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O Código de Defesa do Consumidor e o art. 192 da Constituição Federal: conflito entre lei ordinária e lei complementar?
Mestre, Doutor e Livre-Docente em Direito
pela PUCSP, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Unimes/Santos, Juiz de Direito do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado
de São Paulo e autor de diversos livros, dentre os quais Comentários ao
Código de Defesa do Consumidor, editado pela Saraiva.
No presente
texto demonstraremos que o art. 192 da Constituição Federal e a lei
complementar nele prevista, ainda que não editada, em nada afeta uma lei
ordinária específica, a de n. 8.078/90, conhecida como o Código de Defesa do Consumidor.
Aliás, diga-se, o CDC está em pleno vigor há quase onze anos, com eficácia e
muita eficiência, tendo influenciado diretamente a modernização das relações
jurídicas estabelecidas no pólo de consumo. E mais: é uma das raras leis
brasileiras respeitadas no exterior, tendo servido de inspiração para a criação
e modificação de várias leis similares em muitos países. É, efetivamente, um
produto nacional que enche de orgulho os brasileiros.
Vamos ao
assunto. Com a edição da Constituição Federal de 1988, inaugurou-se um novo
modelo lógico-jurídico, no qual as leis complementares deixaram de ter a
sobrevalência hierárquica sobre as leis ordinárias(tratamos do tema em nosso Manual
de introdução ao estudo do direito, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 2002,
Cap.3, subitem 3.3.1).
A questão,
inclusive, é bastante simples e implica apenas e tão-somente o entendimento de
uma questão lógica: a da hierarquia e a do desenvolvimento da noção de sistema,
no caso, sistema jurídico.
Com efeito,
sistema é uma construção científica composta por um conjunto de elementos, que
se inter-relacionam mediante regras. Essas regras, por sua vez, determinam as
relações entre os elementos do sistema e assim formam sua estrutura.
Ora, no sistema
jurídico os elementos são as normas jurídicas, e as relações que determinam sua
estrutura são a hierarquia, a coesão e a unidade, de tal sorte que a norma
jurídica fundamental, que é a Constituição Federal, por estar no ponto mais
alto do sistema, determina a validade de todas as demais normas, que a ela
devem respeitar. A questão assim é, portanto, de hierarquia, vale dizer, umas
normas são mais valiosas que outras, são superiores, pois estão situadas num
ponto mais alto(e a Carta Magna está no topo).
É por isso que,
quando vai se apontar para o modelo do sistema jurídico, elabora-se o desenho
de uma pirâmide: no ápice coloca-se a Constituição Federal e a partir dela para
baixo se escalonam todas as demais normas. Trata-se de pura lógica de
escalonamento normativo, cuja opção é feita pelo Sistema Constitucional, e
validada por sua aplicação diuturna, constante e histórica por todos os
operadores do direito.
Pois bem, como
apontamos no início, até a edição da Carta Magna atual, a lei complementar
tinha prevalência hierárquica sobre a lei ordinária. É que, no modelo de
sistema jurídico anterior, algumas leis ordinárias tinham seu comando
hieráquico superior determinados por leis complementares que lhes impunham
certas condições de validade. Era o caso, por exemplo, do Código Tributário
Nacional (lei complementar) e sua relação com outras leis ordinárias
tributárias.
Acontece que, a
partir da 5 de outubro de l988, ao entrar em vigor a nova Carta Constitucional,
isso acabou: não existe mais hierarquia entre lei complementar e lei ordinária,
isto é, a lei complementar não determina as condições de validade da lei
ordinária.
É verdade que o
legislador constitucional deu mais, podemos dizer, "peso" normativo à
lei complementar, reservando-lhe temas legislativos de relevo. No entanto isso
não significa, em hipótese alguma, que a lei complementar está situada em
patamar mais elevado no sistema. As leis complementares têm como função tratar
de certas matérias que a Constituição entende devam ser reguladas por normas,
cuja aprovação exige controle mais rígido dos parlamentares. Por isso, o quorum
legislativo exigido para sua aprovação é especial; é o da maioria absoluta (CF,
art. 69: "As leis complemenatres serão aprovadas por maioria
absoluta"). E as matérias para as quais são feitas essa exigência de
votação aparecem taxativamente no texto constitucional. Por exemplo, o art. 93
que trata do Estatuto da Magistratura; o art. 131, que disciplina a
Advocacia-Geral da União; o art. 192, que cuida do sistema financeiro nacional
etc. Portanto, o que diferencia a lei complementar da ordinária é a matéria
específica e o quorum qualificado de aprovação paras as leis
complementares e não a hierarquia, que, repita-se, não existe entre elas.
É por isso que,
sempre que o Congresso Nacional aprovar uma lei ordinária que não invada esfera
de competência substancial quanto ao tema especificamente determinado para lei
complementar, não haverá, nesse aspecto, nenhum vício que se lhe possa apontar,
pois ambas estão lado a lado no elevado patamar do sistema jurídico
constitucional (logo abaixo da Constituição Federal).
Assim,
tomando-se como exemplo o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90),
percebe-se que em nenhum aspecto de todo o seu regramento há conflito algum com
qualquer lei complementar que se possa apontar. E ainda que em alguma matéria a
lei complementar não tenha sido editada, o CDC em nada fere o texto
constitucional. Aliás, muito ao contrário. Como já tivemos oportunidade de
demonstrar em outra oportunidade ("É inconstitucional qualquer medida
provisória que pretende afastar o Código de Defesa do Consumidor",
publicado no site http//:www.saraivajur.com.br), a par de ser uma norma
estabelecida por expressa determinação constitucional (CF, art. 5.º, XXXII;
art. 170, V, ADCT, art. 48), a edição do Código de Defesa do Consumidor
inaugurou um novo modelo jurídico no sistema constitucional brasileiro, ainda
pouco explorado pela Teoria do Direito.
É que o Código
de Defesa do Consumidor é uma lei principiológica, modelo até então inexistente
no Sistema Jurídico Nacional, e como tal nele ingressou, fazendo, digamos
assim, um corte horizontal, a atingir toda e qualquer relação jurídica que
possa ser caracterizada como de consumo e que pode estar também regrada por
outra norma jurídica infraconstitucional. Assim, por exemplo, um contrato de
seguro de automóvel continua regulado pelo Código Civil e pelas demais normas
editadas pelos órgãos governamentais que regulamentem o setor (Susep, Instituto
de Resseguros etc.), porém estão tangenciados por todos os princípios e regras
da Lei n. 8.078/90, de tal modo que, naquilo que com eles colidirem, perdem
eficácia por tornarem-se nulos de pleno direito.
Mas isso é
apenas mais um aspecto que em nada interfere na relação entre a Lei n. 8.078/90
e a lei complementar. O importante mesmo aqui é destacar que o CDC, como lei
ordinária, funciona como um sub-sistema próprio no modelo jurídico
constitucional existente, e que ele não está submetido a nenhum comando
hierárquico superior, com exceção, claro, do próprio texto constitucional, que
lhe é superior como está também acima de toda e qualquer outra norma jurídica
não constitucional.
E ainda que a
Constituição Federal tenha alguma determinação para a edição de uma lei
complementar, como, por exemplo, aquela do art. 192, que regula o sistema financeiro
nacional, uma vez editada esta, ou mesmo antes, o tangenciamento existente
entre a lei complementar e a Lei n. 8.078/90 se fará pelo elemento material dos
temas postos. E nesse aspecto a matéria tratada em cada norma é muito
diferente. Vejamos.
No art. 192
está posta claramente a regulação do sistema financeiro nacional, com
autorização para o funcionamento de instituições financeiras, de companhias de
seguro, condições para participação de capital estrangeiro, atribuições do
Banco Central etc. De outra parte, no CDC estão estabelecidos princípios e
regras, saídos diretamente do texto cosntitucional, que pretendem a proteção do
consumidor na relação com seus fornecedores, quaisquer que sejam estes,
industriais, prestadores de serviços de diversões públicas ou agentes
financeiros, sempre agindo estritamente no pólo de consumo, no regime
capitalista estabelecido pela Constituição Federal.
Coloque-se em
relevo este ponto: a Lei n. 8.078/90 regula as relações jurídicas no pólo final
de consumo; não estabelece normatização para as outras diversas relações
existentes entre os vários agentes econômicos. Assim, por exemplo, o CDC não
regula as relações entre o produtor rural e a indústria de alimentos, ou a
existente entre a montadora de veículos e suas concessionárias, ou, ainda, as
relações ente o Banco Central e os agentes financeiros, entre o Estado e o
Banco Central etc.
Assim, claro
está que a hipótese do art. 192 é a de regulação de matéria bem diversa daquela
estabelecida pelo CDC: a existente entre o Estado, o Banco Central, os agentes
financeiros, as seguradoras etc. A matéria tratada pela Lei n. 8.078/90,
repita-se, é outra completamente diferente: ela regula as relações jurídicas
estabelecidas no pólo final de consumo, entre consumidor, de um lado, e fornecedor,
de outro, na transação de produtos e
serviços.
Então, não se
compreende por que é que se alguns autores pretendem conectar o art. 192 da CF
e a lei complementar, por ele determinada, com o CDC. São assuntos diversos que
não têm nenhuma conexão lógica no sistema constitucional, quer pela via do
modelo legislativo (lei complementar/lei ordinária), quer pela matéria de que
se revestem (o art. 192 cuida do sistema financeiro nacional na relação entre
Estado, seus orgãos e os agentes financeiros, de seguro etc.; o CDC regula as
relações jurídicas do pólo final de consumo no regime capitalista brasileiro).
Portanto, não existe qualquer relação lógica ou jurídica entre o Código de
Defesa do Consumidor e o art. 192 da Constituição Federal.
Retirado de: www.saraivajur.com.br