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A CONSTITUIÇÃO DE 1824 E A MP
(OU AS MEDIDAS PROVISÓRIAS E O IMPERADOR)


 


JANILSON BEZERRA DE SIQUEIRA

JUIZ FEDERAL SUBSTITUTO NA PARAÍBA



O presente artigo não pretende personalizar a discussão sobre a prática da edição de medidas provisórias pelo chefe do Poder Executivo brasileiro, embora tenha muitas razões para isso. São, desde a promulgação da Carta de 1988, mais de 1.500 MP’s editadas e reeditadas pelos últimos Governos, boa parte delas não apreciada pelo Congresso Nacional no prazo fixado constitucionalmente, tratando dos mais variados assuntos, inclusive majoração de tributos. Exercita-se, aqui, tão somente uma comparação entre regras aparentemente contraditórias em termos de evolução histórica e política em dois momentos da vida nacional, uma inserida no texto da Constituição imperial de 1824, outorgada por Dom Pedro I, e outra integrante da Constituição Federal em vigor, promulgada com a normalização democrática, após o fim do regime de exceção iniciado em 1964.

Nada, então, como debruçar-se sobre os textos do passado e do presente para se examinar a experiência dos fatos em face das normas e buscar aprender alguma coisa de útil com eles. Essa preocupação adquire especial importância, nessa altura dos debates sobre a reforma constitucional em curso no Brasil, considerando que a sociedade e o direito visam justamente a conformação, a convivência e a harmonia entre os indivíduos, com o estabelecimento pela Constituição de limites ao exercício do poder pelo Estado em relação à cidadania, tudo fundado na democracia e na experiência das relações da vida, naturalmente inspiradoras de conflitos e controvérsias.

Não existiria sociedade se não houvesse o direito, e este não teria substância ou razão de ser se não se baseasse na experiência histórica. Pelo menos da forma como os conhecemos. Como fato próprio da cultura, inerente à condição humana, permite o direito o aprendizado de suas formas com os erros e acertos do passado, organizando-se inicialmente como costumes e tradições e posteriormente estruturando-se em regras e normas, ou leis, tendo por objetivo sempre a convivência pacífica entre os homens.

Naturalmente, como caminho de solução pacífica de conflitos, apresenta-se essa concepção do direito na prática bastante espinhosa, levando a sociedade em termos políticos, e especialmente legislativos, ora a avanços, ora a recuos. Fundamental, porém, nisso tudo, é o conjunto de conhecimentos e experiências extraídos dessa aventura, ensejadora da reflexão sobre a ocorrência ou não de efetivo progresso na vida de cada comunidade, sociedade ou país.

Todos conhecem a origem histórica recente das medidas provisórias da Constituição de 1988. Segundo autorizada doutrina, e de acordo com a própria redação do texto que serviu de modelo à lei constitucional brasileira, a edição dessa espécie normativa pelo Presidente da República teria inspiração no art. 77 da Constituição italiana ("Não poderá o Governo, sem delegação das Câmaras, editar decretos que tenham força de lei ordinária. Quando em casos extraordinários de necessidade e urgência, o Governo adote, sob sua responsabilidade, medidas provisórias com força de lei, deverá apresentá-las no mesmo dia para sua conversão às Câmaras, as quais, estando em recesso, serão devidamente convocadas e se reunirão dentro dos cinco dias seguintes. Os decretos perderão todo efeito desde o princípio se não forem convertidos em lei dentro dos sessenta dias de sua publicação. As Câmaras poderão, sem embargo, regular mediante lei as relações jurídicas surgidas em virtude dos decretos que não hajam resultado convertidos"), como substitutivo à indesejável prática da edição abusiva de decretos-lei sobre uma crescente gama de matérias pelo Poder Executivo e a possibilidade de sua aprovação por decurso de prazo.

Pois a norma constitucional de 1824 referia já naquele tempo justamente a edição de medidas provisórias pelo Imperador do Brasil, com seguinte enunciado:

"Art. 179. Omissis...
 
 

"XXXV - Nos casos de rebelião, ou invasão de inimigos, pedindo a segurança do Estado que se dispensem por tempo determinado algumas das formalidades, que garantem a liberdade individual, poder-se-á fazer por acto do Poder Legislativo. Não se achando porém a esse tempo reunida a Assembléia, e correndo a Pátrio perigo imminente, poderá o Governo exercer esta mesma providência, como medida provisória, e indispensável, suspendendo-a immediatamente que cesse a necessidade urgente, que a motivou; devendo num, e outro caso remetter à Assembléia, logo que reunida for, uma relação motivada das prisões, e doutras medidas de prevenção tomadas; e quaesquer Autoridades, que tiverem mandado proceder a ellas, serão responsáveis pelos abusos, que tiverem praticado a esse respeito" (SUBLINHEI).

É a esse título que trago à comparação distintos momentos da realidade jurídica e histórica nacional, perpetuados na redação dos arts. 189 da Constituição Imperial de 1824, e 62 e parágrafo único, da Constituição republicana de 1988; o primeiro, oriundo de Carta outorgada autoritariamente pelo príncipe; este último, fruto da conjunção democrática de interesses produzida após a derrocada do regime autoritário que se instaurou no País na década de sessenta.

O que chamará imediatamente a atenção do leitor nesse enunciado são as ressalvas à edição de medida provisória pelo Imperador, ainda que se possa argumentar com a não identificação completa entre os dispositivos, outras possibilidades de uso do poder pelo Imperador etc. E se comparados os momentos, ninguém deixará de reconhecer que, apesar da falta de democracia daquele período, própria do sistema então em vigor, referidas restrições apresentavam-se bem coerentes com o risco da concentração de poder que a edição dessas medidas proporcionava, e que, por sua vez, não se coaduna com o regime que se vive ou se imagina ter hoje, onde prevalece a democracia, a eleição direta em todos os níveis, Congresso em funcionamento, voto secreto, estado de direito, império da lei etc.

Também não se poderá desconhecer que, agora, qualquer presidente com tendências autoritárias, um pouco de habilidade política e senso de oportunidade sempre poderá governar os quatro anos de mandato (ou mais, diante da possibilidade de reeleição, caso aprovada a emenda respectiva no Congresso) lançando mão dessa espécie normativa, o que, no Império, repita-se, mesmo diante de toda a força autocrática do príncipe, era formalmente dificultado. Pelo menos, através de medida provisória.

Que tal, então, diante das circunstâncias políticas nacionais, com as classes jurídicas e políticas propugnando - o próprio presidente do Congresso está a defender um modelo de controle sobre o uso indiscriminado de medidas provisórias - uma proposta que fizesse retornar, com a necessária atualização, a antiga redação do art. 179, inciso XXXV, da Constituição do Império? Como seria visto pela sociedade uma emenda dessa natureza?

Eis um assunto a se pensar.

Retirado da Internet em
http://www.infojus.com.br/area3/janilsonsiqueira.htm