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Eduardo Luiz Santos Cabette*
1-INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objeto a definição da
natureza do crime de embriaguez ao volante, previsto no artigo 306, CTB, de
acordo com a nova redação que lhe foi conferida pela Lei 11.705/08. Trata-se,
sinteticamente, de estabelecer se o novo crime de embriaguez ao volante é de
perigo concreto, perigo abstrato ou de dano.
O problema ora analisado é de grande relevância
teórica e prática, pois de sua resposta irá defluir a interpretação e aplicação
concreta do tipo penal, abrangendo ou excluindo determinadas condutas do
espectro de irradiação dos efeitos da norma penal.
Serão expostos os argumentos que sustentam cada uma
das hipóteses ora formuladas, as quais já foram debatidas com referência à
antiga redação do artigo 306, CTB, e agora retomam fôlego.
Ao final, considerando a análise das argumentações
desenvolvidas, formular-se-á um desfecho conclusivo acerca do tema.
2-PERIGO CONCRETO X PERIGO ABSTRATO X DANO
Em sua redação original o crime do artigo 306, CTB,
foi considerado, predominantemente, como um delito de perigo concreto.
Não obstante, a matéria não era isenta de
controvérsias. Afiliavam-se à tese do perigo concreto Luiz Flávio Gomes,
Ariosvaldo de Campos Pires, Sheila Jorge Selim de Sales, Cezar Roberto
Bitencourt e Vicente Cernicchiaro. [01] De outra banda, defendiam a
tese do perigo abstrato, Luiz Otávio de Oliveira Rocha [02] e
Arnaldo Rizzardo. [03] Havia inclusive quem defendesse a hipótese do
crime de lesão ou de dano, conforme escólio de Fernando Capez, Victor Eduardo
Rios Gonçalves [04] e Damásio Evangelista de Jesus. [05]
A polêmica se enredava em torno da frase que
encerrava a descrição típica: "expondo a dano potencial a incolumidade de
outrem".
A conclusão pelo perigo concreto se impunha em
razão dessa frase que exigia a caracterização de um perigo real, aferível em
cada caso submetido à análise. Mas, aqueles que defendiam a tese do perigo
abstrato insistiam que o só fato de alguém dirigir embriagado já ensejava
perigo que podia ser presumido, tratando-se a frase final do artigo de mera
verborragia estéril.
Embora, como se verá mais adiante, concordemos com
o fato de que é inegável o perigo que decorre da direção embriagada, era na
época difícil sustentar a tese do perigo abstrato. Fosse como fosse, o
legislador estava míope para a realidade do perigo óbvio de qualquer direção
sob efeito de álcool ou drogas e exigia literalmente a comprovação casuística
de perigo. Isso é característico dos crimes de perigo concreto, já que nos
crimes de perigo abstrato não há menção "de perigo no tipo" ao
contrário dos primeiros. Nos crimes de perigo abstrato não se "menciona o
perigo entre seus elementos, mas se limita a definir uma ação perigosa, pois
entende que o surgimento do perigo deduz-se da realização de uma ação com
certas características". [06] Como o antigo tipo penal
descrevia em seu bojo o perigo exigido para sua configuração, era inviável
concluir que não fosse um crime de perigo concreto.
Quanto à alegação de tratar-se de um "crime de
dano", a doutrina burilou um bem jurídico supra – individual, apontando-o
como aquele lesado por quem dirigisse embriagado. Tal bem jurídico seria a
"segurança viária". Este bem jurídico não seria simplesmente posto em
risco, mas atingido efetivamente quando uma pessoa conduz veículo automotor nas
vias públicas sob efeito de álcool ou de outras substâncias psicoativas.
Entretanto, também para esse pensamento seria necessário demonstrar "in
concreto" a lesão à "segurança viária" produzida pelo condutor
ébrio. [07]
Pensamos que a questão ontem e hoje deve ater-se à
decisão entre o perigo concreto e o abstrato. O forjar de um bem jurídico
coletivo como a "segurança viária" surge como um elemento artificial
e "ad hoc" para legitimar a chamada "tutela penal
antecipada", típica do "Direito Penal de Risco", a que a
doutrina alemã denominou de "criminalização em âmbito prévio". [08]
Neste estágio parte-se para o reconhecimento de
"novos e universais interesses", cuja definição é "vaga e
superficial", [09] visando afastar a pecha da criminalização
exacerbada do perigo abstrato. Mas, na realidade, trata-se de disfarçar a
legitimação reflexa da criação descontrolada de tipos penais de mera conduta e
de perigo abstrato, procurando-se manter uma aura de pseudo – garantismo.
Greco chama a atenção para o fato de que esta tem
sido a proposta de boa parcela de nossa doutrina "garantista", sem
que se perceba que "no final das contas, acabou-se por legitimar, da mesma
forma, a antecipação do direito penal. Só que no caso dos crimes de perigo
abstrato, antecipa-se a proibição; no bem jurídico coletivo, antecipa-se a
própria lesão". [10]
Ao menos os crimes de perigo abstrato têm a virtude
da transparência, não ocultando a efetiva antecipação do Direito Penal, [11]
razão pela qual, com o devido comedimento, é melhor a adoção deles em certos
casos e o seu reconhecimento, do que sua ocultação através de subterfúgios que
falseiam o diagnóstico do modelo de Direito Penal instituído.
Agora essa velha discussão ganha novo impulso com a
alteração promovida pela Lei 11.705/08 na redação do artigo 306, CTB.
Em sua nova conformação o tipo penal em destaque
não estampa a exigência de "exposição a dano potencial" outrora
vigente. É criminalizada a mera conduta de conduzir veículo automotor, na via
pública, "estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou
superior a 6 decigramas, ou sob a influência de qualquer substância psicoativa
que determine dependência". Aboliu-se a literalidade da exigência de
perigo concreto, de modo que a mera condução de veículo automotor nas condições
descritas no tipo penal é suficiente para sua configuração. O perigo agora se
deduz da concentração de álcool no sangue ou da influência de outra substância
psicoativa.
Diante desse novo quadro legislativo, impõe-se o
reconhecimento de que o artigo 306, CTB, descreve crime de perigo abstrato. Mesmo que uma pessoa seja surpreendida
dirigindo normalmente, mas sob efeito de álcool, por exemplo, em taxa superior
à tolerada para fins penais, ela incidirá na prática criminosa. A infração se
perfaz somente pela condução nas condições descritas no tipo penal. [12]
O repúdio à disseminação de crimes de perigo
abstrato é de todo justificável, uma vez que eles trazem consigo o risco de um
indevido agigantamento do Direito Penal provocado por uma terrível pretensão de
controle social milimétrico que tolhe a liberdade e a dignidade humanas.
Por isso doutrinadores como Luiz Flávio Gomes não
cogitam a admissão de crimes de perigo abstrato no seio de um ordenamento
jurídico moderno. Para o autor, mencione ou não o legislador em dado tipo penal
a necessidade de perigo concreto, esta se faz presente, ainda que tacitamente,
em estrito respeito ao Princípio da Ofensividade. Portanto, "todo tipo
penal que descreve um perigo abstrato deve ser interpretado na forma de perigo
concreto". Por essa razão o autor em destaque entende que, mesmo na atual
conformação, o artigo 306, CTB, descreve um "crime de perigo concreto
indeterminado", para cuja configuração é impositivo comprovar "risco
efetivo para o bem jurídico coletivo segurança viária". [13] No
entender de Gomes, o fato de dirigir embriagado somente não serve para
configurar o tipo penal, sendo imprescindível demonstrar que o condutor dirigia
de forma anormal (descontrolado, contra – mão etc.).
Há que se concordar que a criação arbitrária pelo
legislador de infrações penais para condutas que não lesam nem criam perigo a
bens jurídicos é inadmissível. Mas, também não se pode deixar de reconhecer que
há condutas que por si sós representam perigo a bens jurídicos, dispensando a
análise casuística por sua notoriedade. Parece-nos que esse é o atual limite
estreito de admissibilidade dos chamados "crimes de perigo abstrato",
na falta de melhor terminologia. [14]
Será que alguém ainda tem dúvida de que dirigir sob
efeito de álcool ou de substâncias psicoativas é perigoso?
Comprovada a embriaguez ao volante, é ainda
necessário provar que havia perigo concreto? Esse perigo é fato notório, comprovado
estatisticamente pelos milhares de casos de acidentes de trânsito com prejuízos
para a vida, a integridade física, a saúde e o patrimônio de uma infinidade de
pessoas.
Pugnar pela necessidade de comprovação casuística
de perigo é partir de uma falsa
premissa, qual seja: a de que há índices ou condições seguras para
conduzir veículos automotores sob efeito de álcool ou de substâncias
psicoativas. Tal assertiva não se sustenta cientificamente e não retrata o
tratamento dado ao caso pelo próprio CTB em sua parte administrativa, quando
estabelece o impedimento para a condução sob qualquer concentração de álcool no
sangue ou sob influência de outras substâncias psicoativas (artigo 165, CTB;
artigo 276, CTB e artigo 1º, do Decreto 6488/08). Frise-se que não
se trata propriamente de uma presunção legal de perigo, mas da constatação de
um fato notório quanto ao real
perigo da situação em geral, independente de uma análise minuciosa de cada caso
concreto.
Por mais que se queira, não há margens seguras para
ebriedade e direção de automotores nas vias públicas. Isso é fato notório que independe de prova,
nos termos do artigo 334, I, CPC, extensivo por integração ao Processo Penal.
Como aduz Mirabete, os "fatos notórios" independem de prova "(notoria non egent probatione)".
Eles são "aqueles cujo conhecimento integra a cultura normal, a informação
dos indivíduos de determinado meio". [15] E é impossível pensar
que em nosso meio possa existir alguém que desconheça o perigo óbvio de dirigir
sob efeito de álcool ou de outras substâncias psicoativas.
Em seus comentários aos crimes do Estatuto do
Desarmamento, Capez afirma a necessidade de respeito ao Princípio da
Ofensividade, mas reconhece a existência de certas condutas que "por si
sós, já induzem à existência de risco à coletividade", pois nada impede
que haja uma lesividade "ínsita em determinados comportamentos". [16]
Vale registrar suas palavras:
"Em suma, entendemos que a ofensividade ou
lesividade é um princípio que deve ser aceito, por se tratar de princípio
constitucional do direito penal, diretamente derivado do princípio da dignidade
humana (CF, art. 1º, III). Sua aplicação, no entanto, não pode ter o
condão de abolir totalmente os chamados crimes de perigo abstrato, mas tão somente
temperar o rigor de uma presunção absoluta e inflexível. A ofensividade deve
ser empregada para afastar as hipóteses de crime impossível, em que o
comportamento humano jamais poderá levar o bem jurídico a lesão ou a exposição
a risco de lesão". [17] E certamente não é essa situação de
crime impossível que ocorre com relação ao perigo provocado por aquele que
dirige automotores sob efeito de álcool ou drogas no trânsito viário.
3 – CONCLUSÃO
No decorrer deste trabalho foi analisada a questão
da natureza do crime previsto no artigo 306, CTB, especialmente após as
alterações promovidas pela nova Lei 11.705/08.
Constatou-se que hoje reaviva-se a antiga polêmica
sobre tratar-se de crime de perigo concreto ou abstrato ou mesmo de crime de
dano.
Em face da nova redação, que excluiu a exigência
literal da produção de "dano potencial" à incolumidade de outrem,
conclui-se que o novo crime de embriaguez ao volante se perfaz pela mera
conduta de dirigir veículo automotor na via pública nas condições descritas no tipo
penal, o que o torna um crime de
perigo abstrato, utilizando-se essa terminologia por tratar-se daquela
que melhor descreve o tratamento que deve ser dado ao caso. Entretanto, não se
trata propriamente de presumir um perigo, mas de reconhecer a situação clara e
evidente de perigo que constitui a direção sob efeito de álcool ou de
substâncias psicoativas, fruto da experiência cotidiana do trânsito, de
critérios científicos e das estatísticas contundentes sobre acidentes de
trânsito. Talvez uma melhor designação seja como um "crime de perigo
notório, evidente ou patente".
A opção legislativa não viola o Princípio da
Ofensividade porque trilha o estreito caminho reservado ao perigo abstrato no
Direito Penal Moderno, apenas reconhecendo o óbvio fato de que dirigir
automotores na via pública sob efeito de drogas ou álcool é uma conduta
intrinsecamente perigosa, a qual não demanda maiores perquirições. Comprovar o
perigo de tal conduta casuisticamente seria exigir a demonstração do evidente,
do manifesto, do patente, o que, quando não reflete obtusidade, só pode
alimentar o cinismo. Afinal, a própria lei e o bom senso nos apontam que
"não dependem de prova os fatos notórios".
4-REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas
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JESUS, Damásio Evangelista de. Crimes de Trânsito. 5ª ed.
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MARCÃO, Renato. Embriaguez ao volante, exames de
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11.07.2008.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2006.
RIZZARDO, Arnaldo. Comentários do Código de Trânsito Brasileiro. 4ª ed.
São Paulo: RT, 2003.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra – Individual. São
Paulo: RT, 2003.
Notas
1. Apud, JESUS,
Damásio Evangelista de. Crimes de
Trânsito. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 165.
2. Apud, Op. Cit., p.
166.
3. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro. 4ª
ed. São Paulo: RT, 2003, p. 642.
4. Aspectos criminais do Código de Trânsito Brasileiro. 2ª
ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 43.
5. Op. Cit., p. 166.
6. SILVEIRA, Renato
de Mello Jorge. Direito Penal Supra –
Individual. São Paulo: RT, 2003, p. 97.
7. CAPEZ, Fernando,
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Op. Cit., p. 43.
8. SILVEIRA, Renato
de Mello Jorge. Op. Cit., p. 121 – 122.
9. Op. Cit., p. 123.
10. GRECO, Luís.
Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao
debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 49, jul./ago.,
2004, p. 112 – 113.
11.
Op. Cit., p. 113.
12. CABETTE, Eduardo
Luiz Santos. Primeiras impressões sobre as inovações do Código de Trânsito
Brasileiro. Disponível em www.jusnavigandi.com.br
, acesso em 02.07.2008, p. 18. No mesmo sentido: MARCÃO, Renato. Embriaguez ao
volante, exames de alcoolemia e teste do bafômetro. Uma análise do novo art.
306, caput, da Lei 9503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro). Disponível em www.jusnavigandi.com.br , acesso em
11.07.2008, p. 1. "O crime, agora, é de perigo abstrato; presumido".
13. Reforma do Código
de Trânsito (Lei n. 11.705/2008): novo delito de embriaguez ao volante.
Disponível em www.jusnavigandi.com.br
, acesso em 04.07.2008, p. 2.
14. Talvez uma
proposta inovadora terminologicamente pudesse ser a de "crimes de perigo
notório, evidente ou patente".
15. MIRABETE, Julio
Fabbrini. Processo Penal. 18ª
ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 251.
16. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 4. 2ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 324.
17. Op. Cit., p. 325.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11503
Acesso em: 12 ago.
2008.