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A Constituição, a Lei e a proteção do meio ambiente

Prof. Christian Guy Caubet

No momento em que se comemoram o décimo aniversário da Constituição Federal e o quinquagésimo da Carta dos Direitos Humanos, a referência ao meio ambiente não deve ser considerada uma questão extrínseca ou exôtica, mesmo que não fizesse parte das preocupações que levaram à elaboração desses textos. Ao contrário, o parâmetro ambiental, última dimensão acrescentada ao conjunto das exigências a serem cumpridas, para garantir a qualidade da vida, deve ser visto, em 1998, como uma referência essencial da condição humana. Sem respeito ao parâmetro ambiental, muitos dos direitos humanos simplesmente carecem de sentido. Quer se trate de saúde ou de condições mínimas de existência, a relação dos humanos aos recursos naturais passou a ser um critério fundamental para avaliar a dignidade das condições de vida. Como o conjunto da sociedade, entretanto, os operadores jurídicos e, portanto, o próprio poder judiciário , continuam pautando-se, majoritaria e prioritariamente, pelo paradigma antigo, aquele que ainda não incluiu as preocupações ambientais como uma necessidade absoluta da vida social . Isso significa, dentre outras conseqüências, que os operadores jurídicos não costumam integrar a dimensão ambiental ( e a legislação ambiental é apenas a parte jurídica visível dessa dimensão) à sua visão dos problemas e das soluções. Isso deve ser afirmado com força, apesar de parecer injusto para com alguns dos operadores. Entretanto, trata-se aqui de identificar tendências e comportamentos, raciocínios e decisões, que caracterizam o mundo como está, e não o mundo como um punhado de operadores gostaria que fosse transformado. O que é um paradigma? Um paradigma NÃO é um critério ou uma referência simples. Não é uma estrela única, a guiar os três reis magos para um destino certo... Segundo Thomas Kuhn, um paradigma é “uma constelação de realizações - concepções, valores, técnicas, etc...- compartilhada por uma comunidade científica e utilizada por essa comunidade para definir problemas e soluções legítimos”. (apud Fritjof CAPRA: A teia da vida, p.24) O paradigma dominante, em relação às questões ambientais, continua sendo o que norteava as sociedades ocidentais ANTES que se começasse a discutir amplamente os problemas das relações dos homens aos recursos naturais, isto é: antes da década de 60, deste século. Portanto, pretende-se apenas, nesta curta apresentação, evidenciar que, apesar da letra da lei, os problemas e soluções da área ambiental ainda não alcançaram um grau de legitimidade suficiente para receber a aplicação necessária. Globalmente, a sociedade continua sem se importar muito com a problemática ambiental. Nada mais coerente, portanto, que a instância social encarregada da implementação da lei, tampouco evidencie compromisso efetivo com a defesa e a proteção ambiental.

Essa situação será ilustrada por dois exemplos: o que acontece no campus da Universidade federal de Santa Catarina, como pano de fundo do paradigma antigo, por um lado. No mundo judiciário, por outro lado, serão evocados dois casos de indeferimento de pretensões de aplicar a legislação ambiental . Inicialmente, serão citadas algumas das disposições da Constituição Federal de 1998, que estabelecem nitidamente alguns dos requisitos do novo paradigma.

Principais disposições ambientais da Constituição de 1988.

II- No campus da Universidade Federal de Santa Catarina O que acontece no campus da UFSC, lugar onde se forma e se prepara a elite do País, em relação às práticas que dizem respeito à questão ambiental ? A resposta é relativamente simples: como a universidade produz e reproduz as condições de sustentação do conjunto social, é lógico que as condições e fenômenos observados no campus (lugar geográfico específico) serão exatamente representativos do que se observa no resto da sociedade (conjunto do território nacional); e vice-versa. E isso ocorre apesar de inúmeras experiências, projetos e programas, bem como de algumas realizações, que objetivam reverter as situações e comportamentos atuais. Ditos projetos alternativos, contudo, são impotentes para caracterizar um quadro novo ou a reversão, mesmo parcial, da situação global. Já faz mais de quatro anos que, semestralmente, com sucessivas turmas de alunos, venho realizando o levantamento das condições em que se encontram os cursos e corpos d’água do campus da universidade. Isso requer uma breve descrição. O campus da UFSC encontra-se ao pé de diversos morros circundantes, cujos cursos d’água reunem-se em um bacia situada a escassa distância do mar. Em época de chuvas abundantes, geralmente de dezembro a março, frequentes enxurradas provocam importantes danos patrimoniais nas obras e instalações da universidade. Este fenômeno natural está agravada por condutas humanas ecologicamente contra-producentes, resultados de uma organização cultural que perdeu de vista alguns dos ensinamentos básicos da natureza. É assim que existem hábitos de “limpeza” de área que deveriam permanecer intactas, como as margens dos cursos d’água, onde estão sistematicamente suprimidos os obstáculos naturais aos impactos negativos das enxurradas: as matas ciliares não são devidamente preservadas. Outros fatores agravam a situação. A urbanização da área, quer seja a montante dos cursos d’água que alimentam o campus, quer no próprio campus , piorou o impacto da drenagem. As construções e obras são realizadas em áreas impróprias e as soluções para lutar contra as enchentes não são as mais adequadas possível. A retificação e canalização dos rios tendem, a médio e longo prazos, a aumentar os efeitos negativos dos diversos fenômenos naturais (erosão e assoreamento). As atividades realizadas nos diversos departamentos da UFSC também contribuem para a contaminação física, química e orgânica das águas, simplesmente consideradas como corpos receptores de efluentes. Alguns esforços iniciais já foram empreendidos para enfrentar os problemas, porém estão longe de caracterizar um esforço coletivo e consciente. Nas condições atuais, o balanço ambiental do campus não é dos melhores. Da supressão quase-total das matas ciliares à progressão diária de um “lixão”, do uso dos cursos d’água para disposição final de um sem número de efluentes à construção de prêdios abaixo do nível de águas verificado durante as últimas grandes enxurradas (dezembro de 1995), o quadro geral parece melancôlico. O mui-recém inaugurado prêdio do Forum Norte da Ilha, foi construído à beira de um rio, a menos dos trinta metros determinados pela lei; ...e seu “funcionamento” certamente “exigirá” a construção de estacionamentos, para os carros dos operadores jurídicos nele trabalhando; o que implicará em novas conquistas de terras, em prejuízo da proteção das águas e de seu entorno. A situação do depôsito de lixo radioativo, situado nos fundos do Hospital Universitário, foi recentemente regularizada: alguém retirou a placa afixada na cerca de seu entorno, cujos dizeres eram: “Cuidado: lixo radioativo”. Em todas as ocorrências citadas, existem disposições legais cujos mandamentos estão desrespeitados. É o caso da proteção das matas ciliares, tipo de vegetação integrante das Áreas de Proteção Permanentes, previstas pelo código florestal: Lei 4 771/65, alterada pela Lei 7 803/89, art.2º, “a”. É o caso da Lei 6 938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências . Também é o caso da Lei 9605/98, dita “dos crimes ambientais”, ou da Medida Provisória 1 710, que veio restringir, à iniciativa do poder executivo federal, o que estabelecia a Lei 9 605, que dito poder acabara de sancionar... Todas essas disposições, constitucionais ou infra-constitucionais, são normas programáticas? Nobres intenções do legislador, cuja implementação, entretanto, deve ser evitada... A doutrina mais radical não ousa sustentar uma tese tão extremada. Descaracterizar disposições da Constituição Federal, em nome de seu caráter “programático”, ainda pode ser encarado; mesmo que nenhum dos Constituintes de 1987-88, jamais tenha declarado que ele tivesse adotada uma disposição constitucional “para fazer de conta”, conferindo-lhe um assumido cunho “programático”. Entretanto, o mesmo não pode ser feito com muitas disposições legislativas extremamente precisas: aos tribunais, não cabe invocar o caráter programático da lei, para dispensar sua aplicação. Porém outros recursos existem. Geralmente, basta invocar a ideologia do antigo paradigma, para justificar decisões que revogam as petensões da legislação ambiental específica.

A Justiça e o Velho Paradigma

Em 03 de junho de 1991, um convênio foi assinado entre o estado de Santa Catarina, o município de Lages e a Companhia Cervejaria BRAHMA, no intuito de viabilizar a construção de uma cervejaria em Lages. Uma ONG, a Fundação Água Viva -FAVi-, via ação civil pública apoiada pelo Ministério Público estadual, contestou as condições estabelecidas pelo convênio e pediu o respeito a diversas norma desrespeitadas, inclusive a realização de um Estudo de Impacto Ambiental, não exigido pelo órgão ambiental estadual até a presente data (13/11/98). O despacho do juiz local é sintomático : “A pretensão da suplicante, consubstanciada pelo Ministério Público estadual até pode ter muitas verdades, como a omissão por parte dos requeridos de certas exigências legais como o RIMA e o EIA, mas não a ponto de se proibir a construção da fábrica Brahma, porque essas exigências todas poderão e deverão ser cumpridas no decurso do processo para execução do projeto e durante a realização da construção, sem que haja maiores prejuízos ambientais e ou para a população lageana. “Por outro lado, não se trata somente de um projeto político como entendeu a requerente, senão um projeto de grande repercussão e interesse social para a região, consubstanciado no progresso e na efetivação de muitos empregos para a comunidade. O progresso e o desenvolvimento social da região que estão chegando com a execução desse projeto de construção de uma cervejaria aqui, observadas que serão as exigências ambientais, e principalmente visando o fim social, superam meras irregularidades e mesmo infringências de leis, que serão cumpridas no decurso do projeto”. Sic. Conclui o Egrégio Julgador: “PELO EXPOSTO e visando principalmente os fins sociais e o interesse do bem comum desta região INDEFIRO O PEDIDO DE LIMINAR pleiteado pela autora e determino a continuidade das obras de construção da fábrica da cervejaria Brahma” ( em 20 de março de 1992; 3ª Vara Cível e Feitos da Fazenda Pública/Lages/SC) .

Mesmo raciocínio se verifica na Justiça Federal. Durante mais de três anos, uma ampla mobilização de ONG’s, apoiada por estudos e pareceres realizados por especialistas da UFSC, conseguiu sustar a realização de um empreendimento imobiliário chamado de marina do porto da Barra, em Florianópolis. As objeções ao projeto baseavam-se nos prejuízos ecológicos, econômicos e sociais, importando na descaracterização de uma região considerada o Cartão postal da cidade de Florianópolis. O Ministério Público Federal havia apoiado essa ação. A Justiça Federal (3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Porto Alegre, 20/8/98. Agravo de instrumento nº 1998.04.01.016742-3/SC) entendeu que, face à existência de atos administrativos (autorizações via Licencia Ambiental Prévia e Licença Ambiental de Instalação) cuja presunção de legalidade não foi desfeita, só restava considerar que “o perigo na demora e a grave lesão de difícil reparação podem ser verificados no fato de que o empreendedor direcionou recursos para a atividade, de modo que se ela for inviabilizada, o investimento será redirecionado para outras atividades, com o que a comunidade é prejudicada”. Essa decisão está fundamentada nas seguintes observações e estereótipos (sem que tenha havido nenhuma verificação in loco das afirmações proferidas): “Toda a atividade humana pode causar danos ao meio ambiente, não há “poluição zero”, de forma que a idéia de natureza intocada é um mito moderno. Por outro lado, a área em discussão sofre pressão populacional crescente, e a ocupação desordenada pode ser ainda mais degradante ao meio ambiente. Dessa forma, não há necessidade de paralisação das atividades, pois, no transcorrer da Ação Civil Pública, haverá meios para que, com o auxílio de profissionais, chegue-se a uma solução menos degradadora do meio ambiente. Essa orientação está en conformidade com a idéia de que as normas constitucionais, neste assunto, tem o objetivo de preservação de um mínimo de “ponderação ecológica” [?]”.

O meio ambiente, a Constituição, a Lei e a responsabilidade do Poder Judiciário...

Muito se tem falado do princípio da separação dos poderes, tal como idealizado por Montesquieu. Pouco se tem atentado, no entanto, para os comentários do ilustre autor, no que diz respeito ao “poder” judiciário. Considerando a função precípua do judiciário, Montesquieu afirma: “ Dos três poderes dos quais falamos, o de julgar é, de algum modo, nulo”. Essa constatação está inserida na parte do texto onde se explica quem possui/deve possuir o poder de decisão. (p. 151 da edição Abril/Os Pensadores, 1979. 4º parág.) “Porém, se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a tal ponto, que nunca sejam mais do que um texto exato da lei. Se fossem uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela são assumidos” (p. 150, 2º parág.). O autor do Espírito das Leis insiste sobre o fato de que “ (...) os juizes de uma nação não são, como dissemos, mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor.” (p.152, parág. 2, 2ª coluna). Será que Montesquieu teria esquecido de ler algumas obras relativas aos Aparelhos Ideológicos de Estado (sob o pretexto de que esse conceito é posterior à sua época) ? Em todo caso, sabe-se o suficiente, hoje em dia, sobre o papel do juiz na própria elaboração da norma jurídica e na definição das relações sociais, sob o manto da interpretação ou do simples exercício da função jurisdicional, , para exigir desse magistrado que ele também contribua para a elaboração do novo paradigma . Afinal, deixando de obrar para adaptar o direito, ou para simplesmente aplicá-lo, o juiz não deixa de optar e de contribuir à produção do paradigma de seu próprio interesse. Mesmo que não seja rigorosamente “nulo” , como diz Montesquieu, o “Poder” judiciário é o mais fraco dos três. Nem por isso deixa de ter opções. Entre estar infeodado ao Executivo e almejar um “Governo dos Juízes”, há espaço para diversas concepções do Judiciário; e cabe a ele, Judiciário, escolher os rumos a serem seguidos. Da definição de seu próprio papel (Quem estabeleceu que a Corte Suprema dos Estados Unidos tinha a competência de controlar a constitucionalidade das leis, senão a própria Corte Suprema ?), depende a medida de uma característica que o Poder Judiciário compartilha com os demais: a legitimidade.