A CONSTITUIÇÃO E A REEDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS
Toshio Mukai
Ultimamente o presidente da República tornou a reiteração
da edição das medidas provisórias uma praxe comum
e corriqueira, tanto que passou a simplesmente reeditá-las, mensalmente,
com idêntico conteúdo e a mesma numeração, apenas
acrescentando um ou dois dígitos, conforme o caso, para diferenciar
cada uma, seqüencial e sucessivamente, da que lhe antecedeu no mês
imediatamente anterior.
E todos os seus destinatários, a imprensa, o poder
público e até mesmo o Judiciário (pasmem) recebem
essa prática, absolutamente distorcida, inconstitucional e abusiva
de direitos e do exercício do poder, como sendo algo normal e desprovido
de conseqüências e responsabilidades jurídicas, como
se a norma constitucional pertinente fosse impregnada de valor apenas moral
ou ‘‘programático’’.
A bem da verdade, em face do texto constitucional em vigor
até seria possível admitir juridicamente a reiteração
das medidas provisórias por um certo número de vezes, talvez
três ou quatro vezes, mas nunca mais do que isso.
Além de nenhum rigor, nem pudor, quanto ao enquadramento
nos dois pressupostos básicos (a relevância e a urgência)
fixados pela Constituição para legitimar o uso desse instrumento,
é certo que o número excessivo de medidas provisórias
sobre os mais diversos assuntos e a sua excessiva reiteração
sobre o mesmo tema caracterizam, sem dúvida, violação
expressa da Constituição e abuso de poder.
Explicamos:
A Constituição de 1988 contemplou duas alternativas
baseadas na urgência à disposição do presidente
da República.
A primeira hipótese de urgência, de que se pode
valer o chefe do Poder Executivo, vem estampada no art. 62 da CF. Esse
preceito constitucional autoriza o presidente da República a adotar,
em caso de relevância e urgência, medidas provisórias,
com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso
Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente
para se reunir no prazo de cinco dias. As medidas provisórias editadas
com base nesse preceito constitucional perderão eficácia,
desde a edição, se não forem convertidas em lei no
prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo
o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas
delas decorrentes.
Portanto, eis a regra constitucional: a medida provisória
figura como instrumento de transição, onde o juízo
discricionário sobre a caracterização da urgência
tem sua legitimidade dependente de sua conversão em lei pelo Poder
Legislatvo dentro do prazo máximo de trinta dias.
Segundo essa regra, se não houver a conversão
dentro de tal prazo, não se terá completado o requisito constitucional
indispensável para a formação do consenso entre o
Executivo e o Legislativo sobre a ocorrência da relevância
e a urgência, único elemento capaz de assegurar a validade
da medida provisória. Configura-se então um ato constitucional
complexo em que a falta de um dos elementos formadores da vontade legislativa
constitucional basta para impregná-lo de insuperável inconstitucionalidade.
Daí ser a medida provisória incompatível
com a sua reiteração por longo período, posto que
essa prática lhe retira seu caráter de etapa provisória
na formação da vontade legislativa, pressuposto constitucional
de sua validade.
A segunda hipótese de urgência vem disposta
nos §§ 1º e 2º do art. 64 da Constituição,
que autoriza o presidente da República a solicitar urgência
para apreciação dos projetos de sua iniciativa. Nesse caso,
se a Câmara dos Deputados e o Senado Federal não se manifestarem,
cada qual, sucessivamente, em até quarenta e cinco dias, sobre a
proposição, será esta incluída na Ordem do
Dia, sobrestando-se a deliberação quanto aos demais assuntos,
para que se ultime a votação.
Portanto, a Constituição é clara: o
presidente da República tem, alternativamente, duas ordens de urgências
para serem utilizadas na aprovação de suas deliberações;
a primeira, com um prazo máximo de concretização de
trinta dias e a segunda de noventa dias.
Assim, se utilizando a primeira alternativa, não obtiver
a apreciação de sua medida provisória pelo Congresso
Nacional dentro do prazo constitucionalmente fixado, o presidente deve
valer-se, necessariamente, da segunda hipótese, aguardando noventa
e poucos dias para ver aprovado o conteúdo da sua proposição,
agora constante, não mais de medida provisória, mas de projeto
de lei.
Esse, em síntese, o ‘‘iter’’ que a Constituição
obriga ao presidente seguir, sob pena de prática de ato inconstitucional,
pois o que a Constituição quer, evidentemente, é prestigiar
o Poder Legislativo na feitura das leis. Daí ser, repetimos, a medida
provisória, exceção excepcionalíssima nesse
panorama constitucional. Em conseqüência, de acordo com a melhor
hermenêutica, o dispositivo constitucional que prevê a medida
provisória deve ser interpretado restritivamente consoante sua natureza
excepcional.
Quando, portanto, o chefe do Poder Executivo federal não
utiliza a segunda hipótese, reiterando como medidas provisórias
as que não foram aprovadas dentro do prazo de 30 dias, ajusta-se
a um ‘‘iter’’ não previsto e até mesmo repudiado pela Constituição.
Poder-se-ia, até mesmo, ‘‘cum gran salis’’, admitir
aquela reiteração por três vezes, até que se
cumpra o rito legislativo do art. 64 da Constituição acima
transcrito. Mas esgotados esses prazos, toda e qualquer urgência
estará fora de cogitação (pois naqueles noventa das,
ou se o reconhece ou não se o reconhece), e, portanto, insistir
nela será um ato de desvio de poder e de usurpação
do poder legislativo do Congresso Nacional.
Verifica-se, assim, que a reiteração exagerada
das medidas provisórias, por seis meses ou até mesmo por
mais de um ano, é um procedimento que violenta a Constituição
por mais de uma vez, posto que:
a) tal reiteração das medidas provisórias
além dos noventa dias já não conta mais com qualquer
respaldo constitucional baseado no pressuposto da urgência.
b) descaracteriza a medida provisória, que passa então
a ser diploma legal indefinidamente e, portanto, definitivo, com clara
usurpação das funções constitucionais atribuídas
ao Congresso Nacional.
c) a reiteração excessiva de medida provisória
constitui abuso de poder por afrontar as funções exclusivas
de legislar, e de inovar a ordem jurídica de acordo com os parâmetros
constitucionais, próprias do Congresso Nacional, pois tais medidas
provisórias, reeditadas indefinidamente, configuram o exercício
de função legislativa pelo Poder Executivo contrariamente
aos preceitos constitucionais pertinentes.
Portanto, tal procedimento se constitui em clara violação
do princípio da independência e harmonia dos poderes (art.
2º da CF), do princípio do Estado Democrático de Direito
(art. 1º da CF) e do disposto no parágrafo segundo do art.
62 da Constituição.
Destarte, a reiteração excessiva das medidas
provisórias, por parte do presidente da República, em última
análise, além de caracterizar abuso de poder, que deve ser
reprimido pelo Poder Judiciário, desde que para tal seja provocado,
se constitui em violação ao princípio da legalidade,
posto eu este princípio basilar do Direito Público, supõe,
obviamente, que o Executivo atue de acordo com a lei feita pelo Legislativo,
e não por ele próprio.
Ademais, como decorrência da adoção do
princípio do Estado Democrático de Direito, constitui direito
fundamental de todo cidadão que os poderes do Estado sejam exercidos
nos termos da Constituição Federal e em obediência
ao princípio da legalidade (inciso II do art. 5º da CF). O
cidadão não está juridicamente obrigado ao cumprimento
de medidas provisórias inconstitucionais, podendo insurgir-se contra
o seu conteúdo pelos meios judiciais ao seu dispor.
Reitere-se. A edição repetida das medidas provisórias
de forma excessiva, se constitui em atividade legislativa que o Poder Executivo
efetiva, sem ter, para isso, nenhum respaldo constitucional, portanto,
se caracterizando como desvio de poder e/ou usurpação de
poderes do Congresso Nacional.
Daí a absoluta inconstitucionalidade de tais medidas.
À reflexão dos doutos.
Toshio Mukai
Mestre e doutor em Direito do Estado pela
Universidade de São Paulo (USP)
Retirado da Internet em
http://www.geocities.com/CollegePark/Lab/7698/reedicaomedidaprovisoria.htm