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A eficácia dos
precatórios
Marco Aurélio
de Mello
Sob a égide das Constituições pretéritas,
especialmente as de 1967 e 1969, estabeleceu-se quadro de extravagância ímpar,
considerada a relação jurídica mantida pelo Estado e credores, e a liquidação
de obrigações pecuniárias reconhecidas mediante provimento judicial.
A interpretação literal do preceito de regência
dos precatórios, ou seja, do artigo 117, da Constituição de 1969, levou à
conclusão de que os valores deles constantes, atualizados em 1º de julho,
seriam pagos, até o término do exercício subseqüente à respectiva apresentação,
na forma nominal.
Decorreu daí, diante de inflação da ordem de
trinta por cento ao mês, um verdadeiro ciclo vicioso. O credor, ao ver
satisfeito o precatório, tinha a desventura de constatar a liquidação parcial
do débito da Fazenda a oscilar entre três a cinco por cento do total devido. O
direito reconhecido em sentença transita em julgado transforma-se em verdadeira
pensão vitalícia, forçando da expedição de novo precatório, com sobrecarga para
a máquina judiciária, no que perpetuadas as execuções e, portanto, a tramitação
dos processos.
Iniludivelmente, tendo em vista a busca da
realização de obras e, também, a delimitação temporal dos mandatos, proibida a
reeleição, a sistemática consagrada jurisprudencialmente acabou por levar a
sucessivas e pouco planejadas desapropriações, não se preocupando os
governantes com a necessidade de conciliá-las com as dotações orçamentárias e,
destarte, com créditos abertos para tal fim.
Projetaram-se, com isso, as liquidações dos
débitos, a alcançarem toda e qualquer importância devida pela Fazenda Pública
em razão de condenações sofridas. A par do pernicioso critério homenageando o
valor nominal em detrimento do valor real, contavam ainda, as Fazendas, com a
denominada ciranda financeira.
Os recursos eram aplicados no mercado,
multiplicando-se dia a dia, com isso havendo considerável aporte de numerário.
A "bola de neve" formou-se e aí, em visão a um tempo homenageadora do
princípio da realidade e prognóstica, em face até mesmo dos novos ares
constitucionais, no sentido de um maior equilíbrio na relação Estado-cidadão, o
Constituinte de 1988, para ordenar o quadro e extirpá-lo, fez inserir no Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias preceito revelador de verdadeira
moratória.
Refiro-me ao artigo 33, segundo o qual
"ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios
judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição,
incluindo o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em
moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no
prazo máximo de oito anos, a partir de 1º de julho de 1989, por decisão editada
pelo Poder Executivo até cento e oitenta dias da promulgação da
Constituição".
Previu-se, mais, que "poderão as entidades
devedoras, para o cumprimento do disposto neste artigo, emitir, em cada ano, no
exato montante do dispêndio, títulos de dívida pública não computáveis para
efeito do limite global de endividamento".
Da norma extraem-se várias premissas: a primeira
diz respeito à exclusão dos créditos de natureza alimentar, cuja razão de ser
estava em afastar-se a projeção no tempo, ou seja, o pagamento em oito
prestações anuais iguais e sucessivas, a serem satisfeitas mediante
consideração do valor real.
A segunda concerne ao caráter do dispositivo
constitucional que, mostrando-se transitório, tornou-se aplicável apenas aos
"precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição".
A terceira corre à conta de se ter feito
estancar, como acabou por sedimentar o Supremo Tribunal Federal, os juros, quer
os decorrentes da mora, quer os compensatórios (recurso extraordinário nº
155.979-9, do qual fui relator, julgado pelo Pleno em 11 de novembro de 1994).
A quarta premissa implicou a desmistificação da exdrúxula tese do privilégio da
Fazenda Pública, e como todo privilégio, odioso, de ver projetada
indefinidamente a satisfação dos respectivos débitos.
Em consonância com o corpo permanente da Carta,
previu-se que as parcelas seriam iguais e sucessivas, revelando-se, ainda,
atualizadas, ou seja, sem saber se a percentagem alusiva à reposição, impôs-se
a manutenção do poder da moeda, mesmo porque, não fosse assim, de nada adiantaria
o dispositivo constitucional. Neste ponto, o artigo 33 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias exsurgiu à primeira hora, pedagógico, afastando o
desequilíbrio notado na relação jurídica devedor-credor e colocando fim a
verdadeiro calote oficial.
Ao menos aos credores existentes tiveram a
certeza do recebimento integral dos créditos, e os futuros passaram a contar
com nova visão, a homenagear a realidade, o sistema jurídico constitucional
tomado como algo razoável, coerente, aceitável em um Estado Democrático de
Direito. Os precatórios pendentes de pagamento foram alcançados, à mercê de
definição do Poder Executivo, por regra excepcional, buscando-se, assim,
repita-se, sanear a situação verificada na totalidade dos Estados Federados, no
Federal e também nos Municípios.
Implica dizer que a Carta de 1988 trouxe à
baila, de forma salutar, contexto de normas conducentes a concluir-se que,
imposta condenação a pessoa jurídica de direito público, via sentença judicial,
ela é para valer, há de ser observada de maneira irrestrita, devendo o
quantitativo ser satisfeito de modo atualizado, embora contando a devedora com
o interregno de dezoito meses para fazê-lo, coisa que nenhum devedor dispõe, no
que se prevê, relativamente à execução comum que, citado o réu, deve ele pagar
a totalidade do valor em 24 horas, sob pena de seguirem-se atos de constrição -
a penhora e a praça pública. Imaginava-se, à época de promulgação da Carta de
1988, que haveria por parte dos Executivos um cuidado maior na assunção de
dívidas, especialmente aquelas decorrentes de desapropriações. Ledo engano. Os
precatórios posteriores a 1988 continuaram alcançando, ano a ano, a casa do
milhar, oscilando entre cinco e dez mil, isso apenas no Estado de São Paulo.
Ainda embrionária a visão segundo a qual os
precatórios, uma vez satisfeitos, hão de resultar na liquidação do débito,
devendo, para isso, sofrerem os quantitativos a incidência da indispensável
correção monetária, mais um fator surgiu, revelando possuir a balança da vida
dois pratos.
De um lado, o Plano Real, que se seguiu a
diversos outros (Plano Delfim I, Plano Delfim II, Plano Delfim III, Plano
Dornelles, Plano Cruzado, Plano Bresser, Plano Arroz com Feijão, Plano Verão,
Plano Collor I, Plano Collor II, Plano Marcílio, etc.), mitigou, nos últimos
dois anos, a inflação. Reduziu-a, substancialmente, passando-se a ter, ao invés
de cerca de trinta por cento ao mês, algo pouco acima de um por cento.
De outro, deixou os Estados e Municípios sem a
fonte de receita que era o mercado financeiro e, portanto, a possibilidade de,
jogando com o tempo, terem considerável aporte de recursos. Mesmo a partir de
visão distorcida, contrária à Carta Política da República, de liquidar os
precatórios pelo valor nominal e não real, vieram as pessoas jurídicas de
direito público a constatar que, ao invés da obrigação de pagamento girar em
torno de cerca de dois a cinco por cento do débito, que estavam compelidas a
liquidar, teriam de satisfazer cerca de oitenta por cento.
Isso ocorreu passados cerca de seis anos da data
em que os Executivos em geral tiveram facilitada, sobremaneira, a solução da
problemática dos precatórios pendentes, em face da moratória do artigo 33 e da
viabilidade de emissão de títulos da dívida pública não computáveis para efeito
do limite global de endividamento. A tudo isso, acrescem os problemas ligados à
distribuição tributária - os médios e grandes Municípios estão muito bem - e o
inchaço da folha de pessoal, agravado com o desrespeito ao teto constitucional,
via, especialmente, a ingênua óptica da desconsideração das vantagens pessoais.
A quase insolvência dos Estados da Federação é
flagrante. Nem por isso tem-se como aberta a porta ao menoscabo dos princípios
insertos na Carta de 1988.
Os precatórios, quer os relativos aos créditos
de natureza alimentar, quer aos comuns, viabilizam, a teor da Constituição
Federal, a satisfação integral da obrigação imposta mediante provimento
judicial. O fato de o artigo 100 do Diploma Básico aludir à atualização em 1º
de julho tem objetivo único, ou seja, saber-se, exatamente, o valor a ser
considerado na dotação orçamentária. A diferença decorrente dos nefastos
efeitos da espiral inflacionária, seja de que gradação for, há de ser
satisfeita, também, no prazo constante do § 1º do artigo 100 do Texto Maior em
vigor, contando o Estado, para isso, com o instituto do crédito suplementar.
A hipótese sugere simples complementação e não a
volta à via crucis do precatório, em infindável círculo vicioso como já
salientado. Aliás, a via é de mão dupla. O Estado deve adotar postura exemplar,
fugindo à tentação ao uso de dois pesos e duas medidas, isso considerados
pagamentos de débitos que haja contraído e cobrança de tributos.
O Estado não pode contar com o privilégio de editar
a lei, aplicá-la e vir a julgar as controvérsias daí resultantes, fazendo-o ao
sabor de certa política governamental, a partir de óptica tendenciosa, sempre
isolada e momentânea, sempre a revelar o oportunismo de plantão. Ao
Estado-juiz, especialmente ao Supremo Tribunal Federal, cumpre, em razão de
compromisso maior - e a história é uma cobradora infatigável - zelar pela
intangibilidade da ordem jurídico-constitucional, pouco importando que, assim o
fazendo, seja incompreendido.
É de se ter presentes as palavras de
Calamandrei, citado por Edgar de Moura Bittencourt em "O Juiz",
segundo as quais há mais coragem em ser justo, parecendo injusto, do que ser
injusto para salvaguardar as aparências de justiça.
Os incautos, os míopes, os pobres de espírito
democrático, não esperem do Judiciário atitude acomodadora, por mais
convidativa que seja a quadra, não se lhe sendo opostos óbices ao cumprimento
do dever constitucional de assegurar a intangibilidade da ordem jurídica.
Tenha-se sempre presente a máxima de que, em sendo
o Direito uma ciência, o meio justifica o fim, e não este, aquele.
Retiradode: http://intermega.com.br/caput