A hierarquia entre princípios e a
colisão de normas constitucionais
George Marmelstein Lima
juiz
federal substituto no Ceará
SUMÁRIO: 1. Hierarquia entre
princípios constitucionais? - 2. Colisão de princípios constitucionais - 2.1. A
concordância prática - 2.2. A dimensão de peso e importância - 3. Para
finalizar
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1. HIERARQUIA ENTRE PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS?
Questão interessante é saber se há hierarquia entre os
princípios constitucionais.
O ordenamento jurídico, como se sabe, é um sistema
hierárquico de normas, na clássica formulação de KELSEN. Estaria, assim,
escalonado com normas de diferentes valores, ocupando cada norma uma posição
intersistemática, formando um todo harmônico(1), com interdependência de
funções e diferentes níveis normativos de forma que "uma norma para ser
válida é preciso que busque seu fundamento de validade em uma norma superior, e
assim por diante, de tal forma que todas as normas cuja validade pode ser
reconduzida a uma mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma
ordem normativa"(2). É a famosa teoria da construção escalonada das normas
jurídicas (stufenbautheorie).
Considerando que princípios jurídicos são normas(3), e
que as normas são hierarquicamente escalonadas, poder-se-ia facilmente admitir
que há hierarquia entre os princípios. Nesse sentido, assim se manifesta
GERALDO ATALIBA: "O sistema jurídico (...) se estabelece mediante uma
hierarquia segundo a qual algumas normas descansam em outras, as quais, por sua
vez, repousam em princípios que, de seu lado, se assentam em outros princípios
mais importantes. Dessa hierarquia decorre que os princípios maiores fixam as
diretrizes gerais do sistema e subordinam os princípios menores. Estes
subordinam certas regras que, à sua vez, submetem outras (...)"(4).
Apesar de ser esta uma dedução lógica, a questão da
possibilidade de hierarquia entre princípios não é tão fácil quanto se imagina.
Se levarmos em conta que existem princípios
constitucionais e princípios infraconstitucionais, não há grande dificuldade em
perceber que aqueles são hierarquicamente superiores a estes. Pode-se mesmo
dizer que os princípios constitucionais são o fundamento de validade dos
princípios infraconstitucionais. Assim, por exemplo, o princípio da identidade
física do juiz, inserto no art. 132 do C.Pr.C., buscaria fundamento de validade
no princípio constitucional do juiz natural, disposto no art. 5o, LIII, da
CF/88.
A questão se complica quando se toma como ponto de
referência unicamente os princípios constitucionais. Ou seja, imaginando um
"corte epistemológico" na pirâmide normativa e separando as normas de
status constitucional, poder-se-ia dizer que há hierarquia entre os princípios
constitucionais considerados em si mesmos? Por exemplo, o princípio da isonomia
seria hierarquicamente superior ao princípio da liberdade de reunião, ambos
consagrados no texto constitucional? A resposta para esta questão varia
conforme o critério a ser adotado para se estabelecer a hierarquia.
De fato, se nos pautarmos no critério axiológico,
valorativo, parece indubitável que há hierarquia entre tais princípios. Afinal,
quem ousa dizer que o princípio da dignidade da pessoa humana "vale"
menos do que o princípio da proteção à propriedade? Aliás, todos os princípios
e regras decorrem, ainda que indireta e mediatamente, do princípio-mor da
dignidade da pessoa humana(5). Do mesmo modo, seria correto dizer que o
princípio do devido processo legal estaria situado no topo dos princípios
constitucionais processuais.
GERALDO ATALIBA,
nesse sentido, afirma que "mesmo no nível constitucional, há uma ordem que
faz com que as regras tenham sua interpretação e eficácia condicionadas pelos
princípios. Estes se harmonizam, em função da hierarquia entre eles
estabelecida, de modo a assegurar plena coerência interna ao sistema
(...)"(6). Nesse aspecto, portanto, parece inarredável que nossa Carta
Magna realmente "hierarquizou" princípios, "elegendo" os
mais importantes para compor o núcleo essencial, ou, na expressão de LOWENSTEIN,
para ser a "dimensão política fundamental". Tanto é verdade que
alguns princípios são "irreformáveis", ou seja, estão imantados pela
cláusula da inabolibidade (não podem ser abolidos), ao passo que outros podem
ser, na forma do processo constitucional legislativo, suprimidos pelo poder
constituinte derivado(7).
Por outro lado, do ponto de vista jurídico, é forçoso
admitir que não há hierarquia entre os princípios constitucionais. Ou seja,
todos as normas constitucionais têm igual dignidade; em outras palavras: não há
normas constitucionais meramente formais, nem hierarquia de supra ou
infra-ordenação dentro da Constituição, conforme asseverou CANOTILHO. Existem,
é certo, princípios com diferentes níveis de concretização e densidade
semântica, mas nem por isso é correto dizer que há hierarquia normativa entre
os princípios constitucionais. Com efeito, como decorrência imediata do
princípio da unidade da Constituição, tem-se como inadmissível a existência de
normas constitucionais antinômicas (inconstitucionais), isto é, completamente
incompatíveis, conquanto possa haver, e geralmente há, tensão das normas entre
si.
Ora, se a Constituição é um sistema de normas, um
lucidos ordo, como era sempre advertido por Ruy Barbosa, que confere unidade a
todo o ordenamento jurídico, disciplinando unitária e congruentemente as
estruturas fundamentais da sociedade e do Estado, é mais do que razoável
concluir não há hierarquia entre estas normas constitucionais. Não existe nem
mesmo hierarquia (jurídica) entre os princípios e as regras constitucionais, o
que se afasta, de logo, a ocorrência de normas constitucionais
inconstitucionais(8), ou melhor, normas constitucionais do poder constituinte
originário inconstitucionais, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal,
acertadamente, já admitiu a possibilidade de normas constitucionais emanadas do
poder constituinte derivado inconstitucionais (ADIn 939), desde que maculem as
garantias de eternidade (cláusulas pétreas) enumeradas no §4o do art. 60.
Dessume-se, pois, que não há, do ponto de vista estritamente
jurídico (epistemológico), hierarquia entre os princípios. Pode-se, não
obstante, cogitar a hipótese de existência de hierarquia axiológica (ou
deontológica) entre as normas constitucionais, incluindo-se aí, obviamente, os
princípios.
Partido-se dessa
constatação de que não há hierarquia entre os princípios constitucionais, surge
uma tormentosa questão: o que fazer quando dois ou mais princípios
constitucionais entram em rota de colisão? É o que veremos no tópico que se
segue.
2. COLISÃO(9) DE PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS: O POSTULADO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA E A DIMENSÃO DE PESO OU
IMPORTÂNCIA
Falou-se que não há hierarquia jurídica entre os princípios,
embora normalmente haja entre eles uma tensão permanente. É verdade. As normas
constitucionais, muitas vezes, parecem conflitantes, antagônicas até. À
primeira vista, aparentam inconciliáveis o princípio da liberdade de expressão
e o direito à intimidade ou privacidade. E o princípio da função social da
propriedade com a norma que diz que as terras públicas não são passíveis de
usucapião, como conciliá-los? O que dizer, outrossim, do princípio da livre
iniciativa e as possibilidades de monopólio estatal constitucionalmente
previstas? Há, sem dúvida, constante tensão entre as normas constitucionais.
Essa tensão existente entre as normas é conseqüência da
própria carga valorativa inserta na Constituição, que, desde o seu nascedouro,
incorpora, em uma sociedade pluralista, os interesses das diversas classes
componentes do Poder Constituinte Originário. Esses interesses, como não
poderia deixar de ser, em diversos momentos não se harmonizam entre si em
virtude de representarem a vontade política de classes sociais antagônicas.
Surge, então, dessa pluralidade de concepções - típica em um "Estado
Democrático de Direito" que é a fórmula política adotada por nós - um
estado permanente de tensão entre as normas constitucionais. Como explica MÜLLER,
a Constituição é de si mesma um repositório de princípios às vezes antagônicos
e controversos, que exprimem o armistício na guerra institucional da sociedade
de classes, mas não retiram à Constituição seu teor de heterogeneidade e
contradições inerentes, visíveis até mesmo pelo aspecto técnico na desordem e
no caráter dispersivo com que se amontoam, à consideração do hermeneuta,
matéria jurídica, programas políticos, conteúdos sociais e ideológicos,
fundamentos do regime, regras materialmente transitórias embora formalmente
institucionalizadas de maneira permanente e que fazem, enfim, da Constituição
um navio que recebe e transporta todas as cargas possíveis, de acordo com as
necessidades, o método e os sentimentos da época(10).
Ademais, o simples fato de os princípios constituírem
um sistema aberto, ou seja, permitirem uma compreensão fluida e plástica, já
insinua (ou subentende-se) que podem existir fenômenos de tensão entre esses
princípios componentes dessa dinâmica ordem sistêmica. Nos casos concretos, é
muito comum o jurista deparar-se com dois princípios conflitantes. É o que
costuma denominar-se de colisão de princípios(11).
Como se sabe, a situação de regras incompatíveis entre
si é denominada antinomia. Há três critérios clássicos, apontados por BOBBIO e
aceitos quase universalmente, para solução de antinomias: o critério
cronológico (lex posterior derogat priori), o critério hierárquico (lex
superior derogat inferiori) e, por último, o critério da especialidade (lex specialis
derogat generali). Assim, no caso de duas regras em conflito, aplica-se um
desses três critérios, na forma do tudo ou nada (no all or nothing(12)):
"se se dão os fatos por ela estabelecidos, então ou a regra é válida e, em
tal caso, deve-se aceitar a conseqüência que ela fornece; ou a regra é inválida
e, em tal caso, não influi sobre a decisão"(13). No caso de colisão de
princípios constitucionais, porém, não se trata de antinomia(14), vez que não
se pode simplesmente afastar a aplicação de um deles. Portanto, não há que se
falar em aplicação destes critérios para solucionar eventual colisão de
princípios constitucionais. Como assevera CANOTILHO: "Assim, por ex., se o
princípio democrático obtém concretização através do princípio maioritário, isso
não significa desprezo da proteção das minorias (...); se o princípio
democrático, na sua dimensão económica, exige a intervenção conformadora do
Estado através de expropriações e nacionalizações, isso não significa que se
posterguem os requisitos de segurança inerentes ao princípio do Estado de
direito (princípio de legalidade, princípio de justa indenização, princípio de
acesso aos tribunais para discutir a medida da intervenção)"(15).
Surge, em razão dessa impossibilidade de se aplicar os
critérios clássicos para resolver antinomias, no caso de conflito entre
princípios, uma tormentosa questão: quid iuris no caso de uma colisão de
princípio constitucionais, já que eles possuem a mesma hierarquia normativa e,
portanto, devem ser igualmente obedecidos? Escolhe-se o axiologicamente mais
importante, afastando integralmente a aplicação do outro? A nosso ver, não é
essa, a priori, a melhor solução. Afinal, quem irá determinar qual o princípio
"axiologicamente mais importante"? Para o fazendeiro, dono da terra,
o princípio mais importante certamente será o da propriedade; para o
"sem-terra", o da função social da propriedade.
Duas soluções foram desenvolvidas pela doutrina
(estrangeira, diga-se de passagem) e vêm sendo comumente utilizada pelos
Tribunais. A primeira é a da concordância prática (Hesse); a segunda, a da
dimensão de peso ou importância (Dworkin). A par dessas duas soluções, aparece,
em qualquer situação, o princípio da proporcionalidade como
"meta-princípio", isto é, como "princípio dos princípios",
visando, da melhor forma, preservar os princípios constitucionais em jogo. O
próprio HESSE entende que a concordância prática é uma projeção do princípio da
proporcionalidade.
A nosso ver, essas duas soluções (concordância prática
e dimensão de peso e importância) podem e devem ser aplicadas sucessivamente,
sempre tendo o princípio da proporcionalidade como "parâmetro":
primeiro, aplica-se a concordância prática(16); em seguida, não sendo possível
a concordância, dimensiona-se o peso e importância dos princípios em jogo,
sacrificando, o mínimo possível, o princípio de "menor peso".
Vejamos, com mais detalhes, o que vem a ser a concordância prática e a dimensão
de peso e importância.
2.1. A concordância prática - O princípio da
concordância prática ou da harmonização, como consectário lógico do princípio
da unidade constitucional, é comumente utilizado para resolver problemas
referentes à colisão de direitos fundamentais. De acordo com esse princípio, os
direitos fundamentais e valores constitucionais deverão ser harmonizados, no
caso sub examine, por meio de juízo de ponderação que vise preservar e
concretizar ao máximo os direitos e bens constitucionais protegidos(17).
A concordância prática pode ser enunciada da seguinte
maneira: havendo colisão entre valores constitucionais (normas jurídicas de
hierarquia constitucional), o que se deve buscar é a otimização entre os direitos
e valores em jogo, no estabelecimento de uma concordância prática (praktische
Konkordanz)(18), que deve resultar numa ordenação proporcional dos direitos
fundamentais e/ou valores fundamentais em colisão, ou seja, busca-se o ‘melhor
equilíbrio possível entre os princípios colidentes’(LERCHE). Nas palavras de
INGO WOLFGANG SARLET: "Em rigor, cuida-se de processo de ponderação no
qual não se trata da atribuição de uma prevalência absoluta de um valor sobre
outro, mas, sim, na tentativa de aplicação simultânea e compatibilizada de normas,
ainda que no caso concreto se torne necessária a atenuação de uma
delas"(19).
Um exemplo esclarecerá melhor a aplicação do princípio
da concordância prática: na Alemanha, em um caso famoso, um sujeito foi preso,
por estar sendo acusado de inúmeros crimes de grande repercussão social.
Logicamente, a imprensa local pretendia divulgar amplamente a matéria, tendo,
inclusive, uma emissora editado um documentário, o qual seria transmitido em
horário nobre. Diante desses fatos, o sujeito que havia sido preso aforou uma
ação pretendendo impedir os intentos da imprensa sob a alegação de que a
divulgação da matéria feriria o seu direito à intimidade e à privacidade, sendo
certo que, após a divulgação, seria impossível ao sujeito tornar a ter uma vida
normal.
Estaríamos, assim, diante de uma colisão de dois
princípios constitucionais: a liberdade de expressão e o direito à intimidade.
O fato foi posto a julgamento, e a Justiça Alemã,
utilizando o princípio da concordância prática, assim decidiu: a imprensa
poderá, em nome da liberdade de expressão, exibir a matéria. No entanto,
visando preservar o direito à intimidade do indivíduo, não poderá citar seu
nome completo (mas somente as iniciais), nem mostrar seu rosto (deverá utilizar
mecanismos eletrônicos para desfigurá-lo).
Conciliou-se, dessa forma, os princípios da liberdade
de expressão e da privacidade. É a concordância prática.
2.2. A dimensão de peso e importância- O segundo
critério que pode ser utilizado se não for possível a concordância prática é o
da dimensão de peso e importância (dimension of weights), fornecido por RONALD
DWORKIN. Na obra Taking Rights Seriously, após explicar que as regras jurídicas
são aplicáveis por completo ou não são, de modo absoluto, aplicada (dimensão do
tudo ou nada), o prof. da Universidade de Oxford diz que os princípios
"possuem uma dimensão que não é própria das regras jurídicas: a dimensão
do peso ou importância. Assim, quando se entrecruzam vários princípios, quem há
de resolver o conflito deve levar em conta o peso relativo de cada um deles
(...). As regras não possuem tal dimensão. Não podemos afirmar que uma delas,
no interior do sistema normativo, é mais importante do que outra, de modo que,
no caso de conflito entre ambas, deve prevalecer uma em virtude de seu peso
maior. Se duas regras entram em conflito, uma delas não é válida"(20).
Seguindo o ensinamento de CANOTILHO: "(1) os
princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com
vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e
jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência
(impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida (...); a convivência dos
princípios é conflitual (ZAGREBELSKY); a convivência de regras é antinômica; os
princípios coexistem; as regras antinómicas excluem-se; (2) consequentemente,
os princípios, ao constituirem exigências de optimização, permitem o
balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à ‘lógica
do tudo ou nada’), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios
eventualmente conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra
solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida
das suas prescrições, nem mais nem menos. (3) em caso de conflito entre
princípios, estes podem ser objecto de ponderação, de harmonização, pois eles
contêm apenas ‘exigências’ ou ‘standards’ que, em ‘primeira linha (prima
facie), devem ser realizados; as regras contêm ‘fixações normativas’
definitivas, sendo insustentável a validade simultânea da regras
contraditórias. (4) os princípios suscitam problemas de validade e peso
(importância, ponderação valia); as regras colocam apenas questões de validade (se
elas não são correctas devem ser alteradas)."(21)
No dimensionamento do peso ou importância dos
princípios, segundo DOWRKIN, haveria única resposta correta para os casos
difíceis (hard cases).
Nesse ponto, ousamos discordar do mestre. É que, no
nosso entendimento, a ponderação de valores, pela carga axiológica mesma
inserta nessa atividade, faz com que a decisão do caso concreto dependa
sobremaneira da postura ideológica do hermeneuta: é uma "solução de
compromisso". Assim, no já citado exemplo do princípio da função social da
propriedade, a solução seria diversa em função da diretriz ideológica adotada
na interpretação (postura tradicional versus postura social). Como diria LOUIS
VEUILLOT, publicista do século passado: "quando eu sou o mais fraco eu vos
peço liberdade porque tal é o vosso princípio; mas quando eu sou o mais forte,
eu vos nego esta liberdade porque tal é o meu"(22).
Portanto, somente diante do caso concreto será possível
resolver o problema da aparente colisão de princípios, através de um ponderação
(objetiva e subjetiva) de valores, pois, ao contrário do que ocorre com a
antinomia de regras, não há, a priori, critérios formais (meta-normas) e
standards preestabelecidos para resolvê-lo.
O intérprete, no caso concreto, através de uma análise
necessariamente tópica, terá que verificar, seguindo critérios objetivos e
subjetivos(23), qual o valor que o ordenamento, em seu conjunto, deseja
preservar naquela situação, sempre buscando conciliar os dois princípios em
colisão. É a busca da composição dos princípios.
Nesse caso, a legitimidade da interpretação apenas será
preservada na medida em que, em cada caso, informada pelo critério da
proporcionalidade, essa composição seja operada(24). Ou seja, "a
especificidade, conteúdo, extensão e alcance próprios de cada princípio não
exigem nem admitem o sacrifício unilateral de um princípio em relação aos
outros, antes reclamam a harmonização dos mesmos, de modo a obter-se a máxima
efectividade de todos eles", conforme a lição de CANOTILHO.
Um caso semelhante ao que citamos para explicar a
concordância prática, onde também estava em jogo os princípios da liberdade de
expressão e da inviolabilidade da vida privada, pode tornar mais claro a
aplicação da dimensão do peso e importância dos princípios.
Cuidava-se de um ação de reparação de danos proposta
pela atriz Maria Zilda Bethelm Vieira contra a Editora Abril S.A., cuja causa
petendi remota(25) foi uma matéria jomalística publicada na seção Gente da
revista Veja, noticiando que a autora, quando estava sendo transmitida a novela
"Olho por Olho", teria o hábito de faltar às gravações ou chegar
alcoolizada, ferindo, portanto, o seu direito à intimidade (inviolabilidade da vida
privada). A Editora Abril S.A sustentou em sua defesa que sua conduta (a de
publicar a matéria) estava em consonância com o preceito constitucional que
garante a liberdade de informação, tendo, por isso, agido em absoluta
conformidade com a Carta Magna, informando seus leitores a respeito de fato de
interesse público, pelo que não teria praticado ato ilícito. O Desembargador
relator, afirmando que "não é possível analisar-se uma disposição
constitucional isoladamente, fora do conjunto harmônico em que deve ser
situada; princípios aparentemente contraditórios podem harmonizar-se desde que
se abdique da pretensão de interpretá-los de forma isolada e absoluta",
aduziu em seu voto que "a revelação de verdades da vida privada capazes de
causar transtornos só, se justifica se isso for essencial para se entender um
fenômeno histórico. Se não, vira artifício sensacionalista, o que é eticamente
condenável e politicamente perigoso". O acórdão ficou assim ementado,
excluídas as partes que não nos interessam:
"(...)
Responsabilidade civil de empresa jornalística. Publicação ofensiva. I.
Liberdade de informação versus inviolabilidade à vida privada. Princípio da
unidade constitucional. Na temática atinente aos direitos e garantias
fundamentais, dois princípios constitucionais se confrontam e devem ser
conciliados. De um lado, a livre expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, de outro
lado, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem
das pessoas. Sempre que princípios aparentam colidir, deve o intérprete
procurar as reciprocas implicações existentes entre eles até chegar a uma
inteligência harmoniosa, porquanto, em face do princípio da lealdade
constitucional, a Constituição não; pode estar em conflito consigo mesma, não
obstante a diversidade de normas e princípios que contém. Assim, se ao direito
à livre expressão da atividade intelectual e de comunicação contrapõe-se o
direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem,
segue-se como conseqüência lógica que este último condiciona o exercício do
primeiro, atuando como limite estabelecido pela própria Lei Maior para impedir
excessos e abusos" (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Apelação Cível
n° 760/96 - RJ, 2ª Câmara Cível, rel. Des. SÉRGIO CAVALIERI FILHO).
Dessa forma, no caso concreto, ponderou-se que o
princípio da inviolabilidade da vida privada teria maior "peso e
importância" do que a liberdade de expressão, para fins de aplicação da
sanção civil. Aplicou-se, assim, a dimensão de peso e importância, apesar de
ficar consignado em diversas partes do acórdão, que se deveria buscar a
conciliação dos princípios. Na hipótese, como a conciliação completa não seria
possível, tendo em vista que a matéria já havia sido publicada, condenou-se a
Editora Abril S.A. a pagar uma indenização à atriz, pela violação de sua vida
privada.
3. PARA FINALIZAR
Em conclusão:
a) não há, do ponto de vista estritamente jurídico
(epistemológico), hierarquia entre os princípios;
b) pode-se, não obstante, cogitar a hipótese de
existência de hierarquia axiológica (ou deontológica) entre as normas
constitucionais, incluindo-se aí, obviamente, os princípios;
c) no caso de duas regras em conflito (antinomia),
aplica-se um dos três critérios apontados pela doutrina (cronológico,
hierárquico ou da especialidade), na forma do tudo ou nada (no all or nothing):
"se se dão os fatos por ela estabelecidos, então ou a regra é válida e, em
tal caso, deve-se aceitar a conseqüência que ela fornece; ou a regra é inválida
e, em tal caso, não influi sobre a decisão".
d) no caso de colisão de princípios constitucionais,
porém, não se trata de antinomia, vez que não se pode simplesmente afastar a
aplicação de um deles;
e) duas soluções foram desenvolvidas pela doutrina
estrangeira e vêm sendo comumente utilizada pelos Tribunais para solucionar
casos em que dois princípios entram em rota de colisão. A primeira é a da
concordância prática (Hesse); a segunda, a da dimensão de peso ou importância
(Dworkin);
f) a concordância prática pode ser enunciada da
seguinte maneira: havendo colisão entre valores constitucionais (normas jurídicas
de hierarquia constitucional), o que se deve buscar é a otimização entre os
direitos e valores em jogo, no estabelecimento de uma harmonização, que deve
resultar numa ordenação proporcional dos direitos fundamentais e/ou valores
fundamentais em colisão, ou seja, busca-se o ‘melhor equilíbrio possível entre
os princípios colidentes’;
g) na dimensão de peso e importância, quando se
entrecruzam vários princípios, quem há de resolver o conflito deve levar em
conta o peso relativo de cada um deles, não se aplicando, tal como ocorre com
as regras, o critério do tudo ou nada;
h) em todo caso, o princípio da proporcionalidade deve
ser utilizado pelo operador do direito como meta-princípio, ou seja, como
"princípio dos princípios", visando, da melhor forma, preservar os
princípios constitucionais em jogo.
NOTAS
1.VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 3a
ed. Malheiros, São Paulo, 1993, p. 12.
2.KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4a ed. Martins
Fontes, São Paulo, 1995, p. 248.
3.Lembra-se que Kelsen negava o caráter de norma
jurídica aos princípios de direito, apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de
Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 27. No
entanto, "a dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas
jurídicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser
enquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípios e as
normas-disposição. As normas-disposição, também referidas como regras, têm
eficácia restrita às situações específicas as quais se dirigem. Já as
normas-princípio, ou simplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de
abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema" (BARROSO,
Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2a ed. Saraiva, São
Paulo, 1998, p. 141).
4.apud
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista
dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 165.
5.Cf. FARIAS, Edilson Pereira de. Colisão de Direitos.
Sérgio Antônio Fabris Editor, Brasília, 1996. Defende este autor que "os
direitos fundamentais podem ser entendidos como a concreção histórica do
princípio da dignidade humana".
6.apud
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista
dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 165.
7.Em função
disso, CARLOS AYRES BRITTO distingue o que chama de princípios fundamentais e
princípios "protofundamentais" (mais fundamentais que os demais,
nominados na Constituição de 1988), para concluir que existem princípios
fundamentais eternos e estáveis, sendo os protofundamentais eternos, e,
portanto, insubmissos a disposição reformadora do legislador constituído (apud
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos
Tribunais, São Paulo, 1999, p. 155).
8.Nesse sentido,
BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Almedina, Coimbra,
1994. Muitas das implicações que se tem atribuído a este autor, acerca da
possibilidade de existência de normas constitucionais inconstitucionais, é
equívoca. Foge, porém, ao objeto desse trabalho analisar mais profundamente a
teoria deste alemão. Para uma visão bastante clara do assunto, remetemos o
leitor à obra de LUÍS ROBERTO BARROSO (Interpretação..., p. 188/198).
9.A doutrina costuma dividir os conceitos de colisão e
conflito, sendo que o primeiro (colisão) ocorreria entre os princípios; já o
segundo (conflito), entre regras. Para os fins deste trabalho, utiliza-se
indistintamente os termos conflitos e colisão.
10.Apud BONAVIDES, Paulo. Curso...p. 460.
11.Para um estudo aprofundado do tema: FARIAS, Edilsom
Pereira de. Colisão de Direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a
imagem versus a liberdade de expressão e informação. Sérgio Antônio Fabris
Editor, Brasília, 1996
12.O termo é de DWORKIN, apud SANTOS, Fernando Ferreira
dos. Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Celso Bastos
Editor, São Paulo, 1999, p. 44.
13.Idem. Ob. Cit. p. 44.
14.Eros Roberto Grau chama a colisão de princípios de
antinomia jurídica imprópria
15.apud
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista
dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 242.
16.CANOTILHO, em seus estudos, tende a preferir a
concordância prática à dimensão de peso e importância.
17.FARIAS, Edilson Pereira de. Colisão...p. 98
18.O termo é de Konrad Hess.
19.Valor de Alçada e Limitação do Acesso ao Duplo Grau
de Jurisdição. Revista da Ajuris 66, 1996, p. 121.
20.apud
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista
dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 65
21.apud
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista
dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 66.
22.Até KELSEN, no auge da neutralidade ultra-ideológica
contida na sua Teoria Pura do Direito, reconhece que o direito positivo oferece
apenas um moldura na qual encontram-se inseridas várias possibilidades de
aplicação: "a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a
uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias
soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm
igual valor, se bem que apenas uma dela se torne Direito positivo no ato do
órgão aplicador do Direito - no ato do tribunal, especialmente. (...) Configura
o processo desta interpretação como se se tratasse tão-somente de um ato intelectual
de clarificação e de compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas
tivesse que pôr em ação o seu entendimento (razão), mas não a sua vontade, e
como se, através de uma pura atividade de intelecção, pudesse realizar-se,
entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao
Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito
positivo" (Teoria Pura do Direito. Martins Fontes, São Paulo, 1995, p.
390).
23.Nesse sentido, BARROSO: "A impossibilidade de
chegar-se à objetividade plena não minimiza a necessidade de se buscar a
objetividade possível. A interpretação, não apenas no direito como em outros
domínios, jamais será uma atividade inteiramente discricionária ou puramente
mecânica. Ela será sempre o produto de uma interação entre o intérprete e o
texto, e seu produto final conterá elementos objetivos e subjetivos. E é bom
que seja assim. A objetividade traçará os parâmetros de atuação do intérprete e
permitirá aferir o acerto de sua decisão à luz das possibilidades exegéticas do
teto, das regras de interpretação (que o confinam a um espaço que, normalmente,
não vai além da literalidade, da história, do sistema e da finalidade da norma)
e do conteúdo dos princípios e conceitos de que não se pode afastar. A
subjetividade traduzir-se-á na sensibilidade do intérprete, que humanizará a
norma para afeiçoá-la à realidade, e permitirá que ele busque a solução justa,
dentre as alternativas que o ordenamento lhe abriu. A objetividade máxima que
se pode perseguir na interpretação jurídica e constitucional é a de estabelecer
os balizamentos dentro dos quais o aplicador da lei exercitará sua
criatividade, seu senso do razoável e sua capacidade de fazer a justiça do caso
concreto" (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da
Constituição, 2a ed. Saraiva, São Paulo, 1998, p. 256).
24.GRAU, Eros Roberto. Licitação e Contrato
Administrativo. Malheiros, São Paulo, 1995, p. 17.
25.Pela teoria da substanciação, adotada por nosso Código
de Processo Civil, a causa de pedir se divide em próxima (direito, ou seja, as
razões jurídicas do pedido) e remota (os fatos que embasam o pedido).
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BIBLIOGRAFIA
BACHOF, Otto. Normas
Constitucionais Inconstitucionais? Almedina, Coimbra, 1994
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da
Constituição, 2a ed. Saraiva, São Paulo, 1998
BOBBIO, Norbeto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 7a ed.
Unb, Brasília, 1996
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7a
ed. Malheiros, São Paulo, 1998
ESPÍNDOLA,
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Tribunais, São Paulo, 1999
FARIAS, Edilson Pereira de. Colisão de Direitos. Sérgio
Antônio Fabris Editor, Brasília, 1996
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição
de 1988. 4a ed. Malheiros, São Paulo, 1998
________________________. Licitação e Contrato
Administrativo. Malheiros, São Paulo, 1995
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4a ed. Martins
Fontes, São Paulo, 1995, p. 248.
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da Dignidade da Pessoa Humana. Celso Bastos Editor, São Paulo, 1999
SARLET, Ingo Wolfgang. Valor de Alçada e Limitação do
Acesso ao Duplo Grau de Jurisdição. Revista da Ajuris 66, 1996
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 3a ed.
Malheiros, São Paulo, 1993
Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2625