I. Introdução
O presente trabalho tem por objeto o estudo da
constitucionalidade das interceptações do fluxo de comunicações realizadas por
sistemas de informática.
A análise do tema se dará à luz do art.1o, Parágrafo
Único, da Lei 9296/96, frente ao que dispõe o inciso XII, parte final, do
art.5o da Constituição Federal, que prevê, dentre os direitos e garantias
fundamentais, a inviolabilidade e o sigilo da correspondência e das
comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas,
"salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a
lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual
penal".
A relevância do tema decorre das diferentes interpretações que o texto
constitucional franqueia, dos diversos e conflitantes entendimentos
doutrinários sobre o tema e do fato de que a citada lei, que regulamentou o
dispositivo constitucional em foco, somente veio à lume 12 anos após a
promulgação da Constituição, quando a realidade social-tecnológica era bem
diversa daquela existente à época da promulgação da Constituição.
A abordagem do tema, portanto, terá por embasamento: o
objetivo da referida norma constitucional (garantia à inviolabilidade das
comunicações), a razão de ser da norma de exceção contida no texto (interesse
social de investigação criminal) à luz do princípio da proporcionalidade
(valoração entre os fins e os meios), a razão da regra de exceção em exame ser
dirigida à apenas um (ou alguns) meio(s) de comunicação e, finalmente, a
análise da constitucionalidade ou não do dispositivo da lei 92996/96 que
regulou o texto constitucional em exame, ampliando e estendendo a possibilidade
de interceptação prevista pelo constituinte originário às comunicações mantidas
por sistemas de informática, inobstante o caráter excepcional da regra
constitucional e o fato do direito excepcionado se traduzir em cláusula
pétrea.
II. O Tema e a Doutrina
O teor da parte final do dispositivo constitucional em
questão-"salvo, no último caso"- assim como a sua regulamentação pelo
artigo 1o, parágrafo único da lei 9296/96, vem sendo objeto de divergência
doutrinária, no que tange a extensão da referida regra de exceção e a
constitucionalidade da sua norma regulamentadora.
O dispositivo constitucional em comento prevê que:
"XII. é inviolável o sigilo da correspondência e das
comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no
último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer
para fins de investigação criminal ou instrução processual penal".
A sua norma regulamentadora, por sua vez, dispõe que:
"Art.1. A interceptação das comunicações telefônicas,
de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução
processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz
competente da ação principal, sob segredo de justiça.
Parágrafo único. O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de
comunicações em sistemas de informática e telemática."
A doutrina especializada no assunto diverge sobre a constitucionalidade do
aludido parágrafo único. Para Vicente Greco Filho , a norma citada é
inconstitucional porque a expressão constitucional "no último caso"
somente se refere às comunicações telefônicas. Portanto, afirma o referido
jurista que "a Constituição autoriza, nos casos nela previstos, somente a
interceptação de comunicações telefônicas, e não a de dados e muito menos as
telegráficas...", razão pela qual não poderia a sua lei regulamentadora
estender a posibilidade de interceptação do fluxo de comunicações em sistemas
de informática ou telemática.
Diverge de Vicente Greco Filho a doutrina do ilustre
Professor e Procurador de Justiça Lenio Streck , que não vislumbra
inconstitucionalidade no parágrafo único do art.1 da Lei 9296/96. Segundo
afirma, "o parágrafo único, ao estender a possibilidade de interceptação
também ao fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática, apenas
especificou que a lei também atingirá toda e qualquer variante de informações
que utilizem a modalidade comunicações telefônicas. Ou seja, objetivou a lei estender
a aplicação das hipóteses de interceptação de comunicações telefônicas a
qualquer espécie de comunicação, ainda que realizada mediante sistemas de
informática, existentes ou que venham a ser criados, desde que tal comunicação
utilize a modalidade comunicações telefônicas. Explica o jurista sulista que o
constituinte, ao utilizar a expressão comunicações telefônicas, o fez em
sentido amplo, razão pela qual conclui que, "com o avanço da informática,
permite-se a prática de comunicações via computador, por exemplo a Internet,
cujo veículo é o telefone". Assim, as comunicações "implementadas por
meio de faxmodem, sendo este um dispositivo que permite a transmissão e a
recepção de informações digitais de um computador para o outro, através de linha
telefônica, podem ser encartadas na previsão de telemática, prevista no
parágrafo único do art.1 da Lei 9296/96. No mesmo sentido do citado jurista,
afirmando a Constitucionalidade da Lei em exame, é a doutrina de Alexandre de
Moraes , João Roberto Parizatto e Damásio de Jesus .
Contrária à aludida doutrina, ou seja, também pela
inconstitucionalidade do referido parárgrafo único, é o enfoque de Celso
Ribeiro Bastos , que interpreta o aludido dispositivo constitucional de forma
mais rígida (ou literal). Afirma o consagrado jurista que "o atual Texto
procurou encontrar uma forma de não tolher de maneira absoluta a utilização de
meios que importem na violação da correspondência. Parece mesmo haver muitas
hipóteses em que o interesse social sobreleva ao particular. É assim que o
Texto acaba por permitir a violação da correspondência em sentido amplo, mas
exige a satisfação prévia de quatro requisitos: Em primeiro lugar, é necessário
estar-se diante de uma comunicação telefônica. Para as demais formas
comunicativas, a Constituição não abre qualquer ressalva." Significa
dizer, portanto, que para Celso Bastos, a interceptação somente é permitida em
se tratando de comunicação telefônica em sentido estrito, assim como a doutrina
de Vicente Greco Filho.
III. A Questão sob o Enfoque da Interpretação
Objetiva versus a Razoável (proporcionalidade + finalidade da norma)
O tema em questão tanto pode ser objeto de exame sob um
prisma objetivo/legalista ou pelo da razoabilidade. Sob a ótica objetiva e
literal, não duvidamos que o texto em comento teve a intenção de excepcionar
apenas o sigilo das comunicações telefônicas, estas consideradas em sentido
estrito. Certamente, não pensou o nosso constituinte que comunicações
telefônicas pudessem ter sentido tão amplo como o sugerido pelo respeitado
professor Lênio Streck, a ponto de abranger toda e qualquer forma de
comunicação futura que utilizasse, ainda que indiretamente, o sistema
telefônico, como o e-mail. Em 1988, não se pensava em Internet no Brasil,
mormente com a dimensão que esta veio a atingir, servindo não só para a
integração entre seus usuários, mediante troca de dados e como veículo de
comunicação, mas também para o chamado comércio eletrônico (e-commerce) e,
infelizmente, como instrumento para a criminalidade, dando origem a uma nova
modalidade de crimes, denominados virtuais, ou cibercrimes.
Por outro lado, esta nova realidade, impensada à época da
promulgação da Constituição, não pode ser simplesmente ignorada pelo
intérprete, o qual deve sempre buscar a interpretação do texto constitucional
com vistas à finalidade da norma e tendo por meta a sua plena eficácia. Para
tanto, é indispensável que na interpretação sejam considerados todos os
elementos e transformações que o tempo impôs à sociedade, de forma a adequar
conceitos antes inexistentes e impensados que, de alguma forma, influem na
regra constitucional.
Com efeito, no caso, acolher a tese (simplista) de que a
exceção constitucional contida na expressão "salvo no último caso",
somente permite a interceptação do fluxo das comunicações telefônicas, sendo
vedada toda e qualquer interceptação de outras formas (novas) de comunicação, é
privilegiar, exclusivamente, a interpretação literal e atemporal do Texto e
ignorar não só a finalidade da norma, mas principalmente a necessária sincronia
que deve existir entre o direito e a evolução social, especialmente quando
decorrente do avanço tecnológico. Daí o brocardo "jus ex facto
oritur" (o direito nasce no fato).
De fato, é sabido que o direito nem sempre acompanha, em
sincronia, o ritmo da evolução social, mormente quando capitaneada pelas
inovações tecnológicas, cada vez mais velozes. Fantasias do passado, antes
possíveis somente nos desenhos animados futuristas, tornam-se realidade e
demonstram que a ficção científica não é mais coisa dos filmes e que nada
parece impossível ao homem. Impossível, sim, é exigir que um texto legal seja
capaz de prever, minuciosamente, todas as inovações que, de alguma forma, terão
repercussão no mundo jurídico. Na realidade, a sincronia entre o direito e a
sociedade tecnológica atual depende, cada vez menos, da lei e mais do exegeta.
A rapidez das evoluções tecnológicas demonstra que a lei deve cada da vez mais
ser menos detalhista, minuciosa e mais aberta, ampla, permitindo que os
operadores do direito desempenhem a função de adequar tais inovações no tempo,
garantindo assim a plena eficácia da norma.
Vale lembrar, neste ponto, o que diz a doutrina de Paulo
Dourado de Gusmão , in verbis:
"O direito resulta, também, de reflexão intelectual,
seja do legislador, seja do jurista, seja do juiz, provocada ou influenciada
por fatos sociais: disciplinando-os, ordenando-os, incriminando-os. Lenta,
gradual, é a introdução na ordem jurídica de novos princípios e de normas
exigidas pelas novas situações histórico-sociais, devido a ser o direito, por
natureza, conservador. Daí o desajustamento freqüente que existe entre a ordem
jurídica e a ordem social: O direito, em comparação com as demais formas de
cultura (arte, moral, literatura, cinema, costumes etc.), está sempre em atraso
em relação às transformações sociais." (grifo nosso)
Com efeito, impõe-se que a norma constitucional em apreço,
assim como a sua norma regulamentadora, sejam interpretadas conforme a
realidade social hodierna. Se a evolução tecnológica criou novas formas de
comunicação antes impensadas pelo ordenamento jurídico, é razoável que o antigo
sentido conferido àquelas normas jurídicas então existentes seja repensado e
adequado à nova realidade, garantindo, repita-se, a plena eficácia da norma. Sobre
a influência do tempo e as inovações sociais que seu passar fazem repercutir
sobre a interpretação das lei, confira-se a doutrina de Luis Roberto Barroso :
"A interpretação dos fenômenos políticos e jurídicos não é um exercício
abstrato de busca de verdades universais e atemporais. Toda interpretação é
produto de uma época, de um momento histórico, e envolve os fatos a serem
enquadrados, o sistema jurídico, as circunstâncias do intérprete e o imaginário
de cada um. A identificação do cenário, dos atores, das forças materiais
atuantes e da posição do sujeito da interpretação constitui o que se denomina
de pré-compreensão."
Carlos Maximiliano , por sua vez, doutrina que:
"A Constituição aplica-se aos casos modernos, não
previstos pelos que a elaboraram. Faz-se mister supor que os homens incumbidos
da nobre tarefa "de distribuir os poderes emanados da soberania popular e
de estabelecer preceitos para a perpétua segurança dos direitos da pessoa e da
propriedade tiveram a sabedoria de adaptar a sua linguagem às emergências
futuras, tanto como às presentes...Cumpre ao legislador e ao juiz, ao invés da
ânsia de revelar inconstitucionalidades, mostrar solicitude no sentido de
enquadrar na letra do texto antigo o instituto moderno."
III. A Relevância da Interceptação do Fluxo das
Comunicações via Informática- a Internet- e a Lacuna Constitucional
O cenário moderno tem à sua frente realidade social
completamente diversa daquela de quando promulgada a Constituição, há 14 anos
atrás. A evolução tecnológica fez surgir talvez a maior inovação do século 20,
a Internet. Sua repercussão e relevância na sociedade é bem dimensionada pelos
números estatísticos. Segundo dados da revista Veja Digital, edição especial,
dez/2000, estima-se que em 2000 a Internet no Brasil tenha ultrapassado os 10
milhões de usuários. No mundo, a previsão é de que, dos 44 milhões de
internautas de 1995, teremos até o fim do ano 2000, 349 milhões de usuários,
chegando a 766 milhões em 2005.
Isso significa que, enquanto o telefone precisou de 74
anos para conquistar seus primeiros 50 milhões de usuários, a internet
conquistou o mesmo número em apenas 4 anos, conforme matéria publicada na
revista Ícaro, no 183, de nov/99.
Tal avanço tecnológico põe em relevo o dispositivo constitucional
em exame, que garante o sigilo das diversas modalidades de comunicações que
menciona, exceto o da telefônica, a qual é passível de interceptação para fins
de investigação criminal ou instrução processual, na forma da Lei 92996/96.
Indaga-se: Por que razão teria o legislador constituinte excepcionado, dentre
as modalidades de comunicação que menciona, apenas a telefônica? Certamente,
porque o telefone era, à época da elaboração do Texto, dentre os diversos meios
de comunicação então existentes, o mais suscetível de uso potencial pela
criminalidade e o que melhor permitiria a interceptação e captação da
conversação, sendo muito pouco provável que as demais modalidades de
comunicação mencionadas (e previstas naquele momento histórico) pelo dispositivo,
correspondência epistolar, telegrama ou de dados, fossem de qualquer serventia
ao crime.
Com efeito, se a exceção constitucional é voltada para o
interesse social da persecução criminal, que se coloca acima do interesse
individual do sigilo da comunicação ou mesmo da privacidade, evidente que a
regra de exceção somente poderia ser dirigida àquela modalidade que,
potencialmente, poderia melhor servir à criminalidade.
Não previu, entretanto, o legislador constitucional, que o
futuro cederia espaço a nova e revolucionária modalidade de comunicação, qual
seja, a realizada por sistemas de informática, em especial o e-mail, via
Internet. Trata-se, com efeito, de verdadeira lacuna constitucional. A lacuna
constitucional, segundo doutrina Celso Bastos, é dividida por Loewenstein em
descoberta e oculta. "A descoberta se verifica quando o poder constituinte
esteve consciente da necessidade de uma regulação jurídico-constitucional, mas
por determinadas razões, preferiu não fazê-lo. A oculta se produz quando ao criar-se
a Constituição não existia ou não se podia prever a necessidade de regular
normativamente uma situação determinada." Para restar efetivamente
caracterizada a lacuna constitucional, menciona o jurista, em continuação, os
seguintes pressupostos necessários: "Primeiro que a situação obviamente
não esteja prevista na Constituição. Segundo, que exista uma outra situação
análoga à anterior que torne a omissão relativamente à primeira insatisfatória.
Isto é: nos cause uma sensação de falta de razoabilidade. E, finalmente, que
este vazio não possa ser coberto pela via de interpretação, ainda que
extensiva."
É esta a hipótese em exame. Primeiro, a situação não se
encontra prevista na Constituição, não porque faltou interesse ao constituinte,
mas porque era imprevisível tal tecnologia à época de sua elaboração. Segundo,
existe situação análoga tratada pela Constituição, qual seja, a possibilidade
de interceptação das comunicações telefônicas para fins de investigação
criminal, a qual torna a omissão, no que tange a falta de previsão de
interceptação de e-mail, insatisfatória ou mesmo irrazoável. Isso porque, se a
comunicação por sistemas de informática é tão ou mais suscetível de uso pela
criminalidade do que o próprio telefone, e considerando que a finalidade da
norma de exceção é garantir o interesse público da persecução criminal, não há
razoabilidade em excluir desta regra tal modalidade de comunicação. Finalmente,
como disse o citado jurista, não há possibilidade, como já demonstramos acima,
da referida lacuna ser "coberta pela via de interpretação, ainda que
extensiva". De fato, o texto em foco apenas se referiu às comunicações
telefônicas, com as quais não se confundem àquelas mantidas por sistemas de
informática. Em outras palavras, a solução do problema não depende da
interpretação do texto constitucional, eis que não há margem de interpretação
quando se está diante de uma lacuna constitucional. A solução está, na verdade,
no campo da integração legal realizada pela lei 9296/96, que aparentemente
supriu a referida lacuna. Resta saber, entretanto, se é constitucional o
parágrafo único do art.1o da Lei 9296/96.
V. Necessidade de uma Nova Proposta Doutrinária
O exame das doutrinas sobre o tema em estudo demonstrou
que inexiste, ainda, uma solução ou resposta jurídica satisfatória sobre o
problema da constitucionalidade do art.1o, parágrafo único da lei
9296/96.
De fato, constatamos ser insuficiente a proposta
doutrinária de estender o sentido da expressão comunicações telefônicas a todos
os meios de comunicação que, de algum modo, utilizem o sistema telefônico como
suporte, como ocorre com as comunicações implementadas por meio de faxmodem.
Tal proposta, além de conferir uma amplitude conceitual forçosa à expressão
comunicação telefônica, não resolve o problema como um todo, na medida em que,
na realidade atual, as comunicações pela Internet utilizam cada vez menos o
faxmodem, que vem sendo substituído pelas chamadas bandas largas, cuja conexão
se dá via cablemodem, sinal de rádio ou mesmo via satélite. Não há, nestes
casos, qualquer uso do sistema de telefonia, o qual, com o avanço tecnológico,
vai ficando cada vez mais obsoleto.
Por outro lado, a doutrina que sustenta a
inconstitucionalidade do dispositivo em exame se demonstra irrazoável, porque
amparada por uma visão exclusivamente literal do texto constitucional, ignora a
finalidade da regra de exceção nele contida e mais, ignora a própria evolução
tecnológica, que desenvolveu veículo de comunicação inexistente à época da
promulgação da Constituição, e que, por isso, deve ser considerado pelo exegeta
com a seguinte indagação: existisse ao tempo da lei, seria razoável supor que o
legislador ignorasse, propositadamente, tal tecnologia, ou agiria ele como agiu
o legislador que confeccionou a Lei 9294/96? Recorda, neste ponto, Carlos
Maximiliano, citando Wach, Binding e Kohler, que "até mesmo aqueles que
ainda reduzem a exegese a aum pesquisa de vontade, não mais procuram saber só o
que o legislador quis; acham dever cumprir-lhe também saber o que ele queria,
se vivesse na atualidade e se lhe deparasse a hipótese em apreço."
Exige-se, portanto, uma nova proposta sobre o tema.
VI. Nossa Opinião
A análise da constitucionalidade do art.1o, parágrafo
único da Lei 9296/96, exige o enfrentamento de alguns óbices. Primeiro, saber
se, em se tratando de regra de exceção, seria possível ao legislador
infraconstitucional ampliar-lhe o sentido, permitindo, além da interceptação
das comunicações telefônicas, também a mantida por meio de sistemas de
informática. Segundo, considerando que o direito ao sigilo das comunicações se
insere dentre os direitos e garantias individuais do art.5o do Texto, portanto,
cláusula pétrea, seria possível a sua modificação, seja para ampliar ou reduzir
a sua extenção? Finalmente, indaga-se se a solução proposta seria a escolhida
pelo legislador constituinte se se confrontasse com a hipótese em apreço.
À primeira indagação responde-se que sim. Em que pese a
regra de hermenêutica de que a norma de exceção deve ser interpretada
restritivamente, tal regra não é absoluta. Na realidade, negar a possibilidade
de extensão de direito previsto em norma de exceção, muitas vezes, significa
retirar-lhe a própria eficácia e esvaziar o seu conteúdo, o que, aí sim,
violenta os princípios elementares da hermenûtica. Confira-se o que diz, a
respeito, a autoridade de Carlos Maximiliano, in verbis: "Interpretam-se
estritamente os dispositivos que instituem exceções às regras gerais firmadas
pela Constituição (...) Na dúvida, siga-se a regra geral. Entretanto em Direito
Público esse preceito não pode ser aplicado à risca: O fim para que foi inserto
o artigo na lei, sobreleva a tudo. Não se admite interpretação estrita que
entrave a realização plena do escopo visado pelo texto. Dentro da letra
rigorosa dele procure-se o objetivo da norma suprema; seja este atingido, e
será perfeita e exegese." Constata-se, portanto, que o fato de estarmos
diante de uma norma de exceção não impede que o exegeta ou mesmo o legilador
infraconstitucional, como no caso, amplie o seu sentido, desde que tal medida
seja necessária e se justifique frente à finalidade da própria regra de
exceção.
Ora, como já dissemos, não há dúvida de que a exceção ao
direito de sigilo das comunicações contida no texto constitucional tem por
escopo garantir o interesse público da persecução criminal, o qual está acima
do direito individual e relativo do sigilo. Diz a parte final do inciso em
comento, "salvo, no último caso (...) na forma que a lei estabelecer para
fins de investigação criminal ou instrução processual penal." Com efeito,
afiguranos razoável que, se o sentido ou finalidade da norma de exceção foi
garantir o interesse público citado, e se as comunicações mantidas por sistemas
de informática não foram abrangidas pela exceção constitucional, porque inexistiam
ao tempo da elaboração de seu texto, pode e deve, sim, seu sentido ser
ampliado, de forma a garantir a eficácia e aplicabilidade do interesse público
tutelado pela Constituição.
A segunda indagação, qual seja, o óbice das cláusulas
pétreas, também não é motivo para retirar a constitucionalidade do dispositvo
em exame. De fato, os direitos e garantias individuais, nos quais se insere o
sigilo das comunicações, não podem ser objeto de deliberação tendente a
aboli-los, a teor do art.60, parágrafo 4o, inciso IV da CF. Ocorre que, no
caso, não se trata de abolir ou extinguir direito individual garantido
constitucionalmente. Na realidade, como já dissemos, trata-se de conferir
eficácia plena à norma de exceção prevista pela Constituição, a qual tutela direito
maior, de interesse público, que é o da persecução criminal. Veja-se que, no
caso, tal entendimento somente é permitido porque a própria Constituição
excepcionou o direito individual em questão, prevendo, expressamente, que a sua
regulamentação caberia à lei infraconstitucional. Tivesse sido mantido o texto
da anterior Constituição, na redação do seu antigo artigo 153, parágrafo 9o,
que não previa nenhuma exceção ao sigilo das comunicações, a solução seria
outra, na medida em que qualquer norma infracostitucional seria,
necessariamente, inconstitucional. No caso, a própria norma constitucional
exige, para sua completude, uma complementação vertical ou integração legal.
Sobre às normas contitucionais que demandam integração,
para efeito de conferir-lhe plena aplicação, vale conferir a doutrina de Celso
Bastos:
"A utilização de certas expressões lingüistícas, como
"a lei regulará" ou "a lei disporá, ou, ainda, "na forma da
lei", deixa de logo claro que a vontade constitucional não está
inteiramente composta. A matéria normada não ganhou definitividade em seu
perfil. Ela reclama a supervenência de uma normação posterior que venha a
delimitá-la em sua exata extensão, quer para alargá-la, quer para restringi-la.
O que apresentam em comum, tais espécies normativas, é o fato de necessitarem
ou, no mínimo, tolerarem uma legislação que lhes componha o siginificado, sem
que isto se traduza em inconstitucionalidade. É que a expressa menção à lei
inferior integradora retira desta última a pecha do vício supremo em que
ocorreria, não fora a referência constitucional."
Com efeito, no caso, cumpre relembrar a parte final do
dispositivo constitucional em exame, que, quanto a possibilidade da
interceptação dispõe: "(...) salvo, no último caso, por ordem judicial,
nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação
criminal ou instrução processual penal". Ora, constata-se,
inequivocamente, que a vontade constitucional não se encontrava plenamente
integrada, cabendo à lei regulamentar as hipóteses e a forma em que a
interceptação pode ocorrer. Tanto é assim que, até o advento da Lei 9296/96, o
STF, em sua maioria, não admitia a interceptação telefônica, tendo por não auto
aplicável o referido dispositivo constitucional.
Por fim, responde-se à indagação sugerida por Maximiliano,
de que se o legislador constituinte se confrontasse com a situação em apreço,
escolheria ele a mesma solução proposta pelo legislador que confeccionou a Lei
9296/96? Entendemos que sim. Isso porque, se a intenção da regra de exceção
eleita pelo constituinte foi garantir a persecução criminal- diz o Texto,
"salvo, no último caso....para fins de investigação criminal ou instrução
processual penal;"- e se a inovação tecnológica criou modalidade de
comunicação impensada pelo constituinte, cujo potencial de uso pela
criminalidade ultrapassa todas as modalidades de comunicação existentes à época
da elaboração do Texto, é razoável admitir, e muito provável, que o
constituinte, hoje, se se confrontasse com tal realidade, extendesse a regra de
exceção também às comunicações mantidas por sistemas de informática, em
especial, pela Internet. Vale lembrar, por outro lado, o princípio da
proporcionalidade, originário do direito alemão, segundo o qual deve haver uma
valoração entre os fins e os meios, os quais devem ser proporcionais. Na
hipótese, nada mais razoável que sacrificar um direito individual, vinculado à
privacidade, em benefício do interesse público de persecução criminal e que o
legislador pretendeu tutelar.
Portanto, o que se verifica é que a Lei 9296/96, em seu
artigo 1o, parágrafo único, na realidade, suprimiu lacuna consitucional,
prevendo a possibilidade de interceptação, também, das comunicações mantidas
por sistemas de informática, apesar de não previstas na regra constitucional de
exceção. Tal previsão, entretanto, garantiu a eficácia plena e a finalidade da
própria regra de exceção prevista no dispositivo constitucional, que é garantir
a investigação criminal, interesse público que se sobrepõe ao individual, de
sigilo das comunicações, razão pela qual afirma-se constitucional a regra do
art.1, parágrafo único da Lei 9296/96.
VII. Conclusão
Conclui-se, portanto, que a possibilidade de interceptação
das comunicações mantidas por sistemas de informática, prevista no art.1,
parágrafo único da Lei 9296/96, é no todo constitucional, porque:
I- Garantiu a eficácia plena e a finalidade da própria regra de exceção
prevista no dispositivo constitucional, que é garantir a investigação criminal,
interesse público que se sobrepõe ao individual do sigilo das comunicações.
II- Atende ao princípio da proporcionalidade, segundo o
qual deve haver uma valoração entre os fins e os meios, os quais devem ser
proporcionais. Assim, é razoável o sacrifício de um direito individual, vinculado
à privacidade, em benefício do interesse público de persecução criminal, razão
de ser da regra de exceção.
III-A Lei 9296/96, supriu lacuna constitucional,
decorrente da inexistência de tal modalidade de comunicação à época da
confecção do texto constitucional, prevendo a possibilidade de interceptação do
fluxo das comunicações mantidas por sistemas de informática, com isso
garantindo a plena eficácia do texto constitucional;
IV-A solução proposta pela Lei 9296/96 afigura-se razoável
e, provavelmente, seria a eleita pelo próprio legislador constituinte se, à
época da elaboração do Texto, existisse tal modalidade de comunicação,
considerando a finalidade da regra de exceção e o fato de se tratar de
tecnologia de uso potencial pela criminalidade;
UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
(*) Juiz de Direito Titular da 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro
Trabalho apresentado como exigência final da disciplina Processo e Garantias
Fundamentais do Curso de Mestrado em Direito.
Professor: Lenio Luiz Streck - Rio de Janeiro,Janeiro de 2002
Retirado
de: http://www.subjudiceonline.com.br/dirint/Poder%20Judiciário/Artigos/constitucionalidade%20interceptacoes.htm