperado”. O realce inesperado a que nos referimos é descobrir a extensão pretendida pelo legislador ao editar a referida Lei que, a nosso ver, não é a que vem prevalecendo, até então, nos entendimentos judiciais e do TCU. Para tanto, e em linha com o processo de interpretação sistemática, necessário será que examinemos o marco legal do setor elétrico, criando-se, dessa forma, o ambiente em que deverá ser inserida a Lei nº 10.433.

II – A ARBITRAGEM E OS CONTRATOS DE CONCESSÃO

5. O processo de reestruturação do setor elétrico brasileiro se inicia com a edição, em 13 de fevereiro de 1995, da Lei nº 8.987, também conhecida como a Lei Geral de Concessões de Serviços Públicos, e que, em suas Disposições Finais e Transitórias, trata da extinção das concessões de serviços públicos outorgadas, sem licitação, anteriormente à sua vigência, assim como as outorgadas anteriormente à promulgação da Constituição Federal e cujas obras estivessem paralisadas ou não tivessem sido iniciadas . A solução amigável de divergências contratuais é elevada à categoria de cláusula essencial do contrato de concessão do setor elétrico . Não há dúvida de que essa referência à solução amigável de divergências contratuais se refere à arbitragem, àquela época ainda regida pelas normas constantes da legislação codificada, já que a Lei de Arbitragem somente veio a ser editada em 1996. Posteriormente à edição da Lei de Arbitragem, a Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997 , relativa ao setor de telecomunicações, ainda que não utilizando a expressão “arbitragem”, a esta se refere como o modo para solução extrajudicial das divergências contratuais, constituindo-se a mesma em cláusula essencial do contrato de concessão. Finalmente, ao regular o setor de petróleo e gás natural, a Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997 , estabelece, igualmente na categoria de cláusula essencial do contrato de concessão, porém com linguagem mais ampla, as regras sobre solução de controvérsias, relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem internacional. Dessa forma, pode-se verificar que, seja na esfera do serviço público (energia elétrica e telecomunicações), seja na da atividade econômica (petróleo e gás natural), as divergências decorrentes dos respectivos contratos de concessão devem ser dirimidas por arbitragem, indicando-se o foro com a finalidade específica de determinar a competência em matéria judicial para a propositura de medidas judiciais anteriores à instauração do procedimento arbitral e para a apreciação de questões que fujam ao escopo da arbitragem, ou seja, de direitos indisponíveis que venham a surgir no curso da arbitragem, como também para a execução da sentença arbitral, caso esta não seja cumprida voluntariamente. O que se deve reter, entretanto, é que o meio de solução de divergências, em matéria de contratos de concessão, é a arbitragem. Ademais, ao estabelecerem esse mecanismo de solução amigável de divergências contratuais, os referidos textos legais obrigaram o Poder Concedente, ou seja, a União Federal, a dele se valer para dirimir as controvérsias que viessem a surgir na relação com os concessionários, inclusive os particulares.

III – O INGRESSO DE NOVOS AGENTES NO SETOR ELÉTRICO

6. Voltando-se ao marco legal do setor elétrico, vale lembrar que seu estatuto próprio somente veio a ser estabelecido, em 7 de julho de 1995, quando da edição da Lei nº 9.074. Em decorrência desse texto legal, criou-se a figura do produtor independente de energia elétrica , a categoria de clientes livres que deixariam de ser tratados como consumidores cativos podendo adquirir energia elétrica diretamente dos produtores independentes de energia elétrica. Dessa forma, o setor estaria integrado por concessionários e autorizados, criando-se tratamento próprio para cada uma dessas categorias de agentes.

7. Com a criação da figura dos produtores independentes de energia elétrica começam a surgir, no Brasil, projetos de geração térmica a gás natural. O surgimento desse tipo de projetos coincidiu com a maior disponibilidade do gás natural no mercado brasileiro, passando a ser atendido igualmente pelo de origem boliviana em razão da conclusão da obra de construção do Gasoduto Bolívia-Brasil.

Preponderantemente de origem estrangeira e seguindo o exemplo de projetos similares desenvolvidos na Ásia e em outros países da América Latina, os projetos de geração a gás natural foram sendo desenvolvidos tendo em conta o atendimento das necessidades de suprimento de energia a concessionários de distribuição e, em menor escala, a consumidores livres e complexos industriais e comerciais. O envolvimento desses concessionários de distribuição permitia que se viabilizassem esses projetos, na medida em que estes se obrigaram a assegurar a compra de potência e energia elétrica gerada pela duração do respectivo contrato. Para tanto, firmaram-se contratos de longo prazo de compra e venda de energia (e que, no Brasil, passaram a ser conhecidos como PPAs, em alusão ao acrônimo inglês dos power purchase agreements) que previam o pagamento de uma parcela relativa à potência, denominada de encargo de capacidade, que assumiu a natureza de “take or pay”, uma obrigação incondicional de pagamento desse encargo pela compradora da energia ou, ainda, combinações do encargo de capacidade com o pagamento pela energia consumida. A utilização dessa estrutura contratual era vital para que se lograsse assegurar a financiabilidade do investimento, naquele momento fundado em estruturas de “project finance”, criando-se, dessa forma, um fluxo de caixa estável e sustentável.

A utilização de estruturas de pagamento exclusivo de encargo de capacidade não era novidade no Brasil. Para a viabilização do projeto de construção da usina hidrelétrica de Itaipu, o Tratado de Itaipu estabeleceu que as partes compradoras contratariam quotas-parte da potência e por ela pagariam. Em adquirindo a denominada potência contratada, as compradoras passariam a ter o direito de utilizar a energia que pudesse ser produzida em razão dessa potência até o limite que viesse a ser fixado, para cada período de operação. Assim sendo, nos termos do contrato de Itaipu, as compradoras pagam somente pela potência contratada, o que lhes dá o direito de utilizar, sem qualquer pagamento adicional, a energia associada que puder ser gerada em relação a essa potência. Essa forma de estruturação visa a viabilizar o retorno do investimento e a geração de caixa para liquidação de compromissos financeiros em projetos de grande porte .

8. A conclusão do processo de ingresso de novos agentes no marco legal do setor elétrico brasileiro somente se completou com a edição da Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996, por meio da qual se criaram, inclusive, os denominados agentes comercializadores de energia elétrica .

IV – A TRAJETÓRIA DO MERCADO ATACADISTA DE ENERGIA ELÉTRICA- MAE

9. O Mercado Atacadista de Energia Elétrica – MAE teve a sua criação determinada, nos termos do art. 12 da Lei nº 9.648, de 27 de maio de 1998 , como um ambiente virtual (e insista-se, não como uma pessoa jurídica) para as transações de compra e venda de energia elétrica nos sistemas interligados, cuja instituição se deu pela via contratual, por meio do denominado Acordo de Mercado, firmado que foi pelos interessados . Na concepção original, o MAE seria auto-regulado, sem que estivesse subordinado à Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, o que o diferenciava do Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS, este sim uma pessoa jurídica de direito privado, criado nos termos do art. 13 da mesma Lei, estando o seu funcionamento sujeito à autorização da ANEEL.

10. Quando de sua criação, a ANEEL estabeleceu, dentre os agentes de mercado, os que deveriam participar obrigatoriamente do MAE, bem como os que poderiam assegurar a sua respectiva participação em caráter facultativo . Na categoria de participantes obrigatórios enquadravam-se as concessionárias de geração e os produtores independentes com centrais de geração com capacidade instalada superior a 50 MW e os concessionários de distribuição e agentes de comercialização com energia comercializada igual ou superior a 300 GWh/ano.

11. Ocorre, no entanto, que, na convicção expressa pela ANEEL, a forma de regência do MAE constituiu fator impeditivo ao curso normal das operações de compra e venda de energia elétrica, tendo sido imposta ao Governo Federal a opção pela decisão de reformular-se a organização do mercado, conferindo-lhe personalidade jurídica própria e regência específica. Portanto, em face dessas circunstâncias, decidiu-se passar de um mercado atacadista auto-regulado para um mercado estritamente regulado pela ANEEL. A partir desse momento, ao MAE outorga-se uma condição idêntica àquela ostentada pelo ONS. Assim sendo, em 7 de fevereiro de 2002, foi editada a Medida Provisória nº 29 que veio a converter-se na Lei nº 10.433. Ainda na vigência dessa Medida Provisória, o MAE foi constituído, como associação civil sem fins lucrativos , cabendo a ele viabilizar as operações de compra e venda de energia elétrica nos sistemas interligados, especialmente no mercado de curto prazo . Nessa mesma linha, a Resolução nº 103, de 1º de março de 2002, da ANEEL, autorizou, em seu artigo 1º, o MAE a atuar na viabilização das transações de compra e venda de energia elétrica entre os agentes, por meio de contratos bilaterais e de mercado de curto prazo, restrito ao sistema elétrico interligado nacional.

12. Em linhas gerais, com a edição da referida Medida Provisória, posteriormente convertida na Lei nº 10.433, ficou autorizada a criação do Mercado Atacadista de Energia Elétrica - MAE, com o caráter de pessoa jurídica de direito privado e sem fins lucrativos (artigo 1º) e do qual devem participar os titulares de concessão, permissão ou autorização e outros agentes, seja na condição de participantes obrigatórios ou facultativos, o que coube à ANEEL definir por meio de regulamentação específica . Em decorrência desse processo de transição para um mercado regulado, o Acordo de Mercado que corporificava as regras de funcionamento do MAE auto-regulado foi substituído pela Convenção do Mercado Atacadista de Energia Elétrica, este o documento básico da nova pessoa jurídica de direito privado – MAE.

13. Além disso, a Lei nº 10.433 definiu a arbitragem como meio de solução de divergências, determinando que fosse firmada a respectiva convenção de arbitragem (art. 2º, § 3º) . No caso específico do MAE, a arbitragem assume o caráter de mandatória, razão pela qual não apenas os agentes atualmente em operação, assim como os que passarem a integrar, no futuro, o MAE, deverão a ela aderir . Vale a pena ressaltar que, nos termos da convenção de arbitragem, os agente do MAE reconhecem expressamente a competência exclusiva do árbitro único ou do Tribunal Arbitral, conforme o caso, para dirimir quaisquer controvérsias previstas na referida convenção. Finalmente, e neste ponto reside o aspecto mais relevante para a análise a que estamos nos dedicando, a referida Lei autorizou “as empresas públicas e sociedades de economia mista, suas subsidiárias ou controladas, titulares de concessão, permissão e autorização a aderirem ao MAE, inclusive ao mecanismo e à convenção de arbitragem previstos no mencionado § 3º”.

14. É justamente este texto em itálico que vem servindo de base para a invocação de caracterizar, em todos os casos, exceto nas divergências surgidas em relação às operações realizadas no âmbito do MAE, a eleição da arbitragem como violação ao princípio da legalidade estrita. Em outras palavras, em todas as demais hipóteses, e assim são as decisões judicial e do TCU, a cláusula compromissória seria nula, por faltar aos administradores dos agentes do setor elétrico sob o controle acionário estatal a devida autorização legal.

15. O que pretendemos demonstrar, a partir de agora e no curso desta análise, é que essa interpretação é equivocada. O equívoco da interpretação somente poderá ser dirimido se afastarmos o processo de exegese baseado exclusivamente na literalidade do texto legal em análise, já que os fatos e circunstâncias que cercam a questão exigem que se adote uma interpretação sistemática do mesmo, integrando-o, dessa forma, no marco legal do setor elétrico brasileiro.

16. Fixado o ambiente que caracterizou a reestruturação do setor elétrico brasileiro e que antecedeu e deu origem ao MAE, na condição de pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, nosso exercício de interpretação prossegue para que se possa determinar a razão da autorização contida no art. 2º, § 4º da Lei nº 10.433. Vale lembrar, e nunca será demasiado insistir, que aludido parágrafo autoriza as empresas públicas e sociedades de economia mista a aderirem ao novo MAE, neste momento pessoa jurídica de direito privado, inclusive ao mecanismo e convenção de arbitragem.

V – A INTELIGÊNCIA DA AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA DE ADESÃO AO MAE

17. Ao analisarmos a criação, em maio de 1998, do MAE auto-regulado, quando da edição da Lei nº 9.648, mencionamos que esta determinou que caberia à ANEEL estabelecer as regras de participação. A referida agência reguladora criou duas categorias de participação, ou seja, a dos participantes obrigatórios e a dos facultativos. Na realidade, tudo se passou na esfera dos atos regulatórios, inexistindo qualquer autorização legal para que as concessionárias que revestissem a condição de empresas públicas e sociedades de economia mista a este aderissem, como ocorreu mais recentemente com a edição da Lei nº 10.433. Neste passo, o importante é saber a real motivação do legislador para consagrar essa autorização no texto legal e, dependendo das circunstâncias, determinar as razões para não ter sido adotado procedimento similar quando da criação do MAE auto-regulado.

18. Em nosso entendimento, na fase inicial do MAE auto-regulado, a autorização era de todo despicienda, enquanto que, na hipótese da Lei nº 10.433, a linguagem contida no art. 2º, § 4º se faz necessária e tem a sua razão de ser no atendimento a dispositivo constitucional. Muito embora o texto autorizativo mencione o mecanismo de arbitragem para solução de divergências e a adesão à convenção de arbitragem, o foco principal da autorização se situa na participação das concessionárias e permissionárias empresas públicas e sociedades de economia mista na pessoa jurídica de direito privado MAE.

19. Na realidade, o art. 37, inciso XX da Constituição Federal estabelece que dependerá de autorização legislativa, em cada caso, a participação de empresas públicas e sociedades de economia mista em empresa privada. Na medida em que o MAE foi convertido de um ambiente virtual (destituído de personalidade jurídica) numa pessoa jurídica de direito privado, fez-se necessário que a lei viesse a autorizar a adesão dessas concessionárias mencionadas ao MAE, já que se caracteriza a hipótese prevista constitucionalmente. Portanto, a autorização mencionada visa a atender a um dispositivo constitucional. Diferentemente do que mencionam as decisões que levam a admitir a nulidade da cláusula compromissória, o objetivo da autorização contida na Lei nº 10.433 não foi o de permitir que estas viessem a aderir ao mecanismo de arbitragem à luz do princípio da legalidade estrita, falta do qual a adesão importaria nulidade. Mais importante do que cumprir com o referido princípio foi assegurar o cumprimento de dispositivo constitucional expresso. Esta é, em nosso entendimento, a verdadeira razão de ser da existência do art. 2º, § 4º da Lei nº 10.433 ora em análise.

20. Aliás, este caso não é uma hipótese única em nosso direito positivo. O art. 22 da Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002, alterou o art. 15 da Lei nº 3.890-A, de 25 de abril de 1961, para autorizar a Eletrobrás, sociedade de economia mista, diretamente ou por meio de suas subsidiárias ou controladas, a associar-se, com aporte de recursos, para constituição de consórcios empresariais ou participação em sociedades, sem poder de controle, que se destinem à exploração da produção ou transmissão de energia elétrica sob regime de concessão ou autorização. No caso da indústria de petróleo e gás natural, a Lei nº 9.478, em seu art. 64, adotou procedimento distinto. Para cumprir com os dispositivos constitucionais contidos no art. 37, incisos XIX e XX, autorizou a Petrobras, esta também uma sociedade de economia mista, a criar subsidiárias para consecução de seu objeto social e a estas para se associarem a outras empresas, majoritária ou minoritariamente. Esta autorização visou a permitir que Petrobras concorresse em igualdade de condições com as demais companhias de petróleo, nacionais e estrangeiras, em decorrência da flexibilização do monopólio federal e que pudesse ser ela dotada dos meios necessários a cumprir com a dinâmica do mercado em que atua. A despeito das características específicas de cada caso, fica bastante evidente a existência de textos legais autorizativos, inclusive no próprio setor elétrico, em cumprimento ao mandamento constitucional. Portanto, não causa surpresa o procedimento adotado pelo legislador ordinário em autorizar as concessionárias empresas públicas e sociedades de economia mista a se integrarem à pessoa jurídica MAE . Dessa forma, confirma-se a interpretação por nós adotada em relação ao texto autorizativo da Lei.

21. Mas a questão está esclarecida apenas em parte. No entanto, o parágrafo 4º mencionado contém uma complementação em seu texto que vem a se constituir numa autorização legislativa para que as concessionárias empresas públicas e sociedades de economia mista aderissem inclusive ao mecanismo de arbitragem e à respectiva convenção de arbitragem. Embora entendamos que essa autorização é desnecessária , nossa missão, neste passo, é analisar se essa autorização seria realmente necessária.


VI – A DISPONIBILIDADE DE DIREITOS E A ARBITRAGEM NO SETOR ELÉTRICO

22. Ao analisarmos, no Título II acima, a arbitragem nos contratos de concessão, mencionamos que ela está presente nas normas legais relativas a esses contratos, seja quanto à prestação de serviços públicos, seja nas concessões de atividades econômicas, como é o caso do gás e petróleo, mas em todas as hipóteses como cláusula essencial do contrato. Salvo os direitos indisponíveis, todas as demais questões relativas a esses contratos serão dirimidas por recurso à arbitragem. Dessa forma, as controvérsias que envolvam o Poder Concedente e os concessionários deverão ser solucionadas por arbitragem. E ressalte-se, ainda aqui, que o Poder Concedente é a União Federal. Por outro lado, não devemos esquecer que as controvérsias a que aludem os textos legais surgem no contexto de contratos de concessão que são eminentemente contratos administrativos, já que oriundos de um procedimento licitatório . No entanto, o texto legal mencionado não deve ser interpretado, e, aliás, não tem ele o condão de transformar em disponíveis direitos que sejam, por sua natureza própria, indisponíveis. A indisponibilidade de direitos pela Administração Pública decorre de sedimentação doutrinária e permeia e é elemento subjacente do marco legal. Esta é a razão pela qual a Lei de Arbitragem estabelece que, surgindo, no curso da arbitragem, controvérsia quanto a direitos indisponíveis, o árbitro remeterá as partes ao Poder Judiciário , norma esta que se aplica igualmente à Administração Pública e aos particulares. Cada qual, em sua esfera, é titular de direitos disponíveis e indisponíveis. Consequentemente, somente quanto àqueles caberá a solução de controvérsias por arbitragem.

23. Ora, se as controvérsias que venham a surgir entre a União e os concessionários, nos termos do Contrato de Concessão, podem ser objeto de arbitragem, necessário será examinar-se por que razão não seriam passíveis de arbitragem as relativas a contratos comerciais entre empresas privadas e sociedades de economia mista ou empresas públicas. Parece que os casos hoje existentes em juízo e no TCU indicam que seria a falta de autorização legislativa. Será isso verdade, inexiste realmente autorização legislativa? Em inexistindo, é ela realmente necessária?

24. Em primeiro lugar, é necessário que se estabeleça claramente o escopo do contrato de compra e venda de energia elétrica (PPA). Trata-se de um contrato mercantil por meio do qual uma das partes, seja ela geradora (concessionária ou produtor independente) ou comercializadora de energia, se obriga a vender à outra, seja distribuidora de energia ou cliente livre, energia elétrica. Em suma, estamos diante de partes contratantes que integram o mercado de energia elétrica. O PPA é um contrato bilateral que permite que se estabeleçam formas diferenciadas de remuneração, vinculadas somente à aquisição de potência, como é o caso mencionado de Itaipu, onde o comprador fará jus à energia associada sem pagamento adicional, ou mediante pagamento de um montante a título de encargo de potência e montante específico para remuneração da energia associada que venha a ser adquirida. Se celebrado entre partes privadas, nada há que duvidar quanto ao cabimento da arbitragem. É importante que se estabeleça que a característica de serviço público atribuída pela Constituição Federal aos serviços de energia elétrica não tem o condão de transformar um contrato entre partes privadas em contrato administrativo pelo simples fato de envolver um serviço público. O que ocorre, no entanto, é que este contrato e as operações por ele reguladas estarão sujeitos à prevalência do interesse público sobre o interesse privado. Isso, no entanto, não decorre da condição das partes envolvidas (e, no exemplo, fica evidente e bastante claro), mas da natureza da própria atividade por elas exercida. Se quiséssemos categorizar estes contratos em razão da prevalência do interesse público, poderíamos denominá-los de quase-administrativos, posto que sujeitos preponderantemente a regras de direito privado.

25. Admitindo-se, neste passo, que o mesmo PPA seja celebrado entre partes, sendo uma delas um agente do mercado de energia elétrica sob controle acionário estatal, alterar-se-ia a natureza do PPA? Entendemos que não. Nada se alteraria, sendo de se notar, aliás, que não faria sentido estarmos diante de dois agentes com a mesma função no mercado de energia elétrica, exercendo sua atividade-fim e que os contratos de natureza idêntica por ele celebrados assumissem características distintas em razão do controle de seu capital. Esta é a razão pela qual a Lei de Licitações estabelece ser dispensável o procedimento licitatório na contratação do fornecimento ou suprimento de energia elétrica, com concessionário, permissionário ou autorizado. Lembro-me bem da discussão prévia à inclusão dessa hipótese de dispensa de procedimento licitatório. À ocasião, e esta alteração foi introduzida pela Lei nº 9.648, em 1998, o mercado de energia elétrica passara a contar com a participação dos produtores independentes de energia elétrica. Exercem eles atividade regulada por lei e sob a autorização e fiscalização da ANEEL. Por outro lado, a energia elétrica é negociada em um mercado em que os parâmetros para a fixação do preço por MW é conhecido, sem mencionar o fato de ser de livre negociação a compra e venda de energia elétrica entre concessionários, permissionários ou autorizados . Na verdade, a opção de modelagem do setor elétrico, quando de sua reestruturação, foi a de liberdade de negociação ao nível dos geradores, focando-se o controle de preços ao nível da distribuição. Por essa razão, criou a ANEEL mecanismo destinado a controlar o repasse do custo da energia adquirida entre concessionários e autorizados para as tarifas de fornecimento aplicáveis aos consumidores cativos, visando a garantir a modicidade destas , sem que isso caracterize um rompimento com o princípio de liberdade de negociação antes mencionado. Portanto, a dispensa de licitação, nos casos aqui mencionados, se deu pelo fundamento de que a estruturação do setor elétrico era, por si só, suficiente para assegurar os mesmos resultados pretendidos pela licitação.

26. Mais recentemente e em função da desregulamentação do setor elétrico, o mercado da Califórnia, nos Estados Unidos, viveu uma de suas piores fases, onde as tarifas de energia elétrica atingiram seu pico e o mercado se viu desabastecido, levando aquele estado americano a apagões quase que diários. A posição adotada pelo regulador estadual de energia elétrica foi a de impedir que as distribuidoras adquirissem, pela via bilateral, energia elétrica para seu suprimento. Todo o suprimento se dava no mercado do atacado, tendo sido as distribuidoras expostas à volatilidade de preços. Questões de natureza ambiental, tão caras aos californianos, foram levadas a extremos, impedindo que novos projetos de geração se implantassem no estado, passando este a depender da energia decorrente das interligações elétricas interestaduais.

27. No Brasil, no entanto, apesar da profunda reestruturação do setor elétrico, a posição adotada pelo regulador foi diametralmente oposta. Se bem que não se possa dizer do Brasil que aqui se operou uma desregulamentação, certo é que o regulador foi cauteloso ao limitar a exposição das distribuidoras à volatilidade de preços. Como medida de proteção, estabeleceu o regulador que, pelo menos 95% de toda a energia necessária à consecução das atividades de distribuição, no Brasil, deveria estar contratada bilateralmente . Dessa forma, a exposição aos preços de mercado estaria praticamente limitada a um percentual incapaz de levar as distribuidoras à insolvência, como efetivamente ocorreu na Califórnia. Aliás, é de se mencionar a importância dos contratos bilaterais em qualquer sistema elétrico. No Brasil, a ANEEL, ao editar, em 12 de setembro de 2002, a Resolução nº 511, hoje já revogada, fez constar de sua motivação que “os contratos bilaterais são estímulo à implantação da capacidade geradora adicional e são mecanismos necessários para assegurar preços estáveis e previsíveis aos consumidores finais.” Vê-se, portanto, a relevância dos contratos bilaterais como instrumento de incentivo à geração adicional e estabilidade e previsibilidade de preços, alinhados com o conceito de serviço adequado, inerente que é ao serviço público em geral.

28. Portanto, a dispensa de licitação permitiu que as concessionárias cumprissem e, mais do que isso, se adequassem ao marco regulatório setorial. A licitação se justifica para assegurar a melhor proposta para a administração pública, mas seu custo é muito elevado e o tempo envolvido bastante importante. Além disso, uma concessão de serviço público tem como meta atender às necessidades dos consumidores, em seu potencial máximo. Lembremos que aos consumidores cativos não restará qualquer outra alternativa senão comprar diretamente da distribuidora local que o atende. Portanto, na medida em que as regras existentes no mercado asseguravam que as concessionárias pudessem ter acesso à melhor proposta de suprimento de energia, em bases realmente competitivas, entendeu o legislador que poderia dispensar, neste caso, a licitação, assegurando, ademais, que fosse mantida a dinâmica do mercado para todos os agentes, tratando-os igualmente, independentemente da natureza de controle de seu capital.

29. A existência do MAE, em qualquer dos modelos adotados quanto à forma de regulação, faz com que as operações de compra e venda de energia assumam a característica de operações eminentemente financeiras. Ainda que os PPAs celebrados sejam liquidados bilateralmente entre comprador e vendedor, eventuais responsabilidades não cumpridas serão liquidadas no âmbito do MAE. Assim, na vigência de um PPA, o comprador poderá sempre retirar do sistema elétrico o montante de energia contratada num PPA. Para tanto, o vendedor deverá disponibilizar, em cada segmento de tempo, a energia elétrica vendida no centro de gravidade do sistema elétrico, entendido este como sendo um ponto virtual do sistema, reputando-se, a partir daí, cumprida a obrigação de entrega por ele assumida. No entanto, admitamos para raciocinar que, em determinado segmento de tempo num determinado dia, o vendedor não tenha disponibilizado a energia ou a tenha em quantidade inferior à contratada. Esta circunstância, no entanto, em condições normais de operação da usina geradora ou fonte de suprimento do agente, não impedirá que o comprador retire do sistema a energia que adquiriu e que por ela pagou ou virá a pagar bilateralmente. Ao final do período de apuração, o MAE irá verificar que, em determinado segmento de tempo aquele vendedor deixou de disponibilizar, no todo ou parcialmente, a energia elétrica que lhe competia entregar no ponto virtual para satisfazer às necessidades do comprador que com ele contratou, caracterizando-se, dessa maneira, uma insuficiência em relação ao respectivo contrato bilateral. Pela dinâmica do sistema, o comprador retirou a energia elétrica contratada e, com base em medições, determinou-se que o vendedor deixou de cumprir sua obrigação . Assim sendo, cria-se para o vendedor um débito para com o sistema e para o sistema um crédito junto ao vendedor. É do resultado dessa operação que surgem os créditos e débitos no MAE aos quais alude a Lei nº 10.433 . É evidente que não surge para o comprador qualquer obrigação de pagar, posto que já o fez bilateralmente, com estrita observância das cláusulas ajustadas com o vendedor.

30. No entanto, como em qualquer contrato bilateral de longo prazo, o PPA contém cláusulas que regulam as conseqüências decorrentes de situações excepcionais, como é o caso da ocorrência de força maior que, em função do que tenha sido ajustado contratualmente, poderá isentar em todas ou em algumas situações de responsabilidade a parte afetada. Neste caso, surgem ou podem surgir controvérsias no âmbito do próprio PPA entre comprador e vendedor, assim como pode o comprador deixar de pagar bilateralmente as suas obrigações financeiras, por mero inadimplemento ou por invocação de existência de eventos que o impeçam, sejam estes decorrentes ou não de força maior. Em suma, o importante a se ter em mente é que, embora toda a energia produzida pelos geradores deva ser alocada ao MAE , as obrigações bilaterais decorrem do PPA e será no âmbito deste que devam ser resolvidas. Assim sendo, salvo as hipóteses de comercialização de excedentes de energia não comercializados em contratos, os créditos e débitos decorrentes das operações MAE guardam relação com os direitos e obrigações das partes ajustados bilateralmente. Portanto, a interpretação de que a autorização contida na Lei nº 10.433 para utilização da arbitragem, no âmbito do MAE, por empresas públicas e sociedades de economia mista, teria aplicação restrita e excluiria a utilização do mecanismo em contratos bilaterais carece, a nosso ver, de fundamento.

31. Os que defendem a legalidade estrita, apenas e tão somente, no âmbito do MAE, fundamentam seu raciocínio na disposição legal que considera os créditos e débitos das empresas públicas e sociedades de economia mista que surjam no âmbito do MAE como disponíveis . Entendemos que essa autorização é, de todo, desnecessária e está inserida no texto legal gerando dúvidas, perplexidades e interpretações equivocadas que prejudicam, no limite, a utilização da arbitragem em contratos do setor elétrico e o desenvolvimento deste instituto no Brasil em setor tão relevante. Senão vejamos. Por toda a descrição nos parágrafos anteriores das operações no âmbito do MAE, resta bastante claro que os direitos que surjam para as empresas públicas e sociedades de economia mista não têm, e nem podem assumir, a característica de direitos patrimoniais indisponíveis. Estamos tratando de direitos e obrigações que surgem na consecução do objeto social dessas empresas, mais precisamente de sua atividade-fim. Além disso, esses direitos e obrigações são de natureza financeira ou a ela se reduzem, não se podendo alegar em sã consciência que sejam indisponíveis. Aliás, ao declarar a disponibilidade desses direitos e obrigações, o legislador adota linguagem bastante curiosa, ao servir-se da expressão “consideram-se disponíveis...”. Ora, os direitos e obrigações são ou não disponíveis, mas dificilmente poderão ser considerados disponíveis se não o forem na realidade. Como é regra de interpretação que a lei não contém letra morta, cabe ao intérprete determinar a razão de existência dessa expressão no texto legal. Nosso entendimento é de que essa disposição, apesar de desnecessária e pleonástica, se insere num raciocínio mais amplo de integração de regras do setor elétrico.

32. Pelo que pudemos examinar ao longo deste artigo sobre a reestruturação do setor elétrico nacional, vê-se claramente que o marco legal contemplou vários agentes e ambientes. No MAE auto-regulado (e na condição de ambiente virtual), pudemos ver que as concessionárias empresas públicas e sociedades de economia mista a ele aderiram sem autorização similar à contida na Lei nº 10.433, pelas razões que explicamos anteriormente e por não envolver essa adesão a necessidade de cumprimento de mandamento constitucional, já que não dispunha de personalidade jurídica. Mas é importante que se tenha em mente que as operações do MAE, em qualquer de suas modalidades, se mantiveram inalteradas, em especial o mecanismo de formação de créditos e débitos. Ora, nunca se alegou, no MAE auto-regulado, que os direitos e obrigações não seriam disponíveis, nem qualquer dúvida pairou sobre esse tema. E por que o seriam agora, onde a única alteração que se produziu foi a natureza de regulação do mercado atacadista? Parece ilógico e sem fundamento que fosse necessária uma disposição legal superveniente para outorgar o caráter de disponibilidade ao que já dispunha desse caráter. A única interpretação lógica, a nosso ver, da disposição legal é reforçar a natureza disponível dos direitos e obrigações no contexto de uma nova figura de mercado e, que sendo criada por legislação extravagante, não estaria alinhada com todo o sistema decorrente do marco legal existente. Em suma, mais do que outorgar o caráter de disponibilidade aos direitos e obrigações, o texto legal tem o efeito de declarar e ratificar a natureza disponível destes. Portanto, não se cria, como se tem dito e fundamentado decisões, um fato novo, mas chancela-se a natureza mesma desses direitos e obrigações.

33. Antes de analisarmos a questão da arbitragem nos PPAs e da disponibilidade de direitos, é importante que se demonstre, com auxílio dos textos de lei, que, embora sob a titularidade de empresas públicas e sociedades de economia mista, os direitos dos concessionários decorrentes do contrato de concessão são, per se, direitos disponíveis.

34. Já vimos que a Lei nº 8.987 se constitui na Lei Geral de Concessão de Serviços Públicos, aplicando-se indistintamente a concessionários sob controle público e privado. Entendemos até que, em sua gênese, o legislador levou em consideração alterações substanciais na estrutura de controle dos concessionários, especialmente por se haver decidido, naquele momento, que as concessionárias de serviço público seriam privatizadas, como efetivamente ocorreu com as empresas integrantes do Sistema Telebrás. No setor elétrico, no entanto, apenas as concessionárias de distribuição foram maciçamente privatizadas, ao passo que somente uma pequena parcela das concessionárias de geração vieram a ser, inobstante a importância das usinas envolvidas nesse processo. Mas a intenção de privatizar as concessionárias, ainda que não materializada, em nada altera a aplicação das disposições legais relativas à concessão. Surgiu então um mercado misto em que atuam e convivem as concessionárias sob controle estatal e as que se encontram sob controle privado. Essa circunstância não tem o condão de alterar as relações, nem mesmo as necessidades inerentes à atividade das concessionárias. Não se diga que apenas as concessionárias sob controle estatal exercem suas atividades influenciadas pelo interesse público, por revestirem a natureza de empresas públicas ou sociedades de economia mista. Na verdade, toda e qualquer concessionária, seja controlada por quem o for, estará subordinada ao interesse público, já que exercem uma atividade que se constitui em serviço público , e essa característica decorre da natureza mesma do serviço prestado, na forma definida pela Constituição Federal. Nesse sentido, a Lei nº 8.987, em seu art. 28, autorizou as concessionárias a oferecer em garantia de financiamentos que viessem a contrair os direitos emergentes da concessão, sem fazer qualquer ressalva quanto à natureza de seu controle. Em linha com essa autorização legal, consta dos contratos de concessão cláusula autorizando a constituição de garantia incidente sobre os direitos emergentes da concessão .

35. O que pretendeu a Lei nº 8.987 com a inserção dessa autorização? Declarar que esses direitos eram disponíveis? Entendemos que a intenção do legislador era a de solucionar a um só tempo duas questões fundamentais – a inexistência da possibilidade de se onerar a concessão e, por outro lado, assegurar que, mesmo em razão da oneração dos direitos emergentes da concessão, o concessionário continuasse a prestar serviço adequado aos usuários, manifestado na regularidade, continuidade e eficiência . Esta é a razão pela qual a constituição de garantia sobre os direitos emergentes da concessão não poderá comprometer a operacionalização e continuidade da prestação do serviço. Aí está patente a preocupação do legislador de, a um só tempo, assegurar os meios para que se desenvolvam as atividades dos concessionários (ao permitir a oneração dos direitos em garantia) e submetê-los à prevalência do interesse público sobre o particular, expresso na preservação da operacionalização e continuidade do serviço público. Um outro aspecto importante que decorre dessa disposição é a determinação, ainda que por exclusão e implícita, de que a concessão não poderá ser onerada. Diferentemente de outras jurisdições onde isso é possível, o direito positivo brasileiro não reconhece a possibilidade de que a concessão seja onerada em garantia de financiamentos. Isso faz sentido se considerarmos a questão do ponto de vista histórico. Quando da edição da Lei, os patrocinadores e financiadores de projetos de infraestrutura imaginavam, como haviam implementado em outros países, buscar a garantia da concessão para os financiamentos outorgados utilizando estruturas de project finance. Nós mesmos fomos consultados por patrocinadores e financiadores estrangeiros sobre essa possibilidade e nos manifestamos contrariamente a essa possibilidade, antes mesmo da edição da Lei. Assim sendo, restaram os direitos emergentes da concessão para serem oferecidos em garantia.

36. Mas a Lei não define quais dos direitos do concessionário integram a categoria de direitos emergentes. Vale lembrar que, ao editar a legislação regulando a produção de energia elétrica por produtor independente e auto-produtor, o Poder Executivo definiu como direitos emergentes da concessão, dentre outros, a energia elétrica produzida e a receita decorrente dos contratos de compra e venda dessa energia, bem assim os bens e instalações utilizados para a sua produção, passíveis de serem oferecidos em garantia dos financiamentos obtidos para a realização de obras ou serviços . Portanto, por aplicação analógica, podemos dizer que aludidos direitos são igualmente direitos emergentes da concessão para fins do art. 28 da Lei nº 8.987 relativa aos concessionários. A inserção desse dispositivo no Decreto mencionado se fez necessária pelo fato da norma do art. 28 antes mencionado aplicar-se, apenas e tão somente, a concessionários, cabendo ressaltar que a criação dos produtores independentes ocorreu quando da edição da Lei nº 9.074. De tudo isso, o que é importante reter é o fato da disposição do art. 28 da Lei nº 8.987 e do art. 19 do Decreto nº 2.003 não se caracterizarem por definir esses direitos emergentes da concessão como disponíveis, mas objetivam elas autorizar que os mesmos sejam onerados, e essa autorização visa a assegurar que seja cumprida a disposição legal de preservação de continuidade do serviço. Logo, não se diga que esses direitos podem ser onerados por terem sido definidos como disponíveis, sendo que a Lei reconheceu a sua disponibilidade e não diferenciou quem fosse o titular. Portanto, qualquer concessionário, esteja sob controle estatal ou privado, poderá onerar livremente os direitos emergentes da concessão que são direitos disponíveis.

37. E nem poderia ser diferente o reconhecimento do caráter de disponibilidade desses direitos. A legislação civil estabelece que só aquele que pode alienar poderá dar os bens em garantia, assim como só as coisas que possam ser alienadas poderão ser objeto de garantia. Ora, se a Lei reconhece aos concessionários o direito de onerar em favor dos financiadores os direitos emergentes da concessão , reconhece, por via de conseqüência, que esses direitos são disponíveis pelos concessionários, seja qual seja a natureza de seu controle. E não faria sentido, como querem as decisões pendentes de julgamento de recursos administrativos e judiciais, nos casos mencionados neste artigo, que a energia gerada e adquirida, assim como os créditos a ela relativos, por serem de titularidade de concessionária sob controle estatal, sejam tratados como direitos indisponíveis.

38. Não bastassem esses argumentos sólidos que demonstram a disponibilidade dos direitos emergentes da concessão, atualmente postulados ou julgados como indisponíveis, vale lembrar que a Lei nº 8.987, em seu artigo 25 e parágrafos, admite que a concessionária contrate com terceiros o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço concedido, bem como a implementação de projetos associados. Disposição similar a esta consta da Lei Geral de Telecomunicações . Em ambos os casos, a legislação estabelece que os contratos celebrados entre as concessionárias e terceiros serão regidos pelo direito privado. E não se afirme que os contratos de compra e venda de energia entre concessionários e terceiros não se enquadrariam nas categorias de atividades previstas em lei. Estamos certos de que o suprimento de energia aos concessionários de distribuição para atendimento das necessidades de fornecimento aos consumidores cativos ou para revenda a concessionárias de distribuição, no caso de comercializadores, são atividades inerentes à concessão e à autorização. Logo, a implementação de projetos de geração de energia elétrica por produtores independentes para suprimento a concessionárias está devidamente autorizada e prevista em lei. Ademais, em todos esses casos, os contratos que suportarem a relação entre terceiros e as concessionárias são regidos pelo direito privado, e não pelas normas de direito administrativo.

VII - CONCLUSÕES

Concluída a análise das operações realizadas no âmbito do setor elétrico para fins de determinarmos a correta interpretação das disposições da Lei nº 10.433, fundamento da negação de validade das cláusulas compromissórias em contratos de compra e venda de energia elétrica, parece que não nos equivocamos ao adotar o método de interpretação sistemática preconizado por Carlos Maximiliano. Estamos seguros ao fazer esta afirmação pois da integração das disposições sob análise ao marco legal e regulamentar do setor elétrico chegamos a conclusões importantes, o que vale dizer, revelou-se para nós o “realce inesperado” a que alude, em sua obra, Carlos Maximiliano.

Como produto de nossa análise, concluímos que a disposição da Lei nº 10.433 no que tange à adesão das concessionárias sob controle estatal ao MAE foi inserida em atendimento a um requisito constitucional e que os créditos e débitos considerados por ela como disponíveis sempre ostentaram essa condição, o que a lei veio apenas a confirmar e não alterar o que já se caracterizava como tal, não se constituindo nenhuma situação nova. Por outro lado, tivemos a oportunidade de comprovar que os direitos emergentes da concessão, ao abrangerem a energia elétrica produzida e as receitas a ela relativas, são direitos disponíveis por sua própria natureza e em nada se distingue serem eles detidos por concessionárias sob controle estatal ou privado.

Concluímos, ainda, que a definição da arbitragem como meio de solução de controvérsias, no âmbito do MAE, se fazia necessária posto que não abrangido este pela Lei nº 8.987, e especialmente por tratar-se de uma arbitragem mandatória, mas que a autorização para que as concessionárias sob controle estatal a ela aderissem é despicienda, em razão da natureza disponível dos direitos controversos decorrentes das operações cursadas no MAE.

Finalmente, por caracterizarem-se, em sua grande maioria, os direitos controversos decorrentes dos PPAs como disponíveis (sobretudo obrigações de natureza financeira ou a ela redutíveis, decorrentes ou não de inadimplemento contratual), a cláusula compromissória é válida em relação a estes, ensejando a instituição da arbitragem, na forma e modo ajustados contratualmente pelas partes e nos termos do respectivo regulamento do órgão arbitral escolhido, ainda que uma delas seja concessionária sob controle estatal.

No entanto, ressaltamos, por oportuno, que, a despeito dessas nossas conclusões, é também nosso entendimento que, na hipótese das concessionárias sob controle estatal, a arbitragem deva ser sempre baseada na lei e nunca em equidade. Dada a natureza jurídica dessas, as controvérsias devem ser dirimidas com referência, apenas e tão somente, ao marco legal e regulatório, refletindo, neste aspecto, o princípio da legalidade estrita que, quanto ao mesmo, se aplica integralmente. Inclusive no caso de concessionárias privadas, onde inexistiria esse óbice, entendemos recomendável que a arbitragem se baseie na lei, evitando-se a utilização da equidade como fundamento das decisões. O argumento em que se baseia essa recomendação é o dessas operações se enquadrarem em setor regulado e se constituírem em atividades inerentes ao serviço público. Nesse sentido, vale lembrar que, no caso da Convenção de Arbitragem do MAE, desta consta disposição específica e de aplicação geral, em sua Cláusula 14, segundo a qual o julgamento por equidade não será permitido nos procedimentos arbitrais relativos a controvérsias no âmbito do MAE. Entendemos a preocupação expressa nessa cláusula, na medida em que, como tivemos a oportunidade de mencionar, as operações conduzidas no âmbito do MAE são estritamente reguladas e de conteúdo multilateral, sendo que qualquer decisão que não leve em conta as regras aplicáveis poderá afetar, de forma adversa, todo o mercado.

A insistência em se negar validade à cláusula compromissória nos casos envolvendo concessionárias sob controle estatal, mesmo em se tratando de direitos disponíveis, em face do que foi analisado em relação ao marco legal e regulamentar aplicável ao setor elétrico brasileiro, constitui violação expressa às disposições da Convenção de New York de 1958, da qual o Brasil é parte signatária e a ratificou. Com base no artigo II, parágrafo 3º da Convenção de New York, o tribunal de um Estado signatário, quando de posse de ação sobre matéria com relação à qual as partes tenham estabelecido acordo nos termos do aludido artigo, a pedido de uma delas, encaminhará as partes à arbitragem, a menos que constate que tal acordo é nulo e sem efeitos, inoperante ou inexeqüível.

No mais, esperamos ter podido contribuir para o desenvolvimento e prática da arbitragem no Brasil. A complexidade do marco legal e regulamentar do setor elétrico nacional está a recomendar que as controvérsias surgidas sejam, na medida em que os direitos controversos sejam disponíveis, dirimidas por arbitragem. Em qualquer hipótese, seja qual for o órgão julgador, deve ter ele um conhecimento profundo das leis que regulam essa atividade, mas, principalmente, do funcionamento do mercado e da forma de condução de operações. Não é por outro motivo que, ao determinar a celebração da convenção de arbitragem, o art. 40 da Convenção de Mercado do MAE estabeleceu que a opção pela arbitragem se deu “em virtude da elevada especificidade do mercado e dos elementos que se afiguram como potenciais fontes de controvérsia e litígio”.

Estamos seguros, como já tivemos a oportunidade de afirmar no Artigo anteriormente publicado, que a arbitragem não carece de defesa, mas de uma melhor compreensão. A análise que conduzimos neste Artigo ratifica essa nossa convicção.

São Paulo, julho de 2003

Direitos Autorais reservados a Tozzini Freire Teixeira e Silva Advogados.

 

Fonte:http://www.camarb.com