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Luiz Carlos Lodi da Cruz*
O aborto como meio
No ano 70
d.C., a cidade de Jerusalém foi sitiada pelo general Tito, em represália a uma
rebelião dos judeus comandada pelo partido dos zelotes. Flávio Josefo, chefe
militar da Galiléia, foi capturado pelos romanos. Escreveu com detalhes os
horrores daquela guerra, e tentou, em vão, fazer com que seus compatriotas se
rendessem. O texto a seguir refere-se ao cerco de Jerusalém:
"Josefo,
cuja própria família sofreu com os sitiados, não recuou nem mesmo diante dum
episódio desumano que prova que o desespero da fome já começava a turvar a
razão dos israelitas.
Os zelotes
percorriam as ruas em busca de alimento. Duma casa saía cheiro de carne assada.
Os homens penetraram imediatamente na habitação e pararam diante de Maria,
filha da nobre família Bet-Ezob, extraordinariamente rica, da Jordânia
oriental. Maria tinha ido como peregrina a Jerusalém para a festa da Páscoa. Os
zelotes ameaçaram-na de morte se não lhes entregasse o assado. Perturbada, a
mulher estendeu-lhes o que pediam, e eles viram, petrificados, que era um
recém-nascido meio devorado – o próprio filho de Maria" [1].
Poder-se-ia
tentar justificar a atitude da mulher faminta, com o seguinte argumento: se ela
não tivesse matado o próprio filho, ambos teriam morrido; ao matá-lo para
saciar sua fome, pelo menos uma das vidas foi poupada.
No entanto,
matar diretamente um ente humano inocente é um ato intrinsecamente mau, que não
pode ser justificado nem pela boa intenção, nem pelas possíveis boas
conseqüências, nem sequer pelo estado de extrema necessidade. Nunca é lícito
matar diretamente um inocente, nem sequer para salvar outro inocente.
No
repugnante caso acima, a morte do bebê era um meio para salvar a vida da mãe.
Analogamente, se durante uma gestação o aborto fosse um meio para salvar a vida
da gestante — e ainda que fosse o único meio — tal ato seria gravemente imoral.
É dever do médico salvar mãe e filho, mas não se pode salvar um deles por meio
da morte do outro. O fim, por mais nobre que seja, não justifica um meio mau
utilizado para alcançá-lo.
Há, contudo,
depoimentos médicos que negam com veemência que o aborto possa servir de meio
para salvar a vida da gestante. Segundo a Academia de Medicina do Paraguai
(1996), "em casos extremos, o aborto é um agravante, e não uma solução
para o problema" [2]. Já em 1965, o médico-legal João Batista de Oliveira
Costa Júnior, em sua aula inaugural para os alunos dos Cursos Jurídicos da
Faculdade de Direito da USP, referindo-se ao aborto "necessário" ou
"terapêutico" dizia:
Digo,
inicialmente, que se me fosse permitido, chamá-lo-ia de abôrto desnecessário
ou, então, de abôrto
anti-terapêutico.
[...]
Ante os
processos atuais da terapêutica e da assistência pré-natal, o abôrto não é o
único recurso; pelo contrário, é o pior meio, ou melhor, não é meio algum para
se preservar a vida ou a saúde da gestante [3].
Resumindo:
segundo afirmações contundentes de médicos, não há caso em que o aborto seja
meio para salvar a vida da gestante. Se houvesse tal caso, o aborto continuaria
sendo imoral.
O aborto como segundo
efeito
O aborto
diretamente provocado, ou seja, querido como fim ou como meio, é um pecado
gravíssimo. Porém há procedimentos médicos ou cirúrgicos que em si não são
abortivos, mas que podem ter como efeito secundário e indesejado (embora
previsível) a morte do bebê por nascer. Em tais casos, a morte do inocente, se
houver, ocorrerá indiretamente, como segundo efeito de uma ação que, em si, é
boa.
Por exemplo,
uma intervenção cirúrgica cardiovascular em uma mulher grávida pode ter como
conseqüência a morte do nascituro. Em tal caso, a morte do inocente não é um
fim visado pela cirurgia (o fim é a cura da cardiopatia). Também não é um meio
(pois não é a morte da criança que "causa" a cura da mãe). É
simplesmente um segundo efeito.
Para que se
possa, porém, tolerar o risco de um efeito secundário mau, é preciso que o bem
a ser alcançado seja proporcionalmente superior ou ao menos equivalente a ele.
No caso relatado, a cirurgia não seria lícita se fosse possível esperar até o
nascimento do bebê ou se houvesse outro meio terapêutico que fosse inofensivo
para a criança.
Note-se bem
que não se trata de "praticar um ato mau com boa intenção". Isso
nunca é moralmente lícito. O fim não justifica os meios, embora Maquiavel tenha
dito o contrário.
Repita-se: a
morte do bebê nunca pode ser querida como fim nem como meio. Quando muito, pode
ser tolerada como um segundo efeito de uma ação boa.
O princípio da causa
com duplo efeito
Muitos de
nossos atos bons produzem efeitos maus indesejados mas inevitáveis. Ao tomarmos
uma aspirina para curar uma dor de cabeça, podemos causar dano ao estômago. Ao
corrigirmos o próximo, às vezes ele se sente humilhado ou envergonhado. Ao
lutarmos contra o aborto, causamos a ira dos abortistas.
Podemos
praticar tais atos, que tenham duplo efeito: um bom e outro mau? Sim, mas com
algumas condições.
a) que a
intenção do agente seja obter o efeito bom, e não o mau;
b) que o
efeito bom seja obtido diretamente da ação, e não através do efeito mau;
c) que o
efeito bom seja proporcionalmente superior ou ao menos equivalente ao efeito
mau;
d) que não
haja outro meio de se obter tal efeito bom, a não ser praticando a ação boa que
produz tal efeito secundário mau.
No princípio
em questão, trata-se de praticar um ato bom com boa intenção, mas que produz um
efeito colateral mau indesejável, mas inevitável, embora previsível. Vejamos o
exemplo seguinte:
Uma mulher
grávida sofre de uma infecção renal. O médico prescreve-lhe um antibiótico. Há,
porém, o perigo remoto de a droga causar danos ao nascituro. No entanto, não há
outro antibiótico que seja menos nocivo ao bebê e nem é possível esperar o
nascimento da criança para iniciar o tratamento.
Nesse caso:
a) a
intenção do agente é curar a infecção renal (efeito bom) e não causar dano ao
nascituro (efeito mau);
b) a cura da
infecção renal (efeito bom) é obtida diretamente da ação de tomar o
antibiótico, e não através do dano causado ao nascituro (efeito mau). Se,
absurdamente, a mulher não tomasse o antibiótico, mas lesasse diretamente seu
bebê, tal dano não iria causar a cura de sua infecção renal.
c) como a
chance de lesão à criança, embora exista, é pequena, e como o tratamento é
urgente, o efeito bom (a cura da infecção renal) é proporcionalmente superior
ao possível efeito mau.
d) não há
outro meio de se obter a cura da infecção, a não ser pela ingestão de um
antibiótico. O médico poderia prescrever outro antibiótico, mas nenhum seria
isento de riscos para a criança.
Logo, o ato
pode legitimamente ser praticado.
O princípio
da causa com duplo efeito foi descrito de maneira lapidar pela Academia de
Medicina do Paraguai (1996):
"Não
comete ato ilícito o médico que realize um procedimento tendente a salvar a
vida da mãe durante o parto ou em curso de um tratamento médico ou cirúrgico
cujo efeito cause indiretamente a morte do filho, quando não se pode evitar
esse perigo por outros meios" [4].
Resumindo:
provocar diretamente o aborto é inadmissível, ainda que ele fosse o único meio
de salvar a vida da gestante. Porém, a morte indireta de um inocente, como a
criança por nascer, pode às vezes ser tolerada como efeito secundário de um
procedimento que, em si, é bom.
O
conhecimento claro do princípio da causa com duplo efeito, com a distinção
precisa entre meio mau e efeito secundário mau, é um requisito básico para
resolver várias questões de Bioética.
NOTAS
[1] KELLER, Werner. E a Bíblia tinha razão.... Tradução de João Távora.
2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1958. p. 340
[2] ACADEMIA DE MEDICINA DEL PARAGUAY. Declaración
aprobada por el Plenario Académico Extraordinario en su sesión de 4 de Julio de
1996.
[3] COSTA
JÚNIOR, João Batista de O. Por quê, ainda, o abôrto terapêutico? Revista da
Faculdade de Direito da USP, São Paulo, volume IX, p. 312-330, 1965.
[4] ACADEMIA
DE MEDICINA DEL PARAGUAY. Idem. n.º 4..
* Padre. Presidente do Comitê Pró-Vida
de Anápolis (GO).
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11487
Acesso em: 22 ago.
2008.