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A fragmentação da causa de pedir, o pedido e a cumulação de demandas frente à eficácia preclusiva da coisa julgada

 

Marcelo Colombelli Mezzomo*

 

 

Síntese: A evolução da ciência processual ainda não dirimiu dúvidas sérias que remanescem na dogmática processual. Duas importantes questões que ainda demandam divergência encontram-se na abrangência objetiva da coisa julgada, mais precisamente nos limites da eficácia preclusiva da coisa julgada diante da fragmentação da causa de pedir, e na extensão a ser concedida à atividade de interpretação do pedido. O texto, percorrendo apontamentos doutrinários, busca trazer a lume soluções.

 

Sumário: 1- O desenvolvimento do processo civil moderno e os tormentosos problemas sem solução. 2- A causa de pedir no Direito Brasileiro. 3- O pedido. 4-Fragmentação da causa de pedir e eficácia preclusiva. 5- Extensão do pedido. 6- Conclusões.

 

1- O DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO CIVIL MODERNO E OS TORMENTOSOS PROBLEMAS SEM SOLUÇÃO

O desenvolvimento da ciência processual nos últimos duzentos anos é absolutamente notável tendo se operado a estruturação dogmática de quase todos os ramos do Direito. Ainda hoje, a dinâmica social cria novos problemas que demandam constante atividade da doutrina e da jurisprudência para sua solução quando a via legislativa não atua com a rapidez necessária para tanto.[1]

Mas há problemas antigos, questões que ainda demandam reflexão e que não encontraram solução satisfatória.

Dentre as mais espinhosas questões do processo civil está a da identificação da causa de pedir e a repercussão que esta delimitação produz no processo.

A causa de pedir é elemento fundamental na identificação da demanda e interfere em institutos como a litispendência e a coisa julgada.

O presente trabalho visa exatamente entabular esta discussão, ou seja, qual o papel da causa de pedir diante da cumulação de demandas e da coisa julgada diante da possibilidade de fragmentação dos componentes da causa petenti.

O mesmo problema se coloca quanto aos limites do pedido e sua interpretação. Os pedidos logicamente implícitos têm cabimento?

É o que trataremos.

 

2- A CAUSA DE PEDIR NO DIREITO BRASILEIRO

A causa de pedir é o fundamento, a base da pretensão. Quem vai a juízo postula alguma coisa (pedido), e deve indicar porque postula e com base em que fundamento.

O Direito e a atividade jurisdicional existem em vista de fatos, de fatos socialmente relevantes, diga-se, e não para tratativa de meras hipóteses ou construções cerebrinas. Em Direito, ainda quando algo é abstratamente considerado, tem-se em mira o esclarecimento ou a aplicação a uma situação concreta, vale dizer, a um fato.

É por isso que o primeiro elemento da causa de pedir é o fato (jurídico) que justifica a recorrência ao judiciário.

Mas é evidente que não basta elencar fatos e postular. É mister, para legitimar o pedido, que ao fato seja agregado um fundamento jurídico. Note-se bem, fundamento jurídico, não necessariamente legal, pois a juridicidade não se resume e não se limita exclusivamente na legalidade[2].

Ordinariamente o fundamento jurídico corresponde a um ou mais fundamento legais. Mas nem sempre. Há outras fontes de Direito (doutrina, jurisprudência, costume etc..) que acabam por encontrar invocação.

De fato, não é incomum que surjam situações onde uma justiça razoável somente é alcançada através da invocação de uma determinada corrente jurisprudencial ou doutrinária, quiçá contrária à letra da lei. Nestes casos, vale um fundamento jurídico, não necessariamente legal.

Na esteira da constatação de uma causa de pedir complexa, formada por duas ordens de elementos, estabeleceu-se na doutrina a distinção entre uma causa de pedir próxima e uma causa de pedir remota.

A causa de pedir remota, ou mediata (fundamentum actionis remotum) é identificada como “fato gerador do direito pretendido”[3]. A causa de pedir próxima, ou imediata (fundamentum actionis proximum), é associada ao fundamento jurídico[4], ou com “a natureza do direito controvertido, o fundamento jurídico geral”[5], vale dizer, relaciona-se com a situação ou condição jurídica invocada, com o status jurídico. 

Em uma ação condenatória, ad exemplum, a condição de credor é o fundamento jurídico, a causa de pedir remota. O fato específico (a relação contratual específica, por exemplo), é a causa de pedir próxima.

Esta dicotomia tem origem na adoção da teoria da substanciação, a qual se contrapõe a teoria da individualização, também dita da individuação

Consoante lembra Nelson Nery Júnior, ambas tiveram sua origem na Alemanha, estando hoje a teoria da individualização em franca decadência[6].

Para esta teoria, a exposição da causa petenti marca-se “pela identificação, na inicial, da relação jurídica da qual o autor extrai certa conseqüência jurídica”[7].  

Já para a teoria da substanciação, “constituem os fundamentos da demanda o conjunto de fato em que o autor baseia a ação”[8].

É correntia na doutrina nacional a afirmação de que o CPC adotou a teoria da substanciação[9], mas tal assertiva não deixa de suscitar divergências.

A causa de pedir tem importante repercussão na delimitação do conteúdo da sentença e na fixação do espectro da coisa julgada. Vigendo o princípio da demanda, e estando o juiz adstrito ao princípio da congruência ou da adstrição da sentença[10], tem-se que “ a petição inicial  define a causa, de modo que fundamento jurídico não descrito  não pode ser levado em consideração, mesmo porque a causa de pedir é um dos elementos que identificam a causa, não podendo ser modificada sem o consentimento do réu, após a citação, e em  nenhuma hipótese após o saneamento do processo (art. 264)”. Tal pontuação, todavia, não vale para o fundamento legal.

A coisa julgada não atinge os fundamentos da decisão, conforme ressalva o artigo 469 do CPC, mas tão somente o dispositivo. Todavia, na definição da caracterização das hipóteses de litispendência e coisa julgada (artigo 300, §§ 1º e 2º, do CPC), a causa de pedir é elemento para identificação da ação.

Logo, dependendo do alcance da causa de pedir, uma nova demanda poderá ou não ser enquadrada dentro das hipóteses de litispendência ou coisa julgada.

 

3- O PEDIDO

Como já referido, o custo da atividade jurisdicional e a fundamental importância de seu exercício para o Estado Moderno não permitem que a demanda seja formulada para mera consulta. Quem vem a juízo tem de formular pedido certo e determinado (art. 286 do CPC, ressalvadas as exceções legais do mesmo dispositivo[11]), dentre os juridicamente possíveis[12].

Este pedido deve ser uma ilação da subsunção do fato ao fundamento jurídico[13]. Desta operação lógica é extraída uma conseqüência que deverá consistir em uma situação de vantagem, de utilidade[14] ao postulante, refletindo-se no pedido.

Assim como ocorre com a causa de pedir, também o pedido comporta uma divisão em mediato e imediato. O pedido imediato se traduz na espécie de tutela pretendida dentre as possíveis[15] (condenação, declaração, constituição, execução lato sensu, mandamentalidade). O pedido mediato é o bem da vida efetivamente postulado, que se materializa em um “bem jurídico material”[16], ou no “bem da vida pretendido pelo autor”[17].

A multiplicidade de pedidos no mesmo processo, sejam mediatos, sejam imediatos, é perfeitamente viável dentro de determinados parâmetros, ditados por questões de lógica e de conveniência funcional, constituindo hipótese de cumulação. Mas na caracterização da cumulação, não devemos olvidar a situação na qual a ação material apresenta múltiplas eficácias. A propósito, Araken de Assis salienta que “os exemplos ressalvam expressamente a circunstância de a ação material conter mais de uma eficácia, ínsitas a ela, que não caracterizam o cúmulo”[18].

Com a possibilidade de coexistência de mais de um pedido no mesmo processo, temos as várias formas de cumulação classificadas de acordo com variados critérios. Inicialmente a cumulação pode ser dita inicial ou superveniente, conforme conste da exordial ou advenha pela propositura, por exemplo, de ação declaratória ou de emenda á inicial. Também pode ser dita homogênea ou heterogênea, conforme seja realizada no mesmo processo pela mesma parte ou por parte diversa[19].

A mais comum, porém, leva em conta a relação dos pedidos entre si. Com base neste critério, Ovídio Baptista da Silva os classifica a cumulação em alternativa eventual, simples e sucessiva eventual[20]. Araken de Assis aponta as cumulações simples, sucessiva e alternativa ou eventual[21]. Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio cruz Arenhart mencionam as cumulações simples, sucessiva e alternativa[22]. Vicente Greco Filho fala em pedido cumulativo propriamente dito, alternativo sucessivo ou subsidiário. Moacyr Amaral Santos aduz a existência de pedidos alternativos e subsidiários ou sucessivos[23]

A variação é mais semântica do que de que conteúdo. O certo é que podemos ter uma cumulação simples, onde dois ou mais pedidos são articulados com uma ou mais causas de pedir, comuns ou não, sendo que um não tem relação alguma com o outro. A cumulação poderá ser eventual e alternativa, quando um dos pedidos somente será apreciado se o outro for negado. Pode ocorrer, também, que um dos pedidos somente possa ser atendido se outro for acolhido. Neste caso temos uma cumulação subsidiária e sucessiva.

 

4-FRAGMENTAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR E EFICÁCIA PRECLUSIVA

A possibilidade de fragmentação suscita problema de perpetuação da lide através do ajuizamento de várias demandas com pequenas variações na causa de pedir Neste caso, o autor escalona a ação de direito material em diversas demandas conforme seja o resultado obtido na ação anterior.

Se a rigor a alteração do fato ou do fundamento jurídico representa nova causa de pedir, a esta causa poderá ser embutido o mesmo pedido anteriormente denegado sob a égide de outra causa de pedir.

Em linha de princípio, é a eficácia preclusiva da coisa julgada, inscrita no artigo 474 do CPC, que se articula como mecanismo de impedimento do fracionamento da ação de direito material.

A eficácia preclusiva da coisa julgada é corolário da boa fé processual e da aplicação do princípio da economicidade à atividade jurisdicional. Sob o ponto de vista do Estado-Juiz, sobreleva em importância a efetividade da atividade jurisdicional. A lide deve ser composta da melhor forma possível e da forma mais ampla dentro do mesmo processo, para que nova demanda jurisdicional não se repita. Por isso, o artigo 474 determina que a sentença de mérito implica na preclusão das alegações e defesas que foram argüidas ou poderiam ter articuladas e não foram.

O dispositivo, lembra Nelson Nery Júnior, “reputa repelidas todas as alegações que as partes poderiam ter feito  na petição inicial e na contestação a respeito da lide e não o fizeram. Isso quer significar que não se admite a propositura  de nova demanda para rediscutir a lide, com base em novas alegações”[24].

Mas outros fatos ou fundamentos jurídicos já existentes ou conhecidos quando da propositura da demanda e não articulados estariam enquadrados na condição de alegações e defesas, mesmo sendo capazes de constituírem per se causas de pedir? Causas de pedir precluem?

Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, após mencionarem exemplo de ações com mesmos pedidos, escudadas em causas de pedir diversas (despejo e divórcio), questionam se as alegações do artigo 474 do CPC diriam respeito a norma jurídica fundamento do pedido ou apenas circunstâncias acessórias que acompanham o fato principal da causa petendi, respondendo que “na verdade, apenas questões relativas à mesma causa de pedir ficam preclusas em função da incidência da previsão do artigo 474. Todas as demais são livremente dedutíveis em demanda posterior”[25].

Para tanto concluir, escudam-se na doutrina de Ovídio Baptista da Silva, segundo a qual a imutabilidade da coisa julgada dimensiona-se pelos motivos da sentença, ficando o “material” da primeira ação imunizado.

Afirmam, estribados nesta ponderação, que “sempre que, futuramente, uma situação semelhante àquela que ensejou a ação (ou ‘guarde relação com o material desta primeira ação’) ocorrer, a situação estará decidida, e a força daquela primeira sentença também incidirá sobre esta causa nova, impedindo a reapreciação da questão, ainda que com os novos argumentos apresentados”.

Reconhecem, contudo, que o estabelecimento da situação de relacionamento de matérias não refoge a um certo grau de subjetivismo.

Araken de Assis, após mencionar o exemplo do divórcio pedido com base na embriaguez e no adultério, enquadráveis no fundamento jurídico da grave violação dos deveres do casamento, e concluir que na hipótese há verdadeira cumulação de ações materiais, assertoa: “Ainda uma vez, sem embargo da enfadonha repetição, se insiste que a eficácia preclusiva da coisa julgada, face ao disposto no artigo 474, abrangerá, em princípio, todos os fatos jurídicos dedutíveis na ação de separação (adultério, embriaguez e qualquer outro apto a incidir na regra), tenham ou não sido deduzidos na demanda.”[26]

Em outro trecho, após destacar as opiniões de Ernane Fidélis dos Santos e Barbosa Moreira, que defendem que alegações do artigo 474 não significariam causas, lembra que alegações e defesas somente podem ser entendidas como elementos capazes de conduzir ao acolhimento ou rejeição do pedido, sendo a causa exatamente o elemento apto a desempenhar tal função, pelo que se conclui que alegações e defesas não são meros argumentos, mas compreendem as causas do autor e as defesas do réu[27].

Ovídio Baptista da Silva lembra que o antecedente do artigo 474 do CPC de 1973 não deve ser procurado no artigo 287 do código revogado senão que deve ser elucidado a partir do conceito carneluttiano de lide e em conjunção com os artigos 468 e 469 do CPC vigente, e após conclui: “Chegamos, assim, ao ponto de podermos distinguir com bastante nitidez, os respectivos campos de incidência, quanto ao conceito de alegações e defesas do artigo 474 e ao conceito de questões do artigo 468. No primeiro caso, estamos a tratar do problema de identificação de demandas, onde tem pertinência a regra segundo a qual a sentença ‘cobre tudo o que foi deduzido pelas partes e também o que seria deduzível, embora não o fosse (tantum iudicatum quantum disputatum vel disputari debeat); no outro caso, estaríamos frente ao problema de saber até que limite, fora já do campo próprio da demanda que fora objeto do pedido do autor, poderia estender-se a força vinculante da coisa julgada, tanto para o lado dos pressupostos, quanto para o lado das conseqüências”[28].

Em outra obra, faz uma relevante observação ao responder acerca da pertinência da distinção de fundamentos da sentença e causa de pedir, asseverando que “esta indagação é tão fundamental quanto problemática e difícil de estabelecer, nas inúmeras hipóteses concretas trazidas pela experiência forense. Sua essencialidade resulta de uma circunstância óbvia: os fundamentos não transitam em julgado; a causa petendi, sim, como parte integrante da demanda, como refere Chiovenda”[29].

Citando o exemplo de um contrato de locação, o processualista lembra, com Chiovenda, que não transitando em julgado os fundamento da sentença, o ajuizamento de nova demanda pelo réu somente geraria uma contradição lógica, mas não jurídica, e, valendo-se de mais exemplos práticos, conclui, na esteira da Doutrina de Castro Nunes: “Vê-se, pois, como aquilo que funcionara como fundamento para a sentença poderá tornar-se preceito obrigatório para o juiz que tiver de apreciar uma demanda diferente, sempre que, através desta se ponha em risco o resultado conseguido pela coisa julgada no processo antecedente”[30].

Ovídio, salientando a tratativa conferida ao instituto da eficácia preclusiva da coisa julgada por autores como José Carlos Barbosa Moreira, Botelho de Mesquita e Machado Guimarães, lembra que a noção que hoje temos do instituto não é muito diversa daquela construída por Savigny, denominada “coisa julgada dos motivos”, e, como também fez Araken de Assis, giza a importância da delimitação do “objeto ligitioso” para a compreensão da relação entre coisa julgada e seus limites objetivos[31].

Mas qual a solução a ser estabelecida? O problema não é tanto estabelecer uma solução, como estabelecer uma solução com critérios objetivos e universais ou determinar qual o critério para estabelecermos quando uma nova demanda veicularia questões pertinentes à anterior e classificáveis como alegações que poderiam ter sido deduzidas e não o foram, ou, ainda questões tratadas na demanda, embora não expressamente mencionadas pelas partes.

Na verdade, se me parece que a resolução minimamente satisfatória efetivamente perpassa pela invocação do objeto litigioso, da relação ou direito controvertido e seus contornos.

No caso do exemplo da ação de investigação de paternidade, exemplo citado por Ovídio Baptista da Silva, a relação de paternidade é o objeto litigioso em vista do qual é formulado pedido. Diante dos termos do artigo 474 do CPC, deverá o autor alegar todos os fatos e articular todos os fundamentos jurídicos de que dispõe no ajuizamento da demanda sob pena de preclusão[32].

Na hipótese de uma ação de despejo, deverá alegar o uso indevido do imóvel seja pela destinação diversa da contratada seja pela produção de danos.

No exemplo de vício do consentimento, deverá alegar o dolo e o erro. Em síntese, no conceito de alegações do artigo 474, devemos entender compreendidos também fatos e fundamentos jurídicos (ou seja, causas de pedir) que poderiam dar ensejo ao pedido formulado tendo em vista a espécie de objeto litigioso (descumprimento do contrato, vício do consentimento, relação de paternidade). Desde que o fato era conhecido ao ajuizamento da demanda, deve ser articulado, o mesmo valendo para os fundamentos jurídicos sob pena de preclusão.

Esta interpretação, que faz eqüivalerem-se alegações do artigo 474 e causas de pedir confere sentido ao artigo citado através de um parâmetro objetivo. Fica difícil conceber-se um critério que fique no meio termo, escudando-se na premissa da prejudicialidade do julgamento anterior, de modo que dependendo da influência da alegação da causa de pedir nova no julgamento anterior (relação de contrariedade) se pudesse dizer incabível, por violação da coisa julgada. O critério tem de ser objetivo, e somente há duas saídas: ou considerar que as alegações referidas no artigo 474 dizem respeito a questões internas de cada causa de pedir ou considerar que alegações têm conotação ampla, abrangendo causas de pedir.

De acordo com a teoria da substanciação, a cada fato e respectivo fundamento jurídico deve, a priori, corresponder a uma causa de pedir, à qual se agregando um pedido constitui uma demanda. Repelido um pedido em vista de uma determinada causa de pedir, poderá livremente ser formulado com outras causas de pedir, sem ofensa aos limites objetivo da coisa julgada do processo anterior.

Ocorre que o mal desta interpretação é que ela torna difícil, senão impossível, construir-se um sentido útil ao artigo 474 do CPC, pois sendo cada causa de pedir individualizada a rigor as alegações referidas pelo artigo 474 somente poderiam consubstanciar-se em questões processuais ou probatórias relativas ao fato-fundamento jurídico vertido na demanda.

Isto conduz, todavia, ao indesejável efeito de possibilidade de fragmentação da causa de pedir, de forma que várias demandas com o mesmo pedido são ajuizadas sucessivamente conforme o resultado da anterior seja favorável ou não, bastando para tanto modificar-se o fato ou o fundamento jurídico, que já poderiam ter sido alegados no primeiro processo, para ter-se uma causa de pedir diversa e uma demanda diversa.

Temos de raciocinar, então, a partir do postulado da economicidade, da racionalidade e do caráter fragmentário da jurisdição. Uma vez estabelecida a lide, com seu pedido e seu objeto litigioso, todas as alegações, vale dizer todas as causas de pedir que poderiam ser alegadas devem ser articuladas sob pena de preclusão. Se alegadas, serão julgadas expressamente. Se não referidas e o juiz puder delas conhecer de ofício, como é o caso da decadência, o juiz acerca delas há de se pronunciar. Se não puderem ser conhecidas de ofício, considerar-se-ão, diante da omissão da parte, preclusas.

A partir desta ótica, a eficácia preclusiva da coisa julgada cria para o autor algo semelhante ao que o princípio da eventualidade cria para o réu, ou seja, a obrigação de agir com boa fé, formulando todas as alegações de que dispõe para acolhida do pedido.

Trata-se de uma das possíveis interpretações e a que figura como mais consentânea à sistemática do Código de Processo Civil e aos modernos princípios do processo civil.

Diante de pedidos diversos, observado o objeto litigioso, a situação é diversa, pois neste caso a cumulação de demandas se refletirá também diante da eficácia preclusiva da coisa julgada.

Neste caso se o pedido implica um objeto litigioso diverso, não incidirá a eficácia preclusiva. Caso contrário sim. É o caso da nulidade e anulação, onde há um mesmo objeto litigioso.

 

5- EXTENSÃO DO PEDIDO

Outra tormentosa questão reside na extensão do pedido. Sua interpretação, conforme se depreende do artigo 293 do CPC, deve ser restritiva. Tal determinação é corolário do princípio da demanda, pois à parte compete determinar os lindes da demanda[33]. O princípio da demanda tem imbricações com o princípio dispositivo[34], e ambos com o princípio da imparcialidade do juiz[35].  

O pedido, como já mencionado e conforme estabelece a letra da lei (artigo 286 do CPC), deve ser certo ou (rectius: e) determinado, salvante as hipótese excepcionais. Os juros são exemplo de pedido implícito ex lege (artigo 283 e súmula 254 do STF).

Há também as hipóteses de pedido genérico, previstas nos incisos do artigo 286. Mas a questão que se coloca em análise diz respeito a fatos concretos relativos à possibilidade de nulificação ou desconstituição parcial de atos jurídicos. A hipótese é a seguinte: uma pessoa física ou jurídica é autuada pelo fisco que aplica multa tributária relativa a infração material qualificada[36]. Ingressa em juízo alegando que houve entrega da mercadoria ao destinatário e recolhimento do tributo, de modo que ficaria afastado o fundamento da autuação. O juiz, porém, embora reconhecendo a inexistência de prejuízo ao erário, entende presente infração formal, ou meramente documental, mantendo a multa por tal categoria. Há julgamento extra ou ultra petita? Ou, por outras palavras, no pedido de nulidade do todo, está o de nulidade parcial, com desclassificação?

A questão, portanto, reside no alcance do pedido, se deve ser interpretado literalmente ou se é possível uma interpretação mais elástica, com invocação da lógica, em busca de economia processual.

A discussão é pertinente e conduz à indagações semelhantes as tecidas no tópico supra, pois se o pedido é entendido de forma literal, poderia ser pedida em uma demanda a nulidade e em outra a desclassificação da infração[37].

Há precedentes no TJRS que afirmam que a desclassificação é inviável, pois não cabe ao juiz constituir obrigação tributária e afirmando existir sentença ultra petita. Tal ilação encontra respaldo na literalidade do artigo 293 do CPC. Será, porém, a mais consentânea a um processo instrumental? Creio que não, com a venia do entendimento diverso.

É de se grafar que não se cuida de hipótese de pedido genérico, mas sim de descortinar a exata extensão do pedido, que é certo e determinado.

A meu ver, a questão também se resolve à luz do objeto litigioso em cotejo com o pedido. No caso, o objeto litigioso (a validade do ato jurídico) permite uma fragmentação da decisão, conforme o alcance da pecha de invalidade.

Se parte da substância do ato pode ser “salva”, mediante qualificação jurídica diversa, não há de ser olvidado o princípio segundo o qual o juiz aplica o direito. No caso do auto de infração tributária, há um componente de constatação material e um componente de subsunção jurídica. Constatada a existência de infração formal ao invés de material, cabe ao juiz aplicar o direito ao caso concreto, e a constatação restou intacta. Pedido o mais, pode ser deferido o menos, não se tratando de julgamento citra, extra ou ultra petita.

Na verdade o que ocorre é apenas um dimensionamento do pedido, sem alteração do pedido mediato ou imediato.

Pensar-se de maneira diversa implica admitir que várias demandas sejam com pedidos que, a rigor, poderiam entender-se inclusos, contidos em um mais abrangente, com foco idêntico.

O processo deve buscar resolver a lide da forma mais rápida e econômica possível. Esta premissa não invalida a necessidade de imparcialidade do magistrado e os princípios dispositivo, da demanda e da adstrição da sentença, mas é possível efetuarmos uma interpretação inteligente do pedido, sem implicar em extrapolação da demanda, para dar efetiva e rápida aplicação do direito ao conjunto de fatos.

O argumento de que o juiz não pode se substituir à administração tributária é inválido. É da essência da atividade jurisdicional um componente de sub-rogação. Deveras, em uma revisão contratual, por exemplo, a conformação da relação jurídica aos ditames legais operada pelo magistrado tem por objeto o conteúdo da vontade das partes sem que isso signifique que o juiz contrata por elas.

No caso do lançamento tributário, há uma relação jurídica de direito público posta à apreciação e igualmente procede o juiz à conformação dela aos linde da lei, no exercício de uma atribuição constitucional. Não se pode, portanto, afirmar que exista uma indevida ingerência do Poder Judiciário, pois é sua função proceder ao controle da legalidade dos atos administrativos, nos termos dos artigos 5º, inc. XXXV, e 37, caput, da CF/88).

 

6- CONCLUSÕES

A pretendida celeridade da tutela jurisdicional não defluirá do simples aumento da máquina judiciária ou da criação de institutos processuais novos. Também uma mentalidade adequada dos operadores jurídicos é fator fundamental.

Estabelecidas metas (no caso a celeridade), a interpretação das normas deve ser feita com base em princípios que contemplem soluções apropriadas à consecução destas metas.

A busca da celeridade perpassa pela aplicação dos princípios da economicidade e da preclusão. O processo, já se disse com invulgar precisão, é um mal em si mesmo. Ele representa um custo elevado e se for demasiadamente demorado, cristalizará uma situação de conflito que ao invés de nele encontrar rápida solução será por ele perpetuada[38].

Logo, há necessidade de uma mentalidade sintonizada com a instrumentalidade do processo, cujo resultado mais evidente é uma interpretação que prestigie a máxima eficiência de cada instituto processual para que da relação processual se retire o máximo proveito.

Neste diapasão, as alegações mencionadas no artigo 474 do CPC, dispositivo onde está consagrada a denominada eficácia preclusiva da coisa julgada, abarcam também as causas de pedir que poderiam, frente ao objeto litigioso considerado, embasar o pedido formulado.

Esta solução, que pode ser qualificada como uma concessão à teoria da individualização, é aquela que permite um sentido eficaz ao artigo 474 do CPC e que melhor se coaduna com a boa fé processual e com o princípio da máxima utilidade da relação processual, pois permite que a lide seja composta definitivamente, impedindo a fragmentação da ação de direito material em sucessivas demandas e processos, conforme a conveniência do autor, sendo que este resultado não fica afastado pela possibilidade de reconvenção[39].

A mesma postura deve ocorrer diante da interpretação do pedido. Deve ele ser interpretado de forma restritiva, mas isso não significa impossibilidade de subtrair dele toda a eficácia possível, desde que não ocorra extrapolação dos pedidos mediato e imediato.

Trata-se, isso sim, de descortinar as possibilidades ínsitas ao pedido, o seu conteúdo, de modo que o seu acolhimento parcial se torne viável quando a aplicação do direito ao caso concreto, em decorrência do “iura novit curia”, assim o recomendar.

Esta postura frente à causa de pedir e ao pedido, em vista da eficácia preclusiva da coisa julgada, e a interpretação funcional do pedido, representa efetiva contribuição na celeridade processual, na utilidade da prestação jurisdicional e na efetividade da justiça.

 

*Bacharel em ciências Sociais e Jurídica pela Universidade Federal de Santa Maria-RS. Assessor Jurídico do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul.

 

Disponível em: http://www.advogado.adv.br/artigos/2007/marcelocolombellimezzomo/fragmentacao.htm