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NORMA CONSTITUCIONAL DE LIMITAÇÃO DE JUROS É AUTO-APLICÁVEL OU MERAMENTE PROGRAMÁTICA?

Mauro Nicolau Junior
Juiz de Direito – Nova Friburgo

 

Dispõe o artigo 192 § 3º da Constituição Federal que o limite máximo de juros reais, é de 12% ao ano, regra essa que há de ser aplicada em concomitância com o Direito do Consumidor.

É sabido que o Supremo Tribunal Federal se pronunciou, por mais de uma vez, asseverando ser a norma simplesmente programática, estando a merecer regulamentação infra-constitucional , para que se possibilite sua aplicabilidade.

Entretanto, enquanto não estamos sujeitos ao propalado efeito vinculante das decisões dos Tribunais Superiores, plena liberdade assiste para acatar a tese contrária, a qual vem sendo também adotada por juristas de renome, desde a promulgação da Constituição Federal.

Não se pode olvidar, nós que vivenciamos o clima da elaboração da Constituição Federal de 1988, que a regra insculpida no artigo 192 § 3º foi fruto de anseio popular dos mais lídimos e legítimos, constituindo-se séria traição e inversão da ordem a sua não aplicação.

Exatamente neste sentido se manifestou ORLANDO GOMES em seus "Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil", 8ª ed. Forense, página 634, quando afirmou que:

"A propósito, durante os trabalhos constituintes, a questão da fixação da taxa máxima de juros reais, em doze por cento ao ano, suscitou acirrada polêmica (artigo 193 parágrafo 3º), posto que caiu em desuso a chamada Lei da Usura (Dec. 22.626 de 7.4.1933), que criminalizava a cobrança de taxa de juros, superiores a 8% e 10% ao ano, conforme o negócio realizado.

Malgrado o ordenamento jurídico que rege as instituições financeiras nacionais (lei 4.595 de 31.12.1964 e legislação subsequente), esse campo de negócio tem servido de amplo pasto de exploração da boa-fé pública, causando imensos prejuízos à economia popular, com sucessivos escândalos e fraudes, que permanecem impunes, tendo como agentes protagonistas, os chamados criminosos de colarinho branco...:"

Atualmente, as práticas financeiras em vigor registram a cobrança de taxas de juros extorsivos, superiores a 50% em determinados negócios, através da utilização de astuciosos meios publicitários, com o emprego das famigeradas técnicas de marketing.

Ora, ainda que se admita que a norma constitucional está a depender de lei regulamentadora, esta já existe, e não é de hoje, posto que o Decreto 22.616/33, com força de lei complementar, em função do sistema legislativo da época, encontra-se plenamente em vigor, posto que não revogado expressa ou implicitamente.

O fato de a lei ter caído em desuso, não é suficiente para lhe determinar a extirpação do sistema legal vigente.

Já desde a promulgação da Constituição, se tinha certeza da séria e ferrenha resistência que seria imposta pelos setores econômica e politicamente influentes.

Na interpretação da Constituição, documento jurídico fruto da vontade soberana do Poder Constituinte, já não cabe opor-se argumentos de conveniência e oportunidade fundados em apreciações políticas ou técnico-econômicas. Existe norma, e ao intérprete e aplicador cabe fazê-la atuar. Aliás estas tecnocracias financeiras, é que possibilitaram ao nosso país, sujeito passivo numa dívida interna de 60 milhões de dólares, vê-la convertida hoje em mais de 300 bilhões.

O Brasil caminha para uma pole position inédita na história econômica mundial: será o primeiro país a gastar tudo o que arrecada em impostos, no pagamento dos juros da sua dívida. As contas mostram que essa glória não tarda a chegar. Nossos ilustrados gestores conseguiram passar a dívida interna de US$ 60 para mais de US$ 300 bilhões em menos de quatro anos e, com os aumentos de juros já juntaram mais uns 25 bilhões. Esses fenomenais resultados foram conseguidos, superando um obstáculo de porte: o aumento da arrecadação. Em 1994, a Receita Federal arrecadava 64 bilhões por ano. Hoje a arrecadação é de 122 bilhões. Quase dobrou."

Este é o sistema econômico contra o qual a força de uma Assembléia Nacional Constituinte se voltou com todas suas armas. A aprovação do texto constitucional já foi uma vitória árdua, uma vez que a resistência dos setores abastados financeiramente foi das mais ferrenhas. Cabe agora aos intérpretes e aplicadores do Direito, não deixar que tal conquista caia no esquecimento, nos acomodando com a penosa e vexatória situação de extrema exploração do trabalho pelo capital.

Não há como se calar, qualquer cidadão que tenha consciência da importância deste país e dos rumos que a ele estão sendo atribuídos, diante da sempre sábias palavras de FREI BETO, quando afirma que:

"SOMOS UMA NAÇÃO DEMASIADAMENTE GRANDE PARA DEIXAR QUE UM GOVERNO FIQUE DE JOELHOS DIANTE DOS AGIOTAS

 

O Presidente, que adora jogos semânticos (como fracassômanos, e outras expressões esdrúxulas, com que trata seus críticos), considera que o Brasil não é miserável, é injusto. Se é tão injusto, conforme as estatísticas oficiais – 47% da renda nacional em mãos de 10% da população – quais os frutos dessa injustiça? O Estado endividado, o peso dos tributos e a alta de juros inviabilizando empreendimentos (empresariais) e orçamentos (domésticos), 3 milhões de crianças sem escola (e outras tantas condenadas ao trabalho precoce), 10,6 milhões de desempregados e 15 milhões de sem-terra. Segundo o BID, um de cada dois brasileiros (43,5% da população, cerca de 70 milhões de pessoas), vive com no máximo US$ 2 por dia. E 36 milhões de pessoas sobrevivem com renda inferior a R$ 1 por dia!

SE A SOCIEDADE CIVIL NÃO REAGIR, SE UM NOVO PACTO FEDERATIVO NÃO FOR ESTABELECIDO, SE NÃO MUDAR A POLÍTICA ECONÔMICA, ESSA IMERSÃO PRESSIONADA POR DESEMPREGO E VOLTA DA INFLAÇÃO, SERÁ CATASTRÓFICA. O BRASIL SE "AFRICANIZA". BASTA OLHAR AS RUAS DE NOSSAS CIDADES: TRANSEUNTES ACABRUNHADOS, MALVESTIDOS, EMPOBRECIDOS, SUFOCADOS PELA URGÊNCIA DA SOBREVIVÊNCIA IMEDIATA.

SOMOS UMA NAÇÃO DEMASIADAMENTE GRANDE, RICA E TRABALHADORA PARA DEIXAR QUE UM GOVERNO FIQUE DE JOELHOS DIANTE DE UM BANDO DEVOTADO A MULTIPLICAR FORTUNAS DE POUCOS E, NA OUTRA PONTA, MISÉRIA DE MÚITOS: OS AGIOTAS. ALIÁS, NA NOVA SEMÂNTICA, MEGAESPECULADORES."

E, basta se olhar nos jornais diários e se verá que apesar de toda a crise, as Instituições financeiras, os Bancos, principalmente os internacionais, lucram cada vez mais, seus resultados financeiros são cada vez mais satisfatórios, posto que há um Governo de plantão, com todas as armas em punho para lhes garantir a exploração do povo brasileiro, cada vez mais miserável. É exatamente esta a situação que a Constituição Federal pretendeu evitar e minorar, só não contava que o inimigo se apoderasse do campo de batalha.

Não há também que se falar em que o conceito de juros seja desconhecido ou controvertido, posto que vigente desde antes da existência do próprio Código Civil Brasileiro. Trata-se de rendimento do capital em cujo conteúdo se integra duas idéias: a de remuneração pelo uso da quantia pelo devedor e a de cobertura do risco que recai sobre o credor.

O argumento usado pelas Instituições Financeiras, de que a taxa de juros máxima, prevista no Decreto 22.616/33 foi válida até a vigência da Constituição de 1988, foi acatado em determinado momento pela Corte Suprema, como já se pronunciou o STF, na Súmula 596, verbis:

"As disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional"

No entanto, logo após a promulgação da Constituição, decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

"JUROS. PERCENTUAL ACIMA DO TETO LEGAL. ILEGALIDADE. A circunstância de o título ter sido emitido pelo devedor, voluntariamente, com os seus requisitos formais, não elide a ilegalidade da cobrança abusiva de juros, sendo irrelevante a instabilidade da economia nacional. O sistema jurídico nacional veda a cobrança de juros acima da taxa legal."

Sem embargo de a referida norma constitucional ser dirigida, em especial às Instituições Financeiras, é certo, contudo, que o Decreto 22.626/33 – Lei da Usura – está em perfeita sintonia com aquele preceito, pois só assim serão respeitados os princípios fundamentais insertos no artigo 1º, III e IV da Carta Magna.

As normas constitucionais, mormente as de índole proibitiva, são dotadas de eficácia plena, ou seja, têm auto-aplicabilidade. Segundo a doutrina contemporânea, a grande maioria das disposições constitucionais é de incidência imediata, mesmo aquelas que até bem recentemente não passavam de princípios programáticos. Com isso, mais efetiva torna-se, induvidosamente, a outorga dos direitos e garantias sociais inscritos nas Constituições. Por isso mesmo, nada justifica que uma norma proibitória como a que limita os juros reais à taxa máxima de 12% ao ano, não incida de imediato, ficando no aguardo indefinido de uma regulamentação que, na prática, terá que, obrigatoriamente, vergar-se ao percentual máximo já inscrito na Lei Maior.

Não há que se desconsiderar que a norma constitucional (parágrafo 3º) causou enorme celeuma, e diferente não poderia ser, posto que limitou os estratosféricos lucros bancários. A conclusão pela aplicabilidade imediata se fez em diversos níveis posto que se trata de norma autônoma, não subordinada à lei prevista no caput do artigo. Todo parágrafo, quando tecnicamente bem situado (e este não está porque contém autonomia de artigo), liga-se ao conteúdo do artigo, mas tem autonomia normativa. Veja-se por exemplo o parágrafo primeiro do mesmo artigo 192. Ele disciplina o assunto que consta dos incisos I e II do artigo, mas suas determinações, por si, são autônomas, pois uma vez outorgada qualquer autorização, imediatamente ela fica sujeita às limitações impostas no citado parágrafo. Se o texto em causa, fosse um inciso do artigo, embora com normatividade formal autônoma, ficaria na dependência do que viesse a estabelecer a lei complementar. Mas tendo sido organizado num parágrafo, com normatividade autônoma, sem referir-se a qualquer previsão legal ulterior, detém eficácia e aplicabilidade imediata. O dispositivo aliás, tem autonomia de artigo, mas a preocupação, muitas e muitas vezes, revelada ao longo da elaboração constitucional, no sentido de que a Carta Magna de 1988 não aparecesse com demasiado número de artigos, levou a Relatoria do texto a reduzir artigos a parágrafos e uns e outros, não raro, a incisos. Isso, no caso em exame, não prejudica a eficácia do texto.

Tem sido escrito, em pareceres encomendados por associações bancárias, que o caput do artigo 192 fala do sistema financeiro nacional a ser regulado em lei complementar de tal jeito que, quando no § 3º se escreveu que a taxa de juros reais não poderá ser superior a 12% ao ano, terá ficado claro que também essa primeira parte do § 3º depende de lei complementar. Puro artifício verbal – que o papel aceita sempre. Num mesmo artigo de lei, ou da Constituição, podemos ter várias regras, independentemente umas das outras. O que o parágrafo tem de comum com o caput é que, por força de alguma lógica formal de organização extrínseca dos assuntos, os tópicos do caput (matéria geral nele tratada) é também matéria dos parágrafos. Isso, nem sempre aliás, acontece. Depende de maior ou menor organização mental do redator. Muito contingentemente: no momento da redação, e mesmo assim, nada impede que a regra do parágrafo seja impeditiva do que consta no caput.

Outros interessados em manter livres os juros cobrados pelos bancos – e na ciranda financeira – afirmam ser de mister antes a definição do que sejam "juros reais". Ora, a questão é simples. "Reais" aí, não tem a ver com a terminologia do direito das coisas. Não real é o que só vem por conta da correção monetária. Esta é correção de distorção; o resultado de atualização monetária não é acréscimo, não é ganho, não dispõe de alcance utilitário novo e efetivo. Real é o ganho, o que vem a mais. Claro portanto que "juros reais" são os de interesses econômicos, de importe superior à mera atualização monetária.

Costuma-se ainda lançar outro argumento "ad terrorem" e não jurídico. A interpretação da regra constitucional do artigo 192 § 3º, tal como está, introduziria o caos no sistema financeiro do País, desorganizaria toda a economia nacional e criaria enorme problema social. Muito se poderia dizer a respeito desta tese equivocada. Duas seriam, sobretudo importantes para uma discussão ampla do assunto: a) regra constitucional enquanto vigente, tem de ser cumprida; a economia há de afeiçoar-se a ela, e não o contrário; b) o Judiciário há de aplicar a regra jurídica, corretamente interpretada, não respondendo pelos azares do Executivo nem pelos temores de uma sociedade viciada em ciranda financeira, e muito menos pela incompetência de uma equipe econômica, não escolhida pelo Judiciário.

Ao contrário, a correta aplicação da norma constitucional vai é produzir resultados de reequilibro econômico-financeiro no País. Ajudará a combater a inflação e a agiotagem oficial.

 

Até o advento da Constituição de 1988, a questão da taxa de juros sujeitava-se a regime dúplice. Era vedado a todas as pessoas a estipulação em contrato de juros superiores a 12%, por força do Decreto 22.626/33, que todavia não se aplicava às instituições financeiras. Agora, sob a nova ordem constitucional, cuida-se tão somente de fazer aplicar a todos, inclusive aos bancos e instituições afins, as regras que já vigoravam há muitas décadas para quase todos.

O desfrute de tal limitação constitucional àqueles que lidam no mercado financeiro (qualquer do povo) é imediato, a limitação aos que operam no sistema, emprestando dinheiro, é imediata. Do direito de um nasce a obrigação do outro,. A relação jurídica intersubjetiva que se instaura gera a perspectiva do imediato desfrute da limitação imposta.

Assim, com o advento da Constituição Federal de 88, por força do artigo 25 do ADCT, revogadas ficaram todas as instituições anteriores e, de resto, o próprio poder normativo, agora adstrito à competência legislativa do Congresso Nacional. Por conseguinte, o poder normativo a respeito de juros bancários que a lei 4.595/64, concedia ao Conselho Monetário Nacional, restou revogado. A única lei federal limitativa de juros é a lei de usura que hoje regra os contratos de toda a sociedade, inclusive os bancários.

O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em ação movida contra o BANERJ, que cobrava, em suas operações de crédito, juros acima do limite constitucional, assentou igualmente que:

"O parágrafo 3º do artigo 192 assentou expressa e induvidosamente que as taxas de juros não poderão ser superiores a doze por cento ao ano. Qualquer que seja a orientação que se venha a adotar na lei complementar a que alude o caput do artigo 192, a taxa de juros não será, em hipótese alguma, superior ao limite fixado no texto constitucional."

Se é possível admitir que o crime de usura, a que se refere a segunda parte do parágrafo terceiro, e as respectivas penas, dependem de lei ordinária, sob o aspecto civil dúvida não pode haver de que a concessão de crédito tem a sua taxa de juros limitada a doze por cento ao ano.

E, trazendo a lição atualizada do eminente Professor LUIS ROBERTO BARROSO, Procurador deste Estado, em seu "Direito Constitucional e a efetividade de suas normas", Ed. Renovar, 2ª ed. Página 225, conclui com o DESEMBARGADOR JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, que após notar que a todo momento, em literatura especializada e leiga, se emprega o conceito de juros reais assinalou que "Só na hora de interpretar a Constituição é que não se sabe o que é; não se sabe porque não se quer saber. É claro que a taxa de juros reais é tudo aquilo que se cobra, menos a correção monetária. Se sabemos o que é boa fé, conceito muito mais vago; se sabemos o que são costumes, o que á vaguíssimo, se sabemos o que é mulher honesta, para aplicarmos o dispositivo legal que define o crime de estupro, por que é que não podemos saber o que são taxa de juros reais? Isso faz parte da tarefa quotidiana do juiz: interpretar textos legais e definir conceitos jurídicos indeterminados. Acho que é bastante determinado."

Pelos fundamentos deduzidos, firma-se aqui, a posição de que o parágrafo terceiro do artigo 192 da Constituição Federal, não é norma programática, nem tem sua eficácia condicionada por regra infraconstitucional. Ele define uma situação jurídica prontamente efetivável, e permite que as pessoas invoquem a tutela jurisdicional para ver declarada a invalidade de qualquer obrigação que não reverencie o postulado constitucional.

No mesmo diapasão, concluindo pela aplicabilidade imediata da norma constitucional, e portanto pela não possibilidade de cobrança de juros além da taxa máxima de 12% ao ano, o eminente Juiz NAGIB SLAIBI FILHO, em suas "Anotações à Constituição de 1988 – aspectos fundamentais" – Editora Forense, página 405, assevera que:

"Imaginar o contrário, seria instituir um delimitador à eficácia da norma constitucional que representaria, em última análise, em atentado à soberania do poder constituinte.

...

É da tradição da Economia que um prédio tenha um rendimento de 1% ao mês, quando não se adota renda inferior, dependendo das circunstâncias (falando sobre a rentabilidade do imóvel na locação).

Ora, a moeda, por si só, não vale a não ser como símbolo de troca – seria despropositado atribuir ao bem de raiz uma renda menor que a coisa essencialmente fungível, a moeda, que representa tal valor.

...

A Constituição privilegia o trabalho e não o capital; favorece a produtividade em detrimento da obtenção de frutos civis.

...

Conclusão:

    1. é auto-aplicável o disposto no artigo 192 parágrafo 3º da nova Constituição, ao fixar a taxa de juros de 12 ao ano;
    2. a expressão juros reais tem a abrangência determinada pelo próprio texto constitucional: "comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito;"
    3. O dispositivo constitucional simplesmente repete proposições legais já tradicionais em nosso país."

 

 

Também, de nenhuma consistência as razões invocadas pelos defensores da tese contrária quanto à aplicação do princípio "pacta sunt servanda", sustentando eles, normalmente Instituições Financeiras, que ao firmar e assinar um contrato, com previsão de incidência de taxa de juros superior à prevista constitucionalmente, estariam as partes derrogando esta norma, que em sendo de caráter patrimonial considerar-se-ia como plenamente renunciável, uma vez que a relação jurídica que originou o débito excutido é regulamentada pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor, sendo portanto consideradas como cláusulas nulas aquelas lesivas aos direitos do consumidor. Este instituto vem sofrendo uma revisão de seu conceito, à luz da moderna doutrina privatística, sendo possível assim, encarar-se a autonomia da vontade como um poder-função, no sentido de ser direcionada a fins de interesse geral, como que se minora a força da vontade individual em prol da comunidade, alcançando-se um parâmetro de justiça comutativa.

Como corolário dessa modificação no modo de ver a autonomia da vontade, passa a ter uma minoração na vinculação estrita dos contratos. Isto afeta o papel do juiz, que poderá revisar o contrato, tendo em vista uma gama maior de causas que não aquelas limitadas aos vícios de consentimento e duramente excepcionada, apenas, pela teoria da imprevisão.

Pode-se concluir com CLÓVIS V. DO COUTO E SILVA que a autonomia da vontade, continua a ocupar lugar de relevo dentro da ordem jurídica privada, mas, a seu lado, a dogmática moderna admite a jurisdicionalização de certos interesses, em cujo núcleo não se manifesta o aspecto volitivo. Da vontade e desses interesses juridicamente valorizados dever-se-ão deduzir as regras que formam a dogmática atual. (Revisão dos contratos: Do Código Civil ao Código do Consumidor. LUÍS RENATO FERREIRA DA SILVA. Ed. Forense, páginas 63 e seguintes)

Assim, para a aplicação do princípio "pacta sunt servanda", quando se trata de contratos e relações jurídicas subordinadas às normas do Código do Consumidor, deve-se ter em conta noções de relevantes interesses sociais, e não apenas individuais, posto que criou-se um sistema legal de direitos mínimos irrenunciáveis, através da previsão de nulidade das cláusulas abusivas, principalmente em se tratando, como é o caso em pauta, de contratos de adesão, onde não se dá ao contratante qualquer possibilidade de discussão e transação das regras contratuais, mesmo porque inexistente fase de puntuação.

 

 

A aplicação imediata da norma limitadora constitucional, é magistralmente defendida por ANTÔNIO CLÁUDIO DE LIMA VIERA, Advogado no Rio de Janeiro, na RT. 635, página 156, e pelo então Procurador de Justiça do Rio de Janeiro, LUIZ ROLDÃO DE FREITAS GOMES, hoje Desembargador do Egrégio Tribunal de Justiça Fluminense, em RT. 667, página 231 e seguintes, que assim sintetizam o tema:

"JUROS REAIS. Acepção definida no ordenamento jurídico, fruto de longa evolução, não sofrendo alteração com a aposição de adjetivo no texto constitucional, que não lhe retira o sentido , conferido pela lei civil, apta a delinear seu alcance – Auto-aplicabilidade da norma ante sua natureza e teor – Incidência imediata – Evolução legislativa e precedentes históricos – As vedações de uma Constituição não dependem de leis de hierarquia inferior para se fazerem valer – Impõem-se por si, como comandos constitucionais, que não se compadecem com atos e condutas adversos, sob pena de pôr-se em xeque a vontade e determinação da Lei Maior, imperativa e categórica."

Diferentes não são os julgados colecionados por LUIZ ANTÔNIO RIZZATO NUNES em sua obra "O Código de Defesa do Consumidor e sua interpretação jurisprudencial", Ed.Saraiva, páginas 101 e seguintes, como segue apenas um, exemplificativo e definidor do pensamento do autor:

"JUROS BANCÁRIOS LIMITADOS AOS DO CONTRATO NUNCA SUPERIORES A 12% AO ANO. Multa moratória em 10% - Comissão de permanência e correção monetária são inacumuláveis."

Superada também a discussão inicialmente existente, de incidência das normas do Código de Defesa do Consumidor às Instituições Financeiras, posto que estas, como prestadoras de serviços estão especialmente contempladas no artigo 3º, parágrafo segundo. (Neste sentido STJ, 4ª T. Resp 57.974-0-RS. Rel, Min. Ruy Rosado de Aguiar. J. 25.4.95. IOB 3:11001, ementário).

 

No julgado acima, há de ser feita a correção, uma vez que, atualmente, o parágrafo 1º do artigo 52 do Código de Defesa do Consumidor estabelece que, no fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, as multas decorrentes do inadimplemento não podem ser superiores a 2 (dois por cento) do valor da prestação, conforme nova redação dada pela lei 9.298 de 1º de agosto de 1996.

O constituinte de 1988 fez inserir no texto da Carta Magna, no capítulo reservado aos direitos fundamentais do homem, em seu art. 5º, XXXII, o dever do Estado de promover a defesa do consumidor. Regulamentando esse dispositivo de ordem pública e interesse social, a lei complementar n.º. 8.078/90 adotou, pela primeira vez entre nós, o princípio da boa-fé objetiva, que tem por escopo equilibrar as relações jurídicas de consumo, corrigindo as cláusulas abusivas, a fim de que prevaleça a tão proclamada justiça e bem estar social - um dos objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito.

Aliás, sobre o tema, valho-me da opinião autorizada do professor Nelson Nery Júnior, um dos autores do anteprojeto que deu origem ao CDC, a seguir transcrita:

 

"Muito embora nosso Código Civil não contenha preceito expresso no sentido de que as relações jurídicas devam ser realizadas com base na boa-fé, como ocorre no direito alemão (§ 242 do BGB – Leistung nach Treu und Glauben – "Prestação segundo a boa-fé"), essa circunstância decorre dos princípios gerais do direito e a exigência de as partes terem de comportar-se segundo a boa-fé tem sido proclamada, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência.

 

O comportamento das partes de acordo com a boa-fé tem como conseqüência a possibilidade de revisão do contrato celebrado entre elas, pela incidência da clausula rebus sic stantibus, a possibilidade de argüir-se a exceptio doli, a proteção contra as cláusulas abusivas enunciadas no art. 51 do CDC, entre outras aplicações do princípio.

No sistema brasileiro das relações de consumo houve opção explicita do legislador ao primado da boa-fé. Com menção expressa do art. 4º, n.º III, do CDC à "boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores", como princípio básico das relações de consumo – além da proibição das cláusulas que sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade (art. 51, n.º IV) – o microssistema do direito das relações de consumo está informado pelo princípio geral da boa-fé, que deve reger toda e qualquer espécie de relação de consumo, de contrato de consumo, etc." (Código de Defesa do Consumidor Comentado, obra coletiva, 5ª edição, editora Forense Universitária, pág. 351).

É dever do Juiz, pois, diante de situações que tornem desiguais as prestações entre as partes, promover a revisão ou modificação do contrato (art. 6º, inciso V, do CDC), aplicando o princípio da boa fé objetiva em detrimento do dogma pacta sunt servanda, sempre em busca da justiça contratual.

Com efeito, "No regime jurídico do CDC as cláusulas abusivas são nulas de pleno direito porque contrariam a ordem pública de proteção ao consumidor. Isso quer dizer que as nulidades podem ser reconhecidas a qualquer tempo e grau de jurisdição, devendo o juiz ou tribunal pronunciá-las, porque normas de ordem pública insuscetíveis de preclusão" (Nelson Nery Júnior, obra citada, pág. 367).

Os juros normalmente incidentes e cobrados, constantes do contrato de adesão são abusivos, o que implica em desvantagem exagerada para o consumidor (art. 51, inciso IV CDC). Penso assim, porque sou partidário daqueles que estão convencidos da ilegalidade da elevação das taxas de juros acima de 12% ao ano, seja em razão da auto-aplicabilidade do art. 192, § 3º da Constituição, ou em face ao que dispõe a Lei de Usura, ainda em vigor. Percebo, também, que os agentes financeiros promovem, indevidamente, a capitalização mensal dos juros, um verdadeiro anatocismo, além de exigirem dos inadimplentes comissão de permanência à maior taxa por eles praticada e multa moratória de 10%.

Diverge o Supremo Tribunal Federal (súmula 596), da auto-aplicabilidade do § 3º, do art. 192, da nossa Carta Maior, por entender que a expressão "nos termos que a lei determinar", remete para a legislação infraconstitucional a definição do que sejam juros reais. Contudo, não há com se aceitar esta afirmação posto que a mencionada lei reguladora está prevista no caput do artigo e atinge somente as questões elencadas nos incisos (I a VII). O parágrafo 3º trata de questão totalmente desvinculada do caput e seus parágrafos. Nestes, a Lei Maior contém disciplina do Sistema Financeiro Nacional, determinando que a lei infraconstitucional deverá dispor sobre sua estrutura e funcionamento. Enumerando os casos que necessitam de regulamentação. Os juros estão disciplinados em parágrafo que tem conteúdo de autonomia. Se o constituinte quisesse submetê-lo à lei complementar, tê-lo-ia inserido num dos incisos.

Sobre esse aspecto, veja-se ademais a orientação do constitucionalista José Afonso da Silva que assim leciona:

 

"Está previsto no § 3º do art. 192 que as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão do crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar."

".(Curso de Direito Constitucional Positivo, Editora Revista dos Tribunais, 6ª. Ed. págs. 694/695).

 

Esse dispositivo causou muita celeuma e muita controvérsia quanto à sua aplicabilidade.

Se trata de uma norma autônoma, não subordinada à lei prevista no "caput" do artigo. Todo parágrafo, quando tecnicamente bem situado (e este não está porque contém autonomia de artigo), liga-se ao conteúdo do artigo, mas tem autonomia normativa. Veja-se, p. ex., o § 1º do mesmo art. 192. Ele disciplina assunto que consta dos incs. I e II do artigo, mas suas determinações, por si, são autônomas, pois uma vez outorgada qualquer autorização, imediatamente ela fica sujeita à limitações impostas no citado parágrafo.

Se o texto, em causa, fosse um inciso do artigo, embora com, normatividade formal autônoma, ficaria na dependência do que viesse a estabelecer a lei complementar. Mas, tendo sido organizado num parágrafo, com normatividade autônoma, sem referir-se a qualquer previsão legal posterior, detém eficácia plena e aplicabilidade imediata. O dispositivo, aliás, tem autonomia de artigo, mas a preocupação muitas vezes revelada ao longo da elaboração constitucional, no sentido de que a Carta Magna de 1988 não aparecesse com demasiado número de artigos, levou a Relatora do texto a reduzir artigos a parágrafos e uns e outros, não raro, a incisos. Isso, no caso em exame não prejudica a eficácia do texto.

Outros argumentos se somam a este para referendar a aplicação dos juros a 12% ao ano, merecendo de logo destaque as decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, primeiro a abraçar tal entendimento, onde se demonstra, inclusive, que a nossa Constituição recepcionou a limitação de juros prevista na Lei de Usura (Decreto n.º. 22.626/33), a qual não foi revogada pela Lei de Mercado de Capitais (Lei n.º. 4.595/64) afirmando ainda que o Conselho Monetário Nacional não pode regular as taxas de juros, matéria que hoje é da competência exclusiva do Congresso Nacional por força do que dispõem os artigos 22 e 48 da nossa Carta Magna:

"Os argumentos esposados são fortes e coerentes com a posição deste Grupo, que tem afirmado a limitação de juros em 12%, quer pela ótica da auto-aplicabilidade da norma do art. 192, §3, da CF/88, quer pela orientação da lei infraconstitucional onde a tradição do Direito Civil brasileiro (arts. 1.062/1.063), assim como o Decreto n.º 22.626/33, em seu artigo 1, que proíbe a fixação de juros superiores ao dobro da taxa legal e em seu art. 4, no sentido de afastar a contagem de juros sob juros, o chamado anatocismo, e, em seu art. 11, determinando a nulidade de ato que ofenda tal determinação legal.".

Atinente à limitação dos juros com base na norma constitucional, é entendimento majoritário no Grupo de Câmaras do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que é auto-aplicável a norma do art. 192, §3º, da CF, eis que se trata de norma positiva com incidência imediata, dispensando qualquer regulamentação.

Qualquer lei editada visando a regulamentar a matéria de juros não poderá infringir a norma constitucional, que é limitadora e não pode ser desobedecida. Por sinal, até o presente momento nenhuma lei foi estabelecida com o objetivo de interpretação do art. 192, §3, da CF. A polêmica existe sobre a auto-aplicabilidade, ou não, dessa norma constitucional, mas passados alguns anos, ainda não há uma regulamentação sobre tão importante assunto. Vive-se hoje sob o Plano Real, que objetiva a estabilização econômica do Brasil, cuja implantação de uma nova moeda visou a reduzir a inflação e mantê-la em níveis que atendam o normal desenvolvimento do País.

 

Havendo uma regra constitucional, a economia se deve ajustar a ela, e os planos implantados devem buscar o equilíbrio econômico social, e isso se consegue se todos forem tratados em igualdades de condições. Por isso é que as instituições bancárias não podem ser beneficiárias de privilégios, tratadas diferentemente do restante da sociedade e desatenderem à determinação da norma do art. 192, § 3º, da CF, que é proibitiva, e, assim, de incidência imediata, e nenhuma lei complementar ordinária poderá estabelecer taxa de juros superior àquela limitada na Constituição.

Não se pode admitir o procedimento das instituições financeiras que procuram interpretar favoravelmente a elas o disposto no inciso IX do art. 4 da Lei n.º 4.595/64, querendo que seja ilimitada a possibilidade de limitar as taxas de juros e que estariam simplesmente cumprindo orientação do Conselho Monetário Nacional, que não tem competência ou atribuição para fixar taxa de juros.

Ora, assim pensando, significa tornar incontrolável a forma como irão remunerar o capital nos empréstimos bancários. Dentre muitos julgamentos ocorridos no mesmo Grupo de Câmaras acima mencionado, citam-se os EI 1931213163, 194000196, 194148391, 1950566668, 195022116, 195048954 E 195070206.

 

Vale citar, entretanto, por sintetizar esse pensamento, a jurisprudência daquele Tribunal, AC 191159515, in Julgados do TARGS, 81/314: " A lei n.º 4.595/64 não revogou o art. 1.062 do CC, nem os arts. 1 e 13 da Lei de Usura (Decreto n.º. 22626/33). Limitar não é sinônimo de liberar e muito menos majorar: a exegese iníqua e equivocada do art. 4, VI e IX, da Lei n.º. 4.594/64, consagrada na Súmula 596 do STF."

O § 3º do art. 192 da CF/88 contém norma proibitiva e auto-aplicável, sem necessitar de qualquer complemento legislativo que, se editado, deverá moldar-se à vedação constitucional, e não ao contrário. Juros reais não carecem de definição em lei complementar, porque todos sabem do que se trata e porque a Carta Maior já regulou sua cobrança.

Ademais, reiteradamente, tem sido afirmado que a Súmula n.º 596 não revogou a de nº 121 do STF, que veda a capitalização de juros ainda que expressamente convencionada, o chamado anatocismo, nem mesmo a Lei n 4.595/64, embora posterior ao Decreto n.º 22.626/33 (Lei de Usura), não o alterou, e por isso continua vedada a cobrança de juros sobre juros.

A Constituição Federal veio confirmar uma tradição do Direito brasileiro de limitação dos juros, e por isso a razão de entender a norma constitucional do art. 192, § 3º, de imediata aplicação.

Se nenhuma norma infraconstitucional poderá elevar a taxação acima do mencionado teto, não se vê como deixar de reconhecer a este aplicação imediata. Até mesmo por ser norma que apenas repete, erguendo-se à Lei Maior, a limitação há muito tempo inserida em nossa legislação ordinária. E por isso, ad argumentandum tantum, se na ausência de lei complementar devesse ainda ser observada a legislação anterior à Constituição de 1988, ainda assim a taxa de juros reais não poderia ser superior a doze por cento ao ano.

Mesmo os que não admitem a auto-aplicabilidade da regra do art. 192, § 3º, da CF têm entendido pela limitação dos juros, porque todas as determinações e delegações que eram estabelecidas antes da CF/88, como é o caso da orientação pelo Conselho Monetário Nacional no sentido de poder limitar taxas de juros com base na Lei n 4.595/64 (art. 4º, incs. IV, IX e XVII), teriam perdido a eficácia diante do disposto no art. 25 do ADCT, dentro da independência dos Poderes, num verdadeiro estado de direito, que se estabeleceu com a nova Constituição, transferindo para o Congresso Nacional a efetiva competência (art. 48, inc. XIII), para tratar de matéria na área financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações. Neste posicionamento também se faz referência ao art. 68, em seu § 1º, que determina a proibição de delegação de atos de competência exclusiva do Congresso Nacional.

Com tal raciocínio (AC n. 195132154), o Des. Jorge Alcebíades Perrone de Oliveira, então integrante da 5a. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, firmou posicionamento no sentido de buscar a limitação de juros dentro da própria norma do art. 1º do Decreto n 22.626/33:

'Juros. Limite de 12% a/a. Os juros estão limitados a 12% a/a, porquanto a Constituição Federal não recepcionou a norma que, segundo a Súmula n 596, delegava ao Banco Central, como órgãos do CMN, regular as taxas de juros. Segundo os arts. 22 e 48 da CF, a matéria hoje é de competência exclusiva do Congresso Nacional. Os arts. 68 da CF e 25 do ADCT claramente revogaram as delegações de competência normativa. Revogada a Lei n.º 4.595/64, nessa parte, continua em vigor a Lei de Usura'.

É sabido que as instituições bancárias, conforme a linha de crédito concedido, fixam uma forma de remuneração de capital emprestado, e impõem determinadas condições, inclusive com a capitalização mensal e até diária, mesmo sabendo das disposições proibitivas do Decreto n 22.626/33 (art. 4º), a denominada Lei de Usura. Até quem não admite a auto-aplicabilidade do artigo 192, § 3º, da CF/88 vê na infringência à lei infraconstitucional uma desobediência praticada unilateralmente pelas instituições bancárias.

Estas instituições, pelo que se constata, insistem em dar interpretação à Lei n. 4.595/64, em seus incs. IV, IX e XVII, só para exemplificar, assim relativamente à Súmula n 596 do STF, num sentido em que se colocam como emprestadoras de dinheiro, estariam fora da incidência da chamada Lei de Usura, dizendo e afirmando que as normas desse Decreto se encontram revogadas e, em conseqüência, liberadas para praticar taxas de juros.

Desconhecem também que existe uma nova Constituição, desde 1988, estabelecendo princípios, limitando juros e determinando a competência exclusiva em matéria financeira, inclusive no que concerne às próprias instituições bancárias e suas operações.

As instituições bancárias insistem em dar interpretação na referida Lei n.º 4.595/64 e afirmam-se na Súmula n 596 do STF, no sentido de que estariam fora da incidência da chamada Lei de Usura e totalmente livres para estabelecer taxas de juros nas operações de empréstimo bancário.

É lógico que uma fundamentação calcada sobre atos de delegação, portarias, comunicações, atos normativos oriundos do CMN, através do BACEN, de uma lei ou súmula que excluem alguns e privilegiam outros, não pode afastar uma orientação legal que não foi revogada, ofendendo a Constituição que estabelece uma limitação de juros que se constitui numa prática dentro da história do Direito brasileiro.

Não bastasse esta linha de raciocínio, há ainda uma outra que visa a proteger o consumidor quando há flagrante situação de excessiva onerosidade no contrato, onde a ilegalidade se faz presente, e se constatam cláusulas ilícitas e abusivas, desequilibrando as partes e com isso causando indiscutível desigualdade e tornando impossível o cumprimento de uma exigência, exatamente porque ultrapassa os limites do razoável, e por mais que a parte financiada efetive pagamentos, faça consignação daquilo que entenda certo e justo, jamais conseguirá cumprir uma obrigação que lhe é exigida.

Então, não se pode deixar de aplicar também as normas previstas no Código de Defesa do Consumidor, onde em seu art. 51, inc. IV, considera nulas as cláusulas que estabelecem contratualmente obrigações neste sentido: "Art. 51 - São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: ...IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade".

Além disso, há uma norma que reiteradamente tem sido lembrada e aplicada em decisões dos Tribunais e das mais altas Cortes Superiores, que é o art. 115 do CC (AC. ns. 189041908, 192085744 e 194197380) e que visa coibir situações irregulares e estabelecidas de forma unilateral a criar prejuízo evidente para um parte, beneficiando a outra. O Código de Defesa do Consumidor (Lei n 8.078, de 11-09-90), que entrou em vigor em março/91, tem o objetivo de reparar ilegalidades existentes num contrato e estipulações que possam ser consideradas excessivas. Em tal campo estão aqueles encargos que oneram a parte financiada e que a deixa impossibilitada de cumprir uma obrigação, pela reiterada e crescente exigência de valores que se vão somando e tornando-se incomparavelmente superiores ao próprio valor assumido no contrato." (Emb.Infringentes n.º 195038179 - 3 Grupo Cível do TARS, rel. Juiz Silvestre Jasson Ayres Torres, 24.5.96, Julgados do Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul n.º 99/162-174).

A respeito da exigência de se conceituar o que seja de juro real, o Min. Paulo Brossard, na ADIN n.º 04, assim se manifestou:

"Alega-se que a discussão do disposto no § 3º em causa supõe prévia definição de juro real. Ora é oportuno lembrar que a Constituição, em regra, usa palavras e expressões no sentido corrente e popular. É claro que não vejo necessidade alguma que o legislador venha a dizer o que a Constituição já disse, o que seja juros real. Mas eu lembraria que o legislador não definiu o que era juro e nenhuma instituição financeira deixou de cobrar juros por ignorar sua definição legal..... Da mesma forma que a Constituição não define o que seja juro, nem o Código Civil, nem a lei da usura, nem a Lei 1.521, nem a Lei 4.595, não há necessidade de definir o que seja juros real, para que seja cumprido o mandamento expresso e taxativo do § 3º do art. 192 da Constituição. Não há quem não sabe o que seja juro real".

Segundo José Afonso da Silva, "Juros reais os economistas e financistas sabem que são aqueles que constituem valores efetivos, e se constituem sobre toda a desvalorização da moeda. Revela ganho efetivo e não simples modo de corrigir desvalorização monetária.

As cláusulas contratuais que estipularem juros superiores são nulas. A cobrança acima dos limites estabelecidos, diz o texto, será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei dispuser. Neste particular, parece-nos que a velha lei de usura (Dec. 22.626/33) ainda estar em vigor" (obra citada, pág. 695).

Aliás, muitos são os juristas que abraçam a tese da limitação dos juros constitucionais em 12 % ao ano, entre eles: Vilson Rodrigues Alves (Responsabilidade Civil dos Estabelecimentos Bancários, Editora Bookseller); Edvaldo Brito (A Constituição Brasileira, obra coletiva, Forense Universitária); José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, Editora RT); Eros Roberto Grau, Sergio Gischklow Pereira, Araken de Assis ( artigo e decisões publicadas em A Luta contra a usura, Organização Fernando Gasparian, Coordenação de Roberto Fernandes de Almeida, Editora Graal); Nagib Slaibi Filho (Anotações à Constituição Federal de 1988, Editora Forense).

Ademais, a jurisprudência vem se firmando no sentido de que a expressão nos termos em que a lei determinar transfere à legislação infraconstitucional exclusivamente a definição da ilicitude penal (crime de usura), naturalmente em respeito ao princípio da reserva legal (RT 675/188).

Uma outra cláusula abusiva que corriqueiramente é utilizada, extremamente danosa aos mutuários, diz respeito a possibilidade da própria Instituição Financiadora estipular unilateralmente e ao seu exclusivo arbítrio a taxa de comissão de permanência a ser cobrada, sem a participação ou a anuência expressa do aderente quanto a forma e os métodos utilizados, o que torna ainda mais escancarada a abusividade dos contratos normalmente utilizados, caindo na moldura típica do art.115, segunda parte, do Código Civil, que proíbe as condições puramente potestativas se advindas do mero arbítrio de um dos sujeitos.

Maria Helena Diniz, em seu Código Civil Anotado, (Editora Saraiva, 1995, pág. 119) afirma que tal nulidade, por ser absoluta, deve ser reconhecida de ofício pelo Juiz, assim como determina o art. 146 do Código Civil. Aliás, o próprio Código Protecionista, em seu art. 51, inciso X, proíbe expressamente cláusula que permita, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral, o que é o bastante para fulminá-la de nulidade.

Além disso, essa comissão de permanência exigida nos contratos de mútuo, na hipótese de pagamento com atraso, mascara verdadeira elevação da taxa de juros moratórios, o que implica em uma cumulação indevida, provocando um insuportável bis in idem.

Vejamos, a propósito, em caso semelhante, a seguinte decisão do STJ, sendo Relator o Ministro Sálvio de Figueiredo, Resp-28.907:

"Aliás, em relação ao tema, é de considerar-se que os juros remuneratórios são invariáveis, esteja ou não em mora o devedor. Referidos juros, como a própria designação sugere, são remuneração do capital mutuado pelo tempo que o mutuário dele dispuser. Irrelevante, pois, o vencimento do contrato de mútuo. Pelo tempo que o devedor utilizar o dinheiro, vencido ou não o contrato, pagará o rendimento que presumidamente o capital produziria se estivesse disponível, rendimento esse inalterável em função de eventual inadimplemento. Desse jaez são, inclusive, os juros da caderneta de poupança, de 0,5% ao mês.

Já os juros moratórios, estes sim, têm caráter de sanção pelo não pagamento no termo devido. E, no mútuo rural, são por lei limitados a 1% ao ano.

Assim, cláusula que preveja a majoração dos juros remuneratórios em caso de inadimplemento é cláusula que visa a burlar a disciplina legal, fazendo incidir, sob as vestes de juros remuneratórios, autênticos juros moratórios em níveis superiores aos permitidos."

O que se vê, porém, é que a elevação dos juros moratórios a níveis superiores aos permitidos ocorre sob as vestes de comissão de permanência, o que, como visto, é inadmissível, sendo tal cláusula nula de pleno direito .

De qualquer sorte, a Súmula n.º. 30 do STJ já determinou que "A comissão de permanência e a correção monetária são inacumuláveis". Valendo lembrar, sob esse aspecto, os ensinamentos do Professor Vilson Rodrigues Alves, com lastro em decisão do STJ, 4ª Turma, RecEsp. 2.001-SP, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo, j.4.11.90, vu, no sentido de que "...cabe ao estabelecimento bancário o exercício do ônus de provar que não há essa cumulação da comissão de permanência com a atualização monetária com o caráter bis in idem."

(Responsabilidade Civil dos Estabelecimentos Bancários, Editora Bookseller, 1ª Edição, 2ª tiragem, pág. 242).

Se não se demonstrar a inexistência dessa cumulação indevida, tem plena incidência o direito sumular, cabendo por conseguinte a exclusão da incidência da comissão de permanência para que flua apenas a correção monetária, ex lege, com o cômputo dos juros legais.

Nula, também, é a capitalização diária de juros, seja por força do que dispõe a Súmula 121 do Supremo Tribunal Federal: "É vedada a capitalização de juros, ainda que convencionada", ou em razão do art. 4º, do Decreto 22.262/33, o qual não foi revogado pela Lei 4.595/64, como já adrede afirmado, excetuando-se, apenas, os casos admitidos em leis posteriores que autorizam expressamente outras formas de capitalização, como o do crédito rural, industrial ou comercial. Em regra, o nosso ordenamento jurídico só permite a capitalização anual: "A capitalização, se incidente, não poderá ser mensal por contrariar o disposto no art. 4º, da Lei de Usura e Súmula n.º 121 do STF, recepcionados pela Constituição federal (art. 192, § 3º) que ao definir e conceituar juros reais somente fez referência à anuidade" (Apel. Civ. n.º.197002009 – Terceira Câm. Civ. – Rel. Aldo Ayres Torres – TARGS – 1997).

Outra cláusula contratual absolutamente nula que é utilizada escancaradamente pelos Bancos é a que estabelece obrigação de "de pagar multa contratual de 10% (dez por cento) sobre o valor do débito", haja vista que a Lei n.º 9.298, de 1º de agosto de 1996, alterou a redação do § 1º, do art. 52 do CDC, passando a constar da seguinte forma: "As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigação no seu termo não poderão ser superiores a 2% (dois por cento) do valor da prestação".

A lei que alterou o Código de Defesa do Consumidor é plena e imediatamente aplicável, haja visto que os contratos de adesão de efeitos futuros não geram direitos adquiridos em face a uma Lei de ordem pública, de fim social e previsão constitucional,( ver art. 5º, XXXII c/c o art. 170, V, ambos da Constituição Federal e art. 1º da Lei n.º. 8.078/90).

A propósito, interessante citar, a respeito do tema, trecho do artigo de autoria de José Luiz Bayeux Filho, intitulado de o Código de Defesa do Consumidor e o Direito Intertemporal, publicado no livro Direito do Consumidor, vol. 5º, Editora Revista dos Tribunais, pág. 65/66 e 68:

"Se certas cláusulas do contrato de adesão, não refletem qualquer acordo de vontades, mas tem caráter de preceitos estatutários, entende-se que, ao receber o impacto da lei nova, esta atue de imediato sobre tais cláusulas, desprezando a sua aparência formal, e atingindo-as no seu conteúdo verdadeiro, ou seja, na sua natureza mesmo de regras estatutárias, que, como tal, não tem aptidão para gerar direitos adquiridos para efeitos futuros.

"... vamos reafirmar a nossa opinião no sentido da aplicação imediata da verdadeira lei de ordem pública aos facta pendentia, e, in concreto, da aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos, que envolvam relações de consumo, ainda em andamento, firmados antes do seu advento.

"O contrato da atualidade não pode ter mais, por pressupostos, aquela idéia romântica de dois cavalheiros da bella époque, que se sentavam numa mesa para negociar, de suas confabulações nascendo o famoso acordo de vontades. O que vemos hoje, em 90% dos casos, é contrato de adesão, contrato-estatuto, que, como insistia Orlando Gomes, de contrato tem pouco mais do que o nome".

 

Também merece destaque sobre esse assunto, a opinião do Professor Vilson Rodrigues Alves:

"Essa regra jurídica, a exemplo das demais insertas no Código de Proteção do Consumidor, é de ordem pública. Explicitamente diz o art. 1º da Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990, ao anunciar que esse código "...estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos do art. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e o artigo 48 de suas Disposições Transitórias".

Ainda que em curso o negócio jurídico com cláusula de multa em percentual superior a dois por cento, não será dado ao estabelecimento bancário credor o exercício de pretensão à sua cobrança, que deixou de ser legal.

Com sua publicação em 2 de agosto de 1996, operou-se imediatamente a incidência da regra jurídica limitativa, com abrangência inclusive dos contratos de execução continuada ou diferida, mesmo que celebrados anteriormente.

Eventual alegação de direito adquirido não colheria, porquanto como assente no Supremo Tribunal Federal, que "não pode prevalecer direito adquirido contra a ordem pública".

Ademais, se no contrato há cláusula a prever a multa em percentual superior a dois por cento, por exemplo em dez por cento do valor da prestação em atraso, não se pode deixar de considerá-la nula, na medida que são absolutamente inválidas as cláusulas contratuais que estabeleçam obrigação abusiva, ou que estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor - (obra citada, pág. 251).

Incontroverso que, se se estiver diante de um típico contrato por adesão, cujas cláusulas foram estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor, contendo cláusulas nulas por infringência às normas constitucionais e do Código do Consumidor, deverão as mesmas ser reconhecidas "ex officio" como nulas de pleno direito.

 

 

 

 

Não se ignora que o entendimento e as conclusões deste trabalho acadêmico, são minoritários; mas se não se começar, quando menor a plantar uma semente de esperança de uma mudança radical acerca do assunto, dificilmente alcançar-se-á, algum dia, um estado efetivamente de direito, onde a igualdade de todos perante a lei não continuará a ser uma mera questão de retórica. Não se pode permanecer aguardando, em berço esplêndido, eternamente silentes, compassivos até a edição de uma lei complementar totalmente desnecessária e que não hesita-se em afirmar, jamais será editada. Pelo menos não, enquanto os nossos legisladores, ou pelo menos a maioria deles, emprestarem maior valor aos interesses puramente econômicos dos grandes organismos financeiros, relevando ao mais completo ostracismo os interesses do nosso povo e das empresas pequenas e genuinamente nacionais.

Se hoje, vivemos num país, teoricamente sem inflação, ou com índices inflacionarios baixíssimos, não se justificam de modo algum, as taxas que estão sendo postas em prática pelas casas financeiras. Juros convencionais de 12%, nesse passo, até se revelam bastante altos em uma economia onde se não reconhece praticamente a existência de inflação, e na qual se outorga, aos que auferem um minguado salário mínimo, aumento anual equivalente a pouco mais de sete por cento (7%).

A mistificação há que ser considerada em parâmetros reais. Ou existe inflação ou não existe. Se existe, há que se considerá-las para todos. Inexistente ela, elevadas taxas de juros nada mais significam que não um verdadeiro estelionato e, com o benefício do Judiciário, estelionato legalizado, equivalente a ganhos ilícitos, a enriquecimento ilegal, a locupletamento sem causa e imoral; em síntese, à opressão do economicamente mais forte, em detrimento dos menos favorecidos, a vitória esmagadora do capital sobre o trabalho, o que impede o crescimento do país e a saída de seu povo de uma situação de extrema penúria e miséria, assim reconhecida recentemente por organismos mundiais sérios e confiáveis, que classifica o Brasil como o mais injusto em termos de distribuição de riquezas, o que em linhas finais há de ser considerada como a verdadeira miséria, não só financeira mas, principalmente moral.