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A LEGITIMIDADE DA OAB PARA PROPOR ADIN
Luiz Cláudio Portinho Dias
Temos testemunhado o surgimento de
um panorama jurídico-político em nossa sociedade, no qual predomina a retórica
demagógica e insensata a respeito do futuro do Poder Judiciário nacional. E, em
meio a isso, o debate construtivo a respeito das necessárias reformas do
sistema jurisdicional brasileiro tem ficado em segundo plano. Depois de algumas
lamentáveis trocas de farpas, que culminaram com insinuações pejorativas
veiculadas na imprensa contra o recém eleito Presidente da Excelsa Corte,
começam a vir à tona as verdadeiras intenções de nossos "messiânicos
políticos".
Já tive a oportunidade de ouvir comentários a respeito da extinção de Cortes
Superiores, das Justiças do Trabalho e Militar e, até mesmo, da eleição de
juízes. Verdadeiros absurdos para aquelas pessoas que operam o direito e têm
conhecimento dos reais problemas do Judiciário. Mas nenhuma notícia me deixou
mais perplexo do que a que passo a transcrever agora:
"Ação - O Palácio do Planalto pretende suprimir o direito da Ordem
dos Advogados do Brasil de propor Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin)
junto ao Supremo Tribunal Federal. A acusação foi feita pelo presidente do
Conselho Federal da OAB, Reginaldo de Castro, nesta quinta-feira (22/4). A
articulação foi revelada durante o encontro dos 27 presidentes de Conselhos
Seccionais da Ordem, que está sendo realizada em Maceió. A manobra começaria
com a remessa da proposta ao relator da reforma do Judiciário, deputado Aloisio
Nunes Ferreira (PSDB-SP). Para Reginaldo de Castro a medida seria uma
"arbitrariedade". A legitimidade para que a Ordem apresente Adin ao
STF é garantida pela Constituição Federal. Em pouco mais de 10 anos de vigência
da atual Constituição, a entidade já apresentou 67 ações desse tipo. Para o
presidente nacional da OAB essa idéia do planalto é "sintomática".
Segundo Castro, a proposta está sendo elaborada justamente pelo grupo de
juristas que "não hesita em afrontar direitos assegurados pelo texto
constitucional para satisfazer os interesses ocasionais do governo em detrimento
da população" (Fonte: Informativo Consultor Jurídico,
22.04.99).
Sem
dúvida, uma notícia de causar calafrios aqueles que reverenciam e lutam pela
evolução do Estado Democrático de Direito. Uma nota de dar inveja às velhas
manchetes dos tempos de regime ditatorial.
Como tivemos a oportunidade de escrever, em artigo publicano na Revista dos
Tribunais, no mês de agosto de 1998, abordando o controle de
constitucionalidade dos atos normativos no Brasil, "verificou-se flagrante
intenção do constituinte de democratizar o procedimento estipulando como
legitimados ativamente para propô-lo, além de pessoas de cunho eminentemente
político (...), outras representativas de vários seguimentos da sociedade
(...), com especial ênfase para o representante da comunidade jurídica
(Conselho Federal da OAB)" (RT 754/106 - grifamos).
Com certeza, foi um dos avanços mais significativos que o legislador
constituinte imprimiu ao modelo jurídico pátrio, optando pela extroversão da
legitimidade processual constitucional, com flagrantes intenções
democratizantes do acesso ao controle. O mestre português J.J. Gomes Canotilho,
ao apreciar a legitimatio-actio para a fiscalização, esclarece que "devem
intensificar-se as possibilidades de intervenção pluralísticas nos processos de
controlo. Um processo tendencialmente democrático na criação de normas de acção
não é ajustável a um processo estatalmente monopolizador de dinamização do
controlo" ("Jurisdição Constitucional e Intranquilidade
Discursiva", in Perspectivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição
de 1976, Coimbra Editora, p. 880).
O problema, no entanto, é que as políticas e práticas governamentais vigorantes
têm denotado pouca ou nenhuma preocupação com a linha democrática e aberta que
caracterizou a elaboração de nosso Texto Fundamental. A utilização desmesurada
do instrumento legislativo excepcional, com sucessivas e reiteradas reedições
de medidas provisórias, institucionalizando um "ilícito constitucional"
é a maior demonstração disso.
Outra prova inequívoca da intenção do "power estabilishment" de se
apropriar das funções estatais é a introdução em nosso sistema jurisdicional da
famigerada ação direta de constitucionalidade, através da Emenda Constitucional
n. 03/93. E, principalmente, a restrita legitimidade "ad causam"
dessa ação, monopolizada nas pessoas do Presidente da República, das Mesas do
Congresso e do Procurador-Geral da República, com exclusão proposital das
minorias políticas.
Nosso país, infelizmente, está sendo conduzido por pessoas com más intenções,
por administradores que sequer conhecem os nortes da moralidade e da
impessoalidade que deveriam pautar suas atuações. E o Poder Judiciário, nesse
quadro obscuro, é a única barreira erguida contra tais desmandos dos detentores
do poder. Não é errado dizer, diante disso, que a submissão dos atos normativos
e administrativos ao controle jurisdicional, nota marcante do Estado
Democrático de Direito, tem sido verdadeira pedra no sapato dos governantes.
Nesse contexto, não é de se estranhar que o Palácio do Planalto esteja a
conjecturar uma proposta tão desmedida. O Conselho Federal da Ordem, nestes 10
anos de vigência da Carta da República, tem ingressado com ações
fiscalizatórias de alto relevo na defesa das instituições democráticas. A
maioria delas contrastando os atos emanados do Sr. Presidente da República, o
que pode servir de explicação à tentativa arbitrária de suprimir a
prerrogativa.
Ninguém mais do que a Ordem tem combatido, no âmbito do controle abstrato de
constitucionalidade, a nefasta prática de reedição de medidas provisórias. Mas
há, sem dúvida, outras tantas nobres iniciativas da OAB que procuraram, pela
via legítima, impugnar as políticas governamentais. Na ADIn 1584-2, por exemplo,
se questionou a Lei Federal n. 8.031/90, que instituiu um programa nacional de
desestatização muito amoldado às exigências e pressões internacionais. Temos
notícia de que o desproporcional aumento da contribuição social dos
funcionários públicos e dos inativos, determinado pela Lei n. 9.783/99, também
será objeto de fiscalização abstrata de iniciativa do Conselho Federal.
Enfim, vê-se que a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil no quadro de
fiscalização abstrata de constitucionalidade introduzido pela Constituição de
1988 tem sido muito importante. Suas iniciativas têm-se pautado pela
independência e persecução dos objetivos maiores traçados pela Carta Maior.
Releva-se, pois, inadmissível a proposta de supressão da prerrogativa atribuída
ao Conselho Federal pelo art. 103, inciso VII, da Carta Política vigente.
Mas, além de inadmissível, a proposta é, sobretudo, inconstitucional já em sua
concepção. Em primeiro lugar, porque representa evidente afronta ao Estado
Democrático de Direito (art. 1º, caput, da CF/88). De outra parte, a real
intenção da proposta é diminuir as possibilidades de controle da atividade
estatal pelo Poder Judiciário, ofendendo indiretamente a tripartição de
poderes, cláusula pétrea, nos termos do art. 60, §4º, da CF/88. Além disso, o
advogado é essencial à administração da justiça (art. 133), sendo
imprescindível a presença de seu órgão representante entre as pessoas
legitimadas à fiscalizar a constitucionalidade dos atos normativos. Afora isso,
esbarra a iniciativa do Planalto na cláusula "substantive duo process of
law", insculpida entre nós no art. 5º, LIV, da CF/88, pela falta de
conformação com o princípio da razoabilidade.
Por fim, o próprio termo "emenda à constituição" denota, claramente,
a impossibilidade de restringir uma legitimação conferida pelo legislador
constituinte. O constituinte derivado, s.m.j., não pode atuar em contrariedade
à intenção do constituinte originário, transformando um instituto de
legitimação marcadamente democrático em algo introvertido e monopolizado. As
"legitimatios" estatuídas pelo poder constituinte originário são
insuprimíveis, somente podendo o legislador derivado dar continuidade ao
processo de abertura, acrescentando novas pessoas ao rol. O poder reformador
pode modificar a Constituição, mas não destruí-la.
Por tudo isso, esta iniciativa do Palácio do Planalto merece o repúdio da
comunidade jurídica e de toda a sociedade brasileira.
Luiz Cláudio Portinho Dias
Procurador Autárquico do INSS
Especial para O Neófito
Incluído no site em 13/10/99
http://www.neofito.com.br/