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A proteção da família, a união homossexual e o direito de igualdade

 

Mônica Yoshizato Bierwagen

 

Advogada em São Paulo

 

I. Introdução

O último século foi, certamente, palco de grandes e profundas alterações na concepção jurídica de família: se nos tempos do advento do Código Civil de 1916 discriminavam-se duas espécies de família, quais sejam, a legítima e a ilegítima, conforme, respectivamente, fosse constituída dentro ou fora do casamento, a história traçada pela jurisprudência, a legislação posterior e, finalmente, a Constituição Federal de 1988, deixaram claro que esses dois conceitos, embora tenham sempre andado juntos, não se confundem.

Com efeito, o art. 226, ao afirmar em seu caput que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” e que as entidades familiares, ou seja, as uniões estáveis (§ 3.º) e as famílias monoparentais (§ 4.º) se incluem nessa tutela, torna claro que o constituinte não só aderiu ao pensamento de que a noção de família transcende a idéia de casamento, rompendo a tradição das últimas Constituições de proteger apenas a dita “legítima”1, mas, principalmente, dispensou-lhe o devido tratamento, reconhecendo-a como sustentáculo da sociedade e outorgando-lhe especial proteção.

É inegável, pois, que o art. 226, ao lançar um novo olhar sobre a noção tradicional de família, alarga o seu conceito para abarcar não apenas aquela constituída sob a égide do casamento, mas igualmente a união estável e a monoparental, acolhendo, dessarte, uma realidade irrecusável da sociedade brasileira: o número cada vez maior de agrupamentos de pessoas que reproduziam, de forma mais ou menos fiel, a estrutura da dita “família legítima”, e que, embora fizessem parte da “base da sociedade”, permaneciam à margem da lei. Não obstante a iniciativa assemblear tenha seus méritos, por desenlaçar os conceitos de família e de casamento, não é possível deixar de questionar se a interpretação do aludido dispositivo não poderia ir mais além, ou seja, diante da amplitude do termo “família”, não seria conveniente refletir se seriam somente esses modelos de família estabelecidos pelos parágrafos do art. 226 os únicos a constituir a dita “base da sociedade”? Não haveria outras estruturas sociais que, apesar de apresentarem uma formação não convencional, mas desempenhando o papel de família, se enquadrariam no modelo genérico abrigado pelo Texto Supremo? Se afirmativo, seria possível, com fundamento no princípio da isonomia (art. 5.º, caput), ampliar-se mais um pouco a interpretação da norma, para também abranger essas estruturas familiares não expressamente descritas?

A união homossexual e os movimentos reivindicatórios de proteção legal aos parceiros2 do mesmo sexo estimulam e exigem respostas a essas questões. Por certo, não qualquer relação homossexual, mas aquelas que caracterizam uma família, vale dizer, as que se estruturam de forma idêntica à união estável e que somente não preenchem o requisito da diversidade de sexos; nesse caso, qual seria o óbice para a sua equiparação se a Constituição Federal prevê, como princípio fundamental, a igualdade de todos perante a lei?

Antes de conclusões apressadas ou infundadas, a proposta deste trabalho é refletir sobre tais questões, ponderar sobre o que está à nossa volta, o que vem acontecendo no mundo, e nos perguntar, com a máxima isenção possível, se existem motivos justos e relevantes  para o tratamento diferenciado. A evolução do estado marginal de concubinato à constitucionalmente reconhecida união estável não só é um exemplo incontestável de que o Direito, na sua missão de garantir valores como a justiça, a solidariedade e a tolerância, pode (e deve) mudar em face da realidade, mas principalmente mostra que, de quando em quando, é necessário colocar em xeque alguns conceitos e verdades comumente aceitos, seja para confirmá-los, seja para revê-los. E, acima de tudo, para nos permitir o poder de escolha.

II. A família moderna e a Constituição Federal de 1988

É fato que a entrada da mulher no mercado de trabalho, a conquista de sua independência financeira e liberação sexual, especialmente após a segunda metade do século XX, ditaram uma profunda reestruturação dos papéis sexuais e familiares. O modelo do Código Civil de 1916, ou seja, a família, cujo laço se constituía pelo casamento e era indissolúvel senão pela morte, em que o homem garantia o sustento e determinava seus rumos, ao lado da mulher responsável por cuidar da casa e dos filhos, rapidamente se revelou inadequado e obsoleto. A independência financeira da mulher ensejou-lhe não apenas um maior poder de escolha do cônjuge ou parceiro, já que não necessariamente precisaria se unir a alguém capaz de lhe prover o sustento, tampouco manter-se subjugada a um relacionamento infeliz por não ser capaz de manter a si própria, como, inclusive, de decidir por formar, apenas ela e os filhos, uma família; os métodos contraceptivos mais eficazes propiciaram a possibilidade de manter relações sexuais sem os riscos da gravidez indesejada, além de lhe permitir optar por não ter filhos; o trabalho externo e a conseqüente diminuição de seu tempo para cuidar da casa e da prole levou os homens a aprenderem e a se dedicarem ao trabalho doméstico.

Essas novas estruturas familiares, cada vez mais distantes do modelo projetado pelo legislador de 1916, embora não tenham criado a figura do concubinato3, contribuíram decisivamente para o desprestígio do casamento e a formação de relações “ilegítimas”. Se por um lado a indissolubilidade do casamento constituía uma segurança para aquela mulher dona-de-casa, sem renda e sem profissão, de outro, para a “nova” mulher  financeiramente independente, esse mesmo fator de segurança passou a constituir uma ameaça à sua liberdade caso o casamento não se apresentasse satisfatório; a chefia conjugal deferida exclusivamente ao homem não se adequava à igualdade e à independência que cada vez mais essa mulher vinha conquistando; a pílula anticoncepcional mostrou-se um coadjuvante decisivo para  a perda da importância e o significado da virgindade, uma das causas de anulação do casamento prevista no Código Civil.

Apesar disso, homens e mulheres, mesmo longe das formalidades do casamento civil, continuaram a se unir, dividir suas vidas, ter filhos. Não mais motivados exclusivamente por aquelas necessidades já aludidas e que encontravam amplo amparo na instituição do casamento, mas pela permanente razão que há de, sempre, unir os casais e mantê-los juntos: o amor4. O amor, que nem sempre se apresenta nas perfeitas formas idealizadas pela lei5; o amor, que, por ser sentimento, pode surgir, desaparecer, transformar-se, no mais das vezes, independentemente da vontade racional do próprio indivíduo.

Essa é a família que, finalmente, foi reconhecida pelo texto constitucional de 1988: a família do afeto, em substituição à família patriarcal do Código Civil de 1916, desassociada do casamento, fundada no amor e na igualdade, formada e mantida pelo amor do casal e dos filhos6.

Críticas são dirigidas a esse modelo familiar, já que nessas relações, cada parte, pautando-se por sua compreensão sobre o amor e buscando satisfazê-lo a seu modo, sem qualquer vínculo superior que a mantenha unida a outra, com a mesma facilidade que poderia juntar-se, também poderia separar-se, criando um ambiente instável e inseguro para a formação do núcleo familiar e a criação dos filhos7.

De fato, as famílias constituídas fora do casamento têm uma facilidade maior de estabelecer e extinguir esses vínculos, pois prescindem de cumprir as formalidades legais e judiciais que iniciam e findam o matrimônio (celebração do casamento e processo judicial de separação e/ou divórcio, respectivamente). No entanto, as facilidades se encerram por aí. Ao contrário do que se argumenta, é justamente em virtude de hoje a lei reconhecer a união estável, impondo-lhe direitos e obrigações, que se exige de cada um dos companheiros a mesma séria reflexão que se impõe na relação constituída pelo casamento, pois estas serão assumidas ipso facto, independentemente da vontade dos companheiros. Negar tutela estatal a essas famílias, isso sim poderia ensejar uma insegurança ao núcleo familiar, pois viveriam sem peias e dependentes exclusivamente da consciência de cada um de seus componentes.

Essa é, querendo ou não, a real situação da família brasileira, respeitada e protegida pela Constituição Federal. Sobre esse novo modelo fundado no afeto, brilhantemente aduz Giselda Hironaka8, a quem peço vênia para fazer também minhas as suas palavras: “(...) a verdade jurídica cedeu vez à imperiosa passagem e instalação da verdade da vida. E a verdade da vida está a desnudar aos olhos de todos, homens ou mulheres, jovens ou velhos, conservadores ou arrojados, a mais esplêndida de todas as verdades: neste tempo em que até o milênio muda, muda a família, muda o seu cerne fundamental, muda a razão de sua constituição, existência e sobrevida, mudam as pessoas que a compõem, pessoas estas que passam a ter a coragem de admitir que se casam principalmente por amor, pelo amor e enquanto houver amor. Porque só a família assim constituída – independentemente da diversidade de sua gênese – pode ser mesmo aquele remanso de paz, ternura e respeito, lugar em que haverá, mais que em qualquer outro, para todos e para cada um de seus componentes, a enorme chance de realização de seus projetos de felicidade”.

III. É possível equiparar a união homossexual à união estável?

A partir da concepção da família moderna como uma entidade baseada essencialmente no afeto, surge uma questão de grande polêmica e controvérsia: o reconhecimento da união homossexual como entidade familiar. Afinal, os homossexuais que mantenham relações de afeto, duradouras, públicas e com o intuito de formar uma família, podem ter esse relacionamento equiparado à união estável?

Há demonstrações de que as relações homossexuais possam comparar-se, no quesito estabilidade, às relações heterossexuais: os jornais e as revistas9 estão repletos de exemplos de pessoas do mesmo sexo que vivem juntas, estabelecem um patrimônio comum, criam filhos. Por outro lado, no Judiciário, embora as decisões que as reconheçam ainda constituam exceção10, há uma visível tendência no sentido de admiti-las como sociedade de fato nos casos em que o casal amealhou bens durante a relação, deferindo a partilha ao parceiro sobrevivente, e, em alguns casos, determinando o julgamento desses feitos pelas varas de família11.

Apesar disso, o que realmente parece impedir a equiparação da união homossexual à união estável é o pressuposto da diversidade de sexos.

Além do fato de o projeto de autoria da ex-deputada Marta Suplicy12 ainda não ter sido votado até hoje, é certo que na esfera do Judiciário, com apoio em grandes nomes da doutrina13, o não-reconhecimento das uniões homossexuais baseia-se, precipuamente, no argumento de que a Constituição Federal bem como a legislação infraconstitucional referem-se, expressamente, ao par constituído por homem e mulher, pressuposto este, evidentemente, impossível de ser satisfeito por casais homossexuais.

Embora a interdição constitucional alegada seja parcialmente procedente, uma vez que da análise gramatical do § 3.º do art. 226 da Constituição Federal e do art. 1.º da Lei n. 9.278/96 (Lei dos Companheiros) resulta tal conclusão, tem-se, por outro lado, que o referido dispositivo não pode ser encarado de forma isolada, seja dentro do próprio artigo, seja dentro do texto constitucional como um todo14.

E é justamente adotando uma visão integrada do § 3.º do art. 226  com as demais disposições da Constituição que se verifica a possibilidade de equiparação da união estável à união homossexual: primeiro, por força de seu caput, que prevê “especial proteção do Estado” à família; em segundo, pelos direitos fundamentais assegurados pela Carta e os objetivos e fundamentos da República. Pois vejamos cada um deles:

a) A proteção constitucional da família

Regra geral estabelecida pelo caput do art. 226 refere-se à proteção da família, ali genericamente definida como “base da sociedade”.

Tal dispositivo, ao contrário dos seus antecessores15, não definiu a família, senão pela fórmula genérica ora aludida. Outrossim, ao dispor nos §§ 3.º e 4.º que são entidades familiares a união estável e a família monoparental, não parece ter estabelecido um rol taxativo, porquanto ao “reconhecer” a união estável como entidade familiar, e “entender” assim também a família monoparental, a linguagem empregada não leva, necessariamente, à exclusão de outras entidades, mas, quando muito, somente à explicitação de que aquelas ali arroladas se incluem no conceito de família.

Nesse sentido, não parece ser de boa técnica entender que a família protegida pelo caput do art. 226 seja apenas a constituída pelo casamento, pela união estável e a monoparental. Até porque, se considerarmos que o modelo do caput é bastante amplo, para a limitação de seu conteúdo exclusivamente àquelas entidades, seria necessário mais do que afirmar que os modelos nele elencados são entidades familiares, mas certamente explicitar, de forma taxativa, que sua noção de família se circunscreveria única e exclusivamente àquelas, eliminando qualquer interpretação mais elástica do dispositivo.

Ademais, mais do que uma interpretação estritamente gramatical do dispositivo, é necessário contextualizá-lo à realidade presente, tendo em conta, precipuamente, a moderna proposta de família, ou seja, da família como um laço de afeto. Deveras, como aponta Paulo Luiz Neto Lôbo, sobre a nova entidade familiar da Constituição de 1988: “A família é, no presente, muito mais do que antes, o espaço de realização pessoal, afetiva, despatrimonializada. (...) Rentes à realidade social, as propostas populares e de entidades representativas da sociedade civil partiram da família concreta, e não da família sacralizada ou mítica ou patriarcal. Visaram, sobretudo, a garantia das condições reais de igualdade e liberdade, como pressupostos da realização afetiva”16.

Dessa maneira, se de um lado não resta possível afirmar, via interpretação estritamente gramatical do art. 226, que no conceito de família contido no caput estejam protegidos apenas os modelos descritos nos parágrafos, e de outro, na elaboração de uma exegese evolutiva do dispositivo17, considerando que a proposta da família moderna se baseia numa estrutura que enfatiza, acima de quaisquer modelos rigidamente estabelecidos, a existência do afeto, a busca pelo real e exato sentido do mencionado dispositivo não pode encontrar naquela exegese restritiva o seu ponto final e ser tomado por verdade absoluta. Há de ir além, tanto pela observação da realidade concreta em que se insere essa nova família, como também estabelecendo uma leitura conjugada do artigo, seus parágrafos e demais dispositivos constitucionais, especialmente à luz do direito fundamental de igualdade, base de qualquer Estado democrático de direito.

b) O tratamento isonômico da união homossexual e da união estável

Ainda na trilha da interpretação do § 3.º do art. 226 dentro do contexto constitucional em sua totalidade, como já anunciado, não há como escapar da sua leitura à luz do princípio da isonomia inscrito no caput e no inc. I do art. 5.º.

Com efeito, mesmo que se queira considerar os parágrafos do art. 226 como rol taxativo, excluindo de sua proteção entidades familiares que não se conformem aos modelos ali instituídos, ainda assim seria necessária a sua compreensão segundo os princípios norteadores do sistema constitucional, em especial os princípios da igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana.

Deveras, desde a Antigüidade já ensinava Aristóteles que a igualdade pressupõe não só tratar igualmente os iguais, mas, também, tratar desigualmente, na medida dessa desigualdade, os desiguais. Assim ocorre, por exemplo, na garantia do acesso ao Judiciário aos menos favorecidos (art. 5.º, LXXIV), pela qual concede-se-lhes um especial tratamento, capaz de assegurar-lhes a paridade de forças necessária no processo judicial. O tratamento desigual justifica-se tanto pela existência de uma sensível desigualdade entre uma e outra parte, como, principalmente, por se verificar que o critério que os desnivela (critério econômico) deve ser contornado para que esse obstáculo não comprometa tanto o acesso aos órgãos judiciais como a justiça do provimento jurisdicional.

Transferindo esse raciocínio para o caso do tratamento desigual ocorrente na união homossexual ante a união estável, é imprescindível que, antes de nos apegarmos exclusivamente à compreensão gramatical do conteúdo do § 3.º do art. 226, em primeiro lugar busquemos a razão do trato diferenciado das duas situações ou, em outras palavras, o porquê de o legislador ter consagrado essa discriminação. Em segundo – e isso, sem dúvida, é o mais importante – verificar se esse tratamento diferenciado encontra um fundamento lógico e racional18, que se harmonize com os compromissos éticos e políticos da sociedade como um todo.

Nesse sentido, se a família homossexual é idêntica à família constituída em união estável, diferindo somente no que concerne ao pressuposto da diversidade de sexos entre os companheiros, resta pertinente verificar se esse elemento pode ser considerado como critério diferenciador justificável a vedar-lhe o mesmo tratamento. Em outras palavras, há de se investigar se a diversidade de sexos é, de fato, determinante para o sucesso ou o fracasso daquele núcleo social enquanto entidade familiar.

Parece-nos que a diversidade ou identidade de sexos não pode, de forma exclusiva, ser adotada como critério diferenciador. Como já dito acima, há muitas demonstrações de que o casal homossexual, à medida que estabelecem uma relação de afeto, respeito, consideração e auxílio mútuos, apresentando-se socialmente como parceiros, em união contínua e duradoura, comportam-se de forma idêntica ao casal heterossexual. Casos em que um dos parceiros cuidou do outro em momentos difíceis, ou aqueles que se dedicam a criar conjuntamente os filhos (naturais ou adotivos de um dos parceiros), não constituem uma raridade e bem ilustram essa assertiva19.

Assim, se tais famílias se comportam de forma semelhante àquela oriunda de união estável, qual seria a explicação para a não-equiparação de ambas se a Constituição obriga ao tratamento igual aos iguais, principalmente vedando o tratamento diferenciado por orientação sexual?

Ao que parece, a razão de não se estender a proteção da família à união homossexual não está relacionada a critérios a que se possa atribuir o caráter de racional ou sensato, mas, sim, a padrões sociais cultivados desde longa data, e que, diante das premissas maiores da Constituição Federal e da realidade social de hoje, devem, obrigatoriamente, ser reavaliados.

É inegável que muito do que conhecemos por “moral sexual” tem suas bases assentadas em dogmas religiosos: a preservação da virgindade até o casamento, a relação sexual apenas com o intuito de reprodução, o ritual do casamento para constituição da família, o matrimônio indissolúvel, são exemplos bastante significativos da influência da religião sobre os costumes e a lei20.

Embora muitos desses valores estejam em franco abandono, notadamente após as profundas mudanças dos papéis sexuais de homens e mulheres21 ocorrida na segunda metade do último século e que vigorosamente alavancaram um novo pensar sobre a expressão da sexualidade, alguns deles ainda continuam a ser defendidos, entre eles, a condenação ao relacionamento homossexual; basta abrir o jornal ou assistir ao noticiário para ver, de quando em quando, mostras de atitudes preconceituosas contra homossexuais, de uma simples sátira aos seus trejeitos até casos assustadores de espancamento e assassinato.

No entanto, cada vez mais essa resistência vem se enfraquecendo no que toca aos seus fundamentos. Notáveis avanços científicos na área da sexualidade humana, especialmente da psicologia, assinalando que a homossexualidade não é doença22, mas simples orientação afetivo-sexual do indivíduo23, evidenciam que tais padrões ainda resistem não por uma explicação razoável, lógica ou aceitável, mas pelo simples preconceito dos que não encontram, para definir a união homossexual, qualificações mais consistentes que “doentio”, “perverso”, “vergonhoso”, “corrupto” e “imoral”24.

A Constituição Federal, enquanto instrumento maior de proteção dos direitos fundamentais, não dá guarida a esse tipo de discriminação. Pelo contrário, na medida em que eleva a isonomia de todos perante a lei e o direito de intimidade e de privacidade à categoria de cláusula pétrea (art. 5.º, caput, I e X, e art. 60, III, § 4.º) e estabelece como objetivo e fundamento da República, respectivamente, a promoção indistinta do bem de todos (art. 3.º, IV) e a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III), deixa mais que patente seu repúdio a toda e qualquer iniciativa tendente a discriminações infundadas, irrefletidas ou preconceituosas. E, nessa medida, o corrente tratamento desigual da união homossexual, enquanto a marginaliza e alimenta a sua estigmatização, não se mostra coerente com tais premissas, mormente quando os motivos alegados em favor da tese da não extensão dos direitos da união estável se abriga apenas em formalismos25, que não se sustentam diante do processo interpretativo do texto constitucional como um todo26.

A realidade muda, e a lei deve mudar. Há cem anos, o preconceito e a marginalização das relações concubinárias jamais permitiriam reconhecer-lhes quaisquer direitos; o Judiciário, sensível ao fenônemos sociais, corajosamente adaptou os instrumentos legais de que dispunha para corrigir a cegueira e o formalismo da lei com relação às famílias ilegítimas, e nos limites desse ferramental, pôde estender-lhes a proteção estatal merecida; hoje, o ordenamento cede a essa realidade e outorga tutela constitucional aos companheiros. Diante de um exemplo tão claro e tão recente na nossa história, não há como não nos perguntar se será necessário, com relação ao reconhecimento dos direitos das uniões homossexuais, trilhar novamente esse mesmo árduo caminho, e que certamente, implicará o sacrifício de direitos e liberdades de muitos desses parceiros. Ou se poderemos aprender com a nossa história e com a observação da realidade, a respeitar e aceitar as diferenças e, acima de tudo, reconhecer que a Constituição Federal, sobrepairando sobre todos, independentemente de sua raça, cor, sexo, religião e, sobretudo, da sua orientação sexual, tem por missão construir um autêntico estado democrático de direito, e que, certamente, jamais encontrará solo firme no preconceito e na intolerância.



1 CF/1937: “Art. 124. A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos”; CF/1946: “Art. 163. A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção espeical do Estado”; CF/1967: “Art. 167. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos. § 1.º O casamento é indissolúvel”; CF/1969: “Art. 175. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos. § 1.º O casamento somente poderá ser dissolvido nos casos expressos em lei, , desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos”. Apud Rodrigo da Cunha Pereira, Direito de família – uma abordagem psicanalítica, Belo Horizonte, Del Rey, 1997, p. 21, e Yussef Said Cahali, Divórcio e separação, tomo 1, São Paulo, Revista dos Tribunais, 7. ed., p. 44.

2 No desenvolvimento do trabalho utilizaremos a expressão “parceiros” para evitar eventuais confusões com os “companheiros”, terminologia adotada pelo legislador para se referir aos componentes da união estável.

3 Silvio Rodrigues (Direito civil, vol. 6, 22.ª ed., São Paulo, Saraiva, 1997, p. 8) lembra que a figura do concubinato, embora praticamente ignorada pelo Código de 1916, não se apresentava como um fato raro na sociedade brasileira e se motivava, principalmente, por dois fatores: o recurso somente ao casamento religioso, em especial nas partes mais atrasadas do País – o que, aos olhos da lei, não passava de mero concubinato –, e a inexistência, até a Lei n.º 6.515/77, da figura do divórcio, que não permitia às pessoas separadas de fato ou desquitadas, constituir nova relação, salvo pela via concubinária.

4 Como bem sintetizam Claire Garber e Francis Theodore (Família mosaico, São Paulo, Augustus, 2000, p. 26) “hoje, em princípio, o homem não tem mais necessidade  de uma mulher que cuide do lar; e a mulher não tem mais necessidade de um homem que lhe garanta a renda necessária a sua subsistência. Logo, torna-se essencial a procura da felicidade por meio do sentimento amoroso, que é a base da união (...)”.

5 Silvana Maria Carbonera (O papel jurídico do afeto nas relações de família, in Repensando o direito de família – Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família, coord. Rodrigo da Cunha Pereira, Belo Horizonte, IBDFAM, 1999, p. 485-511), remontando a evolução do crescimento da família concubinária paralelamente à família legítima, lembra que “o engessamento do ordenamento jurídico, inicialmente com o objetivo de proteger  a família legítima, paradoxalmente acabou abrindo espaço para a diversidade. Diante do fato de, por exemplo, não ser possível a uma pessoa desquitada constituir uma nova família nos moldes legais em face da impossibilidade de dissolução do vínculo, os sujeitos ignoraram o modelo legal e deram origem a novas comunidades familiares. Buscando a realização pessoal, o ordenamento foi posto em segundo plano e os sujeitos se impuseram como prioridade. Formaram-se novas famílias, marginais e excluídas do mundo jurídico, mas ainda assim se formaram. A verdade social não se ateve à verdade jurídica e os fatos afrontaram e transformaram o Direito”.

6 “Com a Constituição de 1988, finalmente, deu-se o passo decisivo e um novo ordenamento familiar foi introduzido, através dos princípios normativos de Direito de Família inseridos nos artigos 226 e 227 da Constituição Federal.

Novo paradigma foi adotado para reger o Direito de Família – o da afetividade –, substituindo o já destronado paradigma da família patriarcal que fundamenta as normas do Código Civil de 1916.

A adoção desse novo paradigma tem um significado singular para os operadores do direito, em especial para o exercício da advocacia, pois desvenda e torna perceptível a especificidade do exercício da advocacia na área de família, na qual as questões tratam do amor e devem ser resolvidas com a aplicação da lei.

O espaço da família, em que são vividas as relações familiares reguladas pelo Direito de Família, é o espaço do amor e do afeto. Logo, amor e afeto são ingredientes fundamentais do Direito de Família (...)” (Lia Justiniano dos Santos, Uma reflexão necessária. Conflitos familiares e o exercício da advocacia, Revista do Advogado, n. 62, p. 33-40, março 2001).

7 A esse respeito, lembremos as palavras de Yussef Said Cahali (Divórcio e separação, 7.ª ed., Revista dos Tribunais, 1994, p. 15-6): “Em realidade, porém, é exatamente nesta notória mutação de conceitos básicos [da família], nestes ‘novos critérios’ a que se submetem as relações do grupo societário, especialmente agora sob a pressão apologística da relação concubinária sob a forma de ‘entidade familiar’, que reside a crise da família, na exaltação de pretensos valores novos e contingentes, e que se assinala pelo enfraquecimento gradativo da disciplina familiar, pela desconsideração paulatina do significado do vínculo matrimonial, pelo relaxamento dos costumes, pelas liberdades e concessões de toda ordem como justificativa do descarte de preconceitos tradicionais, criando com isto um quadro favorável ao aumento progressivo das separações entre os cônjuges, em clima prenhe de irresponsabilidade pela sorte da família legalmente constituída e da prole, estimuladoras de uniões estáveis, mas inevitavelmente efêmeras pela possibilidade de dissolução arbitrária, sem forma nem figura de juízo”.

8 Giselda Maria Novaes Hironaka, Família e casamento em evolução, Revista do Advogado, n. 62, p. 16-24, março 2001.

9 Vide, a título de exemplo, Família arco-íris, Folha de S. Paulo, p. C3-C4, de 31.03.2002, e Casamento cor-de-rosa, Revista Isto É de 15.01.1997 (www.zaz.com.br/istoe/comport/142507.htm).

10 No sentido da equiparação da união homossexual à união estável, destaca-se a posição pioneira do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Ap. Cível 598362655, 8.ª Câmara Cível, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, j. 1º.03.2000).

11 TJRS: CC 70000992156, 8.ª Câmara Cível, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, j. 29.06.2000; Ap. Cível 599348562, 8.ª Câmara Cível, Rel. Antônio Carlos Stangler Pereira, j. 25.11.1999; Ap.Cível 598362655, 6.ª Câmara Cível, Rel. Desa. Marilene Bonzanini Bernardi, j. 15.09.1999; AI 599075496, 8.ª Câmara Cível, Rel. Des. Breno Moreira Mussi, j. 17.06.1999. TJRJ: Ap. Cível 2000.001.10704, 3.ª Câmara Cível, Rel. Des. Antônio Eduardo F. Duarte, j. 07.11.2000.

12 Trata-se do Projeto n.º 1.151/95, que visa instituir a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo. Tal projeto, muitas vezes compreendido, equivocadamente, como sendo o reconhecimento do “casamento homossexual”, refere-se exclusivamente a direitos patrimoniais (registro de contrato de parceria civil, extensão dos efeitos da lei do bem de família a essas uniões, direitos previdenciários, direitos de sucessão, exercício de curatela), não reconhecendo outros que são deferidos à união estável,como o de alimentos e o de adoção.

13 Nesse sentido, vide Álvaro Villaça Azevedo, União de pessoas do mesmo sexo, in A família na travessia do milênio – Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família, coord. Rodrigo da Cunha Pereira, Belo Horizonte, IBDFAM, 2000, p. 141-160; Miguel Reale, O direito de família no Projeto de Código Civil: à frente da Constituição de 1988, e Ricardo Fiúza, Reforma do Código – O novo Código Civil e a união de pessoas do mesmo sexo, artigos extraídos da página eletrônica Jus Navigandi (www.jus.com.br).

14 Segundo Celso Ribeiro Bastos (Curso de direito constitucional, 18. ed., São Paulo, Saraiva, 1997, p. 62), pelo princípio da unidade da Constituição, “é necessário que o intérprete procure as recíprocas implicações de preceitos e princípios, até chegar a uma vontade unitária da Constituição. Ele terá de evitar as contradições, antagonismos e antinomias. As Constituições, compromissórias sobretudo, apresentam princípios que expressam ideologias diferentes. Se, portanto, do ponto de vista estritamente lógico, elas podem encerrar verdadeiras contradições, do ponto de vista jurídico são sem dúvida passíveis de harmonização desde que se utilizem as técnicas próprias de direito”.

15 Vide nota 1. Note-se que os textos anteriores sempre vinculam a família à idéia de casamento.

16 O direito de família e a Constituição de 1988, São Paulo, Saraiva, coord. Carlos Alberto Bittar, 1989, p. 74.

17 Segundo Anna Candida da Cunha Ferraz (Processos informais de mudança na Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais, Max Limonad, 1986, p. 45), configura-se como interpretação evolutiva aquela “dada a uma norma formulada, na origem, com base em um conceito de conteúdo elástico ou indeterminado – assim, por exemplo, ‘bons costumes, ordem pública, interesse público’ – capazes de assumir conteúdo historicamente variável e determinar, em conseqüência, variação na época de aplicação da norma”.

18 Esse, aliás, é o ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, na sua brilhante monografia Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, para quem “(...) o critério especificador escolhido pela lei, a fim de circunscrever os atingidos por uma situação jurídica – a dizer: o fator de discriminação – pode ser qualquer elemento radicado neles; todavia, necessita, inarredavelmente, guardar relação de pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta. Em outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia”.

19 A esse respeito, consultar as fontes indicadas na nota 9.

20 Nesse sentido, basta lembrar o modelo de família instituído pelas Constituições anteriores e pelo Código Civil de 1916.

21 “A família composta por casal homossexual realmente obriga, mesmo nos dias atuais, que muitas pessoas revejam seus próprios conceitos de família. Isso porque talvez esse tipo de composição seja justamente aquele que mais contundentemente coloque em xeque as visões tradicionais já tão incorporadas. Acresce-se a isso o fato de que o atendimento destes casais em terapia conjugal faz emergir o tema das relações de gênero. Assim, a maneira de demarcar o espaço feminino e do masculino nas relações heterossexuais e o modo como estas imagens se acomodam entre homossexuais consubstanciaram uma importante questão. O ponto é, então, indagar se o que está em pauta é um processo mais amplo vinculado ao questionamento dos papéis de gênero em nossa sociedade onde a mencionada busca pelo igual não é exclusivamente conferida aos pares homossexuais, podendo estar refletindo um movimento mais amplo mediado pela idéia de que homens e mulheres devem ter as mesmas condições na vida social e que na esfera da vida doméstica deveriam formar casais igualitários” (Maria Luiza Dias, Divórcio e família: a emergência da terapia familiar no Brasil, tese apresentada para obtenção do título de doutor em antropologia junto à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1999, p. 37-8).

22 Rodrigo da Cunha Pereira (Direito de família – uma abordagem psicanalítica, Belo Horizonte, Del Rey, 1997, p. 45) anota que “o Conselho Federal de Medicina, antecipando-se à Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1985, tornou sem efeito o Código 302 da Classificação Internacional de Doenças (CID), não mais considerando a homossexualidade como desvio ou transtorno sexual”.

23 Sobre homossexualidade como orientação afetivo-sexual, vide Ronaldo Pamplona da Costa, Os onze sexos – as múltiplas faces da sexualidade humana, 3.ª ed., São Paulo, Gente, 1994.

24 Citem-se, a título de exemplo, as palavras do deputado Euler de Morais, do PMDB de Goiás, no artigo Apoio de FHC à união gay causa protestos, Folha de S. Paulo de 19.05.2002, p. C-5, onde, posicionando-se contrário ao “casamento gay”, teria afirmado que isso seria “institucionalizar o perverso, a corrupção, a imoralidade, a vergonha e a nudez. Se o homossexualismo se alastrar, teremos uma sociedade doentia”. Apenas a título de esclarecimento acerca do “alastramento da homossexualidade”, remetemos à anotação de Ronaldo Pamplona da Costa, cit., sobre o índice da homossexualidade se restringir a apenas 10% da população mundial.

25 A esse respeito, vide Miguel Reale, cit.: “Há quem diga, por outro lado, que o Projeto não prevê a união estável entre pessoas do mesmo sexo, mas, mais uma vez, é a própria Constituição que a restringe a ‘união estável entre o homem e a mulher’. Assim sendo, sem reforma da Constituição não poderá ser atendida a pretensão dos homossexuais...”.

26 Anna Candida da Cunha Ferraz (cit., p. 28)  lembra que “A natureza política da norma constitucional é intrínseca à Constituição, que rege a estrutura fundamental do Estado, atribui competências aos poderes, assegura os direitos humanos, fixa o comportamento dos órgãos estatais e serve, enfim, de pauta à ação dos governos. Ao desdobrar tal conteúdo, a Constituição positiva os princípios políticos fundamentais da organização do Estado. (...) É importante lembrar, ademais, que o elemento político introduzido e cristalizado na norma constitucional não se estratifica, mas continua desenvolvendo-se e adaptando-se às novas exigências, às novas situações, pelo que é um elemento dinâmico cujo sentido atual será sempre perseguido pelo exegeta. Desta forma, a norma constitucional interpretada conforme o elemento político nela entranhado pode ganhar conteúdo novo. Em tal caso, esse elemento favorece a caracterização da interpretação constitucional como processo de mutação constitucional”. E, nesse sentido, arremata: “sempre que se atribui à Constituição um sentido novo; quando na aplicação, a norma constitucional tem caráter mais abrangente, alcançando situações dantes não contempladas por ela ou comportamentos ou fatos não considerados anteriormente disciplinados por ela; sempre que, ao significado da norma constitucional, se atribui novo conteúdo, em todas essas situações está diante do fenômeno da mutação constitucional. Se essa mudança de sentido, alteração de significado, maior abrangência da norma constitucional são produzidas por via da interpretação constitucional, então pode-se afirmar que a interpretação constitucional assumiu o papel de processo de mutação constitucional”.

 

 

 

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