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David Pires de Moraes*
O presente trabalho consistiu em abordar e verificar as particularidades
e os contornos próprios que os atos da primeira fase da persecução penal
(inquérito policial ou termo circunstanciado de ocorrência e prisão em
flagrante) ganham na Justiça Eleitoral.
Partindo-se da idéia de que a Justiça Eleitoral possui regras, conceitos
e institutos próprios, bem como são várias as características que a distingue
dos demais Órgãos do Poder Judiciário [01], nasceu a curiosidade e a
necessidade de averiguar se as especificidades que dominam o Direito Eleitoral
ficavam adstritas aos atos e órgãos da Justiça Eleitoral ou se espraiavam para
também alcançar as atribuições e a atuação dos órgãos estatais (polícias
judiciárias) encarregados dos primeiros passos da persecução penal, assim
considerados aqueles relativos ao início e movimentação do inquérito policial
ou termo circunstanciado de ocorrência e ao instituto da prisão em flagrante.
Os atos da primeira fase da persecução penal (lavratura do termo
circunstanciado de ocorrência ou instauração do inquérito policial e prisão em
flagrante) tendentes a apurar a autoria e a materialidade dos crimes afetos à
competência da Justiça Eleitoral estão compreendidos nas atribuições da Polícia
Civil Estadual ou da Polícia Federal? A autoridade policial pode agir de ofício
ao tomar conhecimento da prática de um crime eleitoral? Há na Justiça Eleitoral
particularidades a cerca da prisão em flagrante e da instauração do inquérito
policial?
A pretensão do estudo foi a de delimitar os espaços de atuação das
Polícias Civis Estaduais e Federal na apuração dos crimes eleitorais, revelar
em quais situações compete a uma e outra destas polícias judiciárias as
atribuições de realizar a prisão em flagrante e de dar início a instauração do
procedimento investigativo policial; bem como realçar as características e
distinções entre a atividade pré-processual, preparatória da ação penal, nos
crimes comuns e nos crimes eleitorais.
Para tanto, foi necessária análise no sentido de esquadrinhar e
demonstrar, a partir do ponto de vista legal, doutrinário e jurisprudencial, as
regras que norteiam as atribuições e a atuação de cada uma das polícias
judiciárias, civil estadual e federal, vistas tanto sobre o ponto de vista da
incumbência da instauração do procedimento investigatório tendente a embasar
eventual e posterior denúncia do Ministério Público, quanto sobre o prisma da
legalidade da execução da prisão em flagrante.
Imprescindível, ainda, para se chegar ao objetivo final, foi a
realização de um cotejo analítico entre as ações das mencionadas polícias
judiciárias nos seus devidos campos de atuação. Isto é, primeiro verificamos,
embasados nas regras legais e na jurisprudência, como funciona a atividade do
Estado-Administração no sentido de colher elementos para elucidar os crimes da
competência da Justiça Federal; depois partimos para o regramento e atos de
apuração e formação da opinio delicti
na seara eleitoral, apontando e realçando as diferenças existentes entre a
Justiça Comum e a Justiça Especializada.
A Constituição Federal, ao traçar as regras relativas à segurança
pública, atribuiu às polícias civis, criadas no âmbito de cada Estado membro da
Federação, as funções de polícia judiciária e de apuração das infrações penais,
ressalvando expressamente as que estejam compreendidas na competência da União
e as de natureza militar (CF, art. 144, § 4º).
Já as infrações penais praticadas em detrimento dos bens, serviços e
interesses da União, contidas na ressalva acima mencionada, foram delegadas à
Polícia Federal, à qual, foi outorgada, também, a tarefa de exercer a função de
polícia judiciária da União (CF, art. 144, § 1º, incisos I e IV).
Nesse passo, em sendo alguém surpreendido nas hipóteses de flagrante
delito elencadas no art. 302 do Código de Processo Penal, deverá aquele
[02] que efetuou a prisão conduzi-lo à autoridade competente, isto é, o
Delegado de Polícia Federal nos crimes cujo julgamento estejam compreendidos na
esfera de competência da Justiça Federal ou Delegado de Polícia Civil, naqueles
em que o ulterior julgamento ficará a cargo da Justiça Estadual, para que, além
das providências investigatórias iniciais, seja lavrado o respectivo auto de
prisão em flagrante e instaurado o inquérito policial ou termo circunstanciado
de ocorrência, conforme a gravidade do crime praticado.
Os crimes eleitorais, regra geral, estão inseridos nas atribuições da
Polícia Federal, vez que a Justiça Especializada, no dizer de Suzana Camargo
Gomes: "É federal posto que aplica
normas eminentemente constitucionais, além da legislação infraconstitucional,
que é invariavelmente federal, sem contar que é mantida pelos cofres da União
[03]".
Todavia, como cediço, a Polícia Federal, em função dos parcos recursos
que lhe são destinados, possui estrutura deficiente, estando sediada em
pouquíssimos municípios brasileiros [04]-, de sorte que a condução
do autor de eventual delito eleitoral até a presença de um Delegado de Polícia
Federal traduz-se, muitas vezes, em enorme problema, quando o fato delituoso
ocorre em municípios muito distantes daqueles em que a Polícia Federal esteja
presente.
Emerge, daí, a seguinte indagação: caso não haja no município do
flagrante Delegacia da Polícia Federal deverá o infrator ser obrigatoriamente
conduzido a um município no qual esta esteja sediada, ou poderá a Polícia Civil
Estadual lavrar o auto de prisão em flagrante e ultimar o inquérito policial ou
termo circunstanciado de ocorrência? Nos crimes não eleitorais, afetos a
competência da Justiça Federal, a jurisprudência é oscilante. Há uma corrente
entendendo que a intervenção da Polícia Estadual nas infrações penais de
investigação constitucionalmente atribuída à Polícia Federal conduzirá,
peremptoriamente, à ilegalidade da prisão.
Para os seus seguidores, a interpretação do artigo 304 [05]
do Código de Processo Penal conjuntamente com o art. 648, inciso III [6],
também do CPP, culminará na ilegalidade da prisão se o infrator não for
apresentado à autoridade que detém a atribuição de apurar o delito, ou seja, ao
Delegado de Polícia Federal, conforme dispõem as normas legais.
Representa bem essa linha de pensamento o seguinte Acórdão do TRF da 1ª
Região:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. RECURSO
EX-OFFICIO. FALSIDADE DE PAPÉIS PÚBLICOS (CP, ART. 293, II). INFRAÇÃO PENAL.
AUTARQUIA (DNER). PRISÃO EM FLAGRANTE. POLÍCIA ESTADUAL. RELAXAMENTO.
1. A lavratura de auto de prisão em flagrante
por autoridade incompetente configura coação ilegal.
2. hipótese em que o auto de prisão em
flagrante foi lavrado por autoridade policial estadual e não pela federal (art.
144, § 1º, CF/88).
3. Recurso ex-officio improvido. (TRF 1, REO nº
2002.35.00.011751-0/GO, Quarta Turma, rel. Des. Mário César Ribeiro, DJ de
19/09/2003)
Em contraposição a esta interpretação, diga-se de passagem, um tanto
quanto rigorosa, instalou-se no âmbito do próprio TRF da 1ª Região outra
corrente de pensamento, segundo a qual o artigo 304 do CPP, ao determinar a
apresentação do preso à autoridade competente incorreu em
imprecisão técnica, haja vista que as autoridades policiais não detêm poder
jurisdicional, de modo que nosso ordenamento jurídico, a rigor, não lhes
delegou competência, na acepção
técnico-jurídica que a doutrina emprestou a este termo.
Em face disso, preconizam a validade da prisão em flagrante
eventualmente efetuada pela Polícia Estadual, nos crimes de competência da
Justiça Federal.
É o que se pode inferir do julgado que se segue:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. AUTO DE PRISÃO EM
FLAGRANTE DE CRIME DE MOEDA FALSA, LAVRADO PELA POLÍCIA ESTADUAL. LEGITIMIDADE.
1. Legitimidade do auto de prisão em flagrante
por crime de moeda falsa (Código Penal, art. 289), lavrado pela Polícia Civil
Estadual, uma vez que no poder de efetuar a prisão em flagrante, inclui-se, de
acordo com a doutrina dos poderes implícitos, o de lavrar o auto respectivo
(CPP, art. 301), sem ofensa ao disposto no artigo 144, § 1º, I, da Carta Magna,
pois em se tratando de autoridade policial não existe propriamente competência
no sentido de distribuição da jurisdição. Precedentes desta Corte... (TRF 1, RCRC nº
1998.01.00.89957-3/GO, Terceira Turma Suplementar, rel. Des. Leão Aparecido
Alves, DJ de 09/06/2004)
Em que pese a divergência apontada no TRF da 1ª Região relativamente aos
crimes federais, em sede de jurisdição eleitoral a jurisprudência do Tribunal
Superior Eleitoral sedimentou-se no sentido de admitir a prisão em flagrante e
a instauração de inquérito policial pela autoridade policial estadual, quando o
distrito da culpa não for sede da Polícia Federal.
Primeiramente, o Tribunal Superior Eleitoral, a fim de dirimir qualquer
contenda semelhante à estabelecida no âmbito do TRF da 1ª Região, editou, no
exercício das atribuições que lhe conferem o art. 23, IX, do Código Eleitoral,
a Resolução nº 11.494, de 8 de outubro de 1982, disciplinando que: "Quando no local da infração não existir
órgão da Polícia Federal, a Polícia Estadual terá atuação supletiva".
Entendimento este sedimentado em posteriores decisões da Superior Corte
Eleitoral, de cujo exemplo podemos citar a Consulta nº 6.656/82, (Relator Min.
Carlos Alberto Madeira, Boletim Eleitoral, volume 379, tomo 1, página 76); o
Recurso Especial nº 16.048/00 (Relator Min. José Eduardo Rangel Alckmin, Diário
da Justiça, data 14/04/2000, página 96) e o Habeas Corpus nº 439, este último
assim ementado:
HABEAS CORPUS. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA.
PENDÊNCIA DE PRONUNCIAMENTO. AUTORIDADE JUDICIÁRIA. TRE. CRIME ELEITORAL.
POSSIBILIDADE. INVESTIGAÇÃO PELA POLÍCIA ESTADUAL. AUSÊNCIA DE ÓRGÃO DA POLÍCIA
FEDERAL. ART. 290 DO CÓDIGO ELEITORAL
1.Na investigação de crime eleitoral, não há
óbice para a atuação da polícia estadual quando no local do crime não existir
órgão da polícia federal.
2. Ausência de constrangimento ilegal do
paciente, em razão da denúncia, quando presentes a tipicidade da conduta e
indícios de autoria.
3. Não se presta o processo de habeas corpus
ao exame aprofundado das provas. Ordem denegada. (TSE, Acórdão nº 439, rel. Min. Carlos
Velloso, DJ de 27.6.03) (Grifo nosso)
Em 17 de agosto de 2006, com a finalidade de disciplinar a apuração dos
crimes eleitorais nas eleições, o Tribunal Superior Eleitoral voltou a editar
nova Resolução, sob o nº 22.376. Embora esta Resolução seja um pouco mais nova,
o seu conteúdo é o mesmo da referida Resolução nº 11.494/82, tendo inclusive
sido repetida a regra de que: "Quando
no local da infração não existir órgão da Polícia Federal, a Polícia Estadual
terá atuação supletiva". [7]
Outra peculiaridade que precisa ser destacada na Justiça Eleitoral diz
respeito à instauração do inquérito policial. Diversamente do que ocorre nos
crimes em geral, nos quais, pela regra do art. 5º, inciso I [8], do
Código de Processo Penal, a autoridade policial pode instaurar o inquérito
policial de ofício; nos crimes eleitorais, salvo a hipótese de flagrante delito
[9], o inquérito somente poderá ser instaurado mediante requisição do
Ministério Público ou da Justiça Eleitoral.
Em conseqüência, caso qualquer pessoa do povo comunique à autoridade
policial a ocorrência de crime eleitoral, esta não poderá iniciar de imediato
investigações com vistas a apurar os fatos que lhe foram levados a
conhecimento, incumbindo-lhe tão-somente repassar a notícia-crime ao Juiz
Eleitoral, que a remeterá ao Ministério Público ou requisitará a instauração do
inquérito policial [10
As únicas medidas de ofício a serem tomadas pela autoridade policial
serão as acautelatórias do art. 6º do Código de Processo Penal, caso houver
necessidade da preservação de elementos de prova que poderão desaparecer com o
tempo.
Conclui-se, então, do estudo realizado, que, em se tratando de prisão em
flagrante decorrente da prática de crime eleitoral, a solução apresenta-se
muito nítida, alvitrando-se a condução e apresentação do infrator à autoridade
policial federal, nos municípios em que esta esteja sediada, eliminando-se,
assim, eventual argüição de nulidade da prisão. Todavia, caso não haja órgão da
Polícia Federal no local do fato, a autoridade policial civil estadual,
consoante remansosa jurisprudência eleitoral e Resoluções do TSE, poderá
exercer supletivamente as funções originariamente delegadas à Polícia Federal
(lavratura do correspondente auto de prisão em flagrante e demais investigações
destinadas à elucidação dos fatos).
O inquérito policial e os demais atos investigatórios somente serão
iniciados de ofício pela autoridade policial, seja esta da Polícia Civil
Estadual ou da Polícia Federal, quando o infrator for colhido em flagrante
delito, dependendo a atuação policial, nos demais casos, de requisição do
Ministério Público ou do Juiz Eleitoral.
6. BIBLIOGRAFIA
BRANCO, Tales Castelo. Da Prisão
em Flagrante. 5ª ed. – Editora Saraiva, São Paulo. 2001.
BRASIL, Constituição do (1988). Constituição
da República Federativa do Brasil. São Paulo: Editora RT, 2005.
BRASIL, Resolução do TSE nº 22.376, de 17 de agosto de 2006. Dispõe
sobre a apuração de crimes eleitorais.Diário
Oficial da União, 28 de.agosto de 2006.
BRASIL, Código de Processo Penal.
10ª ed. - Editora Saraiva, São Paulo, 2004.
GOMES, Suzana Camargo: A Justiça
Eleitoral e sua Competência, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1998,
pág. 86.
Notas
01 Dentre as particularidades do Direito Eleitoral podemos citar, a título
de exemplo: a) organização e competência delegadas à Lei Complementar,
consoante dispõe o artigo 121 da Constituição Federal, atualmente disciplinadas
pelo Código Eleitoral – Lei nº 4.737/65; b) ausência de quadro próprio de
magistrados, vez que seus membros são arregimentados nos outros órgãos do
judiciário e na advocacia, na forma disposta nos artigos 119 e 120 de
Constituição Federal de 1988.
02 - Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes
deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito (CPP, art.
301).
03 A Justiça Eleitoral e sua Competência, ed. Revista dos Tribunais, São
Paulo, 1998, pág. 86.
04 Em Goiás a Polícia Federal possui Delegacias apenas em Goiânia,
Anápolis e Jataí.
05 Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e
as testemunhas que o acompanharam e interrogará o acusado sobre a imputação que
lhe é feita, lavrando-se auto, que será por todos assinados.
06 A coação considerar-se-á ilegal quando quem ordenar a coação não tiver
competência para fazê-lo.
07 Art. 2º, parágrafo único, da Resolução/TSE nº 22.376/06
08 Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado: I de
ofício.
09 Quando, segundo o art. 8º da Resolução/TSE nº 22.376/06, o inquérito
será instaurado independentemente de requisição.
10 Artigos 3º, 4º e 6º, todos da Resolução/TSE nº 22.376/06.
* Analista
Processual do Ministério Público Federal, lotado na Procuradoria Regional
Eleitoral em Goiás. Graduado pela Faculdade Anhanguera de Ciência Humanas
(FACH), da UniAnanhanguera. Especialista em Direito Penal e Direito Processual
Penal pela Universidade Católica do Estado de Goiás.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11446
Acesso em: 30 jun.
2008.