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Aspectos atuais do regime de responsabilidade por substituição no ICMS: comentários à decisão proferida pelo STF na ADIN nº 1851-4.

A inconstitucionalidade do regime de sujeição passiva por substituição para frente no ICMS

 

 

Ricardo Adati
advogado em São Paulo, especialista em Direito Tributário e pós-graduando em Direito Processual Civil pela PUC/SP

 

 

APRESENTAÇÃO

            Com o advento da Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993, que inseriu o parágrafo 7º ao art. 150 da Constituição Federal, o instituto da sujeição passiva por substituição passou assumir posição de destaque no cenário jurídico nacional. É que o dispositivo referido ao determinar que "A lei poderá atribuir a sujeito passivo da obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga caso não se realize o fato gerador presumido", acabou por introduzir substancial modificação na dinâmica da incidência tributária desvirtuando-a de maneira tal a ponto de revolucionar o momento do surgimento da regra-matriz de incidência nos moldes idealizados por Alfredo Augusto Becker, pois, segundo ele pontifica em se verificando a ocorrência da subsunção, isto é, quando o fato - aqui considerado o fato jurídico tributário, aquele que tem o condão de propagar efeitos de direito cujo plano eficacial encontra-se relacionado à instituição do tributo -, revelar absoluta identidade com o antecedente normativo (hipótese tributária) faz exsurgir a regra-matriz de incidência tributária. Como outrora ponderou o ilustre juriscultor ao se concretizar o fato, instala-se, automática e infalivelmente, o laço abstrato por intermédio do qual o sujeito ativo torna-se titular do direito subjetivo público de exigir a prestação, conquanto que o sujeito passivo ficará na contingência de cumpri-la. Essa dinâmica, portanto e conforme afirmado, restou flagrantemente alterada com a introdução no ordenamento jurídico da Emenda Constitucional n. 3/93 que pretendeu atribuir foros de constitucionalidade ao regime de responsabilidade tributária por substituição. E é essa alteração, com as conseqüências que dela emanam, que suscita acaloradas discussões a respeito das quais pende sucessão de decisões harmônicas dos Tribunais pátrios. A despeito disso, procurarei, acerca do tema, delinear algumas conclusões que pude atingir em função da militância profissional neste sítio. Não tenho a pretensão de, com essa monografia, esgotar o tratamento de todas as implicações decorrentes do instituto em análise, mas apenas fomentar o fértil campo de discussões concernentes ao tema. Por isso, evidentemente, não se cuida de um trabalho daqueles que tenham sido preparados com antecedência onde se pudesse dispor de maiores profusões de idéias. Assim, é que desde já, apresento minhas escusas pelas deficiências que, aqueles que com ele se depararão, certamente irão encontrar.


I - INTRODUÇÃO

            Muito se tem debatido acerca da constitucionalidade da substituição tributária "para frente", fenômeno que se opera quando uma terceira pessoa, não relacionada com o fato jurídico tributário, geralmente o estabelecimento industrial, é responsável pelo adimplemento da obrigação em que figura como sujeito passivo comerciante atacadista ou varejista, que coloca em circulação a mercadoria por ele produzida. Consubstancia o caso, verbi gratia, as indústrias automobilísticas que fazem as vezes do varejista no cumprimento da obrigação principal, efetuando o recolhimento, por ocasião da saída do produto do estabelecimento industrial, do tributo incidente na operação que se presume ocorrer com o consumidor final.

            A sistemática de sujeição passiva por substituição "para frente" relativa ao ICMS foi inserida co contexto jurídico pela Lei Complementar n. 44, de 7 de Dezembro de 1983 que, ao acrescentar o § 3º ao art. 6º do Decreto-lei n. 406, de 31 de Dezembro de 1968, autorizou a lei estadual a atribuir a condição de responsável: "a) ao produtor industrial ou comerciante atacadista, quanto ao imposto devido pelo comerciante varejista; b) ao produtor ou industrial, quanto ao imposto devido pelo comerciante atacadista e pelo comerciante varejista". A mencionada Lei Complementar houve por bem adicionar ainda os §§ 9º e 10 ao art. 2º do Decreto 406/68, que dispôs sobre a base de cálculo do ICMS nos casos concernentes à substituição tributária "para frente". Com a promulgação do Diploma Fundamental de 1988, estabeleceu-se em seu art. 155, § 2º, XII, b, que compete à lei complementar "dispor sobre substituição tributária". Em razão do não exercício da competência legislativa no que se refere à edição de lei complementar que tratasse da matéria os Estados-Membros, com supedâneo no art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, fizeram editar o Convênio ICMS 66/88, que regulou a matéria estabelecendo que "os Estados poderão exigir o pagamento antecipado do imposto, com a fixação, se for o caso, do valor da operação ou da prestação subseqüentes, a ser efetuada pelo próprio contribuinte". Posteriormente, o Convênio ICMS 107/89 anteviu outra situação a ser orientada pelo regime de substituição tributária "para frente" ao determinar na Cláusula Primeira que "nas operações com veículos novos classificados no Código 8701.10.99.00 e nas posições 9702 a 9706 e 8709 do NBM – Sistema Harmonizado – fica atribuída ao estabelecimento industrial fabricante a responsabilidade pela retenção e recolhimento do ICMS devido na subseqüente saída...".

            Carecendo de substrato de natureza constitucional procurou-se atribuir fundamento de validade à indigitada figura da substituição tributária "para frente" com a edição da Emenda Constitucional n. 3, de 17 de Março de 1993, que introduziu ao art. 150 da Carta Magna o dispositivo seguinte: "A lei poderá atribuir a sujeito passivo da obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga caso não se realize o fato gerador presumido".

            Finalmente, veio a lume a Lei Complementar n. 87, de 13 de Setembro de 1996 que dispõe sobre o ICMS, inclusive da substituição tributária. Em verdade, trata-se de norma geral de Direito Tributário que possui dois fundamentos constitucionais, a saber: a) o art. 146 que, ao disciplinar determinados campos de incidência, tem como escopo resolver conflitos de competência, assim como definir o fato jurídico tributário, a base de cálculo e os contribuintes do ICMS; b) o art. 155, § 2º, XII, à medida que regulamenta as matérias elencadas neste inciso.

            Consiste, destarte, a Lei Complementar 87/96 norma geral de alcance nacional destinada especificamente a regular o ICMS previsto no art. 155 da Constituição Federal, atribuindo estrutura normativa a esse tributo e revogando todas as leis complementares e convênios anteriores, com exceção da Lei Complementar n. 24/75.

            Os arts. 6º ao 10 da aludida Lei Complementar, dispõem sobre a responsabilidade tributária por substituição. O art. 6º preconiza: "Lei estadual poderá atribuir a contribuinte do imposto ou a depositário a qualquer título a responsabilidade pelo seu pagamento, hipótese em que o contribuinte assumirá a condição de substituto tributário. § 1º. A responsabilidade poderá ser atribuída em relação ao imposto incidente sobre uma ou mais operações ou prestações, sejam antecedentes, concomitantes ou subseqüentes, inclusive ao valor decorrente da diferença entre alíquotas interna e interestadual nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, que seja contribuinte do imposto. § 2º. A atribuição de responsabilidade dar-se-á em relação a mercadorias ou serviços previstos em lei de cada Estado".

            Pois bem, delimitadas as normas que regem a matéria passarei a analisá-las sistematicamente de modo a verificar se estão ou não em conformidade com os arquétipos constitucionais.


II – A EMENDA CONSTITUCIONAL 3/93 – A DIVERGÊNCIA DE POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS

            É sabido que o legislador não dispõe de liberdade para moldar o ICMS de acordo com as suas conveniências. Antes, deve obedecer fielmente os contornos constitucionais que orientam esse e qualquer outro tributo.

            Essa observação transcende a instituição do tributo e atinge também a estipulação de quem figurará como sujeito ativo e sujeito passivo da relação jurídica tributária quando esta surgir com a ocorrência do fato jurídico tributário.

            No magistério de Roque Antônio Carrazza, "Ao eleger o sujeito passivo da obrigação tributária o legislador deve obedecer a uma regra básica: só poderá onerar quem participou da ocorrência do fato típico. Não pode fazer recair a carga tributária sobre pessoa estranha ao fato gravado pela incidência fiscal. Noutro giro verbal, ninguém pode ser compelido pela lei a pagar tributo sem que tenha participado, de algum modo, da realização do fato imponível. Isto se aplica também quando o legislador tributário cria a figura da responsabilidade tributária. A eleição da responsabilidade pelo débito tributário recai – é certo – sobre quem não tem relação pessoal e direta com o fato imponível, desde que, porém, vinculada, de algum modo, a ele (v.g o empregador, que é responsável pelo recolhimento do imposto sobre a renda na fonte, incidente sobre o salário que para a seu empregado). Não é dado ao legislador escolher o responsável tributário fora da norma jurídica tributária. Exemplificando para melhor esclarecer, não lhe é permitido onerar com a carga econômica do ICMS quem não se relacionou, de nenhum modo, com a prática da operação mercantil que fez nascer este tributo".1

            Conforme alhures salientado, uma das formas de responsabilidade é a substituição. Nela, o contribuinte substituto, apesar de não ter realizado o fato jurídico tributário, é eleito pela lei como o real sujeito passivo da relação jurídica tributária, sendo responsável não só pelo cumprimento da obrigação principal (pagamento do valor correspondente) como também pela realização das atividades que consubstanciam os deveres instrumentais do contribuinte substituído. É importante ressaltar, todavia, que nesses casos o contribuinte substituto deve, de algum modo, estar vinculado ao fato que realizado no mundo das realidades materiais tem o condão de fazer exsurgir a incidência da norma anteriormente prevista.

            No direito pátrio, o mecanismo da substituição tributária subdivide-se em duas espécies: a) substituição tributária "para trás"; e b) substituição tributária "para frente".

            O que nos interessa no momento é tratar da substituição tributária "para frente", já que ela é quem, atualmente, desencadeia maiores conflitos.

            Sobre o tema, duas posições doutrinárias, pela robustez de seus argumentos, merecem registro: a) o entendimento de Ricardo Lobo Torres; e b) o entendimento de Roque Antônio Carrazza.

            Segundo Ricardo Lobo Torres, "Grande parte da doutrina brasileira vem considerando inconstitucional a Emenda Constitucional n. 3/93, mantendo-se firme na condenação que antes, juntamente com alguns tribunais federais, já havia feito da Lei Complementar 44/83. São os seguintes os principais argumentos utilizados contra a legitimidade constitucional da substituição "para frente": a) constituiria uma obrigação tributária sem fato gerador, o que ofende o princípio da legalidade e contraria a própria fenomenologia do nascimento da relação jurídica tributária no ICMS; b) importaria em desrespeito ao art. 128 do CTN, pois inexiste vínculo entre o industrial e o varejista; c) haveria ofensa ao princípio da não-cumulatividade, pois não se sabe o valor real da venda ao consumidor final no momento prévio da saída da mercadoria do estabelecimento industrial.

            Mas há também, apoiada em melhores razões, forte corrente jurisprudencial que conclui no sentido de constitucionalidade da substituição "para frente".2

            E, continua o insigne jurista "O primeiro e mais difícil problema que se coloca é o da inconstitucionalidade da norma constitucional. Sempre se entendeu que a norma constitucional goza da presunção de constitucionalidade. Depois de divulgação da obra de Bachofen, que admitia a possibilidade de ser inconstitucional a norma da própria Constituição nos casos excepcionais de conflito com o direito supralegal, e da promulgação do art. 60, § 4º, da Constituição de 1988, que dispõe sobre as cláusulas pétreas, tornou-se moda no Brasil a presunção oposta de que as emendas constitucionais e as próprias normas legais ficam sob a suspeita de ilegitimidade constitucional. No caso específico da EC 3/93, relativamente ao tema da substituição do ICMS, inúmeros autores vieram a considerá-la inconstitucional.

            A substituição tributária, por implicar criação de ônus para terceiros no intuito principal de aliviar o trabalho do Fisco e por se apoiar muitas vezes no mecanismo de repercussão econômica do imposto, tem inegavelmente imbricação no texto fundamental. Mas a presunção é a de sua constitucionalidade. Até porque inexiste um conceito jurídico fechado e pré-constitucional de substituição tributária que a torne infensa às definições e escolhas do constituinte. Resta, portanto, investigar se a norma da EC 3/93 pode ser considerada como "tendente a abolir os direitos e garantias fundamentais", especificamente os representados pelos princípios constitucionais da legalidade, capacidade contributiva e não-cumulatividade".

            Após tecer uma série de considerações sobre o instituto em exame analisado em face dos postulados cardeais que norteiam o subsistema constitucional tributário, o ilustre Professor da UERJ conclui que: "a) a antecipação do tributo entende com o tempo de pagamento e não com o com o tempo de ocorrência do fato gerador e, por isso, não fere o princípio da legalidade e é largamente empregado no direito positivo com referência a outros impostos, inclusive na própria substituição (imposto de renda); b) o substituto e o substituído mantém vínculo econômico do processo de circulação de mercadorias e assim pode a lei estender-lhes o vínculo jurídico da substituição, desde que garantidos o reembolso e a restituição do indébito, em homenagem ao princípio da capacidade contributiva e à idéia de justiça fiscal; c) a substituição "para frente" se compagina perfeitamente com o princípio constitucional da não-cumulatividade, eis que preserva a repercussão legal obrigatória ínsita na estrutura da incidência do ICMS, ao determinar a base de cálculo específica para a operação praticada pelo substituído".3

            Rebatendo essa posição, o Professor Roque Antônio Carrazza, com a lucidez que lhe é peculiar, verbera "É certo que, pretendendo contornar estes obstáculos jurídicos a Emenda Constitucional 3/93 acrescentou o parágrafo 7º ao art. 150 da CF:(...). Aparentemente, portanto, agora é possível a tributação antecipada, inclusive por meio de ICMS, desde que se garanta ao contribuinte a devolução do indébito tributário na hipótese de, a final, inocorrer o fato imponível. Temos para nós, entretanto na trilha do que adiantamos no Capítulo II -, que o referido § 7º é inconstitucional, a ninguém, por isso, podendo obrigar.

            Deveras, a Emenda Constitucional 3/93 "criou" a absurda figura da responsabilidade tributária por fato futuro. O preceito em tela "autoriza" a lei a fazer nascer tributos de fatos que ainda não ocorreram, mas que, ao que tudo indica, ocorrerão. Noutros termos, permite que a lei crie presunções de acontecimentos futuros e, com elas, faça nascer obrigações tributárias.

            Ora, o art. 1º da EC 3/93 é inconstitucional, porque atropela o princípio da segurança jurídica, em sua dupla manifestação: certeza do direito e proibição do arbítrio. Este princípio, aplicado ao Direito Tributário, exige que o tributo só nasça após a ocorrência real (efetiva) do fato imponível. É sempre bom reafirmarmos que o princípio da segurança jurídica diz de perto com os direitos individuais e suas garantias. É, assim, "cláusula pétrea" e, nessa medida, não p