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A Emenda do Calote

 

 

 

André L.Borges Netto

 

 

I – A EMENDA 30/2000

 

                     A imprensa divulgou recentemente que "graças à emenda constitucional promulgada ontem pelo Senado e Câmara, o Estado está autorizado a dar calote aos municípios. O pagamento dos precatórios poderá ser parcelado em 10 anos. Era essa a votação que o Governo estava esperando para protelar o pagamento dos precatórios dos municípios, de R$ 35 milhões" (jornal "Correio do Estado", edição de 14.09.2000).

 

                     Referida divulgação diz respeito à efetiva entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 30, de 13 de setembro de 2000, que alterou a redação do art. 100 da Constituição Federal e acrescentou o art. 78 ao ADCT, tudo referente ao pagamento de precatórios judiciais.

 

 

                     O que tem de viciado nesta Emenda diz respeito ao seu art. 2º, que incluiu no ADCT o art. 78, tudo com a seguinte redação:

 

 

"Art. 2º - É acrescido, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o art. 78, com a seguinte redação:

 

 

'Art. 78 – Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos'".

 

 

                     Pois bem, o Congresso Nacional, atuando de forma abusiva e imoral, acabou por decretar aquilo que deixou satisfeitos inúmeros governantes, que estão a se valer daquela previsão constitucional para efetivamente DEIXAR DE PAGAR O VALOR CONTIDO EM PRECATÓRIOS.

 

 

                     Lamenta-se, e muito, que mais uma vez, tal como já ocorrera em 1988, com a edição do art. 33 do ADCT, os credores da Fazenda Pública venham a ser envolvidos em um novo e famigerado CALOTE, situação que denigre a imagem do Poder Público como um todo, imagem que já não é das melhores, exatamente em razão de que não são honrados os compromissos assumidos.

 

 

                     O mais incrível de tudo é que mesmo diante da clareza do novo art. 78 do ADCT, que escancaradamente decretou um imoral e injusto CALOTE, ainda existem agentes públicos, tal como é o caso de um certo Senador EDISON LOBÃO (que foi o relator da proposta na Comissão de Constituição e Justiça), que teve a ousadia de explicar "que os credores serão beneficiados com essa proposta, porque isso vai permitir que os precatórios passem, finalmente, a ser pagos" (jornal "Correio do Estado", edição de 14.09.2000).

 

 

                     Lendo esse tipo de notícia, o cidadão comum passa a se imaginar como burro ou estúpido, desconfiando da própria inteligência. Com efeito, a tal Emenda instituiu ou não um calote, em razão de ter postergado o pagamento dos precatórios por mais 10 anos ? Se isto é verdade, como pode ser possível afirmar que "agora sim os credores irão receber" ? Parece até que vivemos num mundo de fantasia, onde a incredulidade aumenta a cada dia, quando se lê o jornal de manhã.

 

 

                     Deixando de lado aquela absurda e grotesca manifestação política, a verdade é que parte da Emenda em questão, ao instituir o CALOTE quanto ao pagamento dos precatórios, não deve ser observada por ninguém, muito menos pelos governantes municipais e estaduais, porquanto a mesma é INCONSTITUCIONAL, como tal devendo ser declarada. É o que será demonstrado neste estudo.

 

 

 

 

II – A VITANDA INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL DA EMENDA DO CALOTE

 

 

                     Certamente ninguém duvidará que vivemos em um ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO (CF/88, art. 1º), revelador do que a doutrina chama de verdadeiro e legítimo ESTADO CONSTITUCIONAL, "que pressupõe a existência de uma Constituição que sirva – valendo e vigorando – de ORDEM JURÍDICO-NORMATIVA FUNDAMENTAL vinculativa de todos os poderes públicos, aspirando a tornar-se um IMPULSO DIRIGENTE de toda uma sociedade" (J. J. GOMES CANOTILHO, "Direito Constitucional", Ed. Coimbra-Almedina, 1993, 6ª ed., p. 360).

 

 

                     A Constituição, no entanto, é o que menos foi levado em conta (se é que isto chegou minimamente a ser considerado pelo legislador) na oportunidade em que se deliberou sobre o que restou contido na Emenda 30/2000, porque NÃO HOUVE RESPEITO E/OU OBSERVÂNCIA a inúmeros princípios constitucionais, que não poderiam ser superados nem mesmo por aqueles que estão a exercer o Poder Constituinte Derivado ou Reformador, violando-se, às claras e de maneira direta e frontal, cláusulas pétreas (§ 4º do art. 60 da CF/88) das mais significativas e importantes.

 

 

                     Com efeito, considerando-se que ao se tratar da expressão "PRECATÓRIOS" o que se revela em verdade é uma decisão judicial condenatória passada em julgado (DE PLÁCIDO E SILVA, "Vocabulário Jurídico, Ed. Forense, 1987, vols. III e IV, p. 416, diz que tal expressão "é especialmente empregada para indicar a requisição ou, propriamente, a carta expedida pelos juízes da execução de sentenças, em que a Fazenda Pública foi condenada a certo pagamento, ao Presidente do Tribunal, a fim de que, por seu intermédio, se autorizem e se expeçam ordens de pagamento às respectivas repartições pagadoras"), não se pode deixar de considerar que parte da Emenda 30/2000, ao determinar a PROTELAÇÃO do pagamento dos precatórios pelo prazo de 10 anos, acabou por inserir no mundo jurídico, de forma absolutamente abusiva e viciada, um comando jurídico de natureza constitucional que autoriza (logicamente de forma inválida) o DESCUMPRIMENTO FRONTAL DE UMA DECISÃO JUDICIAL ! A outra leitura não se pode chegar quanto a este tema, de interpretação singela.

 

 

                     Assim agindo, ou seja, ao restar determinado que uma decisão judicial condenatória passada em julgado não deve ser cumprida, o legislador constituinte derivado acabou por desatender a cláusula pétrea que de modo algum poderia ter sido afrontada pela Emenda 30/2000, que diz respeito à necessária preservação da SEPARAÇÃO DOS PODERES (inciso III, § 4º, art. 60, CF/88). No fundo mesmo quem mais irá sofrer com a Emenda em questão é o Poder Judiciário, que passará a arcar com o ônus de sequer poder garantir o cumprimento das suas decisões. É evidente que isto não pode prevalecer, sob pena de total descrédito de todos em relação a algo que sempre se teve como sagrado e intocável, revelado pela premente necessidade de ser cumprida e observada toda e qualquer decisão judicial.

 

 

                     Como chegar a conclusão diversa da que é apresentada neste estudo? Como considerar válida a Emenda 30/2000, que instituiu entre nós o CALOTE (IN) CONSTITUCIONAL? Vale lembrar aqui lição do memorável CARLOS MAXIMILIANO, no sentido de que O DIREITO DEVE SER INTERPRETADO INTELIGENTEMENTE, "não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este, juridicamente nulo" (CARLOS MAXIMILIANO, "Hermenêutica e Aplicação do Direito", Ed. Forense, 1979, p. 166). É isto que se espera seja observado, especialmente pelo Poder Judiciário ao decidir impugnações contra a Emenda 30/2000.

 

 

                     Mas não é só, porém. Além daquela violação de princípio constitucional protegido por cláusula pétrea, tem-se, ainda, que a mesma Emenda 30/2000, decididamente, não observou o PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA MORALIDADE, que também é extensível à conduta do legislador, dado que este acabou por instalar no regime jurídico pátrio, sempre de forma indevida, abusiva e inválida, norma jurídica que revela desprestígio por aquilo que se formou depois de um demorado processo judicial, em que foram observadas as garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, transmitindo para a comunidade em geral que os compromissos, as obrigações, as contas, as dívidas, enfim, NÃO DEVEM SER PAGAS, bastando recorrer ao Congresso Nacional que este institucionaliza o CALOTE. Ora, evidente que a Constituição, interpretada de forma global e sistemática, não dá a ninguém esse tipo de "poder extraordinário", para superar a própria Constituição, que não admite, antes veda, condutas anti-éticas e imorais.

 

 

                     Quanto à MORALIDADE de que se fala, JOSÉ AFONSO DA SILVA, notável constitucionalista pátrio, observa que "Esse conjunto de normas constitucionais {art. 5º, II, art. 2º, art. 37, caput, § 4º do art. 37, art. 85, art. 5º, inciso LXXIII} retira a moralidade da área subjetiva da intenção do agente público e, assim, a desvincula da questão da mera legalidade, para erigi-la em princípio constitucional objetivo, como requisito de legitimidade da atuação dos agentes públicos, mais do que simples requisito de validade do ato administrativo" ("Poder Constituinte e Poder Popular", Ed. Malheiros, 2000, p. 128). Outra notável publicista (MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, "Da Discricionariedade Administrativa", Ed. Malheiros, 1990, p. 111), tratando do mesmo tema, averba que "não é preciso penetrar na intenção do agente, porque do próprio objeto resulta a imoralidade. Isto ocorre quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao trabalho, à ética das instituições. A moralidade exige proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir, entre os sacrifícios impostos à coletividade e os benefícios por ela auferidos, entre as vantagens usufruídas pelas autoridades públicas e os encargos impostos à maioria dos cidadãos".

 

 

                     Como, pois, deixar de considerar que a Emenda 30/2000, na parte em que foi instituído o CALOTE, concretizou de fato no mundo jurídico a desnecessidade de ser quitado aquilo que foi resultado de uma demanda judicial? Como entender como válida, sob o ponto de vista jurídico e à luz do princípio da MORALIDADE, norma jurídica que está a respaldar conduta anti-ética, ilegítima, desonesta e de absoluta má-fé ?

 

 

                     É bom que se lembre que os credores da Fazenda Pública, à época do advento da nova Constituição, já haviam sido submetidos a situação semelhante, pois o art. 33 do ADCT estabelecera que o valor dos precatórios judiciais poderiam ser pagos no prazo de 08 anos. Superado aquele prazo, de novo o legislador insiste na prática injusta e ilegítima do CALOTE. Será possível que isto não tem limite ? Será possível que o Judiciário irá tolerar esta irritante conduta IMORAL do legislador, que no caso está a prejudicar todos os que têm crédito a receber do Poder Público e que está a beneficiar, também de forma inválida, todos os Governos Estaduais e Municipais ?

 

 

                     Por mais relevantes que sejam as justificativas para a edição da Emenda 30/2000, não se pode compactuar com situação que revela desapego à Constituição e observância a uma suposta dificuldade de caixa do Poder Público para quitar os compromissos assumidos ou para cumprir as decisões judiciais. O STF, quanto a isto, já teve oportunidade de decidir que "a Constituição não pode se submeter à vontade dos Poderes constituídos nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste – enquanto for respeitada – constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e liberdades não serão jamais ofendidos" (RTJ 146/707, Rel. Min. CELSO DE MELLO). O respeito à Constituição só pode ser no sentido de restar reconhecida a inconstitucionalidade parcial da Emenda 30/2000, no ponto em que esta decretou o CALOTE quanto ao pagamento dos precatórios.

 

 

                     Nem se queira sustentar que o princípio da MORALIDADE não estaria protegido pela cláusula pétrea que trata dos "direitos e garantias individuais" (inciso IV, § 4º, art. 60, CF/88), porque é do conhecimento dos publicistas que o STF não vem interpretando o tema das cláusulas pétreas de forma restritiva, a ponto de ter declarado parcialmente inconstitucional a Emenda que criou o IPMF porque, dentre outros vícios, o legislador constituinte derivado não havia observado o princípio da anterioridade da legislação tributária, conforme consta do resultado da ADIn nº 939, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio (vide, por todos, sobre o assunto, o que consta da obra de MÁRCIA MILHOMENS SIROTHEAU CORRÊA, "Caráter Fundamental da Inimputabilidade na Constituição", Ed. Sérgio Antônio Fabris, 1998, p. 139). Se assim agiu o STF, não há porque deixar de considerar que ao se tratar do princípio da moralidade, da mesma forma que o princípio da anterioridade da legislação tributária, também estamos a tratar de tema protegido por cláusula pétrea (por se referir a "direito e garantia individual" que nem por Emenda pode ser afastado).

 

 

                     Eis aí o que se deve buscar no Judiciário: editou-se Emenda que em tudo e por tudo é INCONSTITUCIONAL, por violação de cláusulas pétreas, cabendo aos Tribunais reconhecer a nulidade parcial do ato normativo sob enfoque, até mesmo na via do controle difuso e para solucionar casos concretos. A doutrina, como é de correntio conhecimento, dá sustentação ao que se deve pedir, ao revelar que "as normas contidas no art. 60 da Constituição da República regulam a elaboração pelo Congresso Nacional de emendas à Carta Magna. O Poder Legislativo é um poder constituído, portanto absolutamente subordinado ao Poder Constituinte, o qual elaborou o texto inicial da Lex Legum, inclusive os comandos insculpidos em seu art. 60. Se qualquer desses preceitos for desrespeitado pelo Congresso Nacional, a emenda constitucional será contrária à Lei Maior e, por isso, inconstitucional" (RODRIGO LOPES LOURENÇO, "Controle da Constitucionalidade à Luz da Jurisprudência do STF", Ed. Forense, 1998, p. 73).

 

 

                     Da mesma forma que restou violado o princípio da moralidade, outra noção jurídica fundamental da Constituição (que também se caracteriza como cláusula pétrea, por se revestir de todas as características pertinentes aos direitos e garantias individuais), é o PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA (preâmbulo e art. 5º, "caput", CF/88), violado pelo art. 2º da Emenda 30/2000 quando esta tornou possível o não pagamento dos precatórios pendentes na data da sua promulgação, criando situação de absoluta DESIGUALDADE em relação àqueles que, por qualquer motivo, já receberam as importâncias advindas da condenação judicial transitada em julgado. O mesmo está a ocorrer em relação ao tratamento privilegiado dado pelo legislador àqueles que têm créditos de pequeno valor e créditos de natureza alimentícia, que também foram excluídos do CALOTE (art. 78 do ADCT, inserido pelo art. 2º da Emenda 30/2000).

 

 

                     Aliás, segundo já revelou o STF, "a exigência constitucional pertinente à expedição de precatórios tem por finalidade ASSEGURAR A IGUALDADE ENTRE OS CREDORES, IMPEDIR FAVORECIMENTOS PESSOAIS INDEVIDOS e FRUSTRAR TRATAMENTOS DISCRIMINATÓRIOS" (RTJ 159/944). É verdade, portanto, que a Emenda questionada, por ter estabelecido situação de real e concreta DESIGUALDADE em relação àqueles que são IGUAIS (no caso, os credores da Fazenda Pública Estadual), violou de forma significativa o dever de tratamento isonômico imposto pela Constituição, o que torna viciada a conduta do legislador, além de ser inoportuna, ilegítima e, definitivamente, inconstitucional.

 

 

                     Eis, ainda, o que diz GERALDO ATALIBA sobre outro princípio violado pelo art. 2º da Emenda 30/2000 (princípio da segurança jurídica):

 

 

"O Direito é por excelência, acima de tudo, instrumento de segurança. Ele é que assegura a governantes e governados os recíprocos direitos e deveres, tornando viável a vida social. Quanto mais segura uma sociedade, tanto mais civilizada. Seguras estão as pessoas que têm certeza de que o direito é objetivamente um e que os comportamentos do estado ou dos demais cidadãos dele não discreparão.

 

 

"Assim, a segurança jurídica expressa-se praticamente na previsibilidade da ação estatal. (...) A surpresa é radicalmente repugnante aos postulados do Estado de Direito" ("República e Constituição", Ed. RT, 1985, p. 158).

 

 

                     Compreendida a situação ora revelada, aquilo que foi efetivamente produzido pelo legislador está longe de observar o princípio da segurança jurídica, tudo porque se insistiu em criar algo que gerou perplexidade, instabilidade e, acima de tudo, profunda incerteza do Direito e insegurança jurídica (de novo é o Ministro CELSO DE MELLO que revela a efetiva presença deste vício: "as reformas constitucionais precipitadas, ao sabor de conveniências políticas, não levam a nada, geram a insegurança jurídica..." - ADIn nº 939-7/DF, 1993). Não é difícil imaginar que passados os 10 anos da Emenda 30/2000, já que a situação no Brasil é de absoluta previsibilidade quanto aos abusos governamentais, nova Emenda venha a ser editada, desta vez não para dar um novo CALOTE, mas sim para sustentar que dívida pública alguma deve ser quitada. Chega de abuso governamental ! Um Estado não submetido ao Direito é impensável em outras partes do mundo. Por que o Brasil tem que dar tantos maus exemplos para o mundo ?

 

 

                     Outra noção jurídica com presença marcante na Constituição, que também não foi observada quando se editou a Emenda 30/2000, diz respeito ao princípio da RAZOABILIDADE ou da PROPORCIONALIDADE, que tem sua existência confirmada pelos princípios do devido processo legal e da isonomia e que exsurge, tal como se sabe, como LIMITE à edição de toda e qualquer norma ou decisão, seja ela judicial, administrativa ou legislativa, ARBITRÁRIA, IRRAZOÁVEL ou IRRACIONAL, impedindo, em suma, "que as discriminações legislativas e os atos decisórios dos agentes estatais sejam fonte de injustiças e de perplexidades atentatórias ao paradigma de coerência exigido nas deliberações do Estado e de seus delegados, aprumando-os ao padrão aceitável de moralidade, de eficiência e racionalidade" (CARLOS ROBERTO DE SIQUEIRA CASTRO, "O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil", Ed. Forense, 1989, p. 159).

 

 

                     Por acaso a Emenda do CALOTE não é atentatória aos paradigmas de coerência, moralidade, eficiência e racionalidade exigidos pelo princípio da RAZOABILIDADE ? A doutrina especializada é unânime em revelar que "por mais evidente que seja o exercício das competências legiferantes – e ainda que cobertas pelo Judiciário com o manto da intangibilidade dos elementos subjetivos da vontade política do legislador – elas não podem ser tidas como a capa protetora do arbítrio, da irrazoabilidade e da desproporção, e muito menos do descumprimento dos fins constitucionais" (PEDRO ESTEVAM ALVES PINTO SERRANO, "O Desvio de Poder na Função Legislativa", Ed. FTD, 1997, p. 88). Não há como, "data venia", deixar de considerar a Emenda do CALOTE, pelos inúmeros reflexos negativos que ela produz, como atentatória do princípio da razoabilidade, dada a sua evidente incompatibilidade com aquilo que poderia ser considerado equilibrado e ajustado ao bom senso.

 

 

                     Ora, se o próprio Relator do Projeto de Emenda (tal como se elencou acima) afirma que a tal "novidade jurídica" irá possibilitar, de uma vez por todas, o efetivo pagamento das dívidas objeto de condenações judiciais, e como é sabido de todos que isto NÃO É VERDADE, sendo MENTIRA DESLAVADA (porque é exatamente o contrário que irá ocorrer, como já está ocorrendo, porque os governantes estaduais e municipais, no fundo da alma, estão a delirar de satisfação com a edição da Emenda 30/2000, porque não precisarão pagar o valor dos precatórios), não há porque deixar de considerar que houve significativo DESVIO DO PODER DE LEGISLAR, por restar configurado que o legislador, efetivamente, utilizou-se do artifício da Emenda Constitucional de forma maliciosa, visando camuflar a realidade, "usando-se dos poderes inerentes ao 'processo legislativo' para atingir objetivos que não se compadecem com a ordem constitucional" (PEDRO ESTEVAM ALVES PINTO SERRANO, ob. cit., p. 126).

 

 

                     Como, também, deixar de caracterizar a Emenda 30/2000, na parte em que esta tratou do tema do CALOTE dos precatórios, como violadora da garantia constitucional do DIREITO ADQUIRIDO, protegido por cláusula pétrea (inciso IV, § 4º, art. 60, CF/88) por estar incluído no Capítulo dedicado ao tema dos Direitos e Garantias Fundamentais (art. 5º, inciso XXXVI, da CF/88) ? "Direito adquirido" – segundo lição de IVO DANTAS ("Direito Adquirido, Emendas Constitucionais e Controle de Constitucionalidade", Ed. Lúmen Júris, 1997, p. 51) – "quer significar o direito que já se incorporou ao patrimônio da pessoa, já é de sua propriedade, já constitui um bem, que deve ser juridicamente protegido contra qualquer ataque exterior, que ouse ofendê-lo ou turbá-lo". Sendo assim, não poderia a Emenda 30/2000 superar juridicamente algo que já estava constituído plenamente quando do advento da "novidade jurídica" sob comento. Fato é que a Emenda desatendeu o direito adquirido que cabe aos credores da Fazenda Pública, sendo da competência do Judiciário tornar inválida referida conduta, diante do caso concreto ou diante do controle concentrado que poderá ser instaurado perante o STF.

 

 

                     Tudo que se está a sustentar tem a ver, também, com a necessidade de se interpretar a questão do não pagamento dos precatórios (tal como se deu com o art. 33 do ADCT) de FORMA RESTRITIVA e nunca de forma AMPLIATIVA ou EXTENSIVA, porque se está diante de situação excepcional (que no caso é a possibilidade, concedida única e exclusivamente ao Poder Constituinte Originário, que criou exceção grave, mas constitucional, ao dever que tem a Fazenda Pública de honrar os compromissos financeiros e cumprir as decisões judiciais relativas a precatórios). O STF já interpretou o assunto desta forma: "O artigo 33 do ADCT é norma excepcional em face das normas gerais contidas na parte permanente que disponham em contrário" (RE nº 161180-4, DJ 15.03.96, Rel. Min. MOREIRA ALVES). Não parece ser demais citar, para concluir este tópico, vetusto e ainda hoje atual brocardo jurídico, estudado por CARLOS MAXIMILIANO ("Hermenêutica e Aplicação do Direito", Ed. Forense, 10ª ed., 1988, p. 225), no sentido de que "EXCEPTIONES SUNT STRICTISSIMOE INTERPRETATIONIS" (interpretam-se as exceções estritissimamente"), tudo a revelar que situação tão absolutamente excepcional como a do art. 33 do ADCT não poderia jamais ser repetida, agora por ato do Poder Constituinte Derivado (que sabidamente enfrenta as limitações do § 4º do art. 60 da Constituição).

 

 

                     Em resumo: parte da Emenda 30/2000 (especificamente o seu art. 2º, que inseriu o art. 78 no ADCT) é inconstitucional, por violação de magnos princípios jurídicos do sistema constitucional (separação dos poderes, moralidade, segurança jurídica, isonomia, razoabilidade, proporcionalidade, abuso ou desvio do poder de legislar e direito adquirido), todos protegidos por cláusulas pétreas sediadas na Constituição e que não podem ser afastadas nem mesmo por Emendas. Vício dessa magnitude, que está a beneficiar os Governos Municipais e Estaduais, não pode permanecer incólume, até diante da enorme eficácia jurídica do princípio constitucional implícito da supremacia constitucional, revelador de que "a superioridade normativa da Constituição traz, ínsita, em sua noção conceitual, a idéia de um estatuto fundamental, de uma 'fundamental law', cujo incontrastável valor jurídico atua como pressuposto de validade de toda a ordem positiva instituída pelo Estado" (RTJ 140/954, RE 107.869, Rel. Min. CÉLIO BORJA).

 

 

                     Nada, pois, está a respaldar juridicamente o conteúdo do art. 2º da Emenda 30/2000, que merece mesmo ser declarada inconstitucional, como providência necessária à restauração da legalidade inerente a um Estado Democrático de Direito.

 

 

 

 

III – CONCLUSÃO

 

                     Por tais razões, reveladoras de uma das interpretações que podem ser dadas ao tema, concluímos pela inconstitucionalidade material parcial da Emenda 30/2000, por descumprimento de inúmeros e prestigiados princípios de natureza constitucional, todos protegidos por cláusulas pétreas inamovíveis.

 

 

                     Vamos aguardar o posicionamento do Judiciário, que poderia muito bem, numa demonstração de independência jurídica e de proteção da Constituição, seguir a seguinte lição de KONRAD HESSE:

 

 

"Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático. Aquele que, ao contrário, não se dispõe a esse sacrifício, malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas e que, desperdiçado, não mais será recuperado" ("A Força Normativa da Constituição", Ed. Sérgio Antônio Fabris, 1991, p. 23).

 

 

                     Por fim, não se olvide da plena possibilidade da discussão judicial desse tema, porque poderá será pedida a declaração de inconstitucionalidade de parte da Emenda, mesmo diante do caso concreto, na via do controle difuso ou incidental da constitucionalidade dos atos normativos, reconhecido pela doutrina como "modalidade de fiscalização da validade de atos normativos exercido por qualquer órgão judicial, no curso de processo de sua competência e cuja decisão tem o condão, apenas, de afastar a incidência da norma viciada" (GILMAR FERREIRA MENDES, "Controle de Constitucionalidade", Ed. Saraiva, 1990, p. 202), sendo evidente que isto também poderá ser pleiteado diretamente ao STF, na via do controle concentrado (art. 102, I, "a", da CF/88). Já quanto à possibilidade de uma Emenda ser declarada inconstitucional, cabe revelar ser isto absolutamente pacífico, na jurisprudência (cf. RTJ 151/755, 154/779 e 156/451) e na doutrina (cf. RODRIGO LOPES LOURENÇO, "Controle da Constitucionalidade à Luz da Jurisprudência do STF", Ed. Forense, 1998, p. 73).

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