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A Dignidade da Pessoa Humana e o Positivismo Jurídico

 

 

Renato Kenji Higa

Procurador do Estado atuando na Coordenadoria de Precatórios da PGE
Professor de Direito Processual Civil da UNIP
Mestrando em Direito Processual Civil pela PUC-SP

 
 

        O direito positivo nem sempre oferece todas as soluções para os problemas em geral. É preciso que o profissional do direito busque alternativas para que a paz social seja alcançada. Estamos acostumados com as soluções dogmáticas que são transmitidas e aceitas sem qualquer reflexão. É preciso repensar um pouco mais sobre a escola de direito e até que ponto os ensinamentos jurídicos são adeqüados para a nossa realidade social.
 

        Há a necessidade de se questionar alguns conceitos que não devem ser mais aplicados, uma vez que são ultrapassados ou injustos. O presente artigo tem por objetivo analisar o princípio da dignidade da pessoa humana sob o prisma do positivismo jurídico, ou seja, questionar se o direito positivo está sendo suficiente para que o homem alcance a sua plena realização.
 

        Celso Bastos [1] ensina que: “A referência à dignidade da pessoa humana parece conglobar em si todos aqueles direitos fundamentais, quer sejam os individuais clássicos, quer sejam os de fundo econômico e social.”
 

        Alexandre de Moraes [2] diz sobre a dignidade da pessoa humana: “concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas do Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é uma valor espiritual e moral, inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.”

 

        Em suma, a dignidade da pessoa humana é um princípio de importância ímpar, pois repercute sobre todo o ordenamento jurídico. É um mandamento nuclear do sistema, que irradia efeitos sobre as outras normas e princípios. A tutela de direitos pressupõe que seja respeitada a dignidade do homem. O Estado precisa tomar providências para que condições mínimas de vida digna sejam concedidas às pessoas. Não adianta adotar um ordenamento jurídico avançado se o personagem principal édeixado à sua própria sorte. A preocupação do legislador constituinte foi a de que o Estado proporcionasse condições paraque todos tivessem o direito de ter uma existência digna.
 

        O princípio da legalidade é inerente ao Estado de direito, uma vez que é basilar que todos se comportem de acordo com as normas legais. Toda a atividade fica subordinada à lei, entendida como resultado da vontade geral, que só se materializa num regime de divisão de poderes em que ela seja o ato formalmente criado pelos órgãos de representação popular, de acordo com o processo legislativo estabelecido na Constituição.

        Hans Kelsen [3] procurou estudar o Direito como sendo uma ciência e o reduziu a um conjunto de normas jurídicas destituídas de valor moral, histórico ou político, não se preocupando com a questão da justiça:
 

        “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação. Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito ?  Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito.”
 

        Karl Larenz [4] analisa o Direito e as outras ciências, chegando à conclusão de que não há possibilidade de se restringir ao positivismo puro:
 

        “Do Direito ocupa-se hoje uma série de disciplinas diferentes: a filosofia do Direito, a teoria do Direito, a sociologia do Direito, a história do Direito e a Jurisprudência (“dogmática jurídica”), para referir somente as mais importantes. Todas elas contemplam o Direito sob um diferente aspecto, e assim, de modo distinto. Tal não seria possível se o Direito não fosse na realidade um fenômeno complexo, que se manifesta em distintos planos do ser, em diferentes contextos. Tal como a língua, a literatura, a arte, mas também o Estado e a civilização tecnológica, pertence ao amplo domínio das realizações humanas; é uma parte integrante do mundo que diz respeito ao homem e só a ele; nesse sentido não pertence à natureza.”

 

        Norberto Bobbio traça considerações importantes e conclui que o Direito não pode ser reduzido ao conjunto de normas jurídicas e dá a impressão que o positivismo não teria o condão de responder às dificuldades práticas. O importante é que direito seja concebido como um ordenamento jurídico, em um sentido amplo [5]:

 

        “Dissemos que a teoria do ordenamento jurídico constitui uma integração da teoria da norma jurídica. Entretanto, devemos precisar de antemão que fomos levados necessariamente a essa integração pelos resultados a que chegamos na busca de uma definição do Direito, realizada na obra anterior. Para resumir brevemente tais resultados, digamos que não foi possível dar uma definição do Direito do ponto de vista da norma jurídica, considerada isoladamente, mas tivemos de alargar nosso horizonte para a consideração do modo pelo qual uma determinada norma se torna eficaz a partir de uma complexa organização que determina a natureza e a entidade das sanções, as pessoas que devem exercê-las e a sua execução. Essa organização complexa é o produto de um ordenamento jurídico. Significa, portanto, que uma definição satisfatória do Direito só é possível se nos colocarmos do ponto de vista do ordenamento jurídico.”

        Verificamos que a doutrina se debate sobre o próprio conceito de direito não chegando a um consenso.

        O artigo 1º, III, da Constituição Federal assegurou a dignidade humana como um fundamento do Estado Democrático de Direito. A dignidade da pessoa humana é um princípio que engloba todas as demais normas jurídicas, razão pela qual todas as normas infra-constitucionais que não se compatibilizem devem ser, conforme o caso, tidas como revogadas ou declaradas inconstitucionais. A sua importância serve de critério norteador para o criador do direito (legislador) e aplicador do direito (juiz).

 

        Não temos o medo de afirmar que qualquer norma que afronte a dignidade da pessoa deve ser afastada. Não se trata do direito alternativo. É perfeitamente possível buscarmos soluções justas no princípio da dignidade humana que está positivado na Constituição Federal.

        Se a norma jurídica ofende o sentimento do justo, não compete ao cientista do direito resolver este problema, segundo o pensamento kelseniano.
 

        É muito simplista a afirmação de que o cientista do direito deve se ater apenas ao aspecto formal do direito, sem perquirir razões de ordem valorativa. O positivismo estudado sem uma visão crítica pode levar ao excesso de dogmatismo. Aliás, as faculdades de direito não têm se preocupado devidamente com a dignidade humana. Os professores de direito têm-se limitado a transmitir conhecimentos técnicos, sem induzir a uma reflexão. É preciso declarar que nem sempre a solução preconizada pela norma jurídica é a melhor. Caso contrário, o direito será uma instrumento de manipulação. Estamos procurando respostas que não sejam simplistas. O direito serve de instrumento para que os homens que vivam em sociedade possam alcançar a felicidade. Ora, a questão é a seguinte: até que ponto o direito positivo tem oferecido soluções satisfatórias para a sociedade ?

 

        As faculdades de direito deveriam se preocupar em transmitir mais ética aos estudantes, com ênfase a valores do razoável, do justo. Pelo contrário, o que se nota atualmente, é o excesso de ensinamentos técnicos destituídos de qualquer carga valorativa. O estudante de direito acaba se tornando uma pessoa despreparada para trazer soluções a problemas sociais e se torna um mero repetidor de textos legais.
 

        É impressionante como estamos indiferentes para a solução efetiva dos problemas. Aprendemos, por exemplo, como o Direito Processual Civil é lógico e harmônico e que o processo sempre caminha para uma decisão. Aliás, é vedado ao juiz não decidir.

        Contudo, decisão não se confunde com a solução do problema. Nem sempre a decisão do juiz resolve o problema.

        Será que a concessão pura e simples de liminar de reintegração de posse contra invasores de terras, com apoio de força policial, resolve o problema ? Certamente o juiz decidiu e o problema é resolvido apenas para o proprietário do imóvel e não para a sociedade. Estes invasores de terras irão invadir outro imóvel. Será necessário a propositura de nova ação de reintegração de posse e o problema, repita-se, não é resolvido.
 

        O princípio da dignidade humana deve estar acima de qualquer filigrana jurídica. É preciso respeitar os valores não materiais, os valores espirituais, as ideologias, as concepções. Deve ser respeitado o homem como um todo.
 

        A luta pela justiça é fundamental, é a busca da consagração da dignidade humana, que se opõe o formalismo jurídico. Há um costume de fazer do profissional do direito o seguidor da letra fria da lei.
 

        A função do juiz é aplicar a lei caso concreto. Mas é possível decidir com uma visão mais ampla do que o texto pragmático da lei. Basta olhar para o direito como um sistema jurídico e ter vontade de resolver o problema.
 

        A lei é uma das fontes do direito, mas que deve ser interpretada em função de um valor maior, que é a justiça.
 

        O que faz a grandeza do advogado, do promotor ou do juiz é a luta pela paz social e não pelo cumprimento incondicional da lei injusta. A lei é uma das fontes do direito, contudo existem outras. Se formos mais fundo vamos encontrar a fonte das fontes do direito, que é o respeito à pessoa humana.
 

Bibliografia:

BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra, “Comentários à Constituição do Brasil”, 1o e 2 volumes, Editora

     Saraiva, 1988.

BOBBIO, Norberto, “Teoria do Ordenamento Jurídico”, Editora UNB, 10ª edição.

KELSEN, Hans, “Teoria Pura do Direito”, Editora Martins Fontes, São Paulo/SP, 1999.

LARENZ, Karl, “Metodologia da Ciência do Direito”, Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª edição, Lisboa.

MORAES, Alexandre, “Direito Constitucional”, Editora Atlas, 5ª edição, São Paulo/SP.

 


[1] “Comentários à Constituição do Brasil, 1º Vol. , Editora Saraiva, pg. 425.
[2] “Direito Constitucional” , Editora Atlas, 5ª edição, São Paulo/SP, pg. 66.
[3]“Teoria Pura do Direito”, Editora Martins Fontes, pg.1
[4]“Metodologia da Ciência do Direito”, 3ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, traduzido por José lamego, pg.
     261.
[5]“Teoria do Ordenamento Jurídico”, Editora UNB, 10ª edição, traduzido por Maria Celeste Cordeiro dos Santos.

 
                                                                                          Retirado de: http://www.teiajuridica.com