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A Realidade Constitucional Brasileira 
Vandyck Nóbrega de Araújo 

No texto de uma Constituição devem ser estabelecido os princípios fundamentais que determinam o destino de um país. A Constituição é o quadro vivo da conscientização política e do espírito constitucional de uma nação. Julgo imprescindível existir num texto constitucional, uma força intrínseca capaz de corporificar soluções para debelar crises, em decorrência da sistemática que impõe a sua efetividade.

 A Assembléia Constituinte instiuída em conseqüência da ruptura do Terceiro Estado que provocou a Revolução Francesa fundamentou o conceito de Constituição em nosso País. É impossível que Montesquieu imaginasse a incoerência existente na República Federativa do Brasil sobre a organização do Estado. No pensamento de Montesquieu os Três Poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, separados em suas atribuições, unidos constituem o Governo. Não querendo refutar o adágio latino "Exempla illustrant, sed non demonstrant", lembro-me de que em Brasília existe a Praça dos Três Poderes, num singular conúbio de vizinhança, apesar de que se considerem teoricamente, independentes, quando a prática tem demonstrado o contrário. Questiono: existe o espírito constitucional no Brasil? A minha resposta é negativa, porque se existisse a força de coesão nacional submeteria os governantes à prestação de contas, após o exercício do Poder. Era a lei vigente na Atenas de Péricles. A atual Constituição brasileira é um exemplo de construção normativa deficiente, porque para ser potencializada e transformada em ato, necessita de duzentas leis, cento e cinquenta ordinárias e cinquenta complementares. Os legisladores de 1988 não regulamentaram a reorganização básica da sociedade e da economia do País. Constato que a Magna Carta do Brasil não é um instrumento de ação, mas um compasso de espera.

 Com o propósito de contribuir para a conscientização política do cidadão brasileiro, explico de modo sintético, a gênese dos Direitos Fundamentais do Homem. Aliás, sigo a recomendação de Kierkegaard: "A vida tem de ser vivida para a frente, mas só pode ser entendida para trás". Quero esclarecer que os direitos irrevogáveis e inalienáveis do Homem, inerentes à sua essencialidade, antecedem o Estado. Portanto, o elenco dos Direitos Fundamentais do Homem é o reconhecimento político da transcendência humana. Os pré-socráticos tiveram uma concepção do homem e da natureza que motivou a investigação do conhecimento. Com Heráclito aprendemos que a lei para o cidadão poderá ser mais forte do que a muralha que protege a cidade contra o inimigo. De Protágoras, recebemos a lição de que o Homem é a medida de todas as coisas. Sócrates tentando ridicularizar o pensamento de Protágoras, fez uma observação que não deve ser esquecida. Quando via a multidão que se dirigia aos comícios, dizia: São os homens de Protágoras. Mas, é evidente que Sócrates investigando a natureza humana com o seu método maiêutico, sabia melhor do que ninguém compreender o raciocínio de Protágoras: É escasso o número das pessoas que conseguem discernir as recônditas dimensões da realidade e navegam no domínio do entendimento. No campo político a obra de Aristóteles é de capital importância, porque o seu realismo explicou, de modo irrefutável, a vocação social do homem. Este é o seu legado político: A finalidade do Estado é exercer o Poder para a realização do bem comum. O Cristianismo plantou a semente da fraternidade e do respeito à dignidade humana. Aqui está o ensinamento do Apóstolo Paulo: "Ubi libertas, ibi Spiritus Dei". Na Antiguidade Clássica existiu este ideal entre os estóicos e no poeta cômico Terêncio: "Homo sum: humani nihil a me alienum puto". O jurista inglês Henri de Bracton, na Idade Média, legou à posteridade o seguinte ensinamento: "O Rei é o homem mais importante da Inglaterra, mas até ele está subordinado à Lei". É incontestável o significado político da Magna Carta da Inglaterra na luta contra a tirania do monarca. Todavia, foi com a Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Americana, e principalmente, depois da Declaração Universal dos Direitos do Homem da Revolução Francesa, que o assunto conscientizou todo o mundo civilizado. Finalmente, em 1948, surge a Declaração dos Direitos Universais do Homem da Organização das Nações Unidas.

 Examino, agora, o tema eleitoral. A História das Instituições ajuda a compreensão do fenômeno político porque é o roteiro da experiência pública. Escolher os governantes era privilégio de uma minoria. Foi a Revolução Francesa que consagrou o sufrágio censitário, sistema eleitoral anti-social porque só os ricos votavam. Em 1848 ocorreu na França a primeira eleição por meio do sufrágio universal. O candidato vitorioso, Louis Napoléon Bonaparte deu um golpe de Estado para tornar-se imperador da França. A despeito de combater o ateísmo e os erros do iluminismo, estudei as considerações matemáticas de Condorcet sobre o processo eleitoral. Atualizei a minha curiosidade intelectual a respeito da análise do processo eleitoral de Condorcet, através dos estudos de sociólogos internacionais, com a finalidade de confrontar o assunto com o Brasil. Também, basicamente, acompanhei e atualizei essas investigações sobre nosso processo político-democrático, adaptando-as às contradições político-democráticas do País, mediante a exaustiva leitura de jornais, revistas e por intermédio da televisão. A Constituição brasileira de 1988 concedeu aos jovens de dezesseis anos, o direito máximo da cidadania, que é o exercício do voto. O contra-senso é evidente porque o eleitor de dezesseis anos permanece legalmente incapaz. Este absurdo jurídico tem uma explicação: O cidadão brasileiro é tratado como coisa, isto é, como a matéria-prima do processo eleitoral. É incompreensível que no Brasil um direito tenha sido transformado numa obrigação. Neste Anno Domini de 1994 vi na televisão a seguinte imagem: O Presidente do Superior Tribunal Eleitoral e o Procurador Geral da República presidindo a convocação de um jogador de futebol para a catequese dos eleitores de dezesseis anos. De repente, tive a sensação de escutar a voz de Ruy Barbosa: Diante disto, depois disto! Compreendi o que o imortal jurista e homem público brasileiro queria perguntar e respondi-lhe com a lição de Hegel: A Filosofia da História não advinha o futuro.

 O estudo analítico da realidade brasileira revela as enfermidades que infeccionam a Nação. Há males endêmicos no Brasil que recebem um tratamento paliativo, sem nenhuma tentativa de pesquisa das causas etiológicas. Concordo com a opinião de Carlos Lacerda sobre o assunto: Em nosso País, o "cultivo da couve da miséria" é proveitoso para aqueles que controlam as rédeas do Poder. Observo que no Brasil não existe ordem nem respeito a cousa alguma, exceto ao dinheiro. A asfixia dos valores éticos beneficia uma minoria, que enriquece com a desgraça nacional. Vejamos o que acontece no organismo humano quando a sinergia da ordem é rompida. Respondo: O câncer. No corpo social acontece a mesma coisa. Sem o princípio da ordem não pode existir liberdade porque esta resulta do comportamento solidário da comunidade e de todos os cidadãos que vão escolher os governantes.

 O problema da família brasileira é de extrema gravidade, porque a maior riqueza de um país é a qualidade dos seus cidadãos. Como formar os costumes no seio da pletora de anomalias atuante nos meios de Comunicação do País, de modo incessante e sem nenhum freio, ofendendo a inocência da infância, corrompendo a adolescência e escarnecendo da velhice? O Brasil tornou-se um caos ético, e esta é a razão da seqüência de abominações apresentadas à Nação, despudoradamente, semelhante ao comportamento das personagens de Aristófanes, quatro séculos antes de Cristo. Sem fortalecer a família e a comunidade, e sem a preservação das tradições que formaram a nacionalidade, o Brasil deixa de ser Brasil e passa a ser um país qualquer, de dimensão ciclópica, mas apenas um gigante mentecapto, órfão de identidade. O Brasil nasceu da coragem dos portugueses e da abnegação dos jesuítas que vinham para viver e morrer no Novo Mundo, como provou Serafim Leite, em sua obra História da Companhia de Jesus no Brasil. A missão evangelizadora que o Padre Manoel da Nóbrega denominou de "a empresa Brasil" foi providencial para que a colônia portuguesa se transformasse no colosso brasileiro. O processo histórico que formou o Brasil está em movimento, porque a vida é movimento, e a História nunca termina, continua ininterruptamente através das metamorfoses do tempo.

 A função do Estado é administrativa e jurisdicional, razão pela qual o seu papel de agente econômico é contraditório, oneroso e anti-social. É impossível a garantia dos direitos individuais, da propriedade privada, dos negócios jurídicos e da legislação social, sem a proteção do Estado. O diagnóstico da sociedade brasileira é problemático, porque a paternidade responsável, vigente na legislação alemã, não existe em nosso País. O Brasil tem 150.000.000 de habitantes, mas, a tragédia demográfica é a seguinte: 50.000.000 de brasileiros vivem em condições de extrema pobreza. Os milhões de filhos ilegítimos, vítimas da irresponsabilidade dos pais, apresentam a visão sombria da realidade brasileira que é uma mostra eloqüente de um país indigente de estadistas. Os salários baixos, a fome e a assistência hospitalar precária que afligem a maioria dos brasileiros, são a conseqüência da injustiça social.

 Que deve ser feito para a implantação da Justiça Social no Brasil? De início, afirmo que o modelo econômico brasileiro é uma perversão social. Os bodes expiatórios escolhidos pelos tecnocratas como cobaias para os seus experimentos nos balões de ensaio são os assalariados e as pessoas físicas. Na realidade, só os ricos escaparam do processo de desnaturamento que os tecnocratas efetuaram na Nação brasileiro. O racionalismo burguês emprega métodos aparentemente incruentos, mas de efeito mortífero, enquanto que os barões feudais atacavam as vítimas com a espada. É exatamente, o que Louis Blanc escreveu em sua obra La Révolution Française, Bruxelles, Meline, 1847, Tome premier, 41: "O despotismo feudal estava nos homens, o despotismo busguês está nas coisas, despotismo misterioso que está em toda parte, não é descoberto em nenhuma parte, mas no seio do qual o indigente morre sem dar conta da causa de sua morte". A Encíclica "Rerum Novarum" explicou a doutrina da Igreja Católica a respeito das relações do Capital com o Trabalho. O Humanismo Cristão não admite que os ricos explorem os pobres. Esta é a lição do Evangelho de Cristo, da Crematística de Aristóteles e de Tomás de Aquino. Celebrando o centenário do documento de Leão XIII, o Papa João Paulo II na Encíclica "Centesimus Annus" reafirmou os mesmos propósitos da Encíclica "Rerum Novarum", manifestando a alegria com "a queda do totalitarismo comunista e de numerosos regimes de segurança nacional", mas externou a preocupação "em relação às democracias que ainda estão longe de tomar decisões em função do bem comum". 

O Brasil é a décima economia mundial, porém com uma distribuição per capita das mais baixas do planeta Terra. Qual é a explicação desta aritmética? Adam Smith, que descobriu o calcanhar de Aquiles da Escola Fisiocrática, responderá: Todos os cidadãos devem contribuir para a formação do produto líquido que vai circular na corrente sanguínea da sociedade. O problema fundamental da Economia é a divisão do trabalho, quando isto ocorrer o mundo transformar-se-á numa imensa fábrica. Ora, no Ancien Régime só os agricultores pagavam os impostos. O desmoronamento financeiro tornou-se inevitável e nem mesmo Necker, o ministro honesto, como Napoleão costumava chamar, conseguiu debelar a corrosão social que gerou a Revolução Francesa. No Brasil dez milhões de contribuintes pagam o impostos de renda, setenta e cinco por cento é a contribuição dos assalariados e dez por cento a dos que vivem de renda. Obtive esta informação que sacramentou oficialmente a infâmia social existente no País, através da entrevista televisionada do digno Diretor da Receita Federal, Dr. Osiris Lopes Filho, pouco antes do seu honroso e patriótico pedido de demissão. Em outra entrevista sobre os sonegadores de impostos, o Dr. Osiris Lopes Filho declarou que a Receita Federal é impotente para punir os culpados em consequência da delonga da Justiça e dos meandros processualísticos. A propósito da sonegação de impostos, o Senador João Calmon confessou o seu desespero com a evasão de bilhões de dólares, e com o fato de que os sonegadores escapam porque são poderosos. A estimativa no momento atual é a seguinte: os sonegadores do Tesouro Nacional teriam depositado mais de cinqüenta bilhões de dólares no Exterior. É uma questão de Justiça Social a taxação das grandes fortunas.

 É necessário reconstruir o País, a partir da revitalização das Instituições e da atualização de um instrumental jurídico capacitado para erradicar a violência, o tráfico de drogas e punir os crimes hediondos com o máximo rigor. Com o objetivo de contribuir para a reconstrução do nosso País recomendo o exame do diagnóstico que o Papa Pio XII fez de uma questão crucial do comportamento humano: "É a fraqueza dos bons que permite a audácia dos maus". 

A propósito da Revisão Constitucional penso que é uma tarefa muito complexa. A Constituição do Brasil deve ser a bússola do seu destino.

 Recife, 05 agosto de 1994