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Mônica Prates Conrado
RESUMO.
Neste artigo, a partir da análise de depoimentos colhidos nos inquéritos
policiais de vítimas e indiciados que se enquadram na categoria “casais”,
buscou-se entender como se constituem as interpretações de caso descrito (por
eles mesmos) enquanto vítimas e indiciados sob o jugo do enquadramento
judicial. A violência conjugal se configura nos inquéritos observados
intrinsecamente dependente das relações existentes entre vítimas e indiciados.
Na dinâmica processual há um rearranjo - um deslocamento do foco de atenção e
ponto de partida do delito propriamente dito (o crime em si) para as bases que
constituem as relações entre vítimas e indiciados. Este foi o ponto de partida
da análise dos inquéritos policiais em uma delegacia da mulher entre 1986 a
1995.
Palavras-chave.
Casamento, violência, papéis sociais.
Abstract. Based on the analysis of the
statements by victims and indictees, forming a marital couple, in police
inquiries, this article to understand how these reported cases are interpreted
in the judicial framework. The marital violence depicted in the inquiries is
intrinsically dependent on the relationship between victims and indictees.
There is rearrangement in the procedural dynamics by displacing the focus of
attention and the starting poiht from the crime in itself to the bases of the
relationship between victims and indictees, as was verified in the inquiries
carried out at a police station for women.
Keywords. marriage; violence; social roles.
Ao
se falar de vítimas e indiciados é interessante abordar em que contexto se deu
a criação de uma delegacia da mulher para saber um pouco mais os dilemas e as
dificuldades que fazem parte dos problemas enfrentados em sua implementação e
perceber mecanismos e estratégias utilizadas na institucionalização de papéis
atribuídos (homem-indiciado e mulher-vítima) em uma determinada realidade
social.
A criação da delegacia da mulher em São Paulo, em 1985 e no Rio de
Janeiro, em 1986 levou o fenômeno do espancamento de esposas como outras
agressões cometidas pelos maridos, namorados e companheiros como também a
violência sexual entrarem na ordem do dia, ganhando maior visibilidade no
cenário público. De acordo com Danielle Ardaillon (1989:1-146), o contexto
social que propiciou a discussão das questões que envolveram setores civis,
organizações, entidades, conselhos e movimentos sociais a problemática
violência e mulher se deu:
No
final dos anos 70, o tema da violência específica tomou conta dos meios de
comunicação de massa com um tom veemente, e de crítica as instituições tanto
policiais e judiciais… notícias cada vez mais frequentes de denúncias cometidas
contra mulheres passaram a ser divulgadas… (Ardallon, 1989: 85)
A delegacia da mulher simbolizada, neste contexto, pela descoberta e
criação dos direitos – o resultado de pressões de movimentos sociais –
institucionalizou a violência contra a
mulher[i][1].
A probabilidade de ser vítima de violência por alguém
conhecido ou da família é numericamente maior do que por um desconhecido, como
afirma Goldstein (1975), Gelles (1987), An American Watch Report (1991).
Acredita-se que os indiciados apresentam-se em todos os tamanhos, formas, cores
e classes sociais ao passo que a categorização de mulheres-vítimas e
homens-indiciados nos moldes legais acaba por construir uma tipologia que se
referencia aos modelos aceitos de homem-marido e mulher-esposa que termina por
banalizar crimes de violência e escapar aos mecanismos de produção de culpados
e inocentes da justiça, tendo como vítima a mulher em casos de violência
conjugal.
Silvia[ii][2], branca, natural do Rio Grande do Sul,
solteira, pedagoga , 26 anos, vítima de lesão corporal[iii][3] conta que Marcos, branco, natural do Rio
de Janeiro, solteiro, 34 anos e está desempregado é “amigo, companheiro,
radical e muito ciumento e quando bebe cerveja fica agressivo com ciúme de
tudo”. Silvia disse que:
(Marcos) saiu de casa pela
manhã falando que ia até a loja que possuía arrumar algumas coisas, ao
telefonar para casa de alguns amigos do casal, (Silvia) soube que (ele) se
encontrava lá bebendo cerveja com pessoas conhecidas. À noite ao chegar em
casa, (Marcos) foi entrando, ofendendo e agredindo fisicamente a (Silvia) que
estava com a filha menor do casal de nove meses que também foi agredida, não
sabendo... informar, como foi, tendo apenas notado que a criança estava com uma
marca no rosto... De fato, acredita que a menina estivesse com dores na cabeça
próxima ao local da agressão, pois após o fato, foi pentear o cabelo e notou
algumas marcas vermelhas na cabeça. Não presenciado por testemunhas. Não
procurou socorro médico... [iv][4]
Configuram-se, assim, elementos desencadeadores da violência: a bebida
alcóolica e o ciúme. Contudo, “(Marcos) é amigo e companheiro”. Atributos estes
que não entram em contradição na fala de Silvia porque a violência está
intrinsecamente associada a bebida alcóolica e ao ciúme e não ao seu
companheiro. Entretanto, acredita-se que a bebida alcóolica é um dos
detonadores do relacionamento entre casais[v][5] e, portanto, um dos agentes facilitadores
da violência. [vi][6]
Os efeitos que a bebida alcóolica podem ocasionar estão intrinsecamente
ligados a expectativa daqueles que a consomem. A associação do consumo de
álcool com a violência enquanto motivo do crime leva perceber a violência
denunciada de maneira superficial - a partir de seus efeitos mais diretos e não
através de suas causas. Os atos violentos são atribuídos, geralmente aos
envolvidos[vii][7] comprometidos com uma definição
relacionada à perda temporária de controle causada pelo álcool. Pois o que não
fica claro nesses casos é se as pessoas agem de forma violenta porque estão
bêbadas ou se embebedam a fim de conseguir uma “permissão social” de caráter
implícito para agir de maneira violenta, como afirma Langley e Levy
(1980:139-238).
A bebida alcóolica, o ciúme e o “radicalismo” abrem as portas à violência que é encarada, sob o
ponto de vista de Silvia como mais uma das facetas de sua personalidade. Assim,
as agressões são decorrentes do consumo de bebida alcóolica que escapa ao
controle de Marcos. A violência é o ingrediente principal que fortalece e, ao
mesmo tempo sedimenta os conflitos existentes nas relações entre casais. E, de
forma paradoxal traz à tona a tentativa de reconciliação baseada na promessa de
Marcos de pôr um fim as agressões já que em outro momento, Silvia chama a atenção
que “...não gostaria de ver o pai de sua filha preso” ao contar que:
...está
vivendo em total harmonia com o sindicado, alegando que (Marcos) não está
fazendo uso da bebida, e por isso não deseja mais continuar com o presente e
que atualmente está vivendo em perfeita harmonia, e que o sindicado se
arrependeu do ato que cometeu, prometendo nunca mais fazer tal coisa...
Marcos e Silvia buscaram a reconciliação, porém, não deu certo. Marcos
tornou a beber e a agredi-la. Depois disso, eles separaram judicialmente.
Na entrevista realizada
em junho de 1986 com a delegada Drª Mauricyr Praça da Delegacia Especializada
de Atendimento a Mulher (DEAM-centro/RJ)[viii][8] escolhida para o estudo de caso relativo
aos inquéritos[ix][9] policiais ali instaurados localiza-se próximo
ao armazém seis do cais do porto, na Praça Mauá, na região central do Rio de
Janeiro. O local é de difícil acesso a transportes coletivos e distantes dos
estabelecimentos comerciais. Em suas proximidades encontram-se apenas
botequins, depósitos e um trailler de
comércio ambulante. De um lado estão os armazéns do cais e seus trabalhadores.
De outro, ruas bifurcadas, escuras e sem pedestres. Logo, a delegacia da mulher
situa-se em uma área considerada perigosa.
Na DEAM-centro/RJ observou-se a presença nítida em alguns casos da
negociação, de caráter oficioso. Neste contexto, a reconciliação dos casais é
uma das vias de solução legítima, todavia, esta prática policial leva a remediar
ou a não encarar a gravidade das situações de violência
que, traduzidas pela lei enquanto crime, são considerados na justiça, casos de
polícia.
Situação de violência é o que pode ser visto ou vivenciado com alguma
frequência nas relações entre casais e parentes e, também, nas relações entre
amigos, conhecidos e desconhecidos. Cada história a ser contada,
característica, elemento e aspecto narrado de forma descritiva configura uma
situação que leva, obrigatoriamente a uma ação violenta; seja ela física e/ou
verbal.
Nesta perspectiva, cabe indagar em que medida a delegacia da mulher ao
flexibilizar a negociação, o pacto entre casais não aumenta a desconfiança da
sua clientela e coloca em xeque a sua eficiência. A respeito deste
questionamento, tem-se como premissa dois caminhos ou alternativas, em relação
aos seus objetivos que são:
1. Por um
lado, a DEAM-centro/RJ facilita e possibilita “instrumentos de negociação”
(Soares, 1996:65-105) para os relacionamentos amorosos.
2. Por outro,
a vítima ao adentrar ao mundo judicial percorre terrenos escorregadios e
desconhecidos devido ao aparato técnico e especializado dos instrumentos
oficiais da delegacia - os inquéritos policiais.
Muitas vítimas desejam o arquivamento dos inquéritos, tendo como
alegação a reconciliação do casal.
Contudo, tornam-se frequentes as situações de violência que acabam por
descaracterizar a possibilidade de convivência harmoniosa. A reconciliação pode
ser vista muitas vezes como um movimento circular e repetitivo que tem a
polícia como mediadora destes casos.
As soluções para as situações
de violência ficam remetidas ao contexto particular e específico em que se
insere cada história relatada. Isto quer dizer que a publicização de situações
de violência expressa a resolução dos casos às relações entre casais. Segundo
Barbara Musumeci Soares (1996:110) que aborda a idéia de negociação e pacto
doméstico:
Quando
falamos em mediação de conflitos, não estamos nos referindo à mera conciliação
entre partes litigantes. Trata-se de uma forma muito particular de acordo,
realizado, não nos esqueçamos, sob os auspícios da autoridade policial. A
palavra empenhada pelas partes, quando selado o acordo de paz, deixa lastros
visíveis nos arquivos da polícia.
As situações de violência conjugal estão indissociadas dos casos
amorosos dos envolvidos vistas como relações íntimas e pessoais, no imaginário
social como construção, elaboração ou recriação de um determinado fenômeno em
uma determinada sociedade que pode ser expresso no seguinte dito popular: “briga de marido e mulher, ninguém mete a
colher”. Neste sentido, pode-se dizer, também que cada sociedade elabora
seu imaginário que compreende uma criação incessante e essencialmente
indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens, a partir
das quais somente é possível falar-se de “alguma coisa”. Aquilo que denominamos
“realidade” e racionalidade são seus produtos (Castoriadis, 1991:119-418).
Nos dias atuais, refletir sobre estas questões, é ainda um campo fértil
e, ao mesmo tempo um solo arenoso e escorregadio. Tratar de um assunto que por
muito tempo foi encarado de forma abrangente e generalizante pela ótica
feminista sob o tema violência contra a
mulher, significa aqui relativizá-lo porque permite, desse modo, uma
análise das violências específicas[x][10].
O estudo dos casos de violência conjugal segundo os inquéritos
policiais baseia-se no estudo de Maria Filomena Gregori (1992) que sugere
abordar o fenômeno a partir das relações existentes entre os indivíduos. Tendo
em vista que as relações existentes entre os envolvidos são regidas por papéis
sociais (mãe-mulher-dona de casa e pai-marido-chefe de família) atribuídos aos
indivíduos. Papéis estes, reelaborados e dimensionados no contexto
particular em que estão inseridos.
Algumas vítimas de violência conjugal vão a DEAM em busca de pressão policial para dar um fim as
agressões e desistem muitas vezes de dar continuidade ao caso. Para muitas
vítimas, uma solução efetiva parece uma medida distante e inacessível porque
entrar no mundo judicial é andar a passos lentos por caminhos muitas vezes
desconhecidos.
Privilegia-se o termo “violência conjugal” em referência aos casos de
violência entre os envolvidos casados, companheiros e namorados, em detrimento
do termo violência doméstica que é uma denominação abrangente. No entanto,
tem-se como premissa que a violência conjugal não é consentida por parte de
quem é submetida as agressões. Por esta razão, tanto as vítimas que desistem de
dar continuidade ao caso quanto aquelas que desejam o seu prosseguimento não
são encaradas aqui como cúmplices da
violência. Seguir o descaminho da cumplicidade para a análise das situações de
violência conjugal é trilhar um percurso perigoso que obscurece uma análise
mais minuciosa do problema.
Utilizar também o termo violência doméstica é cair numa generalização
sobre o fenômeno da violência conjugal em decorrência de dois aspectos: no
primeiro, é poder acreditar em uma violência privada e particularizante; no
segundo, o termo violência doméstica engloba outras situações de violência que
passam por um outro recorte teórico de análise que se diferenciam das demais,
como por exemplo, a violência contra crianças e adolescentes.
Um outro aspecto que deve ser destacado em casos de violência conjugal
é que no momento em que se ressalta equivocadamente, por exemplo, o local do
crime como referência básica, acaba-se desta forma, por englobar neste termo
todas as outras formas e situações de
violência.
A caracterização do local do crime, nos registros policiais, como o
“interior do quarto e o interior da residência” não deve confinar a análise da
violência conjugal ao âmbito privado. O interior do quarto e o interior da
residência como o local do crime nas situações de violência é caracterizada nos
casos onde as relações entre os envolvidos são marcadas por uma “convivência
cotidiana”[xi][11] porque é o espaço reservado na sociedade
aos segredos mais íntimos. Todavia, é importante destacar que é preciso estudar
as inter-relações entre os âmbitos (público e privado) segundo uma apreciação
que não abandone como premissa para a análise do fenômeno da violência conjugal
a “convivência cotidiana”, marcada por relações de proximidade; conforme sugere
o termo violência doméstica.
Outro aspecto fundamental que deve ser considerado como recorrente no
contexto conjugal é a preocupação da vítima e/ou do indiciado em salvaguardar o
casamento e a família.
A família define e diferencia valores e papéis sociais que serão
articulados na sociedade moderna, tendo como referência básica, o casamento.
Com isso, as relações entre as pessoas tornaram-se isoladas, fregmentadas já
que designadas a espaços sociais distintos. Como afirma Phillipe Áries
(1986:266): “...separava melhor a vida mundana, a vida profissional e a vida
privada: a cada uma era determinada um local apropriado como o quarto, o
gabinete ou o salão”.
Richard Sennett, em O Declínio do
Homem Público (1989:317-415) busca compreender a transferência
entre a ordem pública e a ordem privada na cultura moderna, ao investigar as
mudanças históricas dos “papéis” públicos. Em consequência dessa transferência,
as pessoas tratavam de assuntos públicos baseados em sentimentos pessoais.
A partir do século XIX na Europa, o choque de uma nova ordem econômica
que ascendia - o capitalismo - trouxe o desgaste da ordem pública, fazendo com
que as pessoas se refugiassem dos problemas e conflitos modernos no lar, no
privado, ou seja, na família. Época que marca a visão da família como “um mundo
exclusivo, com um valor moral mais elevado que o domínio público” (Sennett:
1989:35). Assim, as relações familiares se estabelecem na sociedade com um novo
padrão de conduta onde o papel do indivíduo na ordem pública é questionado e
redefinido no cotidiano familiar.
Já no século XX, Antoine Prost versa sobre a História da Vida Privada (1995:115) marcada por dois movimentos:
·
·
no primeiro, acentua a saída dos trabalhos dos domicílios, fixando-se em
lugares impessoais, determinados por regras e formalizações jurídicas e
coletivas;
·
·
por último, o indivíduo conquista dentro da própria família o tempo e o
espaço de uma vida pessoal.
No entanto, o autor destaca que:
...
se nos restringíssemos a essas duas tendências principais, correríamos o risco
de estabelecer uma oposição demasiado radical entre o público e o privado,
deixando de compreeender a solidariedade de ambos dentro de uma mesma
sociedade. Assim, não basta termos examinado sucessivamente os dois âmbitos: é
preciso ainda estudar a sua articulação.
Uma
vez que as distinções entre os âmbitos público e privado atenuam-se e
interpenetram-se na dinâmica social, acabam por colocar em pauta, por exemplo,
as relações existentes entre os envolvidos (casais e parentes) em uma delegacia
da mulher que é firmada por códigos de significação impessoais como o inquérito
policial. Relações estas que na sociedade expressam intimidade, destinadas as
relações íntimas e pessoais que são marcadas pela proximidade.
Portanto, a história dos domínios público e privado é a história de
suas fronteiras. As delimitações das atividades desenvolvidas nos âmbitos
público e privado são variáveis pois mudam historicamente, sendo reelaboradas e
rearticuladas em todos os meios e estratos sociais. Mas a vida pessoal e a
familiar coincidem ao longo de sua história tornando-se interligadas e
interdependentes. O espaço doméstico é visto na sociedade ocidental como o
espaço onde o indivíduo pode se expressar abertamente
e inteiramente porque é o espaço conquistado para a vida pessoal. Sob este
enfoque, buscar entender a violência conjugal a partir do termo comumente
utilizado - violência doméstica é delimitar a análise do fenômeno sob um viés
reducionista. Acredita-se que não existem atitudes e manifestações violentas
que se especificam e se singularizam no espaço da casa, do lar. Neste contexto,
o termo violência doméstica não se encontra aprisionado a uma definição que
signifique uma distinção vazia, formal em oposição ao espaço público uma vez
que o espaço doméstico condensa e singulariza comportamentos, papéis sociais e
visões de mundo sob este prisma.
Pode-se observar que a partir da construção de papéis sociais
atribuídos a homens e mulheres que o lugar da mulher é dentro de casa, único local seguro que as mantinham à margem das
tentações e desvios que ocorriam nas ruas.
Neste sentido, o objetivo de Martha Abreu Esteves, em Meninas Perdidas (1989), era encontrar as raízes da violência sexual entre os
populares através da pesquisa dos processos criminais de atentado ao pudor,
estupro e rapto ocorridas no início do século. Ela afirma que existe um sistema
de produção de verdades que “controla e vigia” a conduta moral das mulheres,
forjada desde o início do século. Tal conduta criou um modelo ideal de
“mulher-mãe” difundido a partir da estigmatização de comportamentos e valores
negativos que se percebe através da análise feita pela autora de expressões
utilizadas pelos juristas e advogados, tais como: “frequentar hospedarias” e
“saídas à rua”.
Portanto, o que se evidencia aqui é o fato de que mesmo que a mulher
estivesse saindo à rua para trabalhar ela estava em situação de perigo, fora do
código moralizador da sociedade. O casamento reintegraria os casais ao âmbito
do lar, à uma “vida mais saudável” e “honesta”. Os processos criminais
analisados por Esteves mostram que os conflitos entre homens e mulheres se
“resolveriam” através do casamento.
A polícia intervém com o intuito de que o código moralizador da
sociedade vigore. A resolução dos conflitos
dar-se-ia a partir da legalização da situação (casamento) ao atribuir
novos papéis e novas responsabilidades ao casal (marido e mulher), fazendo com
que as famílias não só produzissem parentes, mas sim, cidadãos ordeiros e
trabalhadores.
Trata-se aqui não só de abordar os relatos de situações de violência,
narrados de forma descritiva pelos envolvidos nos inquéritos, mas antes
entender de que maneira as diversas versões contradizem-se e entram em conflito
em cada inquérito observado. Na verdade, são as relações entre as versões e
interpretações dos envolvidos em situações de violência de cada caso estudado
que serão interpretadas e discutidas aqui. A análise, baseia-se nos estudos de
Sidney Chalhoub ao trabalhar com processos criminais do século XIX:
O
fundamental em cada história abordada não é descobrir “o que realmente se
passou” - apesar de, como foi indicado isto ser possível em alguma medida -, e
sim tentar compreender como se produzem e se explicam as diferentes versões que
os diversos agentes sociais envolvidos apresentam para cada caso. As diferentes
versões produzidas são vistas neste contexto como símbolos ou interpretações
cujos significados devem ser buscados nas relações que se repetem
sistematicamente entre as várias versões... (Chalhoub, 1986:22).
Um dos aspectos destacados por Maria Filomena Gregori é de que a queixa
é vista enquanto fala monologal, pronunciada para produzir escuta. A vítima é
sentida no exato momento em que se narra descritivamente a violência sofrida
por esta. Fala que configura vítimas e indiciados em posições antagônicas;
definindo-os. Ela afirma que:
“Os fatos
descritos cumprem o papel singular de reforçar a versão do narrador de que
existe uma relação dual (cujos papéis estão em lugares contrários)” (Gregori,
1992:185). Lugares estes regidos por uma lógica que ordena e determina os
papéis dos envolvidos nas suas relações: namorados, companheiros, parentes e
casados como no caso de Gilda, vítima
de lesão corporal branca, natural do Ceará, vendedora disse que convive
maritalmente com Roberto a cerca de cinco anos, natural do Maranhão, solteiro,
preto, tem 27 anos e é auxiliar de serviços gerais. A partir de dois anos para
cá, ele “vem bebendo muito até o ponto de ser mandado embora do emprego.” Ela narra que:
...atualmente
(Roberto) arranjou outro emprego; que depois que passou a beber ficou mais
agressivo; que (ele) chega em casa completamente embriagado e quebra vários
objetos; que não é a primeira vez que (ela) é agredida, mas apenas registrou
este fato; que (Roberto) informou para a (Gilda) que os motivos pelos quais
vinha o mesmo agindo dessa maneira e bebendo tanto que dava ao fato de ter uma
pessoa no local de trabalho... já havia sido sua amante; que a partir desta
revelação (Gilda) pegou as roupas do (Roberto) e levou-as para casa da mãe
(dele); e que (ele) ficou constantemente ligando para o serviço... pedindo para
voltar e que estava com saudades da filha menor de 3 anos prometido de melhorar
e não mais beber; que (Roberto) não melhorou em nada; e que continua bebendo e
não assume a responsabilidade da casa; que no dia do fato registrado no
presente R.O, (ele) chegou completamente embriagado em casa e queria a todo
custo que a (Gilda) fosse para o baile de carnaval; que (ela) negou-se a
acompanhá-lo, tendo sido beliscada e empurrada, que (Roberto) ainda ameaçou...
dizendo que não tem nada a perder, caso a vítima venha se separar porque além
de matá-la depois (ele) dá um fim também na vida dele. Que (Gilda) pretende dar
procedimento nas investigações contra o indiciado.
Para Gilda, marca-se uma determinada situação violenta que resulta em
registro policial, definida aqui como situação-limite. Neste inquérito, o que
configurou de situação-limite, entendida como uma situação intolerável que
motiva a vítima a registrar ocorrência foi o fato do seu companheiro ter tido
uma amante e de ter sido ameaçada de morte. Roberto conta que:
(Gilda) não cumpre com as
tarefas de casa; que ao chegar em casa não tem jantar, e por várias vezes (ela)
jogou as (suas) roupas...na rua, tentando de tudo para que o mesmo vá embora de
casa, que o (Roberto) informa que a Gilda insiste em se separar, mas (ele) não
aceita essa idéia... que desconfia que os motivos de tudo isso se dá no fato do
mesmo chegar muito tarde em casa nos finais de semana; que (Gilda) não reclama
nem diz uma palavra, sendo que também não quer ter relações sexuais com o
(Roberto); o qual informa não ter mais relações sexuais com ela a cerca de 08
meses; que o indiciado ressalta ter uma filha menor de 3 anos com a comunicante[xii][12]... que o indiciado afirma que agrediu a
vítima pelo fato da mesma lhe ter provocado com palavras; chamando-o de “nêgo,
crioulo”, e que percebeu que várias roupas... estão sumindo e quando perguntou
o motivo do desaparecimento (Gilda) informa que o mesmo “se vire” em procurar e
achar, que o indiciado alega ter sido agredido também pela (Gilda),
apresentando marcas no braço esquerdo e no peito, produzido segundo (Roberto)
por unhadas, que foi informado da necessidade de comparecer ao IML ( Instituto
Médico Legal), para exame de corpo de delito, sendo que o indiciado não deseja
proceder ao exame, dizendo que deixasse “pra lá”; que isso é briga de amor...
A partir de significados elaborados socialmente, as categorias raciais
“nêgo, crioulo” são pensadas como meio de classificar as pessoas segundo
princípios hierárquicos e como vêem a si mesmos conforme as relações
estabelecidas de proximidade ou distanciamento entre os envolvidos. Essas
relações demarcam e caracterizam os limites de convivência entre casais.
A
responsabilidade da casa, o cuidado do lar é atribuição destinada exclusiva às
mulheres e andar nas ruas, à noite é colocar-se a mercê de uma situação de
violência. Na verdade, as atividades privadas e públicas e as suas interações
ampliam-se e se diversificam crescentemente. Porém, as possíveis soluções para
as “brigas domésticas constantes”
entre casais e familiares relatadas nos inquéritos encontram-se confinadas à
relação existente entre os envolvidos.
O que se percebe é que as relações existentes entre os envolvidos
casados ou companheiros são visivelmente encaradas como intocáveis. Sob o ponto de vista de Roberto, o espaço da vida
privada dos casais, a intimidade destes deve ser mantida por fazer parte das
“brigas de amor”. Este termo desqualifica a declaração de Gilda por apelar a um
universal dentro do padrão que acaba por justificar
as possíveis situações de violência existentes entre casais. Padrão este que se
sedimenta a partir de papéis atribuídos a homens e mulheres no imaginário
social que fornece modelos de comportamento e procedimento dos envolvidos nas
relações entre casais.
É interessante notar que os
motivos que dinamizam a fala dos envolvidos nos inquéritos com a rubrica o
motivo do crime, entram como elemento fundamental ao designar os possíveis
caminhos para a compreensão do modo como essas pessoas concebem e percebem o
mundo. Baseia-se esta afirmativa na definição weberiana de “motivo” enquanto
“... uma conexão de sentido que, para o próprio agente ou para o observador,
constitui a “razão” de um comportamento quanto ao seu sentido” (Weber, 1991,
v.1:8). Sobre os relatos, é importante ressaltar que o “motivo do crime” tem
sempre um caráter acusatório em referência aquele que é o protagonista da sua
fala - vítima, indiciado e vice-versa. O motivo do crime é definido pelos
envolvidos enquanto o início - o ponto de partida que causa a violência. Nesta
perspectiva, os inquéritos observados apresentam circunstâncias e aspectos
destacados pelos envolvidos a serem modificados ou rompidos em suas relações
cotidianas; eximindo-se das agressões e culpabilizando o outro.
No que concerne a posição de Ronaldo, viúvo, natural do Rio de Janeiro,
preto, tem 37 anos e está desempregado é de negar as acusações de ameaça[xiii][13] ao narrar que:
“...vive
maritalmente com (Maria da Conceição) há cerca de 3 anos. Que, dessa união
tiveram 3 filhos. Que (Ronaldo) não vem se entendendo bem já há algum tempo,
pois (ela) não tem cumprido com as obrigações da casa. Que (ele) não ameaçou...
como (Maria da Conceição) alega. Que o indiciado apenas mandou que ela
arrumasse um lugar para morar, pois não dava para os dois continuarem a morar
juntos, devido as discussões. Que o indiciado recebeu o convite e não
compareceu, pois foi trabalhar. Que (ela) passou 1 semana fora de casa, mas
retornou, pois não tinha onde morar. Que (Ronaldo) nunca agrediu, nem
ameaçou (Maria da Conceição)...”
Maria da Conceição é preta, passadeira, natural da Bahia, tem 36 anos,
separada judicialmente fez uma petição porque está sofrendo ameaça de morte por
seu companheiro e contou que:
1.
tenho um relacionamento amoroso com (Ronaldo), viúvo, 37 anos, desempregado, há
cerca de 4 anos. Temos 3 filhos. Moro na casa dele com nossos filhos. Eu
trabalho para sustentar a casa.
2.
Nossa convivência já não é boa há muito tempo. Inclusive já estou procurando
uma forma de deixá-lo, saindo da casa dele; só que ainda não consegui arrumar
uma nova casa para morar. Não suporto mais ter que ser obrigada a fazer sexo
com (ele). (Ronaldo) diz que enquanto eu estiver na casa dele sou obrigada a
aceitá-lo na cama...ele disse que se eu não for para cama com ele, irá me
espancar. Quando sai para trabalhar pela manhã (Ronaldo) disse que era melhor
eu não voltar. Não tenho para onde ir, assim, de uma hora para outra.
Delegada, por favor, ajude-me.
Pela descrição de Maria da Conceição, a ameaça é decorrente da
violência sexual. Em situações como esta, a justiça brasileira não considera enquanto crime a
violência sexual entre casais. Logo, a instauração de inquéritos entre os
envolvidos casados e companheiros nestas situações específicas se enquadram a
outro(s) delito(s) narrado(s) pela vítima porque é pressuposto no modelo de
relação entre casais uma aceitação ou dever da mulher ao sexo. No termo de
declarações, Maria da Conceição disse que:
Reitera
o que já foi dito como expressão da verdade... que há cerca de seis meses o
amor acabou... (Ronaldo) obrigou a vítima a fazer sexo com ele dizendo que iria
matá-la com uma faca; que esta foi a única vez que ele pegou a faca, pois
normalmente ele ameaça de bater...como forma de obrigá-la a ter relação com
ele; que no dia em que (ele) usou a faca para ameaçar (Maria da Conceição), as
duas filhas da vítima estavam em casa e ouviram as ameaças. Que suas filhas
virão em data oportuna para prestar os devidos esclarecimentos; que a casa é do
indiciado mas a vítima não tem para onde ir e por isso não pode sair de lá com
suas filhas; que deseja dar prosseguimento ao presente inquérito.
Maria da Conceição deseja prosseguir com o andamento judicial por não
suportar mais a convivência com Ronaldo. A violência sexual, via de regra, só é
considerada um ato violento quando praticada por estranhos ao contrato
matrimonial, portanto, vista como normal
quando ocorre no seio do casamento, conforme assevera Heleieth Saffioti
(1994:443-461). Sobre este comentário, o que a autora coloca em pauta é o papel
da mulher enquanto propriedade do homem, logo sexualmente disponível ao sexo. Marca-se assim, a pressuposição do “dever
conjugal” da mulher ao sexo nas relações entre casais casados e companheiros
que tem como modelo o ideal de casamento e família.
A violência conjugal estende-se e envolve outros familiares que
convivem juntos, geralmente os filhos do casal que passam a ser testemunhas das
agressões; conforme foi relatado por Maria da Conceição. Deste modo, as
prováveis testemunhas da violência são os próprios familiares; especificamente,
na grande maioria dos casos, os próprios filhos do casal e, em outras situações como vítima conforme narrou Silvia.
Em referência ao tratamento dispensado aos envolvidos, a polícia
se baseia em estereótipos e
comportamentos pré-determinados que os enquadram a modelos já construídos pela
Justiça.[xiv][14] Entram como elementos determinantes: quem
é o indiciado e a vítima e a gravidade do risco a que está submetida, a relação
existente entre os envolvidos, a cor, a classe social a que pertencem e etc.
Assim, a caracterização dos envolvidos e não do crime em si é o componente
fundamental que vai determinar o tratamento jurídico dispensado aos crimes de
lesão corporal e os de ameaça, tendo como base estes elementos acima
mencionados.
Heleieth Saffioti (1992) ao discutir as diversas construções de
identidade e processos de subjetivação e objetivação do sujeito parte desse referencial
teórico para analisar a Rotinização da
Violência contra a Mulher segundo as entrevistas realizadas com vítimas de
violência conjugal em delegacias policiais do Rio de Janeiro.
A autora coloca que, sob a perspectiva da impunidade “...a violência pode
rotinizar-se e reproduzir-se crescentemente”. Ela observa que as suas
informantes encontram-se “diante de relações e não de ações de violência”. Na
verdade, são relações constitutivas de situações de violência que referenciam a
fala dos envolvidos no momento quando constroem, no plano do discurso, o perfil
e o comportamento da vítima e do indiciado.
A violência conjugal é definida pela constância em que ocorrem as
agressões. As agressões podem tornar-se mútuas e crescerem com frequência, rotinizando-se. A agressão física e/ou
verbal são os componentes fundamentais que solidificam a violência existente
entre casais. Dessa maneira, a violência conjugal insere-se no contexto das
relações violentas.
No que concerne ao mundo da Justiça, as suas soluções caminham a passos
lentos. O mundo da justiça para muita gente é incerto e leva muitas vezes a
terrenos escorregadios e desconhecidos. No contexto da DEAM, cada história a
ser contada, cada característica, elemento e aspecto narrados de forma
descritiva configura uma determinada situação que remete, obrigatoriamente à
uma ação violenta; seja ela física e/ou verbal definido aqui de situação de
violência.
As situações de violência descritas se inserem em um contexto específico,
em uma determinada realidade social - as delegacias da mulher e são traduzidas
em situações-crime, passíveis de
registro policial.
A fala dos envolvidos, em sua gênese, é uma narrativa que se enquadra,
ao responder as indagações que consistem na prática da investigação e
averiguação dos delitos a uma linguagem técnica e juridicamente determinada. As
entrevistas e declarações de vítimas e indiciados representam o mundo jurídico
e impessoal, de caráter imparcial e hierárquico que busca uma verdade dos fatos.
Em nome de uma autoridade legalmente reconhecida, cabe a (o) delegada(o) de
polícia a decisão pela instauração do inquérito ou não. Assim, a DEAM tem o
papel de mediadora ao determinar padrões de comportamento para os envolvidos
(vítima e indiciado) e ao facilitar e possibilitar “instrumentos de negociação”
para os relacionamentos amorosos.
As respostas às indagações e
dúvidas sobre o ocorrido movem o caso na polícia através de relatos feitos
pelos envolvidos acerca da violência traduzida em crime, ou seja, passível de
registro policial em uma delegacia da mulher. O crime é definido aqui como a
infração de um contrato jurídico ou
regra de competência da justiça.
A descoberta da verdade passa pela interpretação feita, preliminarmente
pela(o) delegada(o) e, na fase posterior (fase da justiça) regimentada pelo
juiz onde tudo pode mudar uma vez que a autoridade se define por estar além dos fatos, ou seja, acima dos fatos que pressupõe uma
separação rígida dos fatos e de suas
interpretações. Visa-se assim abrir caminhos através das vias judiciais até
chegar a alguma realidade exata, existente. Assim, o juiz e seus magistrados descobrem a verdade dos fatos através
de uma interpretação do caso. Isto significa dizer que a verdade jurídica é
interpretativa.
Nos relatos de vítimas e indiciados vem à tona valores e comportamentos
que são dimensionados e reelaborados pelas vítimas e pelos indiciados segundo a
cor, a relação existente entre eles e a classe social a que pertencem.
Destaca-se, primordialmente aqui características e aspectos que se singularizam
de acordo com o contexto particular e específico (construído por eles mesmos)
em que se encontram inseridos os envolvidos.
A relação entre casais como também o de parentes é confinada ao âmbito
privado, dicotomicamente como não pertencentes ao âmbito jurídico, ao mundo das
leis. A grande maioria dos inquéritos policais instaurados na DEAM são
arquivados em fase de inquérito; encerrando-se,
dessa forma o caso. Por exemplo, o trabalho, como valor fundamental ao
indivíduo, e a inexistência de antecedentes criminais são as referências
básicas para que o indiciado se enquadre como um possível inocente do delito
imputado.
Em referência a mulher, a conduta moral e sexual das vítimas é mais valorizada e não o crime em si no
processo judicial, a partir da categoria jurídica: “mulher honesta” [xv][15] que se encontra diretamente vinculada a
idéia de recato e pudor.
Contudo, a fala dos envolvidos sob formas legais deve ser independente a qualquer tipo de
manipulação judicial feita pelos agentes da lei (delegados, advogados, juízes e
promotores...) frente a cor, genêro e classe social. A própria noção de
igualdade e universalidade são os alicerces da Justiça e as leis devem parecer
à sociedade indispensavelmente justa. No entanto, de forma paradoxal, a idéia
de igualdade torna-se ambivalente gerada por regras de proporcionalidade(Dumont,
1985). As mulheres vítimas de violência que não se enquadram no modelo de
mulher honesta concebido no cenário jurídico não possuem direitos na prática,
só deveres. Ficam marcadas judicialmente e se encontram no fundo de cena do
contexto da violência conjugal no Brasil. Logo, as questões abordadas neste
artigo partem de um impasse: na crença de que somos todos iguais perante as
leis na sociedade brasileira.
A fala dos envolvidos, ou antes, os elementos, a personalidade de
vítimas e indiciados e as circunstâncias descritas por eles mesmos sobre o
crime são destacados e adequados aos moldes judiciais enquanto fontes
constitutivas e constituintes dos fatos. Assim, os fatos reveladores da verdade têm como fonte as circunstâncias em
que ocorreu a violência segundo o relato dos envolvidos, como também a
adequação da descrição feita (por eles mesmos) de vítimas e indiciados a tipos
já construídos pela justiça.
Os envolvidos narram as suas histórias pessoais - as atribuições de
cada um onde o não-cumprimento, as atitudes e comportamentos nas relações entre
casais não se adequam aos papéis destinados a namorados, companheiros e
casados, onde a quebra, a violação de regras (tais como as de ser bom chefe de
família e trabalhador, boa mãe e esposa) possibilitou a instauração de
inquéritos policiais, ou seja, suscitaram conflitos que desencadearam a
violência denunciada.
As bases que
sustentam a caracterização da violência nos moldes judiciais não dão conta da
complexidade dos casos analisados, onde vítimas e indiciados são tratados
dentro de uma ótica que visa adequar a um padrão de moralidade; levando-se em
conta, a cor e a classe social de vítimas e indiciados. Imaginário este
concebido e pensado que é dimensionado e reelaborado pelas vítimas e pelos indiciados
que dependem do contexto social em que se encontram inseridos onde são
construídas e dimensionadas as visões e referências de mundo de cada um deles,
ganhando singularidade em cada caso descrito uma vez que se tem como premissa
aqui que cada caso é um caso.
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[i][1]
Termo que engloba as diversas formas de violência envolvendo mulheres vítimas.
[ii][2]
Os nomes das vítimas e dos indiciados são fictícios para proteger a verdadeira
identidade.
[iii][3]
O Código Penal em vigência no Brasil, definife Lesão corporal em seu Art. 129: “Ofender a integridade corporal ou
a saúde de outrem. Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.
[iv][4]
O levantamento das informações é feito mediante os termos de entrevista
realizados pelas policiais às vítimas e indiciados. A análise dos relatos dos
envolvidos feitos em declarações e depoimentos tem como premissa os escritos de
Queiroz, 1988:272-268; no momento em que afirma que o depoimento é dirigido
diretamente pelo pesquisador - neste contexto específico pelas policiais
(escrivãs) - pode fazê-lo com maior ou menor sutileza, mas tem sob a sua
responsabilidade “o fio da meada” e conduz a entrevista.
[v][5]
A concepção de casal utilizada aqui se baseia nas idéias de Mariza Corrêa
(1983: 22): “São aqueles considerados
casais não apenas os legalmente casados mas também aqueles que mantém ou
mantiveram uma união do tipo casamento, ou que a ele se destinava. Em suma,
todos os casos onde a relação homem-mulher e os direitos e deveres que a ela
dizem respeito fossem o centro da discussão...aqueles que os
envolvidos...tinham uma relação de convivência atrás de si”.
[vi][6]
Cf. Azevedo, 1985:1-176; Gregori, 1992: 1-218; Saffioti, 1994:443-461.
[vii][7]
Tem-se como ponto básico a preocupação da relação existente entre vítima e
indiciados (os envolvidos). Não foram incluídos os dados de testemunha como categoria de análise.
[viii][8]
Os crimes registrados na DEAM são os seguintes: aborto provocado por terceiro,
lesão corporal, abandono de incapaz, maus-tratos, constrangimento ilegal,
amaça, sequestro e cárcere privado, estupro, atentado violento ao pudor,
sedução, corrupção de menores, rapto - e suas modalidades.
[ix][9]
A instauração de inquéritos parte do crime e não da própria vítima, uma mesma
vítima pode ter mais de um inquérito. Neste sentido, a “...finalidade principal
do inquérito policial é servir de instrumento básico para a ação penal; é o
inquérito a peça de que se servirá o Ministério Público para, com a denúncia ,
desencadear o processo penal”. Cf.
Moraes, 1986:126.
[x][10] Baseia-se aqui nas colocações de Barbara Musumeci Soares no momento em
que destaca as denúncias de lesão corporal e
de ameaça que envolvem, majoritariamente, como ela mesmo diz, relações
conjugais. Nesta perspectiva, ela acredita que “…as tentativas de demonstrar a
universalidade da violência têm perdido, exatamente, a possibilidade de
iluminar as particularidades que contribuiriam, enormemente, para o
enfrentamento das violências específicas.” (Soares , 1996: 118)
[xi][11] O termo “convivência cotidiana” utilizada neste estudo baseia-se nas
idéias de Mariza Corrêa (1983: 22)
quando se refere a concepção de casal denominada pela autora de “relação de convivência atrás de si”.
[xii][12] Ou vítima, ou noticiante.
[xiii][13] O Código Penal Brasileiro define Ameaça
em seu Art. 147: “Ameaçar
alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de
causar -lhe mal injusto e grave. Pena:_ detenção , de (1) um a (6) seis meses,
ou multa. Parágrafo único. Somente se procede mediante representação.”
[xiv][14] Cf. Corrêa, 1983 e Ardaillon & Debert, 1987:5-96.
[xv][15] Segundo Martha de Abreu Esteves (1989: 89), que analisou processos criminais do final do século e
início deste, chama a atenção em nota que, após o Código de 1940 “ a mulher
passou a ser vista pela Justiça de outra forma... passou-se a reconhecer na mulher um corpo com desejos e diminuíram
muito as distâncias, no discurso jurídico, entre a mulher honesta e a
prostituta”.
Disponível em: < http://www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/volume01/vol04_atg8.htm >. Acesso em: 21/11/06.