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A pessoa transexual e o princípio da dignidade da pessoa humana: aplicação da principiologia constitucional.
Luiz Alberto David Araújo
Livre-Docente, Professor nos Cursos de
Graduação e Pós-Graduação da PUCSP e coordenador do Curso de Mestrado da
Instituição Toledo de Ensino, em Bauru. Autor do livro A proteção
constitucional do transexual e, juntamente com Vidal Serrano, do Curso
de direito constitucional, pela Saraiva
A questão dos
direitos das pessoas transexuais está intimamente ligada à aplicabilidade da
principiologia constitucional.
Primeiramente, é
preciso distinguir o transexual do homossexual. Entende-se por transexual
aquele que apresenta um sexo psicológico distinto de seu sexo biológico. Além
disso, apresenta uma vontade irreversível de atingir seu sexo psicológico; não
aceita seu sexo biológico e tenta de todas as formas assumir seu sexo
psicológico. O homossexual, por seu lado, em apertadíssima síntese, manifesta o
desejo sexual de manter relações com pessoas do mesmo sexo. São problemas
diversos, com conseqüências jurídicas diversas.
Imaginemos
alguém que acorda, olha-se no espelho e encontra um corpo masculino quando, na
verdade, esperava (e desejava) encontrar um corpo feminino. Seu sexo
psicológico é de mulher e seu corpo é de homem. Seus pensamentos são femininos,
sua vontade é feminina, suas vestes são femininas, mas seu corpo é masculino.
Esse é o dilema básico do transexual.
Podemos dizer
que para amenizar esse conflito a pessoa transexual poderá tentar um tratamento
psicológico. Ineficaz o tratamento, resta, apenas, a cirurgia de redesignação
de sexo. Tal cirurgia consiste na melhor adaptação possível da pessoa ao seu
sexo psicológico. Ao menos aparentemente, a pessoa transexual poderá eliminar o
conflito ao, exibir um corpo que estará em conformidade com seu sexo
psicológico. Dessa forma, juntando o sexo psicológico com o novo sexo
redesignado, haverá uma unidade, necessária à felicidade desse grupo de
pessoas.
A cirurgia, nos
termos da Resolução n. 1.482, de 10 de dezembro de 1997, do Conselho Federal de
Medicina, não se limita apenas a promover a adaptação do transexual ao seu sexo
psicológico; abrange também o acompanhamento, quer fonoaudiológico, quer
psicoterapêutico, hormonal etc. Haverá a cirurgia, que será precedida e
sucedida de tratamentos necessários para a boa adaptação à nova realidade.
Sendo assim, a
cirurgia de redesignação de sexo constitui um instrumento necessário para que a
pessoa transexual possa integrar-se socialmente e viver de acordo com suas
opões sexuais, como decorrência do direito à intimidade e à vida privada, bens
garantidos constitucionalmente no art. 5.º, inciso X, da Lei Maior.
É com fundamento
no art. 5.º, inciso X, pois que garante a intimidade e a vida privada, que
podemos asseverar que a pessoa transexual tem direito a fazer a sua opção
sexual, uma vez constatada, mediante perícia, a sua transexualidade.
A operação de
redesignação de sexo, portanto, já vem sendo admitida pela doutrina e pela
jurisprudência. A princípio, chegou-se a cogitar que poderia haver lesão
corporal, mas a jurisprudência se firmou no sentido de reconhecer o estado de
necessidade do paciente transexual.
Assim, a
cirurgia é admitida e está disciplinada em Resolução do Conselho Federal de
Medicina.
Realizada a
cirurgia, surgem novos problemas, que devem ser enfrentados pelo Direito. A
pessoa transexual tem um nome masculino e, pela cirurgia, passa a ter um corpo
feminino. Ou, inversamente, tem um nome feminino e, com a cirurgia, torna-se
dona de um corpo masculino. Como então resolver o problema, já que um nome
masculino para um corpo feminino (ou vice-versa) causará uma série de problemas
ao transexual?
Podemos fazer
outra pergunta, simples, que revelará o conflito e a sua intensidade da
pessoa transexual redesignada: a que banheiro público, por exemplo, a Roberta
Close deverá dirigir-se? O Poder Judiciário entendeu de não lhe permitir a alteração
de nome. Portanto, estamos falando de uma pessoa chamada Luiz Roberto e do sexo
masculino. Em que banheiro público, uma pessoa chamada Luiz Roberto, do sexo
masculino, deve entrar? A resposta dada pelo Poder Judiciário é: masculino.
Imaginemos agora, o constrangimento dessa pessoa ao ser obrigada a entrar no
banheiro masculino...
A redesignação
de sexo deve, assim, fazer-se acompanhar da alteração de nome. O sistema
infra-constitucional (Lei de Registros Públicos) não tem previsão específica
para o problema. Há um projeto de Lei (n. 70-B, de 1995), que tramita pelo
Congresso Nacional, no qual a alteração seria permitida. No entanto, embora
concordando com a modificação do nome (para ajustá-lo ao sexo redesignado), o
projeto prevê que deve constar a inscrição “transexual” no documento da pessoa.
Todos os documentos trariam, então, um “terceiro tipo de sexo”: o transexual. O
projeto, nesse particular, fere por completo o princípio da dignidade da pessoa
humana e o da intimidade, bens garantidos constitucionalmente. Como imaginar
alguém com uma carteira de identidade onde conste que é transexual?
Entendemos que a
redesignação de sexo deve vir acompanhada da alteração, requerida
judicialmente, do prenome do indivíduo, que deve ser o mais próximo do anterior
(por exemplo: Roberto/Roberta; Carlos/Carla etc.), bem como do seu sexo. Assim,
duas serão as alterações: passará a pessoa a ter novo nome e novo sexo, que
constarão de seus novos assentos.
Desde logo,
algumas objeções podem ser apontadas. A primeira delas é a concernente a não
haver previsão legal específica. Ora, tal objeção deve ser superada pela
interpretação principiológica. Devemos ver os princípios constitucionais como
transmissores de valores, ou seja, condutores da valoração constitucional, tendo
como trajeto a via constituinte/intérprete. Assim, o princípio nada mais é que
um condutor que levará a valoração constitucional para o intérprete para que,
na hora da aplicação da regra, valha-se da valoração para a aplicação correta
do comando constitucional.
No caso da
Constituição brasileira de 1988, temos, logo no art. 1.º, a constatação de que
somos um Estado Democrático de Direito, e, em seus fundamentos, encontramos a
dignidade da pessoa humana.
Ora, como
entender que o sistema deva preservar a dignidade se mantemos uma pessoa
infeliz, com uma divergência entre seu sexo psicológico e seu sexo biológico?
Como imaginar uma pessoa com corpo de mulher, pensando que é homem? Como
imaginar uma pessoa com corpo de homem, pensando que é mulher? A solução está
na redesignação de sexo e em sua adaptação à nova realidade. Após, portanto, a
redesignação de sexo, deverá ocorrer a adaptação dos registros, averbando-se o
novo nome e o novo sexo.
Assim, a
primeira objeção, consistente na inexistência de lei específica que permita a
alteração de nome, deve ser rejeitada, pois o sistema constitucional,
preservando a dignidade da pessoa humana e garantindo o direito à intimidade
(art. 5.o, X) deve prevalecer sobre a regra infraconstitucional. A
alteração do nome e do sexo deve seguir os ditames assegurados pela
principiologia constitucional.
Outra objeção
seria a de que teria havido apenas a alteração superficial do sexo, e não
alteração dos órgãos internos, e que tais pessoas não teriam a alteração
completa de seus sexos.
Nesse
particular, precisamos entender que há vários conceitos de sexo. Vejamos nos
esportes. Qual o conceito de sexo para o mundo dos esportes? Alguém
biologicamente mulher pode ser proibido de competir por ter uma taxa de
hormônios fora do parâmetro fixado. Nesse caso, qual foi o critério utilizado?
O sexo biológico? A resposta é negativa. Partiu-se da idéia do equilíbrio
hormonal. Portanto, já se aplicam outros conceitos de sexo. Realmente, quando
há a operação, os órgãos internos continuam da mesma forma, sendo a alteração
superficial. Mas essa alteração superficial já é suficiente para tornar o
indivíduo mais feliz, mais adaptado, vivendo uma vida mais digna. E, no caso, o
sexo psicológico deve prevalecer, aliado a transformação (parcial, mas real) de
seu sexo antigo, para o redesignado. Não se pode afirmar que houve uma
transformação completa de homem em mulher (ou vice-versa), mas a transformação
havida, aliada ao sexo psicológico do indivíduo, deve permitir que seja
considerado com o seu sexo redesignado. Além da mudança de nome, deve haver a
mudança de sexo.
Uma outra ordem
de objeção poderia ser a que permitisse eventual fraude. Em princípio, parece
pouco crível que alguém passe por uma cirurgia delicadíssima, por tratamento
hormonal e acompanhamento psicológico, apenas para fugir de seus credores.
Mesmo assim, todavia, seu pedido de retificação de assento civil deverá vir
acompanhado de todas as suas certidões, para que sejam evitadas quaisquer
fraudes.
Por fim, o
argumento da proteção de terceiros. Muitas pessoas poderiam envolver-se com o
transexual redesignado sem saber de seu passado.
Nesse
particular, havendo o envolvimento afetivo do casal, o sistema legislativo não
poderia impedir o matrimônio. Caso, no entanto, o parceiro soubesse do fato, querendo,
poderia alegar erro essencial na pessoa do cônjuge, e anular o casamento. É
claro que seria mais prudente que o transexual redesignado conversasse e
expusesse toda a situação para o seu parceiro, pois sendo assim, este parceiro
não poderia alegar eventual erro.
A conversão do
sexo do transexual, com a averbação de seu registro civil, poderia ainda criar
problemas para menores envolvidos. Imaginemos que o transexual já foi casado e
tenha filhos. Se os filhos forem menores, entendemos que a cirurgia e a
averbação não deveriam ocorrer, pois haveria, nesse caso, interesses de
menores, que poderiam sofrer com a adaptação. Superada a menoridade, não
haveria mais problemas nem para a cirurgia nem para a averbação. No caso, esta
não geraria a alteração do registro dos filhos, sob pena de terem dois pais ou
duas mães.
Em resumo, toda
a questão da proteção do transexual deve estar relacionada com o princípio da
dignidade da pessoa humana e sob essa ótica deve ser enfocada, moldando a
atividade do intérprete e do juiz. O sistema constitucional tem como finalidade
facilitar a felicidade das pessoas e não impedir e servir de obstáculo para tal
objetivo.
Retirado de: www.saraivajur.com.br