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A USURPAÇÃO, PELA UNIÃO, DAS RECEITAS DOS ESTADOS, OU

O MENOSPREZO À ORDEM JURÍDICA, OU O DESDÉM AO ESTADO DEMOCRÁTICO, OU A FANCARIA DE FEDERAÇÃO

[ PARTE I ]

Humberto Ribeiro Soares (*)

A retenção ou qualquer restrição adotada pela União à entrega de recursos pertencentes aos Estados dos fundos de participação constitucionais e a execução de garantias prestáveis pelo Estado-membro à União quanto às operações de crédito por antecipação de receita são desautorizadas pela Constituição Federal. São esbulho intolerável à luz dos mais comezinhos postulados da organização federativa, afronta insuportável à Carta Magna.

2. É regra geral constitucional a de ser vedado reter (art. 160, CF/88). À União é vedado, como regra geral (editada pela Constituição), reter a entrega daqueles recursos. Tais recursos, gestados pelo imaginoso esquema normativo da Constituição de 88 quanto a repartição das receitas tributárias, são da embriogenicamente constitucional pertença dos Estados, e não significam propina generosa que piedosamente lhes verta a União, ou seja, não são recursos da pertença da União. São, isto sim, tradução no âmbito econômico, rectius, no âmbito das finanças públicas, do modelo federativo que a Constituição Federal adotou, sua "forma federativa de Estado" (pela qual tanto zela a Carta, a ponto de a haver encapsulado com os superlativos protetivos de cláusula pétrea).

Dir-se-ia, todavia, que àquele caput do dito art. 160 pendurou-lhe, a Emenda Constitucional 3/93 (aí, de discutível constitucionalidade) um expressionalmente ambíguo parágrafo a dizer que tal vedação prevista no caput "não impede a União e os Estados de condicionarem a entrega de recursos ao pagamento de seus créditos" (de resto, órfão de regulamentação). Contudo, se tal ressalva fosse aplicável, não poderia significar o indevido apossamento, por outrem que não o Estado-membro da Federação, dos dinheiros necessários à segurança, à saúde, ao ensino das populações dos Estados. Não se poderia entender como invertendo a regra geral do caput, significaria, quando muito, que somente poderiam ser retidos recursos da pertença da União, nunca de recursos da propriedade do próprio Estado, como são os seus quinhões nos fundos de participação. Porque, norma de exceção, só pode contemplar situação de exceção. Do contrário, seria desrespeitar o modelo federativo brasileiro, a autonomia constitucional dos Estados, a inexistência de relação de hierarquização na Federação brasileira (art. 18 da Constituição realizando a lição de KELSEN), autonomia ferida, assim, na vertente que mais sensivelmente a conforma, materializa e fecunda, isto é, a da realidade dos recursos financeiros; seria propiciar uma iniciativa de satisfação de justiça de mão própria (até com soberbo desdém ao provimento do art. 100 da Constituição) desautorizada, desafiante do Estado Democrático de Direito e da separação dos Poderes, e tornar líricas as rigorosíssimas exigências limitativas da figura da intervenção federal por motivo de desorganização financeira. Seria anarquia total da Federação.

3. Referentemente a execução de garantias ¾ que o Estado-membro faça à União¾ quanto a operações de crédito por antecipação de receita, é indeclinável que se examine (assim este preceito, que se aloja no art. 167, inciso IV da CF/88, como qualquer outro) articulado no contexto integral da Carta Magna, e não pinçadamente. Então se nota ser regra geral a vedação de vinculação de receitas. Do que constitui uma ressalva (norma especial) a tal prestação de garantia. Note-se que se trata de garantia a operações de crédito por antecipação de receita, vale dizer, a comprometimento futuro de receitas públicas. Ser ressalva e haver este comprometimento, sempre relevante, quando não, grave, são característicos que convocam os delicados apetrechos científicos especializados do intérprete de norma constitucional. Há vetores que regem a atividade do intérprete da Constituição que exigem a imbricação do preceito no contexto geral e o tratamento pelo princípio da harmonia.

Pautando-se por eles, é que cabe atentar a que aquela norma constitucional que, em ressalva, autoriza a prestação de garantia (art. 160, IV, CF/88), carece ainda de complexa, vasta e extremamente especializada regulamentação. A regulamentação infraconstitucional ainda não existe. É que a Constituição Federal reza que caberá a uma lei complementar (que não existe, quanto ao particular) dispor sobre finanças públicas, dívida pública e "concessão de garantias pelas entidades públicas" (art. 163, I a III). Ela dirá quais as limitações de garantias, como dar, como constituir o Estado em mora, quem constituir, depois de quanto tempo e após que providências, como executar e necessariamente no Judiciário (não no Executivo, pelos serviços de contabilidade de banco, manu militari...).

E, como não existe esta lei complementar, aquela provisão normativa de ressalva encrustrada no inciso IV do art. 167 da Lei Magna não goza de eficácia (eficácia plena) que permita ao Estado-membro prestar garantia à União, ou, pelo menos, que, destarte, não goza para ensejar à União executar garantia que porventura haja avençado em contrato com o Estado-membro. A cláusula que o faça será írrita. Aliás, bem que se recorde que, na Ação direta de inconstitucionalidade ADIn nº 4, o Supremo Tribunal Federal entendeu e decidiu semelhantemente no tocante à máxima taxa de juros reais de 12% prevista no § 3º do art. 192 da Constituição. No caso do aqui apreciado inciso IV do art. 167 não poderia ser diferente. Por que seria diverso do que é para o capital do banco ?!

4. Para além dos aspectos acima apreciados, cabe refletir detidamente, sem paixões: como não buscar solução que diretamente permita prover saúde pública, segurança da população, educação e outros reclamos graves em quadra de crise ? Hão de sobrepairar razões de ordem puramente financeira ? Privilegiar o dinheiro, o lucro, o juro em prejuízo dos "valores sociais do trabalho" e da "dignidade da pessoa humana" (fundamentos da República brasileira; art. 1º, IV e III, CF/88) ? Desdenhar de toda a superior principiologia social expressada pelos "fundamentos da República Federativa do Brasil", tais "cidadania", "valores sociais do trabalho" (art. 1º, CF/88), desprezar o "fundamento" constitucional da ordem econômica, este a "valorização do trabalho humano" (art. 170, CF/88)? Note-se bem: a ordem econômica constitucional brasileira não visa ao juro e ao lucro do capital, sobretudo o especulativo internacional, o capital parasita, mas visa, sim, à valorização do trabalho humano e, como seu instrumento, à "busca do pleno emprego", como está no art. 170, VIII, da Constituição, o que se imbrica com o expresso objetivo da Nação, qual o de "promover o bem de todos" (art. 3º, IV, CF/88).

5. Por que inverter as coisas, e para que temos Constituição, afinal ?!!!

(*) o autor é advogado militante no Rio de Janeiro e Procurador do Estado do Rio de Janeiro, um dos mais antigos, e em atividade


 

Retirado de:     http://www.infojus.com.br