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A CONSTITUIÇÃO E O SIGILO BANCÁRIO
Arnold Wald e Ives Gandra da Silva Martins

A aprovação pelo Senado de nova lei sobre o sigilo bancário, que pretende dar acesso aos dados confidenciais das instituições financeiras, independentemente de decisão judicial, a Receita Federal, Ministério Público e Tribunal de Contas, além de constituir heresia jurídica, por violar frontalmente a Constituição, pode ser entrave sério ao desenvolvimento econômico do país e à manutenção do adequado fluxo de capital estrangeiro do qual necessitamos.

Trata-se de mais uma tentativa de fazer prevalecer considerações pragmáticas, que são as mais discutíveis, sobre o texto claro e inequívoco da Constituição federal e de lei complementar.

Há mais de meio século, constitucionalistas e penalistas reconhecem que o sigilo só deve poder ser levantado por decisão judicial ou nos casos (dentro de limites) em que outros órgãos, como CPIs, são equiparados ao Judiciário.

Em texto clássico, o ministro Nelson Hungria considerou o sigilo "condição imprescindível não só para a segurança dos interesses dos clientes do banco como para o próprio êxito da atividade bancária", acrescentando que o segredo é verdadeira condição do negócio.

A Carta de 1988 foi muito clara ao proteger todos os direitos da personalidade e considerar inviolável o sigilo dos dados pessoais, que abrange extratos e demais informações bancárias, ressalvando apenas a possibilidade de serem obtidos em virtude de ordem judicial, para fins de investigação criminal.

Por outro lado, seu art. 192 exige que a reformulação do sistema financeiro, abrangendo as normas referentes ao sigilo bancário, se realize mediante uma única lei complementar, que deverá tratar exaustivamente do assunto. Assim, a jurisprudência e a doutrina atribuíram a condição de norma complementar à lei nº 4.595, que trata do sigilo bancário nos precisos termos estabelecidos pelos textos constitucionais.

Ainda constitui proteção dos chamados dados bancários a garantia constitucional referente ao devido processo legal, que assegura aos acusados o contraditório e a ampla defesa, "com os meios e recursos a ela inerentes".

Logo, a legislação referente ao Ministério Público e à Receita Federal, concedendo-lhes o direito a obter certas informações, tem sido considerada no sentido de lhes atribuir a legitimidade para requerer ao Judiciário medidas necessárias a esse fim. Qualquer outro entendimento importaria violação da norma fundamental. Assim se manifestaram os vários tribunais do país e toda a doutrina, que na matéria é pacífica.

Em acórdão líder, a primeira turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu em 2/2/1994 que "apenas o Poder Judiciário, por um dos seus órgãos, pode eximir as instituições financeiras do dever de segredo em relação às matérias arroladas na lei". O relator do processo, o eminente ministro Demócrito Reinaldo, acompanhado pela unanimidade da turma, concluiu seu voto afirmando que o sigilo bancário é garantia fundamental do Estado de Direito:

"Pondero, ademais, que no Estado democrático de Direito o poder de intromissão dos entes públicos na privacidade do cidadão deve subordinar-se às limitações que lhe impõem as leis, cujo exame e correta aplicação estão constitucionalmente cometidos ao Judiciário. Trata-se de relevante salvaguarda jurídica, que não obstaculiza a legítima atividade do fisco, mas antes veda-lhe o proceder arbitrário, submetendo-o às peias da ordem jurídica".

A limitação que deveria sofrer o sigilo bancário em virtude das normas constitucionais foi salientada pelo senador José Serra, cuja opinião não prevaleceu. Pareceu-nos oportuno lembrar a advertência do ministro para que o projeto, agora encaminhado à Câmara, seja adequado à norma constitucional.


Arnoldo Wald
Advogado, é professor catedrático de direito civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Ives Gandra da Silva Martins
Advogado tributarista, professor emérito da Universidade Mackenzie e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente da Academia Internacional de Direito e Economia e do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo.

Extraído do site do jornal Folha de São Paulo

 

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