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A LEI 9.536/97 É INCONSTITUCIONAL
Leandro da Motta Oliveira
Embora esteja em vigor há menos de um ano, a Lei
nº 9.536/97, que veio regular a transferência de servidores públicos
estudantes, prevista no art. 99 da Lei nº 8.112/90, já conseguiu causar
prejuízos suficientes para as universidades públicas, entre elas a Universidade
de Brasília, que, por se localizar na capital da administração pública federal,
talvez seja a que mais sofra com a aplicação dada pelos tribunais.
Reza o único artigo do curto diploma legal, verbis:
‘‘Art. 1º. A transferência ex officio a que se refere o parágrafo único do art.
49 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1994, será efetivada, entre
instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino, em qualquer época do ano
e independentemente da existência de vaga, quando se tratar de servidor público
federal civil ou militar estudante, ou se dependente estudante, se requerida em
razão de comprovada remoção ou transferência de ofício, que acarrete mudança de
domicílio para o município onde se situe a instituição recebedora, ou para
localidade mais próxima.’’
Ao permitir o acesso em qualquer época do ano, independentemente do número de
vagas e entre instituições de ensino de qualquer gênero, ou seja, entre
instituições públicas e particulares, a malfadada lei põe por terra todos os
preceitos constitucionais promovedores de qualidade de ensino no curso
superior, além de ferir o princípio da igualdade jurídica entre os cidadãos.
É que a permissão legal de transferência para instituição de ensino público de
servidor estudante civil e militar, e de seus dependentes, removidos por
necessidade do serviço, matriculados em instituição privada, viola o acesso
igualitário ao ensino público imposto pelo exame vestibular, transpondo o
servidor público a um grau diferente dos outros segmentos sociais que não são
beneficiados por esse beneplácito legal.
A transferência de ofício sem sujeição ao gênero institucional de ensino tem
sido utilizada para o acesso ao ensino superior público e gratuito por via
oblíqua. Não se submetem os destinatários do diploma legal em comento ao árduo
e seletivo concurso vestibular, no qual o Estado, impossibilitado que se
encontra de fornecer a todos educação gratuita de alto nível, escolhe os
melhores para promover a educação gratuita.
A moderna hermenêutica jurídica determina a interpretação das normas
sistemicamente, ou seja, há necessidade de que a exegese de uma norma leve em
consideração outros diplomas legais. A Lei de Diretrizes e Bases da educação,
que instituiu os sistemas de ensino superior em públicos e particulares, não
deve ser olvidada quando da análise dos pedidos de transferência.
Nesse diploma legal há nítida distinção entre os sistemas de ensino
particulares e públicos, não podendo a legislação que regula a transferência
simplesmente passar por cima de tal definição legal, sob pena de privilegiar os
destinatários da norma que, em momento algum, encontra albergue constitucional.
Estabelece a Carta da República, em seu art. 207, a autonomia universitária
quanto aos aspectos didático-científicos, administrativos e de gestão
financeira e patrimonial, autonomia esta que deve também ser respeitada no que
tange ao acesso por transferência ex officio ao numero de vagas. A autonomia
universitária visa a oferecer ensino de qualidade que será impossível de ser
levado a efeito sem a observância do número de vagas e sem o estabelecimento da
época adequada para se permitir a transferência.
Como se conjugar a autonomia constitucional conferida às universidade com a
impossibilidade de recusa de servidores públicos estudantes egressos de
instituições de ensino privadas?
Ao fim da Lei Maior deve ocorrer todo o empreendimento legislativo
infraconstitucional. Assim, os direitos fundamentais dos cidadãos, entre eles o
acesso igualitário aos níveis superiores do conhecimento, constituem limites
materiais à ação do legislador, que fica, por seu turno, vinculado à realização
plena desses direitos.
Eivada, portanto, de inconstitucionalidade a Lei nº 9.536/97, que deve ter esse
reconhecimento logo em primeira instância, para que não haja situação de fato
consolidada quando da chegada dos recursos das universidades públicas às cortes
superiores de Justiça. Mesmo porque não há espeque constitucional permissor de
indenização às universidades públicas por parte daqueles que colaram grau sem
possuir o direito de cursar o ensino ofertado pelo Estado.
O máximo que se pode admitir em questão de transferência, e assim mesmo com
dependência do número de vagas restantes do exame vestibular e em épocas
pré-estipuladas pelas instituições de ensino superior, é a possibilidade da
mesma entre instituições de ensino congêneres, ou seja, de universidades
públicas entre si.
Não pode a universidade pública e gratuita, arauto das grandes descobertas
científicas e impulsionadora da pesquisa de ponta no país, ter em suas fileiras
discentes que não se submeteram, como a grande maioria, ao concurso público
para o acesso ao ensino superior gratuito ofertado pelo Estado, eis que não demonstraram
capacidade resultante de conhecimentos adquiridos no Segundo Grau, ou seja, não
se sabe se o mesmos possuem aptidão e capacidade para tal distinção.
Por derradeiro, como bem dito pelo ilustre ministro Vicente Cernicchiaro, ‘‘o
Judiciário, visto como poder, não se subordina ao Executivo ou ao Legislativo.
Não é servil, no sentido de aplicar a lei, como alguém que cumpre uma ordem
(nesse caso,não seria poder). Impõe-se-lhe interpretar a lei conforme o
Direito. Adotar posição crítica, tomando como parâmetro os princípios e a
realidade social. A lei, tantas vezes, se desatualiza, para não dizer carente
de eficácia, desde a sua edição. O juiz é o grande crítico da lei; seu
compromisso é com o Direito! Não pode ater-se ao positivismo ortodoxo. O Direito
não é simples forma! O magistrado tem compromisso com a Justiça, no sentido de
analisar a lei e constatar se, em lugar de tratar igualmente os homens, mantém
a desigualdade de classes. O juiz precisa tomar consciência de que sua sentença
deve repousar em visão antológica.’’(1)
NOTAS:
(1) Luiz Vicente Cernicchiaro, in ‘‘Revista Consulex’’, nº 07, Direito
Alternativo.
Leandro da Motta Oliveira
Advogado, Procurador da Universidade de Brasília
Extraído do site do jornal Correio Braziliense
http://www.neofito.com.br