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A desenfreada avidez por
condenação no crime de porte de substância entorpecente. Art. 16 da Lei nº
6.368/76
Nilton César Gomes Batista*
"O fim do direito é a
paz,
o
meio de que se serve para
conseguí-lo
é a luta. Enquanto
o
direito estiver sujeito às ameaças
da
injustiça – e isso perdurará enquanto
o
mundo for mundo -, ele não poderá prescindir
da
luta..." (Rudolf Von Iherig – A Luta pelo Direito).
Como
guardiã constitucional da defesa dos interesses daqueles que não dispõem de
recursos financeiros para a contratação de serviços técnicos especializados,
notadamente o de advocacia, a Defensoria Pública do Distrito Federal tem
enfrentado com determinação a árdua tarefa da defesa, perante os Juizados
Especiais Criminais, dos crimes relacionados ao uso de entorpecentes,
consubstanciados na Lei 6368/76.
O
direito é uma ciência dinâmica, que sempre tem procurado dar respostas aos
problemas humanos e que afligem a humanidade. No entanto, a sua dinamicidade é
dada pelos operadores dessa ciência que, ao largo do texto frio da lei,
procuram, por um processo hermenêutico, atualizá-la e melhor aplicá-la à
realidade e ao caso concreto.
Estamos
tratando do artigo 16 da Lei 6.368, de 21 de outubro de 1.976, que, por força
do parágrafo único do art. 2º da Lei 10.259, de 12 de julho de 2.001, deve ser
processado pelo rito da Lei 9.099/95. Poder-se-ia dizer que este crime é um
crime próprio da juventude, dada a tão grande quantidade de jovens envolvidos
com essa prática e que diuturnamente são processados, julgados e condenados
impiedosamente pelos Juizados Especiais Criminais.
Quando
da aprovação da lei, estávamos vivendo ainda num regime de exceção no Brasil,
iniciado em 1.964 e que só viria a findar-se com o movimento nacional por
eleições diretas. A Lei 6.368/76 foi formulada em atendimento aos planos de
governo militar, que, durante o período em que comandou o país, restringiu com
mão-de-ferro as garantias e direitos individuais, sobretudo os da liberdade, da
livre expressão do pensamento e tantos outros.
Isso
para observar que, em um dado momento histórico, as normas são criadas
atendendo a determinada necessidade. Com o tempo, as relações modificam-se, a
sociedade evolui naturalmente e surge a necessidade de criar novas leis e de
revogar outras.
O
juiz, ao aplicar regras jurídicas para resolver problemas concretos, tem,
necessariamente, que fazer um juízo de valor sobre a regra, questionando a
validade e necessidade de sua aplicação para aquele caso concreto. Isso
significa que o direito é conteúdo da atividade do Juiz – e não o seu limite,
como pretende a visão positivista. A lei deve conter o direito, é certo, mas
imprescindível se revela um juízo de valor e hermenêutico sobre ela.
Como
operadores do direito, condutores em potencial e privilegiados desse processo
da dinâmica juríco-social, não podemos nos comportar como reprodutores de
papéis postos e acabados da elite pensante desse país. Cabe-nos, ao contrário,
a postura de constante inquietação acerca dos fatos sociais e das normas que
regulam esses mesmos fatos sociais. Não há como ser diferente se se fica
repetindo, ad aeternum, feito robô programado, normas, teses e idéias
postas.
A
única maneira de ser diferente – e aí destacar-se – é estudando diuturnamente
os fenômenos sociais, confrontando-os com as normas que os regem, procurando e
encontrando, nos vazios deixados por este confronto, as soluções mais adequadas
aos reclamos sociais vigentes.
A
realidade brasileira tem mudado – e muito – desde a edição da Lei 6.368/76.
Estamos vivendo um momento no Brasil em que é questionado se o fato de apenar o
cidadão, tirá-lo do convívio social, iria resolver as mazelas sociais. Estamos
passando da concepção estritamente legal e punitiva para uma concepção
preventiva e curativa de muito dos males que nos afetam, dentre os quais se
destaca a conduta tipificada no art. 16 da lei em comento.
O
Brasil, por meio do Decreto nº 4.345, de 26 de agosto de 2.002, instituiu a Política
Nacional Antidrogas. No seu artigo 1º, a norma traça os princípios, os
objetivos e as diretrizes dessa política:
"Art.
1º - Fica instituída, na forma do Anexo a este Decreto, a Política Nacional
Antidrogas, que estabelece objetivos e diretrizes para o desenvolvimento de
estratégias na prevenção, tratamento, recuperação e reinserção social, redução
de danos sociais e à saúde, repressão ao tráfico e estudos, pesquisas e
avaliações decorrentes do uso indevido de drogas".
Fácil
concluir, tão somente pela leitura desta fração de conteúdo da norma, que a
Política Nacional, ou seja, do País, do Estado Brasileiro, da República
Federativa do Brasil, tem como preocupação básica o tratamento, a recuperação e
reinserção social e jamais a repressão, exceto para o TRÁFICO de entorpecentes.
Aliás, não se observa em momento algum a REPRESSÃO ao consumo para uso próprio
de entorpecentes.
Flagrantemente,
os vagões do trem não estão correndo pelo mesmo trilho. Poderíamos nos valer da
saída mais fácil que é colocada, dizendo que este é um problema do legislador.
Ele é que tem que mudar a lei para entrar em consonância com a Política
Nacional. Ouso duvidar. O processo formal de aprovação, esse sim, depende do
legislador, da sua presença no plenário e do seu (nosso) voto. Mas o processo de
formulação e de modificação das leis surge, como aprendemos em lição da
faculdade, dos fatos sociais. São os fatos sociais, os clamores do povo, dos
representados é que chegam aos ouvidos dos nossos representantes a exigir deles
uma postura de captador e tradutor dessas demandas em letras genéricas e
abstratas a criar obrigação para toda a sociedade ou grupos sociais.
Seguramente,
este é um problema de que não podemos nos livrar assim tão facilmente. O
Decreto reconhece que a iniciação do indivíduo ao uso indevido de drogas tem
sido cada vez mais precoce. Reconhece que no ano de 1997, 51,2% dos
adolescentes de 10 a 12 anos consumiram bebida alcoólica; 11% usaram tabaco;
7,8% solvente; 2% ansiolíticos e 1,8% anfetamínicos, constatando, inclusive,
que numa pesquisa em seis capitais brasileiras, 88,5% dos adolescentes de 9 a
14 anos fizeram uso na vida de substâncias psicoativas, sendo que as drogas
mais usadas, três delas consideradas lícitas, foram o tabaco, os inalantes, a
maconha, o álcool, a cocaína e derivados.
Dentre
os pressupostos básicos da Política Nacional Antidrogas componentes do Decreto,
destacamos os seguintes:
2.3
– Evitar a discriminação de indivíduos pelo fato de serem usuários ou
dependentes de drogas.
2.4
– Buscar a conscientização do usuário de drogas ilícitas acerca de seu papel
nocivo ao alimentar as atividades e organizações criminosas que têm, no
narcotráfico, sua principal fonte de recursos financeiros.
2.5
– Reconhecer o direito de toda pessoa com problemas decorrentes do uso indevido
de drogas de receber tratamento adequado.
2.6
– Fundamentar no princípio da "Responsabilidade Compartilhada" a
coordenação de esforços entre os diversos segmentos do Governo e da Sociedade,
em todos os níveis, buscando efetividade e sinergia no resultado das ações, no
sentido de obter redução da oferta e do consumo de drogas, do custo social a
elas relacionado e das conseqüências adversas do uso e do tráfico de drogas
ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas.
2.14
– Orientar o aperfeiçoamento da legislação para atender a implementação das
ações decorrentes desta política.
5.1.5
– Reconhecer a Justiça Terapêutica, canal de retorno do dependente químico para
o campo da redução da demanda.
6.2.4
– Definir a qualidade de vida e o bem-estar individual e comunitário como
critérios de sucesso e eficácia para escolha das intervenções e ações de
redução de danos.
Como
sabido de todos, diferentemente do atendimento de sua concepção, o sistema
penal brasileiro, ao invés de ressocializador e reintegrativo, é altamente
excludente e discriminatório. As penas impostas têm atendido plenamente ao
seu caráter de apartação social, na medida em que tira o cidadão do convívio
social para um sistema de constrição da liberdade individual, mas tem se
revelado extremamente ineficazes no seu conteúdo de ressocialização e
reintegração desse mesmo indivíduo à sociedade. Sabemos que essa patologia não
advém da pena em si, mas da configuração de todo o sistema penal.
Dessa
forma, aprendemos e vivemos no nosso dia-a-dia de que CADEIA não reeduca
ninguém.
Num
país enorme como o nosso, em que grande parte da sua população é composta por
jovens e jovens ávidos por uma chance de trabalho, por uma colocação melhor no
mercado, que lutam pelo reconhecimento de sua capacidade, que conclamam por
políticas públicas específicas como a do primeiro emprego, não podemos em
momento algum esquecer da nossa responsabilidade social para com a vida, a luta
e as esperanças desses jovens.
Uma
condenação num crime como este do artigo 16, além de andar na linha oposta a da
Política Nacional Antidrogas, é um ATESTADO DO CRIME DE DISCRIMINAÇÃO praticado
pelo Estado, vez que marca para sempre e negativamente a vida de uma pessoa que
está apenas no seu começo. Como o feitiço que se vira contra o feiticeiro, ao
invés de se fazer justiça, patrocina-se todo tipo de discriminação contra essa
pessoa, desde dificultar a sua vida no mercado formal de trabalho, até ferir os
direitos da personalidade.
A
quem queremos punir com essa desenfreada avidez por condenação neste crime?
Queremos punir aquele que realmente influencia, que dissemina o consumo na
sociedade, ou o viciado/dependente? Ser viciado é crime?
Paremos
para analisar esse crime. Se configurada materialidade e autoria, diz a lei, o
autor já está condenado, independentemente da quantidade apreendida consigo,
porque se entende que o crime é de perigo abstrato, ou seja, de qualquer sorte
macula a saúde social.
SERÁ?
Parece que já vi esse filme da Lei de Introdução ao Código Civil. No art. 3º da
LICC está dito de que "ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que
não a conhece". Já no famigerado art. 21, primeira parte, do Código Penal
está dito que "o desconhecimento da lei é inescusável". Será que só
porque determinado na LICC ou no CP passamos, como num passe de mágica, logo no
nascimento a conhecer todo o ordenamento jurídico vigente? Essa é uma das
maiores aberrações legais que já conheci e me parece ser também essa questão o
perigo abstrato.
O
próprio STJ propaga por meio de seus precedentes jurisprudenciais de que o
acusado, mesmo aquele que comprou para consumo próprio uma ínfima quantidade de
substância para satisfazer ao seu vício, deve ser condenado, vez que causa
perigo em potencial da disseminação desta prática no meio social. Será que o
dependente-consumidor, alimentador e sustentador de seu vício quer livre e
conscientemente causar mal injusto e grave à saúde da sociedade quando compra
para seu consumo uma infimidade de substância? Tem, por exemplo, o animus
refletido como dos autores do atentado ao Wold Trade Center,
em contribuir de forma decisiva para a estrangulação da tão eficiente e
imaculada saúde pública brasileira?. A resposta não pode ser outra: é NÃO. O
intuito é só e, somente só, o de satisfazer, temporariamente, ao vício, tal
como um dependente de tabaco tem a necessidade de alimentar o vício em fração
regular de tempo.
O
Frei Betto, ex-articulador do governo para o programa Fome Zero, fez um
questionamento interessante em uma palestra proferida. Perguntava porque se gasta
mais na publicidade contra a AIDS do que contra a FOME. E ele, depois de
silenciosa espera, respondeu: "É porque a AIDS mata indistintamente",
ou seja, não escolhe a origem, a classe, a cor, a raça, o sexo, o credo ou a
idade. Atinge a todos da sociedade: pretos e brancos, ricos e pobres. Como a
FOME atinge somente à pobreza, pouco espaço tem na mídia, apesar dos enormes
esforços do governo em colocar esse tema na agenda política nacional e do
mundo.
Acho
que análoga é a questão dos entorpecentes.
Vivemos
em uma sociedade complexa, que independentemente do nosso querer, somos
forçados a conviver. Entre as causas que levam ao consumo de drogas, é
importante citar problemas e questionamentos que geralmente se manifestam na
adolescência, como o sexo, a relação com os pais e com a família. Fator
preponderante também é o campo social em que o indivíduo vive, pois pode o
jovem vir a sentir-se inferior econômica ou culturalmente, recorrendo, assim,
ao uso da droga. Muitas vezes o problema encontra-se no plano afetivo
somente, levando o indivíduo a procurar nas drogas outras fontes de emoção e
prazer que não encontra no seio familiar. As razões que levam à permanência da
utilização da maconha em específico estão relacionadas com os efeitos desta
droga, que são: modificação do contato com a realidade, anestesia da timidez,
perda da crítica, segurança, excitação, dissociação de idéias, sentimentos de
felicidade.
Contrariando
o conhecimento leigo de muitos indivíduos, pode-se constatar que a ingestão de
maconha não faz com que o indivíduo transforme-se em um ser agressivo, perigoso
ou criminoso. O seu usuário não é uma ameaça em potencial para a sociedade. Os
efeitos do uso dessa droga podem até prejudicar seu desenvolvimento pessoal,
mas esse é um âmbito no qual o Direito não deve interferir.
De
acordo com o médico Luiz Paulo Paim Santos, diretor da Cruz Vermelha
Internacional do Rio Grande do Sul e chefe do serviço de álcool e drogas da
clínica Pinel (Zero Hora, 17.09.1990, p. 24-25), a questão das drogas não será
mudada pela repressão ao consumo, e sim pelo combate às causas que levam ao
consumo, complementando que o ataque ao consumo de drogas deve vir de cima, dos
governos, via educação e informação. Sua idéia é de se empenhar em algo maior,
feito uma política social que seja formal, legítima e adotada por todas as
camadas da sociedade. A questão das drogas somente se vai transformar em
solução quando pensada como política oficial, diz ele. É isso que já estamos
vendo por parte do Governo Federal, mas infelizmente, no âmbito dos tribunais,
arraigados a conceitos arcaicos e desprovidos de consonância social, sobretudo
no que se refere a esse crime do artigo 16, mesmo com o clamor social forte,
ainda continua a trabalhar com a concepção estritamente legal e punitiva,
condenando muitos e muitos jovens ao fracasso pessoal e profissional
prematuramente.
Ao
longo da história, ficou comprovado que a proibição e a repressão referente ao
uso de drogas não surtiu o efeito de reduzir ou eliminar o número de
consumidores. Pelo contrário, este número vem aumentando cada vez mais.
A
repressão às drogas, que se manifesta no meio social por meio de atos
policiais, de `batidas´, de prisões em flagrante, de agressões físicas e
condenações judiciais aos usuários, no nosso entendimento, gera mais malefício
à sociedade e ao próprio dependente do que os efeitos individuais e sociais
decorrentes do uso de entorpecentes de que tanto se pretende coibir.
O
preconceito gerado pela repressão pública tem, em face da descoberta da
dependência em membros da família, causado profundas fissuras na própria
entidade familiar, com profundos sofrimentos do indiciado e dos familiares.
Como conseqüência imediata das prisões, sentenças ou acórdãos condenatórios por
simples uso ou porte de maconha, casamentos são desfeitos, jovens são expulsos
de suas casas, e outros traumas e modificações no rumo da vida do grupo social
familiar têm acontecido.
De
acordo com a lei brasileira, aquele simples ‘drogado de fim de semana’ ou
‘fumador de maconha’ inofensivo fica sujeito a ter sua liberdade individual
tolhida, se aplicadas as sanções previstas na Lei 6368/76 para esse crime, cuja
pena é a detenção de seis meses a dois anos e ainda o pagamento de 20 a 50
dias-multa. Esses indivíduos que vêem na maconha uma distração, muitas vezes
não precisam sequer de tratamento psiquiátrico. Condená-los e levá-los à prisão
seria fazer justiça?
Temos
a convicção de que a erradicação desse problema será antes pela compreensão,
pela tolerância, pelo tratamento em clínicas (públicas, privadas e sociais)
especializadas, que busquem, como já dito, combater de forma curativa e
preventiva as causas desse mal e não por atos repressivos e aplicação de
sanções já obsoletas.
Mesmo
nos casos em que a norma jurídica incidiu, pois ocorreu aquilo que ela previu e
regulou abstratamente, significando que a norma é ‘potencialmente’ aplicável,
cabe a nós, operadores do direito, por meio de um juízo de valor, fazer ou não
com que o indivíduo seja punido em nome do Estado.
Estamos
convictos de que este tipo de infração não oferece perigo para a sociedade e
consideramos que tal artigo se encontra, no estágio atual da sociedade, INCONSONANTE
com toda a Política Nacional do Estado Brasileiro, merecendo, portanto, ser
reconceituado por meio de uma interpretação hermenêutica, de forma a não punir
o indivíduo com pena de constrição da liberdade pura e simples, mas com aporte no
princípio da "Responsabilidade Compartilhada", que por uma política
de pactuação social, aponte, como sanção ao indivíduo dependente ou
viciado, a submissão obrigatória aos meios da prevenção e da cura das causas da
dependência e uso indevido de entorpecentes.
* advogado, assessor para atividades jurídicas da Defensoria Pública do Distrito Federal
BATISTA, Nilton César Gomes. A desenfreada avidez por condenação no crime de porte de substância entorpecente. Art. 16 da Lei nº 6.368/76. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 903, 23 dez. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7676>. Acesso em: 14 nov. 2006.